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Escritos sobre Educação

versão impressa ISSN 1677-9843

Escritos educ. v.5 n.1 Ibirité jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Educação pela autonomia através da auto-regulação: uma perspectiva reichiana1

 

Education for the autonomy through the self-regulation: a perspective of wilhelm reich's theory

 

 

Leonardo José Jeber2

UFMG

 

 


RESUMO

Este texto apresenta uma relação entre o conceito de autonomia, como o principal objetivo a ser alcançado na formação educacional, e o conceito de auto-regulação, extraído da teoria da psicologia política de Wilhelm Reich. Auto-regulação é capacidade biológica e natural que revela nosso potencial para o desenvolvimento da autonomia. O texto mostra que, a partir dessa referencia à lei natural de funcionamento da vida no individuo, é que se pode compreender a idéia de uma organização social baseada nos fluxos da natureza humana, pois o respeito a esses fluxos é condição necessária a uma cultura que almeje reconhecer os indivíduos que a compõem. O texto apresenta o trabalho de Reich no sentido de integrar os processos biológico-naturais e sociais, tentando superar a dicotomia natureza e cultura e propor uma relação dinâmica entre individuo e sociedade.

Palavras-chave: Educação, Educação física, Autonomia, Auto-regulação, Teoria reichiana.


ABSTRACT

This text presents a relationship between the concept of autonomy as the main purpose to be achieved in education and the concept of self-regulation, extracted from the theory of political psychology of Wilhelm Reich. Self-regulation is a biological and natural capacity that shows our potential for the development of autonomy. The text shows that from this reference to the law of natural functioning of the life in the individual is that can be understood the idea of a social organization based on the flows of human nature, because the respect for these flows is a necessary condition to a culture that aims to recognize the individuals within it. The text presents the work of Reich to integrate the biological, natural and social processes, trying to overcome the dichotomy nature and culture and propose a dynamic relationship between individual and society.

Keywords: Education, Physical education, Autonomy, Self-regulation, Reich theory.


 

 

O principal desafio deste novo século será a construção de
comunidades ecologicamente sustentáveis, organizadas de tal modo
que suas tecnologias e instituições sociais não prejudiquem a
capacidade intrínseca da natureza sustentar a vida. Os princípios
sobre os quais se erguerão as nossas futuras instituições sociais
terão de ser coerentes com os princípios de organização que a
natureza fez evoluir para sustentar a teia da vida.


(Fritjof Capra)

Porque motivo não pode existir uma escola que deixe a criança
aprender aquilo que quer, quando quer e, ao mesmo tempo, procure
ensiná-la a respeitar os direitos das outras?


(Orson Bean) 3

Segundo Ademar Ferreira dos Santos4 (2000), uma educação auto-regulada está embasada “no sentido de que as normas e as regras que orientam as relações societárias não são injunções impostas ou importadas simplesmente do exterior,

mas normas e regras próprias que decorrem da necessidade sentida por todos de agir e interagir de uma certa maneira, de acordo com uma idéia coletivamente apropriada e partilhada do que deve ser o viver e o conviver numa escola que se pretenda constituir como um ambiente amigável e solidário de aprendizagem”. 5

Auto-regulação é a capacidade biológica e natural que revela nosso potencial para o desenvolvimento da autonomia. Para Constance Kamii (1990), a essência da autonomia é fazer com que as crianças se tornem aptas a tomar decisões por si mesmas. Mas, segundo essa estudiosa, a autonomia não é o mesmo que a liberdade completa e também não é liberdade plena e absoluta. A autonomia significa levar em consideração os fatos relevantes para decidir agir da melhor forma para todos. E, para tanto é preciso ser capaz de se ter um contato com as sensações e percepções auto-reguladoras em seu organismo.

Para Wilhelm Reich, auto-regulação é sinônimo de vida. Segundo André Barreto (2000), vida é para Reich ação e auto-regulação em busca do prazer, o que se explica, segundo esse autor, à medida que o organismo é regido por leis e fluxos naturais que, se devidamente respeitados, permitem ao indivíduo a realização de suas potencialidades inatas. Se não houver esse respeito, se essas leis e fluxos forem interrompidos, produzem uma desorganização, uma “desfuncionalidade”. Isso pode ser visto na vida dos indivíduos, quando há na impossibilidade de expressão emocional, em decorrência de uma repressão sexual6, o que conduz à neurose e à irracionalidade.

