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Winnicott e-prints
versão On-line ISSN 1679-432X
Winnicott e-prints vol.7 no.2 São Paulo 2012
Artigos
René Roussillon e D. W. Winnicott: encontros e desencontros nos interstícios da construção teórica1
René Roussillon and D. W. Winnicott: agreements and disagreements in the interstices of theoretical construction
Alfredo Naffah Neto2
Psicanalista, Professor Titular na PUC-SP, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
Resumo
O presente artigo discute o conceito de simbolização primária, de René Roussillon, e sua busca de fundamentação nas teorias de Sigmund Freud e de D. W. Winnicott, evidenciando que esta última não pode fundamentar tal conceito, já que os pontos de vista de ambos os autores são bastante diferentes no que se refere à capacidade do recém-nascido de perceber o mundo objetivo e de alucinar o seio materno. Sugere, então, uma possível fundamentação do referido conceito numa articulação dos pensamentos de Freud e Bion.
Palavras–chave: simbolização primária, Roussillon, alucinação, percepção, Freud, Winnicott, Bion.
Abstract
This article discusses René Roussillon's concept of primary symbolization and his search for basis in Sigmund Freud's and D. W. Winnicott's theories, showing that Winnicott's theory cannot justify that concept, since both authors show quite different points of view, in terms of the capacity of the newborn baby to perceive the objective world and to hallucinate the mother's breast. It suggests, however, that a basis for that concept can be found, perhaps, in an articulation between Fred's and Bion's thoughts.
Keywords: primary symbolization, Roussillon, hallucination, perception, Freud, Winnicott, Bion.
O objetivo deste artigo é examinar as convergências e divergências, os encontros e desencontros, entre René Roussillon e D. W. Winnicott, tais quais se revelam na construção teórica realizada pelo primeiro, quando propõe o seu conceito de simbolização primária. Tal tarefa faz-se necessária, especialmente pelo fato de Roussillon buscar apoio na obra do seu colega inglês, em diferentes momentos do processo de construção de tal conceito – muito embora seu percurso continue buscando em Freud a referência primeira e mais importante (como, aliás, a maior parte dos psicanalistas franceses).
De qualquer forma, suas alusões a Winnicott têm levado alguns psicanalistas a considerarem-nas como uma importante forma de inserção das ideias winnicottianas no âmbito da psicanálise francesa – ao lado das introduções já realizadas por J. B. Pontalis e André Green, dentre outros, em diferentes instâncias –, e isso tem sido assumido como um fato, sem maiores exames ou ponderações a respeito do tipo de uso teórico em questão.3
Geralmente se aceitam as afirmações de Roussillon quando diz que Winnicott propõe tais e tais conceitos de tais e tais formas, etc. e isso é facilitado porque geralmente não cita livros nem artigos para referendar o que afirma, de forma bastante diferente de como se comporta com Freud, com cujos escritos mostra-se mais cuidadoso, inclusive nas referências bibliográficas.
Entretanto, basta um leitor um pouco mais familiarizado com a obra winnicottiana para que a leitura dos textos de Roussillon produza surpresa e mal-estar, ao perceber que muitas das suas referências a Winnicott não se encaixam na teoria em questão e que tal apoio é, no mínimo, controvertido. Foram tais considerações que me levaram a esta investigação, a partir do convite que me foi realizado para servir como debatedor de uma conferência de René Roussillon, no evento "A psicanálise e a clínica contemporânea – Elasticidade e limite na clínica contemporânea: as relações entre psicanálise e psicoterapia", ocorrido em maio de 2012, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Esse artigo constitui, por assim dizer, um desdobramento desse debate.
Entretanto, antes de começar a percorrer o tema que pretendo investigar, é importante tecer alguns comentários sobre a necessidade desse tipo de trabalho. Afinal, que importa se Roussillon leu ou não Winnicott com rigor? Ou melhor, a quem interessa saber se Roussillon é, ou não, um winnicottiano? Esse tipo de preocupação não está um tanto fora de moda? Não seria mais importante pesquisar o quanto a sua noção de simbolização primária contribui para as discussões psicopatológicas e metapsicológicas contemporâneas, como me sugeriu um amigo psicanalista?
Não nego a importância do segundo tipo de pesquisa, mas ela não diminui a importância do que denomino pesquisa genealógica, qual seja, procurar traçar as filiações, pertinências e linhagens de determinado autor, procurando situá-lo no interior do complexo emaranhado que constitui o universo psicanalítico atual. Para fundamentar essa afirmação, vou contar um evento.
Estava, há alguns anos atrás, numa capital brasileira – prefiro não citar nomes, para evitar constrangimentos –, num encontro de psicanalistas, no qual dois jovens profissionais, que faziam parte de uma instituição que tratava de psicóticos, procuravam explicar os princípios que orientavam a conduta terapêutica dos psicanalistas no tratamento dos seus pacientes. Então, um deles disse: "Procuramos promover atividades que possam gerar algum tipo de simbolização, ainda que incipiente, e evitar outras que promovam todo tipo de regressão, já que a regressão está ligada aos processos desconstrutivos e disruptivos da pulsão de morte". Então, eu lhes disse que, da perspectiva winnicottiana, a direção a seguir seria a oposta, já que Winnicott não trabalhava com a noção de pulsão de morte e, mais do que isso, via a regressão a estágios de dependência infantil como fundamental no tratamento das psicoses: era uma forma de os doentes poderem resgatar processos que, na sua história pessoal, tinham permanecido lacunares e/ou congelados no tempo, diante do ambiente mais acolhedor e suportivo do setting analítico.
Então, eles me olharam com aquele ar surpreso e embasbacado, aquele tipo de constrangimento de quem ouve alguém da mesma tribo – mas éramos mesmo? – falando uma língua diferente. Não creio sequer que tenha me feito entender. Para mim, entretanto, era muito claro que as divergências entre os projetos clínicos para psicóticos dos quais falávamos – e, no caso, as prescrições eram opostas – advinham dos pontos de partida diferentes das teorias assumidas.
É por questões desse gênero que acho fundamental pesquisar a linhagem genealógica dos autores; não porque seja melhor ou pior estar filiado a Winnicott do que a Bion ou a Freud, mas porque significam coisas diferentes, implicam princípios clínicos diferentes, gerados por pontos de partida diversos. Esse tipo de pesquisa serve para situar e delimitar o campo psicanalítico no qual se insere a discussão, o debate.
Para mim, as discussões psicopatológicas e metapsicológicas contemporâneas não têm qualquer valor se caem numa generalidade indiscriminatória, incapaz de distinguir quem é quem, no frigir dos ovos; que pontos de partida são os escolhidos, que princípios clínicos originam-se daí, e quais são as consequências clínicas desse conjunto de decorrências.
Isso posto, passo à tarefa proposta.
