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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.19 n.4 São Paulo dez. 2008
DOSSIÊ
O percurso formativo de jovens na sociedade contemporânea
The formative trajectory of young adults in contemporary society
Le parcours de formation des jeunes dans la société actuelle
El recurrido formativo de los jóvenes en la sociedad contemporánea
Sílvia Regina Brandão*
Universidade Municipal de Ensino Superior de São Caetano
RESUMO
O presente artigo apresenta características e desafios da sociedade contemporânea que pedem reconversão de bases educativas para responder às demandas do jovem atual. Expõe ainda percurso formativo de jovens universitários por meio de narrativas biográficas, apontando diretrizes para o processo de formação pessoal e para geração de discernimento e protanogismo na relação com o contexto contemporâneo.
Palavras-chave: Formação de jovens, Sociedade contemporânea, Narrativas, Autobiográfica.
ABSTRACT
The article discusses characteristics and challenges of contemporary society which ask for a change in educational principles so as to respond to demands made by the young adults nowadays. The formative trajectory of young university students is presented by the means of autobiographical narratives, and guidelines in the process of personal development and in the generation of discernment and protagonism in their relation with the contemporary context are pointed out.
Keywords: Youth formation, Contemporary society, Narratives, Autobiography.
RÉSUMÉ
Cet article présente les caractéristiques et les défis de la société contemporaine qui peuvent transformer les bases d'éducation afin de répondre aux demandes des jeunes aujourd'hui. Il traite du parcours de formation des jeunes universitaires au travers de témoignages biographiques, laissant entrevoir les directives pour un processus de formation personnel et pour une gestion du discernement et du protagonisme en relation avec le contexte actuel.
Mots-clés: Formation des jeunes, Société contemporaine, Narratives, Autobiographique.
RESUMEN
El presente artículo presenta características y desafíos de la sociedad contemporánea que piden un cambio de bases educativas para responder a lãs demandas de los jóvenes actuales. Expone también, por medio de narrativas biográficas, el recurrido formativo de jóvenes universitarios, señalando directrices para un proceso de formación personal y para la generación de discernimiento y protagonismo en la relación con el contexto contemporáneo.
Palabras clave: Formación de los jóvenes, Sociedad contemporânea, Narrativas, Autobiografia.
O tema da educação e, particularmente, a educação da juventude, tem assumido posição de destaque na mídia e no mundo acadêmico nesse início de século. O desconcerto e impotência diante dos insucessos para formar pessoas íntegras, capazes de discernimento e empenho com a vida pessoal e social tem gerado inquietação e colocado em cheque a capacidade de educar na sociedade contemporânea.
A instabilidade econômica, a perda de referências culturais e o avanço de novas tecnologias pedem reconversão de bases educativas e de percursos formativos para atender às demandas do jovem atual. Ao contrário de gerações anteriores eles não precisam lutar por autonomia ou independência, mas preocupam-se com a estabilidade e buscam equilíbrio em contexto marcado por incertezas (Dominicé, 2006). Observa-se, ainda, que as dúvidas quanto ao futuro e as tensões presentes no campo profissional, no qual postos de trabalho ou empregos não são garantidos a quem tem formação, dificultam projetar a vida a longo prazo. Diante dessas circunstâncias, é preciso repensar finalidades e metodologias da educação para novas gerações de modo a responder às suas necessidades, o que certamente exigirá consistência de fundamentação antropológica e epistemológica.
