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Revista Brasileira de Orientação Profissional
versão On-line ISSN 1984-7270
Rev. bras. orientac. prof vol.20 no.2 Florianópolis jul./dez. 2019
ARTIGO
Preparação para a aposentadoria e ócio: possíveis contribuições da abordagem Gestáltica
Preparation for retirement and leisure: possible contributions of Gestalt approach
Preparación para la jubilación y ocio: posibles contribuciones del enfoque Gestáltico
Mariângela Carvalho de SouzaI; Felipe Saraiva Nunes de PinhoII; Jacinta Maria Grangeiro CariocaIII; Karine Lima Verde PessoaIII
ICentro Universitário Estácio do Ceará, Fortaleza, CE
IICentro Universitário Christus, Fortaleza, CE
IIICentro Universitário Estácio do Ceará, Fortaleza, CE
RESUMO
Na estruturação da vida humana é comum privilegiar os esforços de preparação à atividade laboral em detrimento à vivência do tempo livre, de modo que a aposentadoria se apresenta como uma mudança significativa que exige a ressignificação dos vínculos socioafetivos e ocupacionais desenvolvidos ao longo do ciclo de vida. Este estudo trata-se de um ensaio teórico que visa refletir acerca da aposentadoria e da vivência do ócio a partir das possíveis contribuições da abordagem gestáltica, baseando-se nos conceitos de pessoa, de awareness e de aqui-e-agora, além de elementos do trabalho grupal em Gestalt-terapia, os quais podem corroborar de forma relevante para o processo de preparação à aposentadoria, possibilitando aos sujeitos o contato mais efetivo e responsável com suas escolhas, formas de ser e estar no mundo.
Palavras-chave: trabalho, aposentadoria, ócio, Gestalt-terapia.
ABSTRACT
In the structuring of human life, it is common to privilege efforts to prepare for working activities than to experience free time living, so that retirement presents itself as a significant change that requires the re-signification of the socio-affective and occupational bonds developed throughout the life cycle. This study is a theoretical essay that aims to reflect on retirement and leisure experience from the possible contributions of the Gestalt approach, based on the concepts of person, awareness and here-and-now, as well as elements of Gestalt therapy group work, which can contribute in a relevant way to the process of preparation for retirement, enabling the subjects the most effective and responsible contact with their choices and ways of being in the world.
Keywords: job, retirement, leisure, Gestalt therapy.
RESUMEN
En la estructuración de la vida humana es común ponderar los esfuerzos de la preparación para la actividad laboral en detrimento de la vivencia del ocio, de modo que la jubilación se presenta como un cambio significativo que exige la resignificación de los vínculos socio-afectivos y ocupacionales desarrollados a lo largo del ciclo de vida. Este estudio constituye un ensayo teórico que pretende reflexionar acerca de la jubilación y la vivencia del ocio a partir de las posibles contribuciones del enfoque gestáltico, basándose en los conceptos de persona, de conciencia y de aquí y ahora, además de elementos del trabajo grupal en Gestalt-terapia, los cuales pueden aportar de forma relevante al proceso de preparación para la jubilación, posibilitándole a los sujetos un contacto más efectivo y responsable con sus elecciones y formas de ser y estar en el mundo.
Palabras clave: trabajo, jubilación, ocio, Gestalt-terapia.
Introdução
A relação homem e trabalho tem sido estudada em profundidade, sobretudo nas últimas décadas no contexto das sociedades capitalistas pós-modernas, em que tudo se transforma em mercadoria, inclusive as habilidades e o tempo investidos na atividade laboral. Na perspectiva do materialismo histórico-dialético, "[...] ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material [...] o que eles são coincide, pois, com sua produção" (Marx & Engels, 1998, p. 11).
Não raro, as pessoas se identificam socialmente utilizando como referência a profissão que exercem ou o local onde trabalham, revelando assim uma forte relação entre trabalho e identidade. A inserção nos diversos grupos sociais passa, fundamentalmente, pela condição dos sujeitos em relação à atividade laboral o que confere ao trabalho um locus de centralidade. Dessa forma, o fechamento do ciclo produtivo, notadamente marcado pela aposentadoria, pode fazer emergir sentimentos de vazio, desvalor e depreciação.
A aposentadoria, historicamente, foi criada como um favor do Estado aos que não podiam mais contribuir com a produção de bens e serviços, gênese esta marcada, portanto, por uma representação social negativa. Como explicam Fontoura, Doll e Oliveira (2015, p. 54), "[...] as novas formas de trabalho, como o emprego assalariado, e as modificações na estrutura social do século XIX, contribuíram para a criação da instituição aposentadoria". Ressalte-se ainda que, inicialmente, a aposentadoria foi pensada como um tipo de esmola do Estado, para, posteriormente, se transformar em um direito social. Não é de admirar, portanto, que vivenciar esse direito se configure como um desafio pessoal, institucional e social, pois quando o trabalhador chega à aposentadoria "[...] muitas vezes sente-se perdido diante da quebra da estrutura em torno da qual sempre esteve organizado" (Felix & Catão, 2013, p. 421). Diante do exposto, faz-se importante um suporte psicossocial embasado em discussões teóricas consistentes e estratégias para intervenções efetivas.
A mudança que se processa na vida de uma pessoa que se prepara para a aposentadoria envolve, também, novas reflexões sobre o ócio, pois sem as obrigações de cumprimento de horários, a pressão pelo atingimento de metas e projetos institucionais, e ainda com a redução das relações socioafetivas construídas no ambiente laboral, o que dará significado à vida? Segundo Soares & Costa (2011, p. 27), "[...] as vivências partilhadas entre os trabalhadores abrangem dimensões cognitivas, afetivas e políticas, possibilitando a construção de representações de si diretamente ligadas às situações e relações de trabalho". É possível inferir que até mesmo o lazer e o tempo livre estejam associados ao labor, através de grupos de colegas de trabalho, reuniões sindicais, festas e eventos sociais promovidos pelas organizações, além do compartilhamento cotidiano de refeições no mesmo espaço e tempo.