1. Roussillon e a simbolização primária: a justificativa teórica do conceito4
Roussillon começa dizendo que, embora todos nós saibamos que a simbolização se faz por meio da linguagem, o aporte da psicanálise a essa questão é afirmar que
[...] a simbolização linguageira não trabalha diretamente a partir da coisa em si mesma, mas mais a partir da coisa interior. Freud propõe que o aparelho de linguagem trabalha a partir de uma forma de coisa já transformada em representação. Reconhecendo-se aquilo que Freud chamou de representação de coisa, poder-se-ia, talvez, jogando com as ambiguidades de tradução, chamá-la representação-coisa, a representação tornada coisa, a representação feita coisa interna. Dito de outra fora, a questão seria, então, como a coisa, a matéria psíquica, se representa? (Roussillon, s/d, p. 1)
É essa a questão primeira que lança o autor em direção à formulação do conceito de simbolização primária. A partir da distinção freudiana entre representação de coisa e representação de palavra, propõe que devemos pensar a simbolização em dois tempos distintos, sendo a simbolização secundária aquela que se efetua por meio da linguagem, ligando a representação de coisa à representação de palavra. E continua:
Ao lado dessa última (simbolização secundária), é pertinente lançarmos a hipótese da existência de outro modo de simbolização – a simbolização primária – que se desenvolve nos processos primários e faz passar a coisa primeira – o que Freud denomina a "matéria psíquica primeira" na "interpretação dos sonhos" –, essa inscrição primeira da experiência subjetiva, em uma primeira forma representativa, principalmente inconsciente, dirá Freud: a representação de coisa. A simbolização primária faz passar a coisa psíquica à sua representação-coisa. (Roussillon, s/d, p. 1)
Para entendermos essa formulação, convém nos lembrarmos da existência de três diferentes tipos de memória no pensamento de Freud. Conforme já salientei num outro texto,
Luiz Hanns descreve três tipos de memória, na obra freudiana. A memória [...] ligada ao processo secundário designa um tipo de "memória evocável por reserva de energia pulsional fixada às ideias", onde existe uma "prontidão rememorativa; bastam sinais chegados de fora ou moções internas para reativá-la" (Naffah Neto, 1998/1999, pp. 196-197)5
Esse é o tipo de memória que, quando evocada, se processa já sob o efeito da simbolização secundária, ou seja, por representações de coisas ligadas a representações de palavras. É o tipo de memória mais próximo da consciência. Mas, além desse, há ainda dois outros tipos.
Há [...] uma memória psíquica ligada ao processo primário, que se define como "memória impressa ou escavada devido à repetida passagem de fluxos pulsionais em direção à descarga. A chegada maciça de estímulos internos ou externos traz rememoração alucinatória por catexia". Esta é a memória invocada no ato em que o bebê suga o dedo alucinando o peito da mãe. Por fim, há ainda a memória designada como somática: "uma espécie de memória impressa na anatomia, que se ativa em sequência de reações fisiológicas, automatismos somáticos e motores em resposta aos estímulos de dentro e de fora". Entretanto, Luiz Hanns vê, nesse tipo de memória, uma "(...) ausência de imagens e de afetos. Há somente estímulos aos quais o corpo, na dimensão do somático, reage". Ou seja, segundo a sua leitura, para Freud, afetos e imagens só começariam a existir no segundo tipo de memória, ligada ao processo primário e, por essa mesma razão, designada como "psíquica" em oposição à "memória somática". (Naffah Neto, 1998/1999, p. 197)
Assim, quando Roussillon propõe o conceito de simbolização primária, parece-me que ele está se perguntando como é que esse primeiro tipo de inscrição, ainda sem formatação psíquica – a memória somática –, ganha sua primeira forma representativa, a de representação de coisa, ligada ao processo primário.
Entretanto, podemos estranhar que, nessa proposta, a noção de simbolização seja usada praticamente como sinônimo de representação, e nos perguntarmos sobre a pertinência dessa sinonímia, de forma geral. Ela se torna justificável, entretanto, na medida em que Roussillon argumenta que essa primeira forma de registro da experiência subjetiva – descrita por Hanns como memória somática –,
efetua-se de maneira global mas, à primeira vista, complexa, enigmática, multissensorial. Ela mistura a parte de si e do outro, a excitação interna e a pulsão, a sensação e a representação. É um conglomerado, um combinado, uma condensação extrema, que torna a sua apreensão pelo bebê, e mesmo pelo o adulto, muito difícil. É por isso que ela deve ser simbolizada, tomada no seu modo de experiência enigmática e desenvolvida na sua complexidade, desdobrada nos seus diferentes componentes [...]. É preciso saber ler nessa complexidade primeira um indício do fato de que somos matéria viva. O vivo não saberia ser idêntico a si mesmo. O não idêntico a si constitui a rasgadura essencial do ser, sua vertigem fundamental, que o obriga a dever reconstituir uma identidade paradoxalmente encontrada no não idêntico a si, uma identidade encontrada no símbolo e por meio dele, que, também, jamais é constitutivamente idêntico a ele próprio. (Roussillon, s/d, p. 2)
A descrição de Roussillon fala, pois, de uma multiplicidade de impressões sensoriais interpenetradas e em estado bruto, algo que guarda alguma analogia com aquilo que Bion denominava elementos β. E que necessita ser desdobrada em seus vários componentes para vir a adquirir alguma forma consistente. Esse desdobramento, entretanto, se processa sob o signo da não identidade.
Assim, é a não identidade na passagem de um tipo de memória para outro que funda, para Roussillon, a sinonímia entre simbolização e representação. Ou seja, é a não identidade entre o primeiro tipo de inscrição e o produto do seu desdobramento no segundo tipo que faz com que a representação final seja uma espécie de símbolo da primeira memória. Símbolo na medida em que representa essa inscrição primeva, sem traduzi-la de forma idêntica. É essa, a meu ver, a justificativa do conceito de simbolização primária.
2. A hipótese-eixo do conceito e a busca de uma fundamentação: oscilando entre Freud e Winnicott
Após esse longo percurso, necessário à compreensão do sentido da proposta do conceito de simbolização primária, vamos retomar, diretamente, a parte do texto em que Roussillon começa a descrevê-lo.6
A primeira ideia, vinda de Freud, é a de que a matéria primeira do psiquismo se apresenta, e se apresenta novamente e começa a se representar pelo viés de uma projeção, de uma evacuação alucinatória. Winnicott permite acrescentar que a matéria psíquica se "apresenta" alucinatoriamente no objeto exterior. A alucinação da matéria psíquica vem se misturar à percepção externa do objeto. A alucinação vem conferir aos objetos percebidos um valor particular que se diria narcísico, mas que é tal que o sujeito vem alocar alguma coisa de sua matéria de ser primeira no outro, no objeto. Para que tal concepção possa ser sustentada, é necessário poder pensar a coexistência de uma alucinação e de uma percepção, o que representa uma dificuldade teórica maior para a primeira metapsicologia de Freud. É somente no fim da vida, em particular, em "Construções em análise" (1937), que Freud vem encarar essa hipótese. (Roussillon, s/d, pp. 5-6)
Aqui já convém fazer uma primeira pausa, não para questionar o uso que o autor faz de Winnicott – já que sobre isso falarei posteriormente –, mas para rastrear a citação freudiana. Embora não seja meu intuito rastrear todas as citações de Freud feitas por Rousssillon nesse texto – já que isso me desviaria do meu problema de pesquisa, aqui assumido –, essa, sem dúvida nenhuma, merece uma atenção especial, dado o seu grau de importância para o conceito em questão.