Por outro lado, a crise pela qual passa a educação também pode ser identificada no âmbito da docência. A expressão mal-estar docente (teacher burnout, malaise enseignant) tem sido usada para descrever os efeitos negativos das atuais condições psicológicas e sociais em quem exerce a docência, em virtude da mudança social e cultural aceleradas. José M. Esteve descreve metaforicamente a condição do professor no contento contemporâneo:
A situação dos professores perante a mudança social é comparável à de um grupo de atores, vestidos com traje de determinada época, a quem sem prévio aviso se muda o cenário, em metade do palco, desenrolando um novo pano de fundo no cenário anterior. Uma nova encenação pós-moderna, colorida e fluorescente, oculta a anterior, clássica e severa. A primeira reação dos atores seria a surpresa. Depois, tensão e desconcerto, com um forte sentimento de agressividade, desejando acabar o trabalho para procurar os responsáveis, a fim de, pelo menos, obter uma explicação. Que fazer?... As reações perante esta situação seriam muito variadas; mas, em qualquer caso, a palavra mal-estar poderia resumir os sentimentos deste grupo de atores perante uma série de circunstâncias imprevistas. (Esteve, 1999, p. 97)
Do ponto de vista da platéia, ou seja, da sociedade atual, entendese que o professor deva superar a obsoleta condição de simples reprodutor ou transmissor de conhecimento e contribua para a formação de cidadãos comprometidos com os desafios de seu tempo. Antonio Nóvoa sinaliza que os professores vivem tempos difíceis e paradoxais. Apesar das críticas e das desconfianças em relação às suas competências profissionais exige-se-lhes quase tudo (Nóvoa, 1995, p. 12).
A situação no contexto familiar não é diferente. Pais experimentam cotidianamente o desejo, a urgência e, ao mesmo tempo, a enorme dificuldade para apresentar valores aos filhos, na busca legítima de resgatar espaços e perspectivas humanas para a vida social. A atual geração de adultos viveu, quando jovem, uma mentalidade idealista que valorizava a busca por justiça e o engajamento em movimentos de transformação social, visando à construção de uma sociedade que respeitasse a dignidade e os direitos humanos. É paradoxal e perturbador para eles encontrarem-se diante do adolescente ou jovem de hoje, para quem qualquer valor e, particularmente, a conversa sobre esse assunto é algo distante, teórico, enfadonho. Tornou-se extremamente trabalhoso e cansativo definir (e ainda mais exigir...) o que é certo/errado no convívio familiar ou em uma sala de aula, resultando indiferença, descaso, em grande parte das crianças e jovens, que parecem se sentir merecedores de todo o direito e dispensados de qualquer dever.
A característica comum a esses ambientes educativos parece ser a falta de espaço para o acontecer humano, seja jovem, professor ou pai/ mãe. A dificuldade para identificar algo de válido e de certo, objetivos sólidos com os quais construir a vida, o fechamento no horizonte estreito da imanência e do pragmatismo, a dor por não ser olhado e recebido pelo que se é e o medo pela vizinhança do Nada e ausência de sentido levam ao sofrimento pelo esgarçamento da própria condição humana (Safra, 2004). Verifica-se claramente a necessidade de escuta e orientação tanto dos educandos quanto dos educadores que possibilite a descoberta de si e previna o risco de esvaziamento da pessoa ou de perda da identidade. Diante das solicitações de todo tipo presentes na sociedade contemporânea, que em ritmos crescentes exigem respostas cada vez mais rápidas, torna-se imperiosa a existência de espaços de acolhimento do humano dos jovens e adultos envolvidos que favoreçam o processo formativo no contexto atual. Piérre Dominicé, que pesquisa e trabalha com formação de adultos na Universidade de Genebra, afirma que o processo formativo nos dias de hoje deve tornar-se uma longa busca de si em um mundo que demanda forte consistência pessoal para enfrentar os desafios, que cada um de nós deve enfrentar na sociedade atual. Essa experimentação existencial irá de certo surpreender, particularmente em contextos de conformidade social, porque ela favorecerá trajetórias insólitas e opções aparentemente contraditórias(Dominicé, 2006, p. 345).
O trabalho com a docência no ensino superior na área da Antropologia Filosófica e da Psicologia da Educação possibilitou realizar estudos acerca do processo formativo de estudantes universitários. As aulas, encontros para partilha de experiências, bem como ensaios ou escritas de si, favorecem auto-conhecimento, partilha de vivências e reflexão sobre o contexto contemporâneo para identificar suas exigências e recursos. O exercício para comunicação de si, para a escuta do outro e para estar diante do silêncio permitem a revelação da própria humanidade e a eleva ção das vivências à condição de experiência, caracterizada pela descoberta do sentido do que se viveu, pela inteligência do sentido das coisas (Giussani, 2000).