Ao contrário de uma ociosidade caracterizada pela noção de um tempo vivido na inutilidade, a aposentadoria, refletida e planejada com base nos conceitos humanistas da Gestalt-terapia, pode representar a ressignificação da própria vida, a partir da reconfiguração das relações familiares e sociais, da descoberta de outras potencialidades, prazeres e da própria criatividade. Embora a negação do ócio seja frequente na contemporaneidade, vale lembrar que "o ócio é tão antigo quanto o trabalho" (Aquino & Martins, 2007, p. 485), sendo, portanto, necessário ao desenvolvimento humano em qualquer etapa da vida.
É razoável pensar, portanto, um projeto que prepare as pessoas para fecharem o ciclo laboral de forma saudável e integradora, nutrindo-se, para isso, dos conceitos da Gestalt-terapia, sobretudo de sua concepção de ser humano: uma totalidade indivisível, um ser de relações, potente para resolver suas questões, capaz de ajustar-se criativamente às mudanças e crescer no movimento de transformação. A pessoa, conforme Ribeiro (2011, p. 59), "[...] é um ser em movimento, construindo o caminho e sendo construído por ele". Sendo assim, a reflexão sobre esse "caminho-movimento" do trabalhador, desde o início de sua carreira profissional até a aposentadoria, mostra-se uma oportuna fonte de crescimento.
Nessa lógica, o presente estudo possui como objetivo propor uma reflexão sobre a contribuição da Gestalt-terapia, enquanto abordagem humanista da Psicologia, para a preparação à aposentadoria, articulando a concepção sócio-histórica do mundo do trabalho na contemporaneidade e a vivência do ócio.
Considerando que o fenômeno abordado é complexo e atravessado pela interação de diversos fatores, individuais e sociais, optou-se pela pesquisa bibliográfica. Para Günther (2006) a compreensão dos dados bibliográficos, portanto, ocorre em meio à interrelação das variáveis ou categorias estudadas e da complexidade implicada nesse processo.
Nesse sentido, valemo-nos da contribuição de Wang e Shi (2013), para ratificar a escolha da pesquisa bibliográfica nesse ensaio, visto que para estes autores, as pesquisas empíricas sobre a aposentadoria, especialmente na área de psicologia tendem a focar o fenômeno a partir de processos psicológicos individuais. No entanto, os autores acrescentam que se faz necessário perceber que a operacionalização da aposentadoria de maneiras diferentes pode produzir resultados dramaticamente diferentes, sendo possível um descompasso entre a sua conceituação e a operacionalização, o que dificultaria a interpretação dos resultados da pesquisa. Ao se referirem à operacionalização da aposentadoria, citam múltiplos critérios sobrepostos para que alguém seja chamado de aposentado e asseguram que as pesquisas em todo mundo seguiram o modelo de Denton e Spencer (2009) que classificam em oito maneiras comuns para mensurar o status de aposentadoria: (a) não-participação no trabalho vigor, (b) redução de horas trabalhadas e / ou ganhos, (c) horas trabalhadas ou ganhos abaixo de corte mínimo, (d) recebimento de renda de aposentadoria / pensão, (e) saída do principal empregador, (f) mudança de carreira ou emprego mais tarde na vida, (g) aposentadoria autoavaliada, e (h) alguma combinação dos sete anteriores.
Frente a estas especificidades do campo empírico que perpassam as pesquisas em aposentadoria, a proposta de articulação entre a Gestalt-terapia, o mundo do trabalho e o ócio e, ainda em consonância à subjetividade dos autores, a revisão narrativa que integra o rol da pesquisa bibliográfica, mostrou-se a mais adequada. Conforme Rother (2007), a revisão narrativa inclui publicações amplas, apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, sob um ponto de vista teórico ou contextual. Não especificam as fontes de informação utilizadas, a metodologia para a busca das referências, nem os critérios utilizados na avaliação e seleção dos trabalhos. Constituem, basicamente, de análise da literatura publicada em livros, artigos de revista, na interpretação e análise crítica do autor.
A relevância da pesquisa para o meio acadêmico reside no fato de que o contexto da saúde mental do trabalhador e das intervenções em reorientação profissional com foco na aposentadoria são um campo privilegiado de saberes e práticas da Psicologia. No tocante ao social, França, Amorim, Souza e Schuabb (2017, p. 249) asseveram que "o processo de envelhecimento populacional é uma tendência mundial e a necessidade de práticas organi-zacionais específicas sobre o tema foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2015) nas assem-bleias mundiais de envelhecimento realizadas em Viena (1982) e em Madrid (2002)." E ainda, vale enfatizar que, em sua maioria, as pesquisas em Gestalt-terapia abordam o contexto da clínica psicológica e o processo psicoterapêutico, sendo, portanto, inovador o aspecto de propor reflexões que transcendam o setting terapêutico.
Essas são, portanto, as questões basilares que configuram o presente artigo, com vistas a emprestar novas reflexões em curso sobre o mundo do trabalho e a aplicabilidade da Gestalt-terapia em espaços não clínicos com foco na preparação para a aposentadoria. O que podemos inicialmente destacar das contribuições da Gestalt-terapia é seu modo de compreensão fenomenológico do tempo vivido como experiência aqui-agora. Assim, a experiência da aposentadoria, no enfoque gestáltico, valoriza a compreensão do sentido que a realidade e a experiência vivida têm para o indivíduo (Montoya, 2015).