No texto "Construções em análise", Freud diz:
Quem sabe seja um caráter universal da alucinação, não apreciado o bastante até agora, que dentro dela retorne algo vivido em idade precoce e logo esquecido, algo que a criança viu ou ouviu na época em que mal conseguia se expressar pela linguagem, todavia, e que agora força o seu acesso à consciência, provavelmente desfigurado e deslocado por efeito das forças que contrariam esse retorno. [...] Quem sabe as formações delirantes, nas quais com grande regularidade encontramos essas alucinações articuladas, não sejam tão independentes, como ordinariamente supúnhamos, da pulsão emergente do inconsciente e do retorno do recalcado. No mecanismo da formação delirante, somente destacamos, comumente, dois fatores: a esquiva à realidade e aos seus motivos, por um lado, e o fluxo do cumprimento do desejo sobre o conteúdo do delírio, por outro. Pois bem: o processo dinâmico não poderia ser, em vez disso, que a pulsão emergente do recalcado se aproveite da esquiva à realidade objetiva para impor seu conteúdo à consciência [...]? (Freud, 1937/1976, p. 268)
Mais adiante, no mesmo texto, Freud compara o efeito produzido pelas construções em análise à força de convicção mobilizada por esse tipo de delírio:
Assim como nossa construção produz o seu efeito restituindo um fragmento de biografia (Lebengeschichte, "história objetiva de vida") do passado, de forma análoga o delírio deve a sua força de convicção à parte de verdade histórico-vivencial que coloca no lugar da realidade rechaçada. (Freud, 1937/1976, pp. 269-270)
A partir do exposto, fica claro que Freud não está falando aí de uma alucinação da "primeira matéria psíquica", mas de "um caráter universal da alucinação", dizendo-nos que ele traz sempre um retorno do desejo inconsciente recalcado. Afirma, também, que a alucinação é projetada sobre certa realidade perceptiva rechaçada, em cujo lugar coloca, de forma desfigurada, o motivo central do desejo inconsciente. É justamente essa projeção alucinatória de uma "verdade histórico-vivencial", no lugar da realidade perceptiva rechaçada, que torna esse processo um delírio e que lhe garante, apesar disso, força de convicção.
Mas voltemos ao texto de Roussillon:
Ela (a hipótese da coexistência de uma alucinação e uma percepção) será, em compensação, um pilar da concepção do encontrado/criado de Winnicott. O objeto é alucinado de dentro. Alguma coisa do vestígio da maneira de ser que é alucinada dentro vem se misturar a um objeto percebido fora. O objeto novo produzido é um objeto encontrado/criado. Ele comporta alguma coisa da forma perceptiva de um lado e alguma coisa produzida pela alucinação de outro lado. Isso introduz a um objeto particular que não está nem dentro, nem fora, mas cujo valor reside no fato de que ele mistura, que ele enreda um modo de realidade interna e um modo de realidade externa. É uma terceira ordem de objeto que vai se produzir, definindo o campo do espaço transicional. (Roussilon, s/d, p. 6)
Vamos, então, a essa primeira referência a Winnicott. É fato que, se estamos falando do período que ele designa como da criação do espaço transicional, quando a criança começa a substituir a mãe por objetos que ficam no seu lugar, como substitutos maternos, a descrição proposta poderia até ser considerada como pertinente, numa leitura pouco rigorosa. Quando um bebê, na ausência da mãe, suga uma fralda que ficou no lugar dela, substituindo-a, poderíamos, em princípio, dizer que ele alucina um seio no exato lugar em que encontra a fralda, via percepção, e que esse objeto criado/encontrado pertence a um espaço que não é nem o de dentro e nem o de fora, mas forma uma terceira zona, distinta das duas primeiras: a dos fenômenos transicionais. Nesse caso, diríamos que o seio/fralda mantém simultaneamente as duas características implicadas, é uma-fralda-que-substitui-um-seio, não deixando, em momento algum, nem de ser fralda (no plano objetivo), nem de ser seio (no plano subjetivo). O raciocínio de Roussillon parece funcionar mais ou menos dessa forma.
Entretanto, não era bem assim que Winnicott concebia os fenômenos transicionais e a terceira zona, na medida em que, segundo ele, nesse período a percepção infantil ainda não tem capacidade para captar o objeto na sua realidade objetiva – portanto, não é ainda percepção, tal qual a experimentamos na idade adulta –; ela tão somente consegue utilizar alguns fragmentos de realidade numa seleção cunhada pela realidade pessoal, subjetiva. Eu o cito:
Nessa área do brincar, a criança toma objetos ou fenômenos da realidade externa e os utiliza a serviço de alguma amostra derivada da realidade interna ou pessoal. Sem alucinar, a criança coloca para fora uma amostra de potencial onírico e vive com essa amostra num assentamento escolhido de fragmentos da realidade externa. (Winnicott, 1971a/1971, p. 51; os itálicos são meus)
Ou seja, Winnicott vê a terceira zona como totalmente eivada de mundo subjetivo, sendo que nela a percepção está a serviço do "potencial onírico" da criança (considerando que, para ele, potencial onírico não se confunde com alucinação); assim, são somente alguns fragmentos da realidade externa que são "escolhidos" para serem postos num assentamento, sob a égide dessa amostra onírica.
Não tem sentido, pois, dizer como Roussillon, que "alguma coisa do vestígio da maneira de ser que é alucinada dentro vem se misturar a um objeto percebido fora", já que, a rigor, não há alucinação dentro tampouco "objeto percebido fora". Ou seja, essa maneira de descrever as coisas necessita pressupor, de um lado, um fenômeno alucinatório que vem de dentro e, de outro, uma percepção que capta o objeto de fora, para chegar a um composto, que seria o espaço transicional. Para Winnicott, entretanto, não existem os dois fenômenos iniciais, já que ele afirma, muito claramente, que não ocorre alucinação aí, de forma análoga a que não existe ainda percepção objetiva; nesse período, aliás, o bebê sequer distingue o dentro do fora.7 A terceira zona já emerge, pois, como um amálgama de fragmentos da realidade, articulado pelo potencial onírico próprio do bebê.