Por meio de três textos de alunas dos cursos de Artes Plásticas, Música e Pedagogia pretende-se apresentar a percepção que essas estudantes universitárias têm da realidade em que vivem e as possibilidades formativas que identificam para si e para o contexto atual. Os dois primeiros fazem parte de publicações bienais Diário Antropológico e FASM , respectivamente nas edições de 2006 e 2008.
Em busca de Morada
Anna Grisólia, estudante do curso de Artes Plásticas, apresenta de forma poética a experiência de estar no mundo sem identificar um lugar de referência e acolhimento para sua pessoa.
Minha Casa
Anna GrisóliaNão tenho casa
Estou só
Minha casa não conheço
Só saudades.
Um dia hei de acordar lá
Enquanto isso espero
Aqui ou lá
Sem lugar.
Anna expressa, com muita delicadeza e transparência, sua condição de desamparo e solidão: não tenho casa /estou só, de desorientação: minha casa não conheço, e, ao mesmo tempo, revela anseio por encontrar um espaço que seja capaz de hospedar, abrigar: um dia hei de acordar lá. Dor pela privação e desejo de um espaço perdido saudades não eliminam a espera e a esperança de encontro e realização pessoal.
Parece contraditório que o homem contemporâneo, livre para se movimentar no mundo, produzindo deslocamentos geográficos cada vez mais numerosos, com autonomia para atuar, ousado e criador, não encontre morada e possibilidade de repouso no mundo. Esse paradoxo tem origem na imagem de homem e de mundo assumidss na Modernidade, como explica Romano Guardini:
Aparece o homem senhor de si próprio, que atua, arrisca e cria, que é trazido pelo seu ingenium, conduzido pela fortuna, recompensado pela fama e pela glória. Mas com isso perde também o homem o lugar objetivo, que a sua consciência tinha na antiga imagem do mundo, e cria-se o sentimento de abandono e de ameaça. Aparece a angústia do homem moderno.... A angústia da Idade Moderna é devida em grande parte ao sentimento de não ter nem um lugar simbólico, nem um refúgio que seja imediatamente convincente; e também da experiência sempre renovada de não encontrar no mundo um lugar para existência e que satisfaça a sua necessidade de sentido. (Guardini, 2000, pp. 37-38)
O fascínio pela possibilidade do domínio e controle da realidade na busca de melhores condições de vida e conforto ofuscou a necessidade básica de referência e sentido, de um porto seguro, uma morada (ethos) no mundo. Entretanto, historicamente, o otimismo racionalista não se verificou, já que, ao contrário do que se supunha, o extraordinário avanço técnico-científico não aumentou a segurança e tranqüilidade humana; a confiança no que se acreditava ser o ilimitado progresso da ciência gerou uma capacidade inimaginável de destruição. A percepção do perigo e da ameaça está presente e assume proporções inéditas.
O desencanto pós-moderno origina-se, assim, no esquecimento da natureza humana, que busca sentido para a existência (Frankl, 1989) e estruturalmente busca o infinito (Giussani, 2000). A ciência aproxima-se de medidas sempre mais extremas do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, mas estes ficam sempre finitos e assim são sentidos (Guardini, 2000). É preciso reconhecer que o mundo conhecido e explicado pelo racionalismo parece ter se tornado pequeno para a exigência humana de conhecimento e realização. A razão humana não se limita à capacidade de demonstrar, controlar e dominar, mas compreende também a capacidade de conhecer o sentido e a finalidade última da existência, favorecendo a orientação e discernimento na condução da vida.
Reconhecendo a desproporção
Dar-se conta da falta de pontos de referência em mares pós-modernos e de ausência de portos seguros implica experimentar tristeza (desejo de um bem ausente, na concepção tomista), como descreve Carla Sinisgalli, estudante de Música, no texto abaixo.
