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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.8 no.14 Barbacena  2010

 

ARTIGOS

 

Concepções de loucura em um traçado histórico-cultural: uma articulação com o Construcionismo Social

 

Conceptions of madness in a historical and cultural route: an association with Social Constructionism

 

 

Isabel VasconcelosI, * ; Samuel Lincoln Bezerra LinsII, ** ; Geovana Camargo VargasIII, *** ; Karla Carolina S. RibeiroII, ****

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte
II Universidade Federal da Paraíba
III Universidade Federal de Pernambuco

 

 


RESUMO

O presente artigo, expectador das diferentes concepções de loucura em função de fatores históricos e culturais, visa discorrer sobre estas temáticas, articulando-as com o posicionamento teórico do Construcionismo Social. Esta perspectiva culturalmente orientada preconiza a forte influência dos fatores contextuais, sociais, econômicos e geográficos, destacando, sobretudo, seu caráter pragmático, parcial e relativista. Desta forma, temos o escopo de apresentar algumas considerações sobre o Construcionismo Social e discorrer sobre algumas concepções de loucura. Como objetivo secundário, visamos fragilizar a postura universal na leitura desses fenômenos, ressaltando como ela pode impor limitações aos profissionais de saúde mental e, consequentemente, aos seus pacientes.

Palavras-chave: Doença mental, Perspectiva histórica, Perspectiva cultural, Construcionismo Social, Concepção ampliada de saúde mental.


ABSTRACT

This article, aware of different conceptions of madness by historical and cultural factors, aims to discuss certain issues, articulating them with theoretical position of Social Constructionism. That prospect culturally oriented suggests the strong influence of contextual, social, economic and geographical factors, putting in focus its pragmatic, partial and relativist feature. Thus, we will present some considerations about Social Constructionism, and discuss some conceptions of madness. As a secondary goal, we aim to weaken the universal posture about these phenomena, emphasizing how it can impose limitations on mental health professionals, and thus to patients.

Keywords: Mental illness, Historical perspective, Cultural perspective, Social Constructionism, Mental health expanded conception.


RESUMEN

En este artículo, las expectativas de los diferentes conceptos de la locura a la luz de factores históricos y culturales, tiene por objeto examinar estas cuestiones, la articulación con la posición teórica del Construccionismo Social. El enfoque orientado hacia los defensores de la cultura de la fuerte influencia de factores contextuales, sociales, económicos y geográficos, entre ellos, sobre todo, su carácter pragmático, relativista y parcial. Por lo tanto, nuestro objetivo es presentar algunas consideraciones sobre el construccionismo social y discutir algunas ideas de la locura. Como objetivo secundario, con el objetivo de debilitar la actitud universal en la lectura de estos fenómenos, haciendo hincapié en cómo esto puede imponer limitaciones a los profesionales de salud mental y, en consecuencia, sus pacientes.

Palabras-clave: Denfermedad mental, Perspectiva histórica, Perspectiva cultural, Construccionismo social, El diseño ampliado la salud mental.


RESUMÉ

Cet article, les attentes des différents concepts de l'aliénation mentale, à la lumière de facteurs historiques et culturels, a pour but de discuter de ces questions, de les articuler avec la position théorique de la social Constructionism. Les défenseurs de l'approche axée sur la culture de la forte influence de facteurs contextuels, sociaux, économiques et géographiques, y compris par-dessus tout, son caractère pragmatique, partielle et relativiste. Ainsi, nous avons pour objectif de présenter quelques considérations sur le plan social Constructionism et de discuter des idées de folie. Comme objectif secondaire, qui vise à affaiblir l'attitude universelle dans la lecture de ces phénomènes, en mettant l'accent sur la façon d'imposer des restrictions sur les professionnels de la santé mentale et, par conséquent, de leurs patients.

Palavras-chave: Maladie mentale, De vue historique, Culturel, Social Constructionism, La conception élargie de la santé mentale.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O modelo de ciência reflete heranças advindas de um forte posicionamento epistemológico dentro das ciências filosóficas, o Positivismo, que segundo Moreira (2002) predominou sobre as Ciências Sociais principalmente a partir da segunda metade do século passado. A perspectiva positivista contemporânea fundamenta-se na proposta de Comte e Mill, e preconiza que as ciências humanas deveriam seguir a lógica e os métodos das ciências físicas e naturais. Os pesquisadores adeptos destes métodos acreditam que "a operacionalização e quantificação de variáveis ou fatores é extremamente profícua e provê a oportunidade para procedimentos estatísticos" (MOREIRA, 2002, p. 46).

