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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.19 n.4 São Paulo dez. 2008

 

EM DEBATE

 

Psicologia da violência ou violência da psicologia?

 

 

Sylvia Leser de Mello* ; Maria Helena Souza Patto**

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

A morte violenta de crianças pelas mãos de seus familiares está se tornando comum, assim como o abandono de bebês recém-nascidos nas ruas, em terrenos baldios, em latas de lixo. O que podemos concluir dessas trágicas notícias que os jornais nos trazem todos os dias? O que leva adultos à pratica de atos como esses?

Tudo indica que a dificuldade de pensar esses acontecimentos não é apenas de leigos. Há todo um conjunto de instituições sociais dedicadas à solução dos problemas da juventude e da infância em dificuldades com a família que, via de regra, também não sabem entender esses casos nem agir do modo mais adequado, como os Conselhos Tutelares e os técnicos que emitem laudos que subsidiam decisões das quais depende a garantia dos direitos dessas crianças e jovens.

No dia 07 de setembro último, a imprensa divulgou mais um desses casos. Dois irmãos, de 12 e 13 anos de idade, foram, dois dias antes, brutalmente assassinados pelo pai e pela madrasta num município da Grande São Paulo. Depois de nove meses internados num abrigo por determinação do Conselho Tutelar, que acatou denúncias de maus-tratos, eles foram devolvidos à família quatro meses antes do crime, apesar de seu desejo expresso de continuar no abrigo. Poucos dias antes de sua morte, foram encontrados pela polícia vagando pelas ruas, quando teriam informado que haviam sido expulsos de casa pela madrasta. Levados ao Conselho Tutelar, foram novamente devolvidos à família. Dois dias depois, estavam mortos, esquartejados e queimados pelo casal, que certamente não é monstruoso, como nos quer fazer crer uma imprensa sensacionalista, autoritária e insensível ao drama humano subjacente a esses casos, mas feito de duas pessoas que, de algum modo, foram mutiladas por experiências de vida brutais e que, desamparadas em seu sofrimento, mutilam.

A saída do abrigo e a volta para casa em maio deste ano foram decisões baseadas em pareceres de uma equipe de profissionais, entre os quais uma psicóloga. Em passagem do laudo divulgada pela imprensa (e não contestada pelos responsáveis), os dois meninos comparecem como pessoas que "manipulam a realidade para conseguir vantagens." Ou seja, em termos tão altissonantes quanto arbitrários e vagos (o que será "manipular a realidade"?), uma profissional que deveria ter sido formada para entender a complexidade e a gravidade de uma dinâmica familiar como esta e ouvir os envolvidos com ouvidos atentos e comprometidos com o direito de todos de serem cuidados pelo Estado limitouse a conclusões sobre a personalidade das crianças que, embora com palavras pomposas que querem infundir credibilidade à avaliação, as apresentam como mentirosas, desonestas, dissimuladas. Mais uma vez, estamos diante de um fato nada raro em laudos psicológicos: a mera reprodução de estereótipos e de preconceitos de classe e a ratificação do que estava decidido de antemão: mandá-las de volta para casa.

Esta maneira de agir é fato freqüente em laudos psicológicos encontrados nos aparatos judiciário e escolar, embora há muito estudado e denunciado na literatura especializada. Pesquisas já mostraram à exaustão a precariedade do processo e do produto de práticas diagnósticas realizadas por profissionais psicólogos: nos arquivos escolares são muitos os laudos sobre crianças que não conseguem se escolarizar (numa escola pública sabidamente falida, diga-se de passagem) que culpam a vítima com verdadeiros disparates: "criança com personalidade primitiva"; "o aluno apresenta dificuldades com a realidade do meio, com predomínio da vida instintiva"; "criança portadora de certa deficiência no que diz respeito à aprendizagem e criação de símbolos gráficos desconhecidos."1 Asneiras que seriam cômicas se não fossem trágicas, dada a capacidade que têm de estigmatizar e de justificar desigualdades sociais ao reduzi-las a deficiências individuais. Ou seja, a maioria dos psicólogos acredita, porque há concepções da própria Psicologia que estão fundadas nesta crença, que estão numa sociedade de oportunidades sociais iguais e de capacidades individuais diferentes: há aptos e inaptos, capazes e incapazes, superiores e inferiores - em resumo, vencedores e perdedores. Não por acaso, no segundo termo desses pares encontra-se a maioria dos explorados, dos excluídos de direitos e dos destituídos de poder. Diante desse quadro, há uma afirmação de Albert Einstein que pode ser um bom ponto de partida para um debate teórico: "os problemas que existem no mundo não podem ser resolvidos a partir dos modos de raciocínio que lhes deram origem."