Tristeza
Carla Sinisgalli
Muito cedo foi tarde demais em minha vida
Marguerite Duras
Tarde demais. Sempre foi tarde demais, desde que eu fui eu. Desde que eu não fui o que tudo à minha volta foi; e desde que gostei de tudo diferente; e desde que não pude esconder.
Tarde demais. Tudo já estava escolhido. Todas as brigas, a falta de jeito, a fome, tudo esteve no caminho desde sempre. Muito cedo eu nasci já velha.
Muito cedo tudo foi muito bonito e muito cedo ninguém percebeu. Muito cedo eu entendi e muito cedo só eu entendi.
Muito cedo a minha tristeza foi estranha, porque não se pode ser triste. Ser triste é estranho. Nós somos brasileiros, usamos biquíni, temos milhões de amigos, milhões de festas, nunca chegamos na hora. Não tem como ser triste. Nenhum brasileiro é triste. Nenhum é anti-social.
Muito cedo minha raiva foi estranha, porque ninguém nunca prometeu nada, ninguém nunca se prometeu nada, ninguém se comprometeu, é verdade, como se pode ter raiva? Nós somos felizes e andamos com malemolência. Isso é suficiente.
Muito cedo meus valores foram estranhos, valores são coisa estranhíssima, não levam a lugar algum. E nós somos espertos, nos damos bem, pra que valores? Ninguém está olhando.
Muito cedo também o sagrado foi estranho. Porque Deus é brasileiro e não é necessário respeito algum com a criação, já que ela nos pertence e nos serve. Nascemos aqui, somos afortunados e sentaremos no que é nosso como quisermos. Todos os países nos invejam. Temos tudo.
Sensibilidade, cuidado, mágoa, respeito, coisas muito estranhas. Não se deve falar delas. Esse é o acordo que se faz desde sempre. As pessoas ficam constrangidas, mudam de assunto, qualquer assunto.
Demorei tempo pra encarar minha tristeza, pra respeitar o que é meu... Tanto tempo pra entender que minha tristeza é a minha alma e que do mesmo lugar de onde sou triste vem toda a honra de meus antepassados. Toda a dor de meus antigos...
Ser feliz sem ser triste é vazio. Ser bom sem raiva, impossível. Dizer sim o tempo todo mata. Literalmente.
E quanto eu fugi da decisão de construir alguma coisa, que coisa mais esquisita, querer crescer... ninguém entendeu. Porque não importa, não leva a nada. Construir poesia, estudar filosofia, treinar o corpo, a mente, ler... Nada disso faz sentido. As pessoas são felizes pura e simplesmente, dão risada parecendo com as propagandas e acreditam que viver no país do carnaval esbanja alegria. Quem não consegue forjar essa felicidade vai ao psicólogo.
Pra mim, a coisa mais linda das pessoas é a tristeza. Os homens que se apaixonam por mim... É a minha tristeza que eles querem. Na tristeza está a doçura, a valentia, o amor. Talvez eu chame de tristeza a alma. Não importa. Existe uma tristeza em cada coisa bonita, em cada alegria da vida que é a tristeza de ser humano. A tristeza do tempo passar. Tudo é lindo. E a cada momento tudo passa. E isso é triste.
Falando da tristeza talvez eu possa também falar da alegria, ainda mais desconhecida do que a tristeza. Estar alegre, genuinamente alegre, é seguramente mais estranho do que estar triste... E talvez as pessoas tenham até mais medo da alegria do que da tristeza... Gostar de trabalhar, apreciar o tempo que leva o caminho de um lugar ao outro, se divertir com qualquer coisa que não venha para satisfazer o sono, a fome ou o sexo, isso sim é estranho. Incompreensível... Porque a vida é uma droga, somos enganados o tempo todo e não há o que fazer. Já desistimos antes, só nos resta então aproveitar o resto... A vida é rasa e curta. É melhor nos aproximarmos do descanso para onde tudo já foi. É melhor trabalharmos pra comer, tomar um banho de quinze minutos e sentar no sofá sem fazer nada. Reclamando do dia seguinte e sonhando a bebedeira, o esperado amortecimento dos fins de semana.