A valorização do programa empiricista-positivista teve grande influência sobre os estudos da Psicologia Social. Um destes reflexos está relacionado à sua individualização, sob o pretexto de revesti-la de uma respeitabilidade científica. Entretanto, um descontentamento com este modelo possibilitou discussões acerca do distanciamento dos seres humanos na busca por novas possibilidades, incitando a emersão de uma segunda cultura acadêmica, galgada na essência do pós-modernismo (NOGUEIRA, 2001).

Como exemplos de modelos alternativos podem citados o Construcionismo Social e três grandes linhas teóricas discursivas de caráter crítico: a) a linha crítica; b) a linha crítica literário-retórica (destacando-se os trabalhos de Derrida); e c) a linha da crítica social (mais conhecida através de Foucault). Estas linhas questionam a proposta das ciências sistemáticas na produção e interpretação de fenômenos culturalmente descontextualizados, que negligenciam as organizações humanas de significado.

A influência do significado na cultura e, consequentemente, no comportamento dos indivíduos também se apresenta como tema de um forte debate na Psicologia Cognitiva, destacando-se, sobretudo, nos estudos de Jerome Bruner. Geertz, citado por Bruner (1997), outro teórico a abordar estas questões, discorre sobre o papel constitutivo da cultura ao propor uma Psicologia centrada no significado, "culturalmente" orientada. Ele acredita que é impossível dissociar o indivíduo do cenário cultural, que o conhecimento deve ser (e é) público e socializado (partilha de significados e conceitos) e que o senso comum, ou Psicologia popular, lida com aspectos que a Psicologia científica descarta, como a natureza, as causas e as consequências dos estados intencionais (crenças, desejos, intenções, etc.).

A proposta de um papel mediador do significado e da cultura, assim como de uma valorização do senso comum, eleva a subjetividade a um status explicativo e põe em destaque elementos até então descartados, como a congruência entre a fala e a conduta (ação situada e comportamento intencional, respectivamente), fala esta que se configura como a base da maior parte das práticas terapêuticas existentes.

À luz de influências pós-modernas, algumas questões são alvos de fortes críticas, por exemplo: a) o alcance de um conhecimento objetivo, correto, real, neutro e universal através da razão; ou b) a linguagem de forma transparente, não sendo, portanto, linguística ou socialmente construída (NOGUEIRA, 2001). Estas críticas estimularam a descrença na racionalidade científica, promovendo uma visão opressora da modernidade. É neste contexto que surge o Construcionismo Social, proporcionando novas reflexões no campo das Ciências Humanas e Sociais. De acordo com Shotter, citado por Guanaes e Japur (2003), essa nova vertente tem o escopo de "investigar o contínuo fluxo da atividade comunicativa humana, dando destaque aos processos linguísticos e relacionais que possibilitam a produção de conhecimento sobre o self e sobre o mundo em que vivemos" (p. 138).

Esta teoria foi escolhida em virtude da sua proposta contestadora à interpretação dada aos fenômenos presentes dentro das Ciências Humanas, em especial a Psicologia, visando elaborar uma nova leitura. Para tanto, serão apresentadas algumas considerações sobre o Construcionismo Social, com o objetivo de familiarizar o leitor com esta perspectiva teórica, para em seguida serem discutidas algumas concepções da loucura e, ou, doença mental em função de fatores sociais, culturais, econômicos, geográficos e históricos. Dessa forma, objetivamos realizar uma articulação entre os pressupostos do Construcionismo Social e as concepções de loucura, para então fornecer um outro olhar acerca da saúde mental dos indivíduos.

 

2 CONSTRUCIONISMO SOCIAL: ASPECTOS RELEVANTES

O Construcionismo Social sintetiza as críticas mencionadas e destina parte delas à "ideologia da representação", instigando a desconstrução de mitos como o conhecimento válido através de uma reprodução fiel da realidade ou a produção desta sem a participação dos indivíduos. O objeto de pesquisas desta natureza está voltado para a interação e as práticas sociais daí resultantes, "aliada à perspectiva do conhecimento como especificamente histórico e cultural" (NOGUEIRA, 2001, p. 46).