Para Wilhelm Reich, segundo André Barreto (2000), somente a partir dessas descobertas referentes às leis naturais de funcionamento da vida no individuo é que podemos compreender a idéia de uma organização social baseada nos fluxos da natureza humana, pois o respeito a esses fluxos é condição necessária a uma cultura que almeje reconhecer os indivíduos que a compõem. Todo o trabalho de Reich foi no sentido de integrar os processos biológico-naturais e sociais, tentando superar a dicotomia natureza e cultura e propor uma relação dinâmica entre indivíduo e sociedade.

Segundo José Gustavo Sampaio Garcia (2006),

“a capacidade intencional de escolha e de ação é característica essencial e exclusivamente humana e está enraizada nas funções biológicas naturais. A liberdade, na ótica reichiana, é o resultado evolutivo da auto-regulação, função que está presente em todas as formas de vida fundamental ao processo do organismo vivo e que o distingue dos sistemas não-vivos. É a aptidão que o ser vivo possui para administrar suas necessidades sem interferência externa, um principio básico da própria existência da vida. Não se pode pensar em vida sem auto-regulação. A sua falta é o primeiro passo para a doença e a decomposição (Reich, 1979).

Portanto, auto-regulação7 significa que um organismo saudável é um sistema regulado em si mesmo, no estado de coordenação harmônica entre processos pulsantes em todas as células e órgãos, até os movimentos respiratórios e os movimentos pulsantes no reflexo do orgasmo8. Esse é um conceito reichiano. Para Reich, biologicamente falando, o orgasmo é uma função auto-reguladora do organismo vivo. Ao estudar a função do orgasmo, Wilhelm Reich descobriu a fórmula da vida que se expressa em Tensão-Carga-Descarga-Relaxamento. É uma fórmula que se manifesta no organismo vivo e que mostra a capacidade do organismo de se auto-regular. Para Reich, a função do orgasmo é a função vida em sua força potencial para a plena realização. Sem essa capacidade o organismo padece.

Orson Bean (1973) explica sinteticamente a função do orgasmo: Os seres humanos, da mesma forma que todas as coisas vivas, a partir da ameba, possuem uma energia interna até hoje não revelada. Wilhelm Reich descobriu-a e deu-lhe o nome de energia orgônica – do radical da palavra organismo. Essa energia é, de fato, a força vital, fisicamente falando. Energia produzida pela ingestão de alimentos, fluidos e ar e diretamente absorvida pela epiderme. Bean destaca que Reich pesquisou e descobriu que a energia orgônica flui em ritmo constante através de todo o corpo, do alto da cabeça à planta dos pés, num movimento de ida e volta e, nas pessoas naturais e de perfeita saúde, pode ser sentida como uma agradável e quente sensação de saúde e bem estar. Sua eliminação se processa pela atividade, excreção, expressão emocional, pelo processo do pensamento e ao ser transformada em calor corporal, que é irradiado para o meio ambiente. Além disso, atua sobre o crescimento. Em casos normais, essa energia é produzida em proporção superior à que é eliminada. O excesso de energia é armazenado para atender a situações de emergência como, por exemplo, a luta ou o trabalho excessivo. Mas, quando não se registra qualquer emergência, a energia continua aumentando para que o organismo se desenvolva continuamente, ou venha a perecer eventualmente, a menos que exista um mecanismo qualquer que se encarregue de liberar o excesso da energia acumulada que tenha atingido determinado nível. Nos indivíduos saudáveis, esse nível se manifesta pela excitação sexual. A produção de energia cria um estado de tensão, e o método criado pela natureza para aliviá-la e regular a sua produção é o orgasmo sexual. A profunda sensação de calma que se segue ao clímax sexual realmente satisfatório é a prova da eliminação dessa tensão. Entretanto, a tensão é liberada e a energia, regulada, somente quando o indivíduo é capaz de conseguir uma satisfação sexual completa, saudável e amorosa. É inútil a experiência sexual obrigatória ou incompleta. O orgasmo deve ser absolutamente agradável e espontaneamente acompanhado pelo relaxamento total da energia orgônica não eliminada. A falta de eliminação faz-se sentir sob a forma de tensão ou desassossego. Num indivíduo saudável, a necessidade de satisfação sexual e eliminação está inteiramente baseada nesse fluxo da energia orgônica.