Muito cedo foi tarde demais.
E todos os dias eu peço coragem, concentração, integridade. Todos os dias rezo pela paixão e rezo pelo encanto. Busco perdão, compaixão e fé. Todos os dias eu acho e perco paciência, acho e perco alegria, abraço e largo tristeza.
Como disse Guimarães Rosa, viver é perigoso. Pra mim sempre foi. Sempre, sempre. A diferença é que hoje eu sei. E sei que tarde também é cedo, graças a Deus.
A reação ou a defesa mais freqüente diante da insegurança ou da desorientação é buscar simplificar a vida, por exemplo, deixando-se atrair e se tranqüilizar pelo comodismo ou pela conformidade, o que explicaria, por exemplo, o retorno dos fundamentalismos (Dominicé, 2006) ou a indiferença em relação a qualquer solicitação que esteja além do horizonte do bem-estar individual. A opção pelo carpe diem, vivenciado em qualquer condição sociocultural, de acordo com suas possibilidades e características, leva ao abandono às provocações mais imediatas, normalmente ditadas pelo mercado, levando ao consumo desmedido e à busca pelo prazer individual.
Carla analisa com muita lucidez essa mentalidade superficial e comodista, destacando a estranheza por reconhecer em si desejos incomuns à mentalidade hedonista e ilusória: Muito cedo a minha tristeza foi estranha, porque não se pode ser triste. Ser triste é estranho. Nós somos brasileiros, usamos biquíni, temos milhões de amigos, milhões de festas, nunca chegamos na hora. Não tem como ser triste. Nenhum brasileiro é triste. Nenhum é anti-social.
No contexto em que vive parece não haver espaço para ser si mesmo ou tempo para as exigentes elaborações do pensamento, para afirmar algo de pessoal num mundo massificado: Tarde demais. Sempre foi tarde demais, desde que eu fui eu. Desde que eu não fui o que tudo à minha volta foi; e desde que gostei de tudo diferente; e desde que não pude esconder.
Entretanto, o trabalho para compreender a si mesmo a partir das vivências, buscando sentido para elas, isto é, a experiência de ser eu, possibilita o reconhecimento surpreendente da própria estrutura humana e, por isso, perceber-se eu entre outros eus: Demorei tempo pra encarar minha tristeza, pra respeitar o que é meu... Tanto tempo pra entender que minha tristeza é a minha alma e que do mesmo lugar de onde sou triste vem toda a honra de meus antepassados. Toda a dor de meus antigos....
Identificar a própria alma, a própria identidade, possibilita reconhecer a inadequação e estreiteza de uma mentalidade conformista, resignada: A vida é rasa e curta. É melhor nos aproximarmos do descanso para onde tudo já foi. É melhor trabalharmos pra comer, tomar um banho de quinze minutos e sentar no sofá sem fazer nada. Reclamando do dia seguinte e sonhando a bebedeira, o esperado amortecimento dos fins de semana. Muito cedo foi tarde demais.
A descoberta da própria humanidade, bem como da do outro, fascina, atrai: Pra mim, a coisa mais linda das pessoas é a tristeza. Os homens que se apaixonam por mim... é a minha tristeza que eles querem. Na tristeza está a doçura, a valentia, o amor. Talvez eu chame de tristeza a alma. Não importa. Existe uma tristeza em cada coisa bonita, em cada alegria da vida que é a tristeza de ser humano. Desse modo, torna-se possível à Carla abrirse com esperança para o futuro: Como disse Guimarães Rosa, viver é perigoso . Pra mim sempre foi. Sempre, sempre. A diferença é que hoje eu sei. E sei que tarde também é cedo, graças a Deus.