Feitas essas considerações, não é possível traçar qualquer analogia entre o fenômeno transicional e o delírio (da descrição de Freud). Isso porque, no primeiro caso, temos um fenômeno característico do desenvolvimento normal da criança e, no segundo, um processo psicopatológico, encontrado nas psicoses. Em segundo lugar, porque no fenômeno transicional não temos qualquer tipo de alucinação, tampouco qualquer retorno do desejo inconsciente recalcado.8 Nessa direção, não tem qualquer sentido a afirmação de Roussillon, quando diz que: "O trabalho psicanalítico proposto por Winnicott encontra seu escoramento nos capítulos terminais de Construções em análise" (Roussillon, 1999, p. 76).
É, talvez, justamente, em função das dificuldades de fundamentar o conceito que pretende postular, no pensamento de Freud tal qual aparece em "Construções em análise" – já que o delírio não pode, por suas características próprias, fundar qualquer hipótese de simbolização primária9 –, que Roussillon deixa Freud de lado, pelo menos provisoriamente, e vai tentar alicerçar a sua hipótese na teoria winnicottiana: "Ela (a hipótese) será, em compensação, um pilar da concepção do encontrado/criado de Winnicott". Mas, talvez Roussillon abandone Freud cedo demais, tomando um desvio errôneo, pois, conforme veremos a seguir, Winnicott não constitui uma via de fundamentação possível para a sua hipótese. Mas vamos caminhar passo a passo.
Em primeiro lugar, é importante constatar que, no texto de Roussillon que estamos examinando, aparece uma mistura de tempos bastante problemática, já que ele começa falando da alucinação de uma "primeira matéria do psiquismo", portanto de um processo no início da vida do bebê e, logo em seguida, sem mais nem menos, começa a descrever o espaço transicional. Ora, sabemos que, para Winnicott, o espaço transicional acontece posteriormente, no período de dependência relativa do bebê, que se segue a um período inicial, de dependência absoluta, quando este foi bem-sucedido, ou seja, quando o bebê conseguiu criar o objeto subjetivo de forma satisfatória. Tanto assim que, nas patologias de tipo borderline, vamos encontrar uma ausência – ou, quando muito, uma formação muito precária – da terceira zona, pelo fato de terem ocorrido, na formação dessas patologias, falhas ambientais severas no período de formação do objeto subjetivo.
Nessa direção, os objetos transicionais constituem, por assim dizer, um desdobramento do objeto subjetivo em direção à descoberta do mundo objetivo e de uma autonomia infantil. Entretanto, curiosamente, apesar de estar falando da "primeira matéria do psiquismo", Roussillon não faz qualquer referência à constituição do objeto subjetivo e passa diretamente à descrição do espaço transicional, misturando as temporalidades dos dois processos.
Ora, sabemos que a desconsideração da temporalidade sequencial dos estágios de desenvolvimento da criança destrói completamente qualquer inteligibilidade da teoria de Winnicott, já que certas conquistas pressupõem conquistas anteriores, para poderem acontecer com sucesso.10 Mas, indiferente a essa questão, Roussillon dá-nos a impressão de ter apagado completamente a sequencialidade temporal necessária à teoria que busca como fundamento.
Retomemos o texto:
É a ideia, em todo caso, de que a primeira forma de exteriorização da matéria psíquica bruta do ser se efetua sobre a mãe. Ela é alucinada, exteriorizada alucinatoriamente sobre a mãe. Ao mesmo tempo, ela toma a forma perceptiva do objeto, forma que é preciso compreender não somente como forma visual, mas também tátil, auditiva e mesmo olfativa. (Roussillon, s/d, pp. 6-7)
Note-se que, novamente, sem qualquer aviso prévio, saímos do espaço transicional e voltamos novamente à "primeira exteriorização da matéria psíquica bruta", que é descrita como se efetuando sobre a mãe. Portanto, não é mais sobre um objeto transicional que isso acontece; agora estamos falando do objeto primário: a mãe. Não há, entretanto, nenhuma alusão ao fato de que essa concepção já não encontra nenhuma correspondência em Winnicott.
Para Winnicott, o bebê recém-nascido – no que ele denomina primeira mamada teórica – cria e, ao mesmo tempo, encontra o objeto primário-seio, mas isso não ocorre, inicialmente, por meio de uma alucinação. A possibilidade de alucinar o seio depende do desenvolvimento da memória do bebê, já que Winnicott não acreditava nem em protofantasias, como Freud, nem em phantasias inconscientes, presentes desde o início, como Melanie Klein. Antes de dispor de uma memória, o bebê não tem, pois, como alucinar o seio.
Mas é possível que Roussillon tenha se baseado num texto de Winnicott que, de fato, dá margem a esse tipo de confusão, se lido isoladamente, sem consideração pela obra do psicanalista inglês como um todo. Trata-se de um artigo mais antigo, de 1945, denominado "Primitive emotional development", em que descreve o momento da mamada. Winnicott diz:
A mãe madura e fisicamente capaz tem de ser aquela com tolerância e compreensão, de tal forma que é ela quem produz uma situação que pode, com sorte, resultar no primeiro laço [first tié] que o infante realiza com um objeto externo, um objeto que é externo ao self do ponto de vista do infante [external to the self from the infant's point of view]. Eu penso no processo como se duas linhas viessem de direções opostas, passíveis de se aproximarem uma da outra. Se elas se sobrepõem, há um momento de ilusão – um pedaço de experiência que o infante pode tomar ou como sua alucinação ou como uma coisa pertencendo à realidade externa. Em outras palavras, o infante chega ao peito, quando excitado, e pronto para alucinar alguma coisa que sirva para ser atacada [ready to hallucinate something fit to be attacked]. Naquele momento, o mamilo real aparece e ele é capaz de sentir que foi aquele mamilo que alucinou [he is able to feel it was that nipple that he hallucinated]. (Winnicott, 1945d/1975, p. 152)
Há, nessa descrição, algumas imprecisões de linguagem que podem levar a interpretações errôneas, especialmente se não se levam em conta outros textos winnicottianos. A primeira delas é entendermos que Winnicott está afirmando que o objeto seio é externo ao self, do ponto de vista do infante, nesse momento da primeira mamada, quando, na verdade, ele está dizendo que a situação de tolerância e compreensão da mãe pode, com sorte, resultar num primeiro laço do bebê com um objeto que é externo ao self, do ponto de vista do infante. Há, aí, uma linha do tempo, implícita nesse futuro projetado: "pode, com sorte, resultar no primeiro laço que o infante realiza com um objeto externo", que também se desdobra na afirmação "um objeto que é externo ao self, do ponto de vista do infante", já que é somente bastante depois – quando esse infante puder criar uma noção de externalidade –, que isso se realizará. Mas é verdade que o texto não é explícito a esse respeito.