Portanto, com base em Reich, podemos afirmar que o organismo humano vive, pulsa. Ele funciona por si. Tem vida própria e tem mecanismos de auto-regulação que lhe preservam a vida e a homeostase (equilíbrio energético corporal). Nessa mesma perspectiva, encontramos o conceito de autopoieses do biólogo Humberto Maturana (2001), que diz que autopoieses é a característica que todo ser vivo tem de funcionar de dentro para fora. Com base nesse princípio, quando atuamos como educadores na escola, é preciso verificar se os alunos e alunas são capazes de agir com base em suas motivações e gratificações internas, sendo capazes de se auto-dirigirem. Verificar, também, se são capazes de expressar interesses genuínos e espontâneos em prol da própria vida e da vida dos seus semelhantes e de tudo o que é vivo, sem pressões internas ou externas. Ou, ao contrário, verificar se agem em prol da vida apenas quando submetidos a pressões externas heterônomas/heteroreguladoras. A auto-regulação é possibilitada por um entorno acolhedor na organização da aula e no jeito do educador se vincular e se posicionar diante dos alunos, o que significa também colocar limites, mas nunca com violência9. É uma forma de trabalhar que acredita que na vida há também uma razão instintiva, que leva os alunos e as alunas a fazerem escolhas embasadas por um saber orgânico e funcional, um saber percebido e compreendido através das sensações corporais. A idéia aqui é a de que as pessoas sabem regular sua função vital e o fazem de forma satisfatória, se não forem bloqueadas e impedidas, o que, lamentavelmente, é o mais comum de acontecer em nossa cultura educacional, desde o momento do nascimento, quando se inicia o processo de encouraçamento do ser humano provocado por uma educação compulsória, compulsiva e exclusivamente heterônoma que expressa uma pedagogia da dominação/disciplinamento, e que tem hegemonicamente dominado a cena de nossa cultura educacional, na família e na escola. Essa cultura que estamos criticando ainda acontece na maior parte do tempo para todos, sendo fundamentalmente hetero-reguladora.

A esse respeito vale mais uma vez lembrar o que diz Constance Kamii (1990):

Todos os bebês nascem desprotegidos e heterônomos.Em condições ideais, a criança torna-se progressivamente mais autônoma à medida que cresce e, ao tornar-se mais autônoma, torna-se menos heterônoma. Ou seja, à medida que a criança torna-se apta a governar-se, ela é menos governada por outras pessoas.

É ainda muito importante observar que, mesmo os bebês que são heterônomos, porque dependem dos cuidados do outro, mantêm sua capacidade de auto-regulação que precisa ser respeitada e protegida para sua saúde. Isso porque, em última instância, por exemplo, a mãe só pode saber se é tempo de amamentar o bebê quando ele chora sinalizando a sensação de fome. É o bebê que sente e expressa o que sente. Por mais heterônomo que ele seja já nasce com graus e níveis de auto-regulação básicos que só tendem a se desenvolver, mais e mais, se a cultura de criação e educação souber proteger e ler essa capacidade inata do ser vivo humano como uma lei natural da vida, que é básica para todo o desenvolvimento e crescimento do ser humano.

O desrespeito à auto-regulação ocasiona o que Reich denominou de processo de encouraçamento. Vejamos, agora, o que é “couraça” ou “encouraçamento”: é um conceito estudado por Wilhelm Reich. Couraças ou bloqueios musculares: o movimento ondulatório do fluxo energético, que se movimenta pelo eixo longitudinal do corpo, de cima para baixo e de baixo para cima, é interrompido por grupos de músculos que se ordenam ao longo desse eixo longitudinal, como os anéis de uma armadura: daí a denominação “couraças musculares”. Os anéis de músculos são unidades de função vegetativa, que servem para bloquear emoções específicas. Segundo Orson Bean (1975), há muitos séculos, o Homem, único entre todos os animais a assim proceder, vem interferindo no processamento de suas funções naturais, ao evitar o fluxo, a produção e a liberação de sua energia orgônica. E o fez, ao tornar-se incapaz de conseguir satisfação sexual completa, natural e saudável, através de um processo que Wilhelm Reich chama de “couraça”.