O que certamente encanta muitos desses profissionais mal formados intelectual e profissionalmente é o poder de dizer sobre o íntimo das pessoas que lhes é socialmente outorgado e considerado como o único discurso competente para esse fim. Inebriados por essa autorização, muitos sentem-se livres para dizer o que bem entendem, certos da impunidade. Essa suposta competência indiscutível advém da crença de que as ciências humanas produzem conhecimentos acima de qualquer suspeita, garantidos por métodos de pesquisa que se querem objetivos e neutros. Poder que, para não ser questionado, não pode ouvir a crítica filosófica ao conceito hegemônico de cientificidade, e não pode admitir que, numa sociedade dividida, os saberes da Psicologia têm no cerne compromissos políticos, isto é, participam das relações de poder.2

A análise de teorias da Psicologia como ideologia - feitas de concepções e práticas que encobrem e justificam as mazelas de uma sociedade desigual, injusta e violenta - é antiga, mas está ausente de grande parte dos cursos superiores de formação de psicólogos que, muitas vezes, e cada vez mais, limitam-se ao fornecimento de algumas receitas de técnicas de avaliação psicológica e de psicoterapia, sem qualquer atenção à formação intelectual dos psicólogos.

Formar não é ensinar a seguir as instruções de manuais de aplicação de instrumentos de medida da psique ou a atender clientes com base em concepções da mente humana baseadas no mais absoluto senso comum. No entanto, essa limitação do entendimento da formação, que já estava presente na própria criação da Psicologia, na virada do século XIX, e nos primeiros cursos de preparação de psicólogos, ampliou-se com o crescimento no Brasil de uma rede de instituições de ensino universitário que não passam de empresas que vendem cursos de Psicologia de olho no lucro, sem atenção à responsabilidade presente na outorga de diplomas a profissionais treinados para dizer arbitrariedades e absurdos como se estivessem dizendo verdades inquestionáveis.

Estamos diante de um quadro gravíssimo e inaceitável, não só porque há psicólogos vitimando pessoas, mas também porque a credibilidade de uma ciência e profissão que conta com excelentes pesquisadores e profissionais, capazes de contribuir para a construção da cidadania, está ameaçada.3 Está mais do que na hora do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Psicologia tomarem três medidas: cobrar das autoridades educacionais uma avaliação rigorosa dos cursos de Psicologia que proliferaram no país; instalar e coordenar uma profunda e duradoura discussão nacional sobre a formação de psicólogos; discutir formas de impedir o exercício da profissão por quem não está preparado para isso.

Um profissional cujo trabalho se dá no âmbito de uma instituição que o coloca no centro de sentimentos tumultuados que acompanham os dramas familiais não pode, em momento algum de seu trabalho, deixar de ter presentes diante de si os dilemas maiores da profissão. Trabalhar com juízes, peritos, crianças e suas familiares exige uma formação teórico-prática coerente com os desafios que o psicólogo vai enfrentar, mas exige mais: reflexão, sensibilidade ética e atenção redobrada aos personagens e aos caminhos que se abrem diante dele.

Sem o entendimento rigoroso e bem fundamentado do que se passa na subjetividade e nas relações intersubjetivas numa sociedade concreta, e sem a consciência da imensa responsabilidade dessas práticas, esses profissionais podem lesar direitos fundamentais das pessoas e, no limite, colaborar para a negação de seu direito à vida. Um psicólogo que não adquirir a capacidade de pensar o próprio pensamento da ciência que pratica - ou seja, de refletir sobre a dimensão epistemológica e ética do conhecimento que ela produz - certamente somará, insciente, com o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura.4

 

 

Recebido em 07/10/2008
Aceito em 23/10/2008

 

 

* Sylvia Leser de Mello, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes 1721, 05508-900 - Sao Paulo, SP - Brasil. Endereço eletrônico: sldmello@usp.br. Autora de Trabalho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo (1988).
** Maria Helena Souza Patto, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes 1721, 05508-900 - Sao Paulo, SP - Brasil. Endereço eletrônico: mhspatto@usp.br. Autora de Mutações do cativeiro. Escritos de Psicologia e Política (2000).
1 Veja, por exemplo, Salazar, R.M. O laudo psicológico e a classe especial. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1997.
2 Sobre as questões epistemológicas e éticas das ciências humanas em suas relações com a coisificação das pessoas, veja Leopoldo e Silva, F. "Psicologia e razão instrumental". Psicologia USP, 8(1), 1997, p. 11-31. Sobre a quantificação e a classificação das capacidades psíquicas, veja Schwacz, L.M. "Dos males da medida". Psicologia USP, 8(1), 1997, p. 33-45.
3 Na contramão dessa Psicologia que considera as pessoas como coisas, veja, por exemplo,Gonçalves Filho, J.M. "Humilhação social: um problema político em Psicologia." Psicologia USP, 9(2), 1998, p. 11-67.
4 Atitudes e condutas que, segundo o filósofo frankfurtiano Theodor Adorno, constituem a barbárie. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 117. Sobre a participação da Psicologia na violência das instituições penais, veja Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1996.