Outra afirmação, que chega a confundir, é dizer que o bebê está "pronto para alucinar alguma coisa que sirva para ser atacada", que pode levar à ideia errônea de que há nele algo como aquilo que Bion denominava pré-concepção, uma espécie de predisposição inata para buscar algo com formato específico; a ideia de uma alucinação primitiva poderia advir daí. Entretanto, "pronto para alucinar", no texto de Winnicott, descreve apenas uma prontidão, não o ato em si. E, quando afirma que o bebê é capaz de sentir o mamilo real como "aquele mamilo que alucinou", a intenção parece ser a de dizer que o mamilo real, colocado pela mãe no lugar certo, num tempo suficientemente bom, preenche inteiramente aquela expectativa que originou a prontidão para alucinar algo. E se as minhas interpretações desse texto podem parecer, aqui, forçadas, textos posteriores de Winnicott vêm confirmá-las e desfazer quaisquer ideias que possam referendar a interpretação de Roussillon.
Num outro texto, de 1948, denominado "Paediatrics and psychiatry", Winnicott realiza uma descrição da "prontidão para alucinar" que referenda a minha interpretação do texto de 1945. Eu a cito:
Vamos dizer que [...] o infante esteja perturbado pela tensão instintual que se chama fome. Eu diria que o infante está pronto para acreditar em algo que poderia existir, quer dizer, desenvolveu-se no infante uma prontidão para alucinar um objeto; mas é mais uma direção de expectativa do que um objeto em si mesmo. Nesse momento, a mãe chega com o seio (eu digo seio para simplificar a descrição) e o coloca de tal forma que o infante o encontra. Aqui está outra direção, desta vez rumo ao infante ao invés de para longe dele. (Winnicott, 1948b/1975, p. 163; os itálicos são meus)
E no livro The child, the family and the outside world, publicado em 1964, Winnicott diz:
Imaginem um bebê que nunca teve uma alimentação. A fome aparece, e o bebê está pronto para conceber alguma coisa; a partir da necessidade, está pronto para criar uma fonte de satisfação, mas não há nenhuma experiência prévia para mostrar-lhe o que pode esperar. (Winnicott, 1964a/1964, p. 90, os itálicos são meus)
E em Human Nature, publicado em 1988, diz, ao descrever a criação do objeto subjetivo, naquilo que denominava "a primeira mamada teórica": "Haveria uma alucinação do objeto se houvesse material de memória para uso no processo de criação, mas isso não pode ser postulado ao se considerar a primeira mamada teórica" (Winnicott, 1988, p. 102; os itálicos são meus).
Concluindo: não existe, para Winnicott, alucinação possível de uma "primeira matéria psíquica bruta", a ser "exteriorizada" no objeto, já que o bebê, nesse início, não possui material mnemônico para alucinar qualquer coisa que seja. De forma análoga, não pode exteriorizar nada, já que ainda não possui qualquer sentido de interno/externo.
Deveríamos concluir que Winnicott mudou de posição teórica ao longo dos anos? Não creio nisso. Acredito mais numa imprecisão de linguagem do texto de 1945, que veio se clarificando e nuançando, ao longo da produção conceitual de seu autor. Como bom empirista que era, Winnicott sempre pensou que a constituição da psique infantil se processava inteiramente por meio da experiência da criança na relação com o mundo.11 Portanto, jamais poderia conceber uma alucinação antes da existência de um material mnemônico do objeto, disponível para a psique infantil.12
Quando Winnicott diz que o bebê cria/encontra o seio, na primeira mamada teórica, quer dizer que a mãe suficientemente boa apresenta o seio ao bebê num tempo tão adaptado às necessidades dele que produz a ilusão onipotente de que o seio foi magicamente criado pela própria necessidade que o atravessava. Depois disso, com o desenvolvimento da memória do bebê, ele se torna apto a alucinar o seio na ausência da mãe ou momentos antes da mamada (podendo, assim, antecipar a sua chegada), e a sugar o dedo (ou outros objetos), menos para a obtenção de prazer erótico – já que, nessa época, Winnicott acredita que a sexualidade infantil não está ainda suficientemente desenvolvida –, mas mais por necessidade de controle do objeto. Eu cito Winnicott:
Esses fenômenos (de sucção) somente podem ser explicados assumindo que o ato é uma tentativa de localizar o objeto (seio etc.) e mantê-lo à meia distância entre o dentro e o fora. Isso é uma defesa contra a perda do objeto ou no mundo externo ou no interior do corpo, quer dizer, contra a perda de controle sobre o objeto. [...] O elemento autoerótico (aí) não é sempre de importância soberana... (Winnicott, 1945d/1975, p. 156)
Entendo, assim, que, para Winnicott, as alucinações do seio/objeto subjetivo ocorrem principalmente na ausência do objeto real, na medida em que têm por função presentificar o objeto ausente. Entretanto, Roussillon afirma que:
[...] Winnicott propõe considerar que o processo alucinatório se produz justamente no caso de aumento de tensão "pulsional" (mas pode-se já falar em "pulsão" no senso estrito do termo?) não somente no caso de ausência do objeto, mas de qualquer maneira. A alucinação é produzida em resposta ao aumento de tensão e não em resposta à constatação da ausência do objeto; ela é independente da realidade do objeto. Alucinação e percepção não estão em alternativa. (Roussillon, 1999, pp. 175-6)
Como sempre, a ausência de uma citação bibliográfica mais precisa impede que possamos encontrar a afirmação winnicottiana referida e, mais uma vez, temos de confiar na palavra de Roussillon que, além do mais, é imprecisa.13 Entretanto, faz sentido dizer que o bebê pode alucinar o objeto diante de um aumento de tensão instintiva, independentemente da presença ou não do objeto real, já que por meio da alucinação o bebê pode realizar uma tentativa de controle do objeto, sem depender inteiramente da prontidão responsiva do meio ambiente. Então, diante de uma urgência instintiva, a alucinação pode funcionar como uma proteção contra as agonias impensáveis, desde que o objeto real chegue num tempo suficientemente bom para que a alucinação não caia num vazio; nesse caso, a chegada do leite somente referenda a alucinação e reforça o objeto subjetivo constituído.14
Portanto, quando isso ocorre – ou seja, quando o bebê alucina o seio na presença do objeto real, devido ao aumento de tensão instintual15 –, essa junção somente aparece como sobreposição entre o mundo interno e o externo para o nosso ponto de vista adulto, já que, na experiência do bebê, diante de um seio suficientemente bom, essa passagem da alucinação para o objeto real – ou mesmo uma composição entre a alucinação e o objeto real – se processa sem saltos ou rupturas, numa solução que não interrompe a continuidade-de-ser do bebê. Portanto, essa ideia roussilloniana de interpenetração entre interno e externo, como coisas distintas, produzindo uma mistura capaz de criar uma representação "da primeira matéria psíquica" na memória infantil não procede, de uma perspectiva winnicottiana. Para Winnicott – volto a repetir –, nesse período, interno e externo não existem como realidades constituídas na psique do bebê e, nesse sentido, uma alucinação do seio e o seio como presença real não são fenômenos que ele possa distinguir claramente um do outro. Alguma discriminação poderia até surgir no momento em que ele abocanha o seio real e algo de novo aparece: o leite; entretanto, nesse momento, a alucinação se desvanece ou se desdobra na percepção, mantendo a ilusão de continuidade. Ou seja, quando o ambiente propicia suporte suficiente, num tempo adequado, a natureza contribui para não lançar o bebê em conquistas para as quais não está ainda psiquicamente preparado.16
Há ainda um segundo motivo pelo qual essa representação "da primeira matéria psíquica", tal qual descrita por Roussillon, não procede, de uma perspectiva winnicottiana: é que o conceito de representação é totalmente estranho ao universo conceitual do referido analista inglês.17
Quando ocorre de o bebê alucinar o seio, nos casos saudáveis, o objeto subjetivo já terá sido criado – podendo, então, vir a ser evocado, sempre que necessário. E o seio com o qual o bebê continua tendo contato, nesse fenômeno, é o seio/objeto subjetivo, nunca o seio objetivo, que permanece sempre revestido pelo véu da ilusão criadora (já que o bebê ainda não atingiu maturidade suficiente para descobrir a existência do mundo real).18 Nessa etapa, o seio real, objetivo, somente emerge em casos de intrusão ambiental, gerando terror e podendo, então, produzir patologias graves.