Sobre o trabalho e a aposentadoria: pode o caracol viver sem sua concha?
O trabalho, ao longo da história da humanidade, revela-se como uma atividade transformadora da natureza, em função da satisfação das necessidades das pessoas, dos grupos e das comunidades. Dessa forma, assume um caráter central na estruturação da vida, em seus aspectos individuais e coletivos, sobretudo no contexto da sociedade capitalista (Antunes, 2001). Pensar a trajetória do trabalhador até a aposentadoria envolve o fechamento de um ciclo organizador da existência desse indivíduo e oportuniza a elaboração de novos significados para a sua relação com o espaço, o tempo e as pessoas.
Antunes (2005, p. 13), ao discutir a relação do homem com o trabalho, a partir da metáfora do caracol e sua concha, nos lembra que "[...] na longa história da atividade humana, em sua incessante luta pela sobrevivência, pela conquista da dignidade, humanidade e felicidade social, o mundo do trabalho tem sido vital". Ora, se o trabalho está social e culturalmente associado a valores tão relevantes como dignidade e felicidade, o que se pode esperar da aposentadoria como possível causadora de ociosidade e improdutividade?
Em sua obra, Antunes defende e reafirma a centralidade do trabalho na vida humana, apesar das transformações das relações de emprego, e na própria maneira de desenvolver as atividades laborativas. Segundo esse autor, o ser humano cria e é criado dialeticamente pela atividade laboral que realiza, ou seja, "a natureza humana é também metamorfoseada a partir do processo laborativo" (Antunes, 2001, p. 142).
Partindo do princípio de que a vida social se organiza predominantemente em função da atividade laboral, é compreensível que a aposentadoria esteja associada ao receio de enfrentar o tempo livre, quando as relações interpessoais serão repensadas, redefinidas e atualizadas. Para Antunes (2005, p. 12), quando o trabalho ganhou esse status de centralidade da vida humana, "[...] selava-se [...] a prevalência do negócio (negar o ócio), que veio sepultar o império do repouso, da folga e da preguiça", entendimento que pode justificar o receio diante de um momento de transição da condição de ativo para inativo e dos impactos que advêm dessa grande mudança, quando os sujeitos, de certa forma, desvinculam-se de suas "conchas", (re)pensam sua identidade e iniciam uma nova trajetória de descobertas.
Esse cenário começa a emergir, visto que, num estudo recente de Macêdo, Bendassolli e Torres (2017), analisou-se as representações sociais da aposentadoria para servidores públicos federais de uma Instituição de Ensino Superior, que contou com 283 participantes. Partindo-se do pressuposto que tais representações orientam preferências, intenções e decisões de aposentar-se, o estudo identificou cinco categorias de representações de aposentadoria: direito do trabalhador, descanso merecido, ociosidade, nova etapa de vida, e tempo para usufruir.
A contemporaneidade, no entanto, ainda ancora a ideologia na qual o ócio e uma vida (des)ocupada adquirem uma conotação negativa e desvalorizada (Alvim, 2006). Além do mais, é comum associar o fechamento do ciclo da atividade laboral ao processo de envelhecimento, numa representação social limitante (Stuart-Hamilton, 2008). Esse mote preconceituoso relaciona a aposentadoria a um tempo de inatividade, traz consigo os estigmas de doença, inutilidade e proximidade da morte, já que, como ressalta Bosi (2015, p. 78), "quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização". Portanto, frente a tais estigmas é possível que o retardamento da aposentadoria expresse a tentativa de permanecer por mais tempo na condição de indivíduo jovem e ativo, uma vez que "a perda do lugar no sistema de produção" implica uma "necessidade de reorganização espacial e temporal e de reestruturação da identidade" (Soares & Costa, 2011, p. 35).
Para pensar na aposentadoria como etapa de desenvolvimento humano, fora das relações sociais tradicionais, nas quais as pessoas se reconhecem e são reconhecidas pelo que realizam e consomem, é necessário refletir sobre a aposentadoria como uma possibilidade de usufruto do tempo como crescimento e ampliação das potencialidades dos indivíduos. A aposentadoria também pode ser uma vivência de ócio valioso, que Cuenca Cabeza (2014) denomina como uma experiência com valores positivos de desenvolvimento do indivíduo e da comunidade. Ou seja, o tempo da aposentadoria pode ser ainda um tempo bastante produtivo, não especificamente em termos de produtividade econômica-laboral, mas de realização de ações valiosas que promovam não só a satisfação e o desenvolvimento individual, mas que também possam contribuir de maneira solidária e significativa para o desenvolvimento da coletividade (Cuenca Cabeza, 2014).
É razoável pensar que a representação social da aposentadoria tem forte conexão com o que o indivíduo pensa e vivencia no próprio trabalho. Ao aposentar-se e entrar em contato com a experiência do tempo livre e da retomada do espaço doméstico e outras dimensões da vida humana (lazer, espiritualidade, arte e esporte, por exemplo), o sujeito se dá conta do tempo vivido no trabalho e atribui significação a ele, compreendendo que este ocupou muitas vezes o lugar de centralidade na organização do seu cotidiano.
Harvey (2001) faz uma longa e profunda análise do que ele chama de "condição pós-moderna", marcada por transformações culturais, econômicas e sociais vivenciadas na contemporaneidade. Para este autor, "o espaço e o tempo são categorias básicas da existência humana. [...] Os movimentos cíclicos e repetitivos [...] oferecem uma sensação de segurança" (Harvey, 2001, p. 187). Mas, por outro lado, imprimem um caráter coercitivo na dimensão da temporalidade (Mesquita, 2011), sobretudo nas sociedades onde o controle da vivência do tempo se manifesta na contagem de dias, meses e anos, o que pode gerar sentimentos de angústia diante da possibilidade de um futuro desvinculado da regulação imposta pelo trabalho. Dessa forma, reorganizar o cotidiano, em função de novas relações com o espaço e o tempo, após a aposentadoria, pode indicar a necessidade de refletir e ressignificar a própria vida, pois, apesar de o tempo ser uma construção cultural, com sua métrica bem definida, é também uma experiência subjetiva e singular.