Em termos de “couraça de caráter”, que é idêntica à “couraça muscular”, a pessoa moralista possui uma estrutura rígida que a faz desempenhar, invariavelmente, a mesma conduta onde quer que esteja e independentemente da situação. É isso que a caracteriza enquanto neurótica. Já a pessoa auto-regulada é flexível, isto é, controla sua couraça de modo a adaptar-se à situação, não precisando coibir impulsos proibidos. Antes, a pessoa reconhece e identifica seus impulsos, e lida com eles da forma que julgar mais conveniente para si e para o ambiente onde está.

Assim, embasando-se no principio da auto-regulação, a escola teria a preocupação de dar todas as condições necessárias para que a criança possa desenvolver seus potenciais a partir de seus próprios interesses e não ser conduzida, homogeneamente, por interesses exteriores a ela. A proposta pedagógica ancorada no principio da auto-regulação estaria fundamentada no não direcionamento e na crença de que cada um tem o potencial natural de autogerir-se, ou como diria Edgar Morin em sua teoria do pensamento complexo, teria a capacidade de se auto-eco-organizar. O fundamento dessa pedagogia é o respeito aos ritmos naturais e também é a confiança na vida e no potencial do ser humano para promover o bem-comum e social.

Em meu trabalho como educador, com crianças e adolescentes, uso o princípio da auto-regulação apresentado da seguinte forma:

“da Auto-Regulação/Auto-governo/autoconhecimento: o ser humano funciona, tem vida própria auto-regulada em seu sistema biopsíquico e produz conhecimento sobre si mesmo e sobre a vida. Tudo o que produz e constrói, em última instância, vem de dentro de seu ser que está em permanente sócio-interação com o ambiente”.

Nesse sentido, explicito aos alunos como funciona nossa aula de educação física:

Em nossa aula de educação física, são organizados dois momentos distintos, mas complementares e integrados na organização da aula. Um momento é heterônomo/hetero-regulador: O professor é o propositor desse momento. É ele que determina a atividade a ser realizada e como será realizada. O professor deve criar aulas que despertem o interesse dos alunos para que possam participar espontaneamente. Faz isso em comum acordo com os alunos, a partir de processo diagnóstico e dialógico/democrático. Nesse momento heterônomo/hetero-regulador o professor preparará atividade/s a ser/em oferecida/s aos alunos, tentando criar e despertar interesse nos mesmos. Os alunos podem participar dela ou não. Caso algum aluno não possa participar, o professor diagnosticará a causa da não participação e dará um encaminhamento junto com o aluno. Dependendo do impedimento dessa participação, o aluno poderá apenas assistir à atividade a ser realizada. Isso vai depender do contexto e das circunstâncias daquele momento. As atividades planejadas pelo professor podem ter caráter prático-vivencial, teórico-prático ou teórico-reflexivo. Numa mesma aula, podem acontecer os três tipos de caráter. O outro momento da aula é autônomo/autoregulador: é um momento auto-eco-organizador. Os alunos decidem qual atividade fazer, como e onde fazê-la, considerando limitações de espaço, de tempo e de material disponível. As escolhas e a organização das atividades são movidas pelo que mais apaixona os alunos, seus interesses, necessidades e motivações. Os alunos, nesse momento, podem se organizar num único grupo ou em vários grupos, os quais são nomeados como GIME - Grupos de Interesse, Movimento e Estudo. Os alunos podem se agrupar nas aulas por afinidades afetivas ou por afinidades, de interesse pelo conhecimento, oportunizando assim a formação desses grupos de trabalho. O professor supervisionará os alunos nas atividades que tiverem escolhido, identificando seus interesses e necessidades em relação à atividade escolhida e os alunos, por sua vez, deverão comunicar ao professor qual o tipo de orientação que gostariam de receber. Por último, vale observar que a ordem de acontecimento dos dois momentos é flexível e determinada por alunos e professor, em conjunto. A periodização de conteúdo é flexível e dinâmica e se adequa aos interesses e necessidades dos/as alunos/as em suas turmas, que são o centro do processo educativo. As aulas são para aqueles que já têm as habilidades iniciais e para os que não têm nenhuma habilidade específica adquirida. Da mesma forma, as aulas são para quem já sabe, e para quem não sabe, ou melhor, são pra quem gosta e para quem não gosta e quer aprender a gostar.