A título de exemplo, podemos nos lembrar do caso B, descrito por Winnicott no livro Holding and Interpretation (Winnicott, 1986a/1986). Tratava-se de um paciente descrito como um esquizoide com traços depressivos e que tinha tido uma mãe perfeccionista, que queria dirigir as mamadas, não deixando espaço subjetivo para as adaptações do bebê. Ela atuava, nessa direção, principalmente no final das mamadas (porque queria controlar a hora de interrompê-la). O que acontecia, então, é justamente que, no final das refeições, o seio objetivo que, no início da mamada estivera revestido pelo véu subjetivo (e seu colorido emocional único), rompia essa capa ilusória e fazia a sua aparição, nua e crua, como objeto objetivo, totalmente estrangeiro, aterrorizando o bebê. Esse terror, justamente, acabou produzindo no paciente um retraimento esquizoide e a produção de um falso self cindido, como forma de se proteger do terror. Nessa direção, uma das interpretações que Winnicott deu ao paciente é que o seu medo de completar experiências estava associado ao "conteúdo violentamente hostil da satisfação no final da refeição, o que significava aniquilação do desejo e aniquilação do seio subjetivo, seguido pela hostilidade do seio objetivo, que persistia" (Khan, 1986, pp. 9-10).
O bebê, no início da vida, somente pode ter contato com o mundo real mediado por sua criatividade, não estando ainda pronto para descobrir a existência dos objetos objetivos antes do estágio do uso do objeto. O advento da realidade objetiva tem, nesse sentido, de ser preparado pelos fenômenos transicionais (mas sobre isso falarei mais adiante).
E é importante salientar que essa criatividade primária – postulada por Winnicott como presente no bebê desde o início – não tem nada a ver nem com pulsão, nem com sexualidade, tampouco com alucinação. Mas é ela que é capaz de imprimir um colorido emocional e um significado próprio, único, ao conjunto de múltiplos contornos móveis que o objeto real oferece, especialmente quando ele é suficientemente plástico às adaptações ao bebê. Isso, para Winnicott, significa criar/encontrar o objeto: o parodoxo que não pode nem deve ser solucionado. A alucinação, nesse processo – volto a afirmar –, é um fenômeno secundário, destinado ao controle onipotente do objeto e, nessa direção, uma forma de proteção contra as agonias impensáveis, quando o objeto real falha (mas, ainda assim, se ele falhar muito, a alucinação pode cair num vazio, colocando o bebê em apuros). Winnicott fala, inclusive, de uma forma de pensamento alucinatório, alternativo ao pensamento de tipo verbal – e presente em algumas crianças –, o que reforça a ideia de que a alucinação é uma das formas de o bebê contar com recursos subjetivos, diante de alguma imprevisibilidade do objeto real (já que os processos intelectuais – incluídas, aí, as diferentes formas de pensamento – se desenvolvem, justamente com a finalidade de tentar suprir as falhas ambientais).19
Mas, há ainda outro aspecto na descrição de Roussillon que me parece licencioso demais para com o pensamento de Winnicott. Ainda falando do citado fenômeno da alucinação/percepção do objeto, no início da vida, ele diz:
Para que o processo se articule e se desenvolva, é necessário que o objeto aceite ser, assim, usado [...]. O conceito de uso do objeto, proposto por Winnicott, designa a maneira pela qual um objeto aceita ser usado para a simbolização. (Roussillon, s/d, p. 7)
E aí temos mais uma imprecisão conceitual, já que o uso do objeto, descrito por Winnicott – e que designa o processo por meio do qual a criança descobre a existência do mundo exterior, objetivo, ocorre, segundo o autor que o postulou, posteriormente ao início dos processos de simbolização que é concomitante à criação dos fenômenos transicionais e da terceira zona. Ou seja, na concepção winnicottiana, a simbolização se inicia com a criação dos objetos transicionais e estes, por sua vez, é que fazem a transição – por isso são chamados objetos transicionais – para a fase de uso do objeto e a consequente descoberta do mundo exterior e dos objetos objetivos.20 Deslocar essa fase – de uso do objeto – para o início da vida, como propõe Roussillon, significa, mais uma vez, misturar as diferentes temporalidades winnicottianas, sem nenhum rigor conceitual.
E aqui encerro a minha análise do texto de Roussillon, muito embora haja nele outras questões que seriam passíveis de um exame crítico.21 Penso, entretanto, que as análises que realizei até aqui são suficientes para caracterizar certo "estilo" de trabalho: a forma como o psicanalista francês se apropria da teoria winnicottiana e a deforma segundo seus propósitos teóricos.
E aí me vem a questão: será mesmo necessário tentar encaixar a teoria de Winnicott dentro do pensamento Roussillon, como um pseudofundamento, a todo custo? Será que a teoria psicanalítica só pode crescer pela desconsideração e pelo esquecimento das diferenças que existem entre os autores? Não será pela via oposta, da tematização e da discussão dessas diferenças que se poderá chegar a alguma avaliação das qualidades e brechas de cada teoria, num tipo de percurso que não necessite deformar o pensamento de um autor para fazê-lo servir aos propósitos de outro?