Estudos mostram que essa conjuntura de trabalho assalariado e alienado, fortemente influenciada pela lógica do capital, acabou por produzir uma área do conhecimento conhecida como campo da saúde mental relacionada ao trabalho (Seligmann-Silva, 2011). Busca-se pesquisar nesse campo a relação do adoecimento humano com a qualidade da atividade laboral e seus impactos na saúde mental, expresso individual ou coletivamente, como resultante da interação de vários fatores como: estresse, fadiga, exploração dos afetos e sentimentos (através de premiações, gratificações e promoções) e controle do tempo (registro do ponto, intervalos de descanso e férias, entre outros fatores). Esses agravos à saúde do trabalhador podem, inclusive, comprometer a experiência da aposentadoria, que chega cada vez mais tarde e muitas vezes está associada à possibilidade de doença e morte, ao invés de significar mais uma etapa de desenvolvimento humano.
Prazer do ócio ou culpa da ociosidade: caminhos para a experiência da aposentadoria
Pensando a aposentadoria sob uma perspectiva mais positiva é possível identificar o fim do ciclo do trabalho como oportunidade de atribuir outras significações à condição de aposentado, diante das presumíveis vantagens da apropriação do tempo livre.
Diversas áreas do conhecimento têm discutido sobre ócio e lazer como constituintes do processo de subjetivação no contexto social em que vivemos, marcado por grandes transformações, tanto no aspecto tecnológico quanto cultural. Para Cuenca Cabeza (2009), tradicionalmente, o lazer tem sido considerado um aspecto residual da vida, pouco significativo, um luxo. Entretanto trata-se de uma experiência para todos, mesmo que a sociedade industrial o tenha institucionalizado como descanso, como justificativa e recompensa do trabalho ou atividade de consumo. Aceita e superada a necessidade de descanso, o exercício do lazer cada vez mais se concentra em ocupação livre e agradável
Nessa visão, Aquino & Martins (2007) reiteram a necessidade de que o ócio seja experimentado como tempo de liberdade criativa, autodeterminado, dedicado às atividades aprazíveis e lúdicas, facilitadoras do desenvolvimento humano e não apenas o descanso do trabalho para realizar mais trabalho. Afirmam ainda que "o ócio como experiência humana está relacionado a valores e significados profundos, apenas assim pode o ócio ter sentido enquanto experiência significativa positiva, fonte de desenvolvimento e prevenção à ociosidade negativa, ou ócios nocivos" (Aquino & Martins, 2007, p. 497).
Essa ociosidade, muitas vezes temida por quem se aproxima da aposentadoria, está carregada pelo estigma da improdutividade e da incapacidade, que acompanha, também, a velhice (Teixeira, Marinho, Vasconcelos, & Martins, 2016). Segundo Goffman (1988, p. 12), ao categorizarmos alguém pela sua forma de apresentar-se ao mundo, "[...] deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande [...] um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem".
Sendo assim, é fundamental distinguir a ociosidade estigmatizada pela sociedade do trabalho e a experiência criativa e libertadora do ócio, como proposta por Aquino e Martins (2007, p. 496), quando afirmam que "o ócio humanista se diferencia de outras vivências por sua capacidade de sentido e potencialidade de encontros criativos que levam ao desenvolvimento pessoal". Para Almeida (2015, p. 24) "[...] o ócio é um fenômeno psicossocial cujas características diferenciais devem ser percebidas pelo próprio indivíduo; muitos autores o caracterizam como uma experiência subjetiva, intra e/ou interpessoal mais complexa que a realização de uma atividade, portanto percebido como uma vivência eleita livremente [...]".Tal debate, portanto, resgata a importância do lugar do ócio na sociabilidade humana e na construção de subjetividades, questionando a centralidade conferida ao trabalho, bem como a própria divisão entre tempo dentro e fora do trabalho como dimensões distintas da existência, onde predomina a dicotomia sofrimento-prazer, respectivamente. Nesse sentido Rosas e Carioca (2017) defendem ser imperioso discutir o ócio na modernidade e que o trabalho ao invadir múltiplas esferas da vida humana, pode desencadear processos de sofrimento e adoecimento.
Com aporte em dados oficiais que indicam o aumento da expectativa de vida em todo o mundo, o período da aposentadoria pode ser longo o suficiente para justificar que sua vivência promova crescimento e realização. Acompanhando essa tendência, de acordo com a Tábua Completa de Mortalidade, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Diário Oficial da União em 01/12/2015, a expectativa de vida dos brasileiros aumentou para 75 anos, 2 meses e 12 dias em 2014. Para além de um dado meramente estatístico, esse indicador aponta para a importância de se repensar a vivência humana, com seus desafios e potencialidades, presentes em todas as fases do desenvolvimento, inclusive na velhice, quando o trabalho não mais se configura como elemento fulcral.
Dessa forma, é possível articular trabalho, aposentadoria e ócio como categorias que se inter-relacionam, quando situadas no contexto da sociedade contemporânea, agregando-se a esta articulação a base conceitual da Gestalt-terapia (GT). Enquanto abordagem humanista da Psicologia, a GT convida o ser humano a "[...] tomar consciência de si, de suas necessidades, de sua vocação e de suas escolhas [...] e o implicar com seu desejo e sua vocação reais, o que pode permitir a ele trilhar um encontro mais verdadeiro e prazeroso com o trabalho, revestindo-o de significado e sentido" (Alvim, 2006, p. 128), ampliando as possibilidades de sentido e significado, também, para o tempo do não-trabalho.