A cuidadosa descrição que essa aluna faz de seu percurso pessoal e a lúcida avaliação do ambiente pós-moderno oferece indicações para o trabalho educativo com os jovens. É preciso oferecer possibilidades de juízo sobre a mentalidade atual, a partir da avaliação dos valores e propostas apresentadas pelo contexto, do impacto que elas têm sobre a vida pessoal e social de cada aluno:
Se existe um verdadeiro trabalho formativo, ele é: voltar a levantar barreiras no caos; assinalar seus limites, separar umas esferas de outras; distinguir as diversas categorias de espíritos; não chamar essa desolação de ordem, mas conservar as diferenças. Dizer claramente que a desordem é desordem, que o despudor é despudor. E ter o desejo que isso mude. (Guardini, 1965, p. 129, tradução nossa)
Assim sendo, verifica-se que a consciência de si e a avaliação do ambiente contemporâneo são diretrizes importantes para a reconversão das bases e percursos educativos, de modo a favorecer uma nova apropria ção da existência pelo homem e para o humano e a viabilizar vínculo significativo entre a experiência pessoal e o empenho com a construção de uma sociedade mais humana.
Identificando caminhos
A busca de percursos formativos para jovens e adultos tem revelado metodologias promissoras, como o procedimento de história de vida, centrado na reconstrução de histórias de formação, proposto por Jean Pineau, Marie-Christine Josso e Pierre Dominicé. Esses pesquisadores têm documentado amplamente a fecundidade que essa metodologia oferece para o processo de formação do sujeito no mundo contemporâneo.
A perspectiva da formação/transformação biográfica, porque experiencial é encarada do ponto de vista das mudanças vividas por todo ser no mundo e não somente pelos que aprendem. E do ponto de vista de como cada um se coloca no projeto educativo social e como cada um dispõe as tensões inevitáveis entre as imposições de seus contextos de vida e as emergências interiores que os interpelam para autonomizar-se dos modelos socialmente valorizados tanto por seu próximo como pela sociedade. Porque essa autonomização, lembremo-nos, é com certeza, uma conquista sem fim suportada por um imaginário e uma criatividade a ser mantida e cultivada. (Josso, 2006, p. 34)
É comum que, inicialmente, o trabalho com a autobiografia provoque desconcerto e certo receio por não ter o que escrever ou relatar. Logo depois, entretanto, há surpresa e contentamento pela descoberta de encontros prenhes de significados, reveladores de si mesmo e do outro. Identificar as experiências formadoras constitui uma possibilidade de tomar consciência de si mesmo, do lócus de formação pessoal e um exercício para que as vivências atinjam o status de experiência, a partir do momento em que se faz um trabalho reflexivo sobre elas (Josso, 2004). A apropriação da história biográfica, particularmente do sentido que ela apresenta, favorece, assim, que o educando torne-se sujeito da própria história (Delory-Momberger, 2006).
De modo muito particular para aqueles que são ou desejam se tornar professores é fundamental a identificação de experiências autenticamente formativas na autobiografia, como relata Graziella, estudante de Pedagogia:
Encontro surpreendente
Graziella AlmeidaTive alguns anos atrás um encontro que não esperava. Este ocorreu quando passei a acompanhar meu irmão nas aulas especiais, para crianças com dificuldade de aprendizagem. Conheci, então, Patrícia, professora dessa turma especial. Tive que suplicar para assistir às aulas, pois não era permitido. Depois de algum tempo ela me deixou entrar na classe. Lembro-me muito bem do amor que ela expressava em cada palavra e da delicadeza com que ensinava; nunca deixava parecer que as crianças eram coitadinhas, muito pelo contrário. Fazia com que seus alunos percebessem como era importante estarem lá. Pude ver muitas coisas acontecerem nessa sala: pude ver meu irmão aprendendo ler suas primeiras palavras com 15 anos de idade e presenciar seu sentimento de prazer por conseguir progredir. Conversei muito com ela e pude expor meus sentimentos e contar da minha vontade de ajudar de algum modo. Passei a ajudar constantemente meu irmão e fui pegando mais gosto pelo que fazia. Continuei a conversar com Patrícia sobre o que realmente gostaria de fazer e por quê. Disse que queria ensinar outras pessoas como estava fazendo com meu irmão. A partir de então ela me trouxe muitos livros que falavam sobre o que é educar e o quão sério é esta função de educar. Com tudo isso pude notar que o amor, a dedicação e a confiança no que se faz são fatores que contam para o desenvolvimento de um bom professor.