3. À guisa de concluir
Penso que o conceito de simbolização primária, de René Roussillon, constitui uma proposta teórica interessante, construída no interior da metapsicologia freudiana, como um desenvolvimento, um desdobramento da mesma – se minha interpretação foi correta, o conceito foi formulado, inicialmente, para explicar a passagem da primeira para a segunda memória, no interior das postulações feitas por Freud. Entretanto, para fundamentá-lo seriamente, seria necessário discutir o quanto a metapsicologia freudiana é capaz de sustentar, teoricamente, uma alucinação simultânea a uma percepção, no absoluto início da vida (já que a descrição freudiana do delírio refere-se a um fenômeno psicótico – o que quer dizer, não característico do desenvolvimento saudável –, além de acontecer bastante depois, em termos de temporalidade). Roussillon, no texto examinado, não chega a tentar buscar essa fundamentação em Freud, em momento algum.
Outra possibilidade, talvez fecunda, fosse traçar algumas correspondências possíveis entre alguns conceitos de Freud e de Bion: memória somática e elemento β; alucinação projetada e identificação projetiva; protofantasia e pré-concepção. Posso estar enganado – já que não percorri essa via para ter a certeza –, mas acredito que alguns conceitos de Bion (articulados aos seus correspondentes freudianos) podem constituir um caminho mais viável para se chegar a uma fundamentação do conceito de simbolização primária (e talvez sem, necessariamente, se ter de sair do âmbito da metapsicologia freudiana).22
Mas, é importante constatar, mais uma vez: se Winnicott tem algo a ver com Roussillon, talvez seja puramente uma relação de "inspiração": a partir de suas criações teóricas próprias, ter sido capaz de inspirar o colega francês na tentativa de desdobrar a metapsicologia freudiana em direção a mais uma teoria das relações objetais (como, aliás, já fizera, anteriormente – juntamente com Bion, Klein, Lacan etc. –, com André Green). Apenas isso.
No mais, tudo é desencontro. Se o Canal da Mancha já esteve mais navegável, aqui ele se apresenta com águas tempestuosas e correntes marítimas traiçoeiras; bater nas rochas e naufragar constitui perigo eminente. Ou então, desviar-se e aportar num destino inesperado.
Referências
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1 A primeira versão deste texto sofreu a leitura crítica dos colegas e amigos Elsa Oliveira Dias e Nelson Coelho Jr., a quem agradeço as críticas e sugestões.
2 Autor de artigos e livros, especialmente envolvendo problemáticas da teoria e da clínica de D. W. Winnicott (quando comparada a outras perspectivas) e de temas articulando psicanálise e música (principalmente música popular e ópera). Autor do livro: Casta Diva: Callas e a pulsão de morte, São Paulo, Escuta/Eduel, 2012.
3 Lembro-me, por exemplo, de Marta Resende Cardoso, quando apresentou, num grupo de pós-doutorado do qual eu também participava, um texto seu, no qual citava Roussillon, comentado que ele fazia uma boa integração entre a psicanálise de linhagem francesa e autores ingleses importantes, como Winnicott, reunindo contribuições importantes de lado a lado. Esse texto foi posteriormente publicado (Resende Cardoso, 2006). Pouco tempo depois dessa exposição de Marta, escrevi um artigo, diferenciando a clínica winnicottiana desse tipo de clínica pós-freudiana assumido por ela, e da qual Roussillon constitui, sem dúvida, um dos expoentes maiores (Naffah Neto, 2005). O meu primeiro embate teórico com Roussillon – ainda que indireto, mediado por Marta, então – data, pois, dessa época.
4 O texto de Roussillon que uso como guia, nessa seção, é "Symbolization primaire et identité" (Roussillon, s/d), que é um texto que nos foi enviado pelo autor, por e-mail, para servir como um dos textos de referência para a sua conferência, no evento acima citado, mas que não contém qualquer dado de publicação oficial. Por outro lado, existe o capítulo 14 do livro: Roussillon (1999), Agonie, clivage et symbolisation, que tem o mesmo título: "Symbolization primaire et identité" e que constitui uma outra versão do mesmo tema, escrita de forma um pouco diferente. Dado que o capítulo do livro, embora publicado oficialmente, datava de mais de uma década e o texto enviado por Roussillon, por e-mail, tinha tido o aval do autor, na ocasião do evento, em 2012, optei pelo último, muito embora eu não dispusesse de uma publicação oficial do mesmo, mas tão somente de uma edição de computador. Indico, pois, nas citações, os números de páginas do texto de computador. Complemento as citações desse texto com alguns recortes do livro de 1999
5 Todas as partes que vêm entre aspas nesse texto de Naffah Neto são citações de Hanns (1999, p. 167).
6 Estou, assim, pulando o longo percurso em que ele nos descreve o que denomina a primeira tentativa de Freud de teorizar sobre esse processo de passagem da primeira inscrição para a segunda e o seu fracasso, devido a um impasse teórico. Ao leitor interessado, recomendo a leitura integral do texto.
7 O termo percepção objetiva talvez possa suscitar controvérsias. Afinal, toda percepção não se realiza sempre a partir de uma posição subjetiva, de um colorido emocional próprio de cada sujeito? Claro que sim. Entretanto, na percepção adulta, temos sempre a convicção de atingir o contato com o objeto real, sabendo distinguir uma percepção de uma fantasia ou de uma alucinação. Ou seja, há sempre uma dimensão objetiva, embora ela comporte ângulos subjetivos.
8Convém nos lembrarmos de que, para Winnicott, não existe ainda sexualidade infantil por ocasião desse início de vida, portanto, também não existe desejo, sendo o bebê movido por suas necessidades. Mais do que isso, que para Winnicott a sexualidade infantil desenvolver-se-á paulatinamente, à medida que o self do bebê for se apropriando dos impulsos instintivos e das sensações prazerosas por meio da elaboração imaginativa das funções corporais. Este é um processo fundamental, que descrevi em detalhes num texto recente, razão pela qual não vou me alongar aqui em maiores considerações (Naffah Neto, 2012).
9 Para que o fenômeno descrito por Freud pudesse fundamentar o conceito de simbolização primária, seria necessário que ele comportasse alguma forma de substituição do objeto real por algo que o representasse, simbolicamente falando, mas o que Freud descreve é uma realidade rechaçada, em cujo lugar é alucinado o motivo disfarçado do desejo inconsciente. Fenômeno que não envolve, portanto, qualquer processo de simbolização.