Sobre a abordagem gestáltica: um convite às possibilidades
Conforme Tellegen (1984, p. 26), Frederick Perls é a grande referência na construção teórica da Gestalt-terapia, e "[...] mais do que uma terapia, ela passou a ser para ele uma concepção de vida que contestava muitos dos valores típicos de uma sociedade industrial e consumista". Sua trajetória de vida sofreu diversas influências, tanto de experiências familiares e religiosas quanto de correntes filosóficas como a fenomenologia, o existencialismo e o pensamento oriental. Essas referências forneceram elementos fundamentais para a construção do campo conceitual da GT que "[...] compreende a existência como um fluxo contínuo de transformação e crescimento, dado a partir do contato no campo organismo/ambiente" (Alvim, 2014, p. 13).
Nessa perspectiva, para pensar a contribuição da abordagem gestáltica na compreensão da relação do ser humano com o trabalho e com a aposentadoria, é importante definir alguns parâmetros orientadores da discussão teórica proposta no presente estudo, onde serão abordados os conceitos de pessoa, de awareness e de aqui-e-agora, procurando, na medida do possível, explicitá-los e articulá-los com a temática central do artigo.
O ser humano da Gestalt-terapia: potencialidades, ajustamentos criativos e relações
De acordo Ribeiro (2011, p. 74), na concepção gestáltica, "ser pessoa é estar, embora de maneiras diferenciadas, em relação com todos os seres, formando uma totalidade de relações, de onde nasce o sentido de ser-pessoa-no-mundo [...] é, essencialmente, um ser de relação". A partir dessa compreensão, é possível inferir que, nas relações de trabalho, o ser humano também se constitui e se reconhece. No contato com outros trabalhadores, vivencia afetos e relações de poder, solidariedade e inveja, prazer e sofrimento. No mundo do trabalho, o ser-no-mundo também "[...] tem estado permanentemente em luta consigo e com outros homens, na eterna tentativa de se afirmar e de ser reconhecido como pessoa [...] em constante procura da compreensão de seu próprio sentido" (Ribeiro, 2012, p. 42).
Cada pessoa, ao longo de sua trajetória laboral, tem oportunidade de atribuir significados às suas tarefas cotidianas e relações interpessoais, além de encontrar meios de lidar com as dificuldades, ajustando-se à realidade numa atitude de abertura ao processo criativo, de atualização e transformação de sua realidade. E, assim como cria significados para a vida de trabalho, também poderá ressignificar a vida após o ciclo do trabalho, a aposentadoria. Para Ribeiro (2011, p. 84), no entanto, "o sentido das coisas jamais está pronto, é sempre uma construção pessoal", considerando que "[...] homem-mulher é um ser se fazendo, sempre a caminho, caminhando entre liberdade e responsabilidade, como um projeto se constituindo permanentemente" (Ibid, p. 106).
Apesar de reconhecer a força das determinações sócio-históricas que influenciam os modos de ser e de se relacionar no mundo, numa perspectiva gestáltica, é possível perceber o ser humano num processo de construção de si mesmo, a partir de suas relações e experiências. E isso amplia seu horizonte existencial, na medida em que ele se percebe como parte de um todo maior, que transcende o espaço-tempo do trabalho, e projeta-se para outros âmbitos da vida, como a arte, as relações de afeto, a natureza, o lazer, os outros seres-no-mundo. Esse movimento de autopercepção e percepção dos outros e do mundo requer uma concepção integradora e não dicotômica do ser humano, além de "[...] uma perspectiva que compreenda o processo de consciência como dado a partir desse complexo pessoa-mundo em um espaço-tempo presentes", que Alvim (2014, p. 15) define como awareness.
Awareness: ampliando a consciência para escolhas mais autênticas
O conceito de awareness é talvez uma das definições teóricas mais complexas da Gestalt-terapia, pois envolve um entendimento de consciência não somente em significação inversa de inconsciência, mas como uma experiência de "saber da experiência", através do contato dialético e não dicotômico ou mecanicista do sujeito consigo e com o outro, no campo organismo-ambiente. Trabalhar com a noção de awareness indica "[...] possibilitar a fluidez do processo de consciência por meio da corporeidade, [...] que devolva à pessoa a sensação de possibilidades, o sentido de eu posso, de criação, de transformação" (Alvim, 2014, p. 29). Esse fluxo de contato com a realidade, de forma pré-reflexiva e não racional, permite ao sujeito perceber sua existência "como configuração ou totalidade de partes que se relacionam" (p. 23). Trata-se de uma experiência que torna possível uma concepção mais integrativa da vida, evitando divisões, o que contribui significativamente para que a pessoa forme Gestalten (ou configurações de formas) e produza sentidos a partir dos acontecimentos do aqui-e-agora.
No caso dos indivíduos que se aproximam da aposentadoria, o exercício de encontrar-se com o novo e identificar os sentimentos presentes nessa experiência pode facilitar a percepção da vida como totalidade e favorecer uma ampliação de consciência. E isso se torna relevante, considerando que o momento de fechar o ciclo do trabalho e iniciar novos ciclos de vida envolve uma tomada de decisão implicada na congruência entre pensar, sentir e agir.
Aqui-e-agora: a experiência do tempo
Parece óbvio que, por não termos acesso ao passado e ao futuro enquanto possibilidades de vivência e por estarmos experimentando apenas o presente, tenhamos consciência da grandeza do momento aqui-agora, dedicando-lhe plena atenção. Mas, ao contrário, o ser humano, segundo Perls (2012, p. 11), "[...] passa um tempo infinito tentando recapturar o passado ou moldar o futuro. Suas atividades no presente são meramente tarefas que deve tirar do caminho".