Cabe aqui uma observação muito importante para o trato de uma educação com base na auto-regulação: se essa função educativa natural não for preservada e mantida num bom nível, qualquer tentativa de trabalhar autonomamente poderá resultar em inércia, rebeldia, vandalismo, favorecendo a permanência da educação autoritária, que encontrará assim justificativa para seus argumentos de uma educação disciplinadora e exclusivamente heterônoma (GARCIA, 2006).

Portanto, a auto-regulação é uma condição biológica da espécie humana. É a capacidade que temos de auto-determinar nossa vida, direcionar nossa vida segundo padrões próprios, desejos e pulsões que sentimos e determinamos como sendo mais ou menos satisfatórios para nós. A auto-regulação é a expressão espontânea de um ser de couraça flexível que se expressa espontaneamente, sempre no sentido da busca do prazer (que é a pulsação do ser vivo, num movimento fluido de contração-expansão biológica), que é sentido organicamente. Educar pelo principio da auto-regulação é conduzir o modo de educar as crianças, dando a elas a oportunidade de satisfazer seus impulsos primários, segundo seus desejos, evitando que se transformem em impulsos secundários pervertidos. Impulsos primários na criança são a fome, o sono, as necessidades fisiológicas, o movimento, a expressão livre e espontânea de emoções e sentimentos como tristeza, raiva, medo, alegria e amor, por exemplo. Quando os impulsos primários não podem ser satisfeitos, pelo menos em parte, a criança busca outros caminhos e canais para satisfazer-se, mas é nesse percurso que surgem as defesas de caráter, as “indisciplinas”, os atos de violência, os sintomas, as biopatias e as psicopatologias, as fugas de si mesmo e da vida, como, por exemplo, o refúgio na comida, na mentira, no roubo, as tensões corporais crônicas, os vários tipos de comportamento (violento, individualista, egocêntrico). Inicia-se então o processo de fixação das couraças que determinarão cada tipo de caráter (esquizóide, oral, anal, psicopata, masoquista e rígido). 10

A auto-regulação baseia-se na idéia de funcionalidade dos fluxos naturais e no respeito aos ritmos orgânicos, de modo que cada indivíduo possa desenvolver-se naturalmente, isto é, seguir seu próprio movimento na relação com o meio. Diante disso, fica claro que cabe à cultura criar todas as condições necessárias para esse diálogo entre o interno e o externo. E por isso, Reich dizia e tinha consciência de que tudo depende da cultura, chegando a afirmar que uma verdadeira cultura só surgiria quando se respeitasse a dimensão de animalidade do homem, o que por nós é traduzido por sua condição de natureza biológica pulsional auto-reguladora.

Para Reich, a auto-regulação deve ser posta em prática desde o nascimento das crianças, de modo a permitir-lhes a expressão sincera de seus sentimentos. Trabalhar com o princípio da auto-regulação é preservar a natureza e a essência da vida (pulsação energética biológica) e é o ponto de partida para a educação de crianças, abrindo campo para uma pedagogia que respeite as características do desenvolvimento de cada um.

A reflexão reichiana em torno do estudo da auto-regulação indica que a essência humana é primariamente boa e amorosa, a qual se expressa através da generosidade e do amor natural do ser humano para com a vida. Nessa perspectiva as crianças são naturalmente sensatas, realistas, boas e criativas se não forem deformadas pela cultura e educação repressivas, conforme nos ensina a teoria da psicologia sócio-política de Wilhelm Reich.

Educar pela auto-regulação é saber que as pessoas são capazes de entrar em contato direto com seus sentimentos e expressá-los o mais livre e autenticamente possível. Assim, segundo André Barreto (2000), o cuidado com o universo do sentimento é fundamental para o desenvolvimento sadio de qualquer ser humano, motivo pelo qual a perspectiva de uma filosofia e pedagogia intelectuais é nociva. Deveriam, elas, sim, favorecer o cultivo dos afetos, já que lidar com os próprios sentimentos é algo tão passível de aprendizado, quanto o cálculo numérico ou a fisiologia do corpo humano.