Castañon (2004), apesar de enxergar uma incompatibilidade entre o Construcionismo Social e as atividades científicas (tornando-se, portanto, um crítico tenaz a essa abordagem), enumera bem alguns de seus princípios, nomeando-os da seguinte forma: a) construtivismo social, que corresponde ao conhecimento construído a partir das interações sociais; b) antirrealismo, que se refere à crença de que a linguagem desempenha papel fundamental na construção da realidade, configurando-se como a própria realidade; c) pessimismo epistemológico, que está relacionado à impossibilidade de transcendência das próprias construções humanas, isto é, as teorias não são suficientes para uma descrição fidedigna da realidade objetiva; d) antirrepresentacionismo, que consiste na relação estável (ou melhor, na não existência desta relação estável) entre as palavras e o mundo que elas representam; e) não neutralidade, que considera os valores e as motivações inerentes à própria constituição humana, sendo impossível, portanto, uma imparcialidade para um entendimento objetivo da realidade; e, ainda, f) pragmatismo, que corresponde à rejeição do princípio da correspondência como critério de verdade, devendo ser adotado em função da utilidade que este proporciona.

Respeitamos a percepção de Castañon (2004) em concluir uma inadequação entre estas características e a forma de se "fazer ciência", entretanto acreditamos que é esta desconstrução de métodos tradicionais que possibilita novas interpretações sobre os fenômenos, fornecendo, portanto, uma concepção mais ampliada. Concordamos, ainda, com o posicionamento de Gergen (1985), ao propor que o Construcionismo busca ultrapassar a polarização de teorias, localizando o conhecimento no interior dos processos de intercâmbio social.

A essa proposta é acrescida a participação da linguagem e do discurso no processo social, que segundo Burr (1998), citado por Nogueira (2001), estão inseridos em uma realidade com códigos partilhados em um processo de constante mudança, cujos signos e significados sofrem variações em função dos contextos. Assim, o ser humano é socialmente construído através de interações e produto de discursos cultural e historicamente contingentes.

Essas perspectivas podem gerar certa resistência de aceitação, pois sugerem que devemos considerar que tudo que é "natural" é, na verdade, uma construção. Para exemplificar, citamos a relação entre esta "nova" visão e as escolas terapêuticas: estas últimas não deveriam prender-se a certos pressupostos teóricos e filosóficos, uma vez que podem não apresentar-se de forma eficiente para todos os sujeitos a elas submetidos. Portanto, é pertinente destacar que não estamos desvalorizando as técnicas existentes, nem propondo uma forma universal de fazer psicoterapia (isto seria incoerente com as bases ideológicas que estão norteando este estudo), mas estamos defendendo que "formalizar um determinado método – canonizar os seus princípios – é congelar o seu significado cultural" (GERGEN; WARHUUS, 2001, p. 33). Ainda segundo Gergen (1999), a perspectiva do Construcionismo Social veio ampliar e fornecer novos elementos para uma interpretação diferenciada do fenômeno "doença mental", que destrói aquelas premissas rígidas e alheias ao contexto social, sob o argumento de que uma postura "neutra" e "imparcial" não está isenta de influências morais e políticas.

 

3 ARTICULAÇÃO ENTRE AS CONCEPÇÕES DE LOUCURA E O CONSTRUCIONISMO SOCIAL

A perspectiva do Construcionismo Social pode ser uma importante ferramenta para uma (re)leitura do processo saúde-doença, por considerar aspectos relevantes para a abordagem e compreensão dos fenômenos e por possibilitar uma análise da dimensão subjetiva da realidade social. Ciente das implicações desta proposta, iremos discorrer como ela tem se apresentado no campo da saúde, como um todo, e da saúde mental, partindo do pressuposto de que a díade "saúde-doença" possuiu várias interpretações ao longo do tempo, todas estas concebidas em função das especificidades de cada contexto, cultura, sociedade e momento histórico. Portanto, tentaremos apresentar as diversas concepções deste fenômeno através de um percurso temporal e geográfico, com o intuito de demonstrar como estas "verdades universais" podem tornar-se frágeis quando analisadas sob uma perspectiva crítica e como a desvinculação do social pode implicar uma visão mais restrita para os profissionais de saúde e, consequentemente, para a forma de atendimento aos pacientes.