Não é de se admirar, portanto, que no momento de aposentar-se as pessoas possam expressar certo desejo de recuperar o tempo "perdido", pois, como constatam Felix e Catão (2013, p. 427), essas pessoas "[...] pensam a aposentadoria como um momento de aproveitar a vida, buscar novos prazeres". O que chama a atenção é exatamente a percepção de que a dimensão do prazer seja projetada para o futuro, para o lá-e-então, deixando de ser experienciada no aqui-e-agora e não apenas na aposentadoria.
Nesse sentido, cabe fundamentar a reflexão sobre a passagem do tempo de trabalho ao tempo de não-trabalho na compreensão de temporalidade em Gestalt-terapia, pois, como nos esclarece Ribeiro (2011, p. 82), "[...] somos, na verdade, uma unidade têmporo-espacial, constituída de passado-presente-futuro [...] feito de força, coragem, medos e de expectativas do futuro, formando uma unidade que contém mais qualidade que as quantidades que o presente possa nos ter dado". A questão que se apresenta, portanto, é de qualidade do tempo ou de significados atribuídos ao tempo vivido, em que cada momento e cada ciclo da vida podem ser experimentados como possibilidades de prazer e desenvolvimento.
Afinal, como define Costa (2014, p. 135), "o agora é o presente, o ponto zero, é o momento percebido, carregado pelas memórias e pelas antecipações", o que implica dizer que, no agora da aposentadoria, o sujeito carrega registros emocionais da experiência de décadas de trabalho e as projeções de sentido em relação ao futuro de não-trabalho, num movimento dialético, que pode favorecer o crescimento humano.
Fechando ciclos e ressignificando a vida: contribuições da abordagem gestáltica para a experiência da aposentadoria
O processo de envelhecimento da população, segundo Felix e Catão (2013), "implica a necessidade de se pensar a respeito da manutenção da vida ativa independente" (p. 421). Esse processo demanda uma reorganização da vida, enfatizando outros aspectos além do trabalho que antes costumavam ser negligenciados, como a família, os grupos sociais e o ócio. O estudo realizado por Figueira, Haddad, Gvozd e Pissinati (2017) com servidores de uma universidade pública no norte do Paraná, destacou inclusive que um dos critérios que pode influenciar a tomada de decisão para a aposentadoria é a cobrança dos familiares. Bons vínculos familiares tendem a favorecer a decisão por se aposentar (Figueira et al., 2017).
Alguns conceitos da GT podem contribuir para que a vivência da aposentadoria propicie ressignificações, a ampliação de consciência para decisões mais autênticas, sendo "uma oportunidade que o trabalhador tem para experimentar novas situações, desenvolver habilidades, aptidões e mesmo descobrir novos interesses" (França & Soares, 2009, p. 745). E, nesse sentido, propõe-se pensar um Programa de Preparação à Aposentadoria (PPA), demarcando como fundamento teórico a base conceitual da Gestalt-terapia, especificamente as concepções de awareness e de aqui-e-agora, além da compreensão sobre o ser humano, própria dessa abordagem psicológica. Os aportes da GT buscam contemplar questões de ordem prática e existenciais, oportunizando reflexões e vivências geradoras de transformação.
Apesar de grande parte dos PPAs incluírem conteúdos similares (noções de empreendedorismo, saúde, planejamento financeiro e elaboração de projetos de vida), os quais são relevantes para o enfrentamento de uma aposentadoria com qualidade, a abordagem gestáltica, em sua visão de mundo e de ser humano, traz outros elementos de reflexão que podem contribuir para que o fechamento deste ciclo seja vivenciado como parte integrante da existência e de suas possibilidades, e não como ruptura.
Ao nos referirmos à aposentadoria como um tempo futuro de possibilidades, negamos ao presente as inúmeras alternativas de produção de sentido da vida e de experimentação de outras potencialidades do indivíduo, reduzindo-o ao papel de trabalhador, alheio e alienado da própria existência. Reforça-se, com esse discurso, a ideia de uma suposta felicidade a ser conquistada e concretizada no lá-e-então, e não no aqui-e-agora. Nessa perspectiva, entrar em contato com os significados de trabalho e aposentadoria, apropriados por cada sujeito de forma distinta e única, pode ser um caminho para que os aposentandos iniciem seu processo de desligamento institucional. Ou seja, pensar a aposentadoria é pensar o trabalho enquanto atividade que, em alguma medida, contribui para a construção de histórias de vida.
Zanelli, Silva e Soares (2010) apontam como objetivos de um programa de preparação para a aposentadoria a discussão de aspectos relacionados à organização do cotidiano (saúde, finanças, cultura, relações sociais, política e economia), à redução de ansiedades vividas nessa fase de transição, à elaboração de novos projetos de vida e ao aprendizado de informações para lidar com a mudança. Esses temas são trabalhados em encontros grupais, de caráter informativo e vivencial, onde os participantes têm a oportunidade de pensar o tempo "pós-carreira". Segundo esses autores, "o pós-carreira pode significar uma nova carreira ligada a uma organização ou não, ou ainda investir no tempo livre em atividades prazerosas, não ligadas diretamente ao mundo do trabalho" (Ibid., p. 84).
De fato, vários PPAs pesquisados utilizam termos como instrumentalizar, preparar, orientar, informar, instruir, planejar, tirar dúvidas e refletir sobre uma nova etapa de vida, que pretensamente será vivenciada na aposentadoria. O enfoque está, via de regra, no futuro, enquanto dimensão na qual o sujeito estará autorizado a viver com prazer e satisfação, como se houvesse um controle prévio da existência, que dicotomiza o ser humano entre trabalho e não-trabalho. Enquanto na abordagem gestáltica, que compreende a pessoa em sua inteireza e totalidade, os projetos de vida se constroem, são vivenciados e se reconstroem a cada dia, em cada escolha, em cada movimento de mudança, não necessitando, portanto, esperarmos pelo tempo da aposentadoria para nos apropriarmos da existência e encontrar sentidos para a vida.