Para lidar com os afetos, é preciso aprender a lidar com frustração e satisfação pulsional. Segundo Paulo Albertini (1994), para Wilhelm Reich, em toda a educação da criança11 existe uma relação entre frustração e satisfação pulsional. Para ele a mais adequada maneira de educar uma criança é aquela em que ocorrem frustração e satisfação pulsional parciais. O que a caracteriza é a presença da ação educacional frustrante, sem uma conseqüente inibição pulsional completa. Um rápido exemplo: quando uma mãe ou pai não pode satisfazer um desejo da criança, diante da frustração deve ser permitido a ela chorar. Assim, ela foi frustrada, mas pode expressar seu sentimento diante da frustração, o que lhe garante saúde energética e emocional.

Segundo Paulo Albertini (1994), para Wilhelm Reich, a auto-regulação implica no fato de que a vida orgânica do ser humano é sábia e sabe criar melhor do que ninguém as suas necessárias formas de existência e é o desconhecimento do ser humano a esse respeito que cria todas as dificuldades e encouraçamentos que indicam que o ser humano não aprendeu a ver o que está diante de seus próprios olhos: a sábia natureza da vida expressa no próprio corpo do ser humano, indicando-lhe como a vida funciona e como deveria ser conduzida pela cultura humana.

A educação baseada na auto-regulação nos faz refletir sobre a relação natureza e cultura em nosso contexto ocidental: há um tipo de pensamento, em nosso meio intelectual que acredita que a cultura domina a natureza e que lhe é superior, ou seja, que a cultura pode tudo diante da natureza. Isso foi e continua a ser um dos maiores erros de nossa cultura humana, pois, na verdade, hoje, ainda mais do que ontem, os ecologistas estão nos mostrando que a natureza tem primazia sobre a cultura. A força da natureza é capaz de exigir que a cultura se repense, se transforme, mude sua perspectiva, sob pena, inclusive, de não poder existir mais cultura. Há um momento em que o desrespeito da cultura pela natureza é tão grande que a natureza simplesmente responde de um modo que nós podemos perceber que ela não se importa com a cultura humana, porque sua finalidade é manter a vida planetária e cósmica e, se os humanos ameaçam a vida, podem ser dizimados, assim como já aconteceu com outras espécies sobre a face da Terra.

Por isso, finalizo este texto, apresentando o sensível poema de Ademar Ferreira dos Santos (2000) que, de modo poético, nos mostra os sentidos de uma educação auto-regulada.

 

Não cobiço nem disputo os teus olhos
não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos
nem sei tampouco se quero ver o que vêem e do modo como vêem os teus olhos
Nada do que possas ver me levará a ver e pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo
Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado
pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos
Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas
Não me prendas as mãos
não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi
deixa-me arriscar o molde talvez incerto
deixa-me arriscar o barro talvez impróprio na oficina onde ganham
forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar
Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos
ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida

 

Referências

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Recebido em: 11/03/2006
Aceito em: 04/04/2006

 

 

1 Reichiana significa uma perspectiva baseada na teoria da psicologia política de Wilhelm Reich.
2 Mestre em Educação pela FAE-UFMG. Professor do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: leojeber@gmail.com
3 BEAN, Orson. O milagre da orgonoterapia. Editora Artenova, 1973.
4 Este autor fez o prefácio do livro de ALVES, Rubem. A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Papirus, 2001. Ver bibliografia.
5 Grifo meu para destacar a idéia de auto-regulação.
6 Para Reich, repressão sexual não se refere só à repressão do sexo ou ato sexual, mas se refere à repressão potência de vida, nossa potência de extrair da vida a plena satisfação, porque a energia sexual é a mesma energia de vida.
7 Esta síntese foi produzida muito particularmente a partir da leitura de ALBERTINI, Paulo. Reich, história das idéias e formulações para a educação. Ágora, 1994.
8 Reflexo do orgasmo é a fase da relação sexual em que ocorre o pico de excitação, quando os movimentos corporais durante o ato sexual deixam de ser voluntários e passam a ser involuntários, proporcionando a descarga amorosa-sexual completa.
9 Ver sobre auto-regulação em crianças no livro: REICH, Eva. Energia vital pela bioenergética suave. Summus, 1998.
10 Terminologia usada por Alexander Lowen, criador da abordagem psicoterapêutica denominada Análise Bioenergética.
11 Sugiro também, REICH, Wilhelm. Crianças do futuro. Material mimeografado, de posse do autor deste texto.

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