Graziella conta da gratificação por poder ter testemunhado experiências educativas genuínas e, de modo especial, aquela que possibilitou o desenvolvimento de seu irmão. A forma como a professora Patrícia se relacionava com seus alunos, o modo como lidava com suas dificuldades, comoveu Graziella, que se sentiu chamada a fazer a mesma experiência, primeiramente com seu irmão. O encontro entre Graziella e Patrícia possibilitou à primeira o aprofundamento da experiência de ensinar seu irmão, partilhando o gosto descoberto nesse trabalho e o desejo de ampliá- lo, de conhecer mais o processo educativo, ao que foi prontamente atendida.
Nesse caso, fica claro o reconhecimento de um caminho profissional pela correspondência que os valores afirmados pela professora Patrí- cia provocaram em Graziella: eles apresentaram-se como um chamado, um convite, que pediam uma resposta. Desse modo verifica-se a descoberta de uma vocação e de um caminho pleno de sentido a ser seguido. As possibilidades de localização e empenho no contexto contemporâneo parecem depender, então, de autênticas experiências de encontro que acolham o humano e apontem possibilidades objetivas para sua realização.
Enfim, é possível verificar pelos percursos desses jovens estudantes universitários que a experiência educativa no contexto contemporâneo pressupõe espaços de escuta, de apropriação da experiência e de avaliação da mentalidade dominante, de modo a favorecer a identificação de vínculos significativos entre a interioridade e as demandas externas. A formação de pessoas íntegras, comprometidas com a própria realização e com a construção de uma sociedade mais humana não é fruto de uma decisão ética do educando ou de competência técnica do educador, mas depende do encontro enriquecedor entre eles. A experiência do encontro, lugar natural de formação do ser humano (Quintás, 2004), possibilita à pessoa descobrir a si mesma e ao outro e identificar valores aos quais valha à pena se dedicar e se empenhar. Esse é o núcleo formativo da pessoa, que possibilita o protagonismo no processo de formação pessoal e de transformação social.
Referências
Delory-Momberger, C. (2006). Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, 32, 359-371. [ Links ]
Dominicé, P. (2006). A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico. Educação e Pesquisa, 32, 345-357. [ Links ]
Esteve, J. M. (1999). Os professores perante a mudança social: o mal-estar docente. In Nóvoa, Profissão professor (páginas inicial e final). Porto: Porto Editora. [ Links ]
Frankl, V. (1989). Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante. [ Links ]
Giussani, L. (2000). O senso religioso. São Paulo: Nova Fronteira. [ Links ]
Guardini, R. (1965). O mundo e a pessoa. São Paulo: Duas Cidades. [ Links ]
Guardini, R. (2000). O fim da Idade Moderna. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Josso, M. C. (2006). Os relatos de histórias de vida como desvalamento dos desafios existenciais de formação e do conhecimento: destinos sócio-culturais e projetos de vida programados na invenção de si. In E. C. Souza & M. H. Abrahão (Orgs.), Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si (pp. 34-39). Porto Alegre: EDIPUCRS. [ Links ]
Josso, M. C. (2004). Experiências de vida e formação. São Paluo: Cortez Editora, 2004. [ Links ]
Nóvoa, A. (1995). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote. [ Links ]
Quintás, A. L. (2004). Inteligência criativa: a descoberta pessoal dos valores. São Paulo: Paulinas. [ Links ]
Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras. [ Links ]
Recebido em: 30/04/2008
Aceito em: 23/09/2008
* Sílvia Regina Brandão, Docente da Universidade Municipal de Ensino Superior de São Caetano. Endereço eletrônico: silviarbrandao@gmail.com