Certamente o fim do ciclo do trabalho libera tempo cronológico (horas, dias, meses e anos) para ser utilizado pelos aposentados das mais diversas formas. Entretanto, a Gestalt-terapia convida o ser humano a "[...] aprender a experimentar e a observar-se para descobrir e perceber seus próprios objetivos de modo ativo e responsável" (Costa, 2014, p. 135), o que pode facilitar o processo de ressignificação da carreira profissional e tornar a decisão de aposentar-se em uma escolha mais livre e consciente, mesmo que inserida em determinadas condições sócio-históricas. Atribuir sentido a uma experiência é, então, o que a transforma em algo singular para o sujeito da experiência. Arejar os PPAs às concepções da abordagem gestáltica evoca um convite aos aposentandos para a reflexão sobre as escolhas ao longo da vida a partir de uma vivência de aqui-e-agora que proporcione um olhar sobre suas trajetórias de vida e a percepção de possibilidades de movimento a qualquer momento, e não apenas ao se aposentarem.
Ao apresentarmos o ócio como possibilidade de experiência prazerosa e significativa, vale incluirmos nas próprias atividades do PPA o não-fazer, a contemplação, o silêncio, o voltar-se para si, práticas que oportunizam um tempo de encontro das pessoas consigo mesmas, com o outro e com o mundo. A vivência do ócio, mesmo que paradoxalmente inserida numa atividade de preparação para a aposentadoria, pode despertar as pessoas de suas dormências existenciais e estimulá-las a experimentar momentos ociosos ainda no decorrer do trabalho, abrindo espaços nas agendas, fazendo pequenas pausas durante a jornada laboral, valorizando e qualificando o tempo livre e atribuindo sentido à vida.
PPA na perspectiva gestáltica: uma proposta, um caminho
A preparação para a aposentadoria na perspectiva gestáltica, passa, necessariamente, pelo trabalho grupal e vivencial baseado no entendimento de que "[...] organismo e meio se encontram numa relação de mutualidade. Uma qualidade de contato caracterizada por vivacidade e espontaneidade é a marca da saúde" (Tellegen, 1984, p. 44). No grupo abre-se espaço e tempo para o compartilhamento das dúvidas, estratégias, ansiedades e medos. O suporte grupal, representado pelos facilitadores e por outras pessoas que estão na condição de aposentandos, cria uma ambiência de confiança e acolhimento.
Os encontros grupais, promovidos fora do local de trabalho e com horário flexível, representam, também, um exercício que possibilita a percepção do nível de prontidão para a mudança de hábitos após a aposentadoria. Possíveis resistências à participação nos eventos, sob o argumento de incapacidade de suspender o trabalho, podem ser utilizadas como conteúdo de reflexão no grupo, acerca do tempo no aqui-e-agora, o lugar central concedido à atividade laboral e o olhar sobre outras escolhas ao longo da vida como: a profissão/emprego, relações familiares, cuidados com a saúde e questões no âmbito financeiro.
A elaboração e a realização de PPA com base nos conceitos da abordagem gestáltica remete ao uso de recursos que facilitem a ampliação do campo de percepção e consciência dos sujeitos (awareness), de forma que os participantes possam, através da experiência, atribuir significados singulares à sua trajetória de trabalho e de aposentadoria, como um continuum de escolhas que constroem o todo de suas vidas. Entretanto, delimitaram-se para este estudo, três temáticas centrais de PPA: cuidados com a saúde, projetos de vida e planejamento financeiro explicitados na sequência.
O foco em "cuidados com a saúde" deve proporcionar aos participantes o contato com sua saúde no tempo presente, e a reverem esse aspecto aqui-e-agora, pois não há garantias de que poderão fazer isso lá-e-então. Além do mais, a qualidade de vida é resultante do estilo de vida e requer responsabilidade para incluir na rotina hábitos saudáveis, que promovam o bem-estar necessário para as atividades da vida humana, incluindo experiência prazerosa do ócio. Nessa visão, faz-se importante auxiliar os participantes do PPA a compartilharem os hábitos saudáveis, vivências de lazer e ócio, através de relatos de experiência.
A contribuição da GT no tema "Projetos de Vida" está na compreensão de que o ser humano "[...] é um ser se fazendo, sempre a caminho, caminhando entre liberdade de responsabilidade, como um projeto se constituindo permanentemente" (Ribeiro, 2011, p. 106). Mas não no sentido de colocar no futuro as expectativas de realização pessoal, pois "[...] não temos garantias, temos horizontes que se afastam, sempre que mais próximos estamos deles" (Ibid., p. 91). Trata-se de uma atividade vivencial sugestiva para que as pessoas possam olhar suas vidas hoje, identificar planos realizados ou abandonados ao longo do caminho e entrar em contato com sentimentos de satisfação ou frustração, para, em seguida, olharem o futuro mais conscientes de seus limites e possibilidades, através do exercício de visualização criativa. Para Soares e Costa (2011, p. 40) o "projeto é o momento que integra o futuro previsto e desejado, com o passado recordado, portanto, implica uma dimensão temporal", que, para a Gestalt-terapia é o aqui-e-agora.