Historicamente, os pacientes acometidos por doenças, mentais ou não, eram vistos segundo determinados postulados vigentes na sociedade, sendo a forma de tratamento o reflexo destes. Em torno de 600 a.C., por exemplo, os doentes passaram a ser avaliados através de uma visão organicista, cuja terapêutica utilizada estava voltada para o apoio e para o conforto (HOLMES, 2001). Na Antiguidade, por sua vez, a concepção de saúde, segundo Bock (2003), estava relacionada à religião e ao trabalho: a doença assumia um caráter místico, fato que dava aos sacerdotes o poder de curar e reestruturar o que se encontrava "cindido" no indivíduo, visto nessa época como um ser integrado.

Chegando ao final da Idade Média, a doença passa a ter outra conotação, sobretudo a doença mental, sendo concebida, portanto, como resultado de possessões por demônios, cujo tratamento dispensado exigia espancamentos, privação de alimentos, tortura generalizada e indiscriminada e aprisionamentos (HOLMES, 2001). Com o advento do hospital, no século XVII, iniciou-se o confinamento daqueles que divergiam das normas da sociedade (FREITAS, 2004): a institucionalização das pessoas doentes, durante a transição para o Capitalismo, era uma medida de exclusão social, nos quais os loucos, marginais, ladrões e mendigos (toda a "escória" da sociedade) eram internados com vistas a sanar parte do problema de inflação populacional nas cidades (FOUCAULT, 2006). A doença surge então como um problema social, nos quais os indivíduos por ela acometidos são tidos como indesejados, estando esta visão de confinamento também associada à pobreza (SZASZ, 1994).

Com a ciência moderna (perspectiva contrária a aqui defendida), mente e corpo assumem posições diferentes, segregadas. Consequentemente, estabeleceram-se formas de produção de conhecimento para cada área em questão; caberia à biologia, fisiologia, química e anatomia o estudo do corpo, enquanto a mente, como objeto abstrato, seria estudada pela filosofia e teologia (BOCK, 2003). A sociedade era vista apenas como o somatório dos indivíduos que a compõe e, portanto, cada pessoa era responsável por suas questões de saúde e doença, extraindo dessa equação o caráter social e delimitando-a apenas ao âmbito biológico. Nesse contexto, a saúde passa a ser definida como a ausência de doença. Em 1948, ainda de acordo com a autora, a OMS atualiza o conceito de saúde, que passa a ser definida como um completo bem-estar físico, mental e social. Essa nova forma de abordar a saúde contempla, além dos aspectos biológicos, os campos psíquico e social.

Berlinck (2000), entretanto, não acredita que doença mental seja sinônimo de patologia e, portanto, sugere duas concepções do que seria patológico, de pathos. A primeira seria aquela de doença, morbidez; já a segunda advém da raiz da palavra, pathos como "paixão", "passividade". De acordo com esta acepção, o autor propõe que a pessoa com uma patologia "não é nem racional nem agente e senhor de suas ações" (p. 18). Já Szasz (1994) acredita que essa vitimização do homem como doente mental parte de uma falsa virtude da compaixão, pela substituição do ser humano como responsável pelo homem como paciente. Portanto, mencionar a relação de mediação entre sujeito e sociedade significa dizer que o sujeito é fruto da sua relação com a realidade social, com a história e com a cultura, tal qual sugerem os construcionistas sociais. Vale salientar que esse indivíduo não é um reflexo imediato da realidade social e histórica, tendo em vista que esta relação é mediada pelos significados que o próprio homem constrói historicamente.

Dessa forma, devemos olhar para o processo saúde/doença como derivado de vários fatores que se produzem historicamente, que são expressões da totalidade de relações vividas pelo indivíduo, ou seja, o processo saúde/doença não é mera expressão ou atualização do plano biológico. A saúde deve ser vista como um processo dinâmico, ativo, portanto é inviável falar de saúde plena, visto que nossa vida é permeada por eventos e interações, tal como evidencia a proposta construtivista (sugerida por Castañon, 2004), que desestabilizam cotidianamente esse caráter estático (BOCK, 2003).

Segundo Foucault (2006), a Psicologia agiu como um intermediário entre o indivíduo e a loucura, como algo exterior à exclusão e ao castigo, e pela dimensão interior da moral e da culpa. Percebemos, assim, que a Psicologia pode se posicionar diante do fenômeno da loucura com uma prática e um saber marcados mais pelo criticismo do que pela crueldade. Entretanto, voltando ao percurso histórico da concepção da doença, em específico à doença mental, observou-se que foi na segunda metade do século XX que países europeus como França, Itália e Inglaterra criticaram e marcaram profundamente a estrutura encontrada para a concepção e o tratamento da loucura, intencionando a transformação