10 É verdade que se pode, sempre, argumentar – como, aliás, Luis Cláudio Figueiredo o faz –, que essa sequencialidade não é absoluta; e que é até bastante relativa, já que Winnicott diz: "A dissecação das etapas do desenvolvimento é um processo extremamente artificial. Na verdade, a criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de que um determinado estágio pode ser considerado dominante. As tarefas primitivas jamais são completadas... (Winnicott, 1971a/1971 apud Figueiredo, 2012, p. 222). Mas, é bom compreendermos, também, que a criança está sempre em todos os estágios justamente porque as tarefas de cada estágio jamais são inteiramente completadas, não porque inexista uma sequencialidade temporal dos estágios, em direção à maturação.
11 Para Winnicott, somente tem realidade psíquica aquilo que passa pela experiência e esta se processa na interação entre o self verdadeiro do bebê – que, no início, constitui o núcleo de criatividade primária a se desenvolver – e o meio ambiente. Por essa razão, quando se constitui um falso self cindido do restante da psique, como uma proteção contra as intrusões ambientais – e o self verdadeiro permanece encoberto e inacessível –, a experiência cessa. Consequentemente, o psiquismo forma-se cheio de buracos, falhas, podendo mesmo permanecer em estado embrionário, congelado no tempo.
12 Quanto ao conglomerado multissensorial, que Roussillon descreve como a primeira inscrição mnemônica, ele constitui um conceito estranho ao universo teórico winnicottiano. Mas, mesmo que não o fosse – ainda que tentássemos enxertá-lo artificialmente à teoria de Winnicott –, ele não poderia, mesmo assim, constituir ainda, nesse estado, uma memória acumulada disponível, já que o próprio Roussillon afirma que a apreensão desse tipo de memória pelo bebê é muito difícil, senão impossível.
13 Ele fala aí em "pulsion" (pulsão) e ainda que faça a pergunta ("pode-se já falar em 'pulsão' no senso estrito do termo?"), e o termo venha entre aspas, sua utilização, nesse contexto, não tem qualquer sentido, já que pulsion é um termo completamente estrangeiro aos conceitos winnicottianos. Sabemos que pulsion é a tradução que Lacan propõe para o conceito freudiano de Trieb, e que ela não existe para a escola inglesa (que sempre traduziu Trieb por instinct). Mas, além dessa questão linguística, há uma questão conceitual: Winnicott nunca se guiou por nenhuma das versões pulsionais de Freud: nem a primeira (que distinguia pulsões de autoconservação e pulsões sexuais), nem a segunda (que distinguia pulsões de vida e pulsões de morte). Winnicott sempre falou em instintos (instincts) e sempre no plural, no sentido de que há tantos instintos quantas as funções corporais (sem maiores distinções categoriais), versão esta, nesse sentido, muito mais próxima da de Nietzsche do que da de Freud.
14 Temos que nos lembrar que, para Winnicott, a noção de realidade não surgirá para o bebê por meio do contraste entre o seio alucinado (que não dá leite) e o seio real (que o fornece), como para Freud. A criação do mundo externo advirá por meio de outro processo no, assim denominado, estágio do uso do objeto (Winnicott, 1989a/1999).
15 Vou aceitar essa afirmação de Roussillon sobre Winnicott como verdadeira – pelo menos hipoteticamente – muito embora não tenha conseguido localizar a citação na obra do referido autor.
16 Uma distinção prematura entre alucinação e percepção – nesse caso, traumática – poderá ocorrer caso o seio real não compareça em tempo hábil e a alucinação caia no vazio, ameaçando produzir uma agonia impensável. Nesse caso, pode-se criar um falso self patológico, com a finalidade de proteger o self do bebê do terror de aniquilamento.
17 Winnicott, de fato, não trabalha com o conceito de representação, tão essencial à metapsicologia freudiana, a não ser quando fala do advento dos fenômenos simbólicos na terceira zona, na época dos fenômenos transicionais (nos quais se pode dizer que a fralda "representa" o seio, mas, ainda assim, não no sentido de uma representação mental e sim de uma espécie de representação por procuração, outorgada pela presença da mãe, de quando em quando). Desta forma, criar o seio, não significa representá-lo. Representar significa, etimologicamente, re-apresentar e, na metapsicologia freudiana, é um termo ligado à memória, que é dita como re-apresentando o acontecimento perceptivo, numa segunda, terceira, enésima apresentação. Criar, para Winnicott, pelo contrário, significa imprimir ao objeto encontrado um colorido emocional e um significado próprio, que o tornam diferente, "especial". É evidente que cada nova mamada serve para reforçar a relação de intimidade do bebê com o objeto e acrescentar algo à composição desse objeto subjetivo, mas, winnicottianamente falando, não se pode falar, aí, em representação (no sentido freudiano do termo).
18 Pode-se dizer que a realidade faz sua primeira aparição na época dos fenômenos transicionais, mas apenas como um horizonte, vagamente vislumbrado, sempre colorido pela ilusão. Quando Winnicott diz que o objeto transicional é a primeira posse não-eu, quer dizer justamente que o objeto começa a se distinguir como uma coisa com características independentes (não-eu), mas ainda permanece sob total jurisdição do self (como uma posse).
19 Ele diz: "Algumas crianças se especializam em pensar e ir à busca de palavras; outras se especializam em experiências auditivas, visuais e outros tipos de sensualidade, e em memória e imaginação criativas de espécie alucinatória, e estas últimas podem não ir à busca de palavras. Isso não significa que umas sejam normais e as outras anormais" (Winnicott, 1989s[1965]/1999, p. 155). Posição essa, conforme se pode ver, que é bastante diferente da do seu contemporâneo Bion, que postulava uma clara hierarquia entre elementos β e α, e suas formas correspondentes de pensamento.
20 Com os objetos transicionais, o bebê inicia o processo de simbolização, que vai ser essencial para a introdução do princípio de realidade. A descoberta da existência do mundo exterior – no estágio do uso do objeto –, grosso modo, se realiza pela subsistência do seio "destruído" pelo bebê – já que, numa fase de sadismo oral, ele experimenta os seus ataques ao seio como eminentemente destrutivos. Graças a essa subsistência do objeto, repetida ao longo do tempo, ele passará a distinguir um seio imaginário – que segue destruindo – de outro, real, que subsiste após os seus ataques, criando, assim, um mundo externo, real, distinto de um mundo interno, fantasioso. Ou seja, percebe que o seio que ataca e destrói é um seio fantasioso, distinto do seio real.
21Assim, deixo de lado o exame das características do objeto, por ele descritas, como também os desdobramentos do processo de simbolização primária nos "objogos" ("objeux", neologismo francês, obtido da fusão de "object" com "jeux") e nos sonhos, por não ser esse o objetivo deste artigo.
22 Aliás, Bion é um autor bastante citado por Roussillon no livro de 1999, muito embora não exatamente nos conceitos que proponho rever aqui, na sua correspondência com os congêneres freudianos.