Finalmente, no que diz respeito ao "planejamento financeiro", é importante que os participantes possam entrar em contato com as escolhas que têm feito na administração de suas finanças, ao longo da vida. Soares e Costa (2011, p. 76), quando se referem ao assunto, declaram que "projetos financeiros se relacionam à [...] redução de gastos para manter o padrão de vida e à busca por nova atividade que traga retorno financeiro". Esse mote reforça a ideia de que ter, produzir e consumir sempre mais não é garantia de felicidade, podendo, inclusive, gerar angústias e comprometer a dimensão do prazer da aposentadoria, o que exige um olhar honesto e responsável com a disponibilidade para perceber sua atual condição e a necessidade de adotar "ajustamentos criativos" para a tomada de decisão pela aposentadoria. Ribeiro (1994) afirma que "perceber significa dar significado" (p. 62) e que "os fatos não existem amanhã, existem agora e é agora que seu sentido tem que ser encontrado" (p. 52).
O trabalho grupal, na abordagem gestáltica, constitui-se num rico espaço de trocas em que os significados vão sendo construídos, desconstruídos e reconstruídos coletivamente, num movimento constante de figura-fundo. Diversos recursos e técnicas podem contribuir para que essa vivência aconteça, os quais poderiam ser aqui delineados, mas, como explica Ribeiro (1994, p. 31) sobre o processo grupal em Gestalt-terapia, "uma técnica jamais é prescritiva, exclusiva e nunca ajuda, quando fora do contexto, divorciada do fluir, momento por momento [...]. O uso mecânico de técnicas é antiético e contra o verdadeiro espírito da Gestalt-terapia".
Sendo assim, a proposta de PPA na abordagem gestáltica apresenta-se como um caminho, uma possibilidade de abertura para que os participantes se conectem consigo, com o outro e com o mundo, de forma criativa, livre e amorosa, pois é preciso "[...] acreditar que só no contato profundo e verdadeiro é possível que o ser humano se reencontre e, nesse reencontro, encontre a alegria de ser pessoa" (Ribeiro, 1994, p. 29).
Considerações finais
Inicialmente buscou-se pensar a contribuição do PPA, com base em alguns conceitos da Gestalt-terapia, sobretudo a concepção de pessoa, compreendida como um ser-em-relação, com potencialidades para fazer ajustes criativos diante dos ciclos da vida, num constante movimento. Em seguida, porém, foi percebido que somente esse conceito não daria conta das inquietações, visto que o cerne da problemática apresentada não estava na proposta de formato de um PPA, mas na compreensão gestáltica sobre a existência e sobre sua relação com o trabalho e a aposentadoria. A investigação, então, dirigiu-se para outros conceitos da abordagem gestáltica, como awareness e aqui-e-agora.
No conceito de awareness foi encontrada a importância de tornar consciente a experiência para o sujeito, apropriando-se de suas escolhas e responsabilizando-se pelo seu processo de mudança. Na compreensão do aqui-e-agora percebeu-se que, apesar de ser importante preparar as pessoas para o futuro, mais relevante ainda é convidá-las a olhar para seu presente e atribuir significado ao vivido hoje, pois essa atitude pode auxiliá-las a caminhar para a aposentadoria não como uma ruptura, mas como uma etapa de um ciclo com abertura para outros ciclos, numa experiência de ressignificação da vida.
Nesse percurso, os estudos sobre o ócio ofereceram novos elementos de reflexão sobre a vivência da aposentadoria assim como a percepção das transformações do mundo do trabalho na contemporaneidade, os sentidos atribuídos ao trabalho e seus reflexos na identidade e na concepção de saúde e doença.
A abordagem gestáltica, por sua visão holística e integradora do ser humano, pode contribuir de forma relevante para o processo de preparação para a aposentadoria, qualificando encontros grupais e atendimentos individuais, que possibilitem aos sujeitos a manifestação de suas emoções e sua forma de ser e estar no mundo.
Este exame esboçou uma tentativa de acrescentar às pesquisas que tratam da aposentadoria e dos PPA's uma contribuição explícita da abordagem gestáltica. Este olhar, entendido como ampliado, por apontar ares renovadores de uma vivência aqui-e-agora, poderá ser melhor investigado a partir de investigações empíricas realizadas com Gestalt-terapeutas que atuam com reorientação profissional, no campo específico da preparação da aposentadoria e ainda com participantes desses PPA's. Os resultados podem elucidar como a compreensão do enfoque vivencial aqui-e-agora pode contribuir para a ressignificação não só do tempo da aposentadoria, foco futurístico da maioria das intervenções nesse campo, mas principalmente da ressignificação do tempo como reapropriação do tempo vivido presente.
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Endereço para correspondência:
Mariângela Carvalho de Souza
R. Eliseu Uchôa Beco, 600, Água Fria
60810-270
Fortaleza-CE
E-mail: mariangelacsouza@hotmail.com
Recebido: 11/08/2017
1ª Reformulação: 04/09/18
Aceito: 15/04/2019
Sobre os autores:
Mariângela Carvalho de Souza é Assistente Social (UECE, 2002) e Psicóloga (Estácio, 2016). É Analista Judiciária - TRT 7ª Região.
E-mail: mariangelacsouza@hotmail.com
Felipe Saraiva Nunes de Pinho é Psicólogo, Mestre em Linguística (UFC, 2007) e Doutor em Filosofia pela Universidad de Barcelona (2016). É Professor do Centro Universitário Christus.
E-mail: felipepinho@outlook.com
Jacinta Maria Grangeiro Carioca é Assistente Social, Psicóloga e Mestre em Administração com ênfase em Gestão Estratégica de Pessoas (UFC, 2009). É Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará.
E-mail: jacinta_rh@yahoo.com.br
Karine Lima Verde Pessoa é Psicóloga, Mestre em Saúde Pública com ênfase em Saúde Coletiva (UFC, 2012). É Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará.
E-mail: karine.limaverde@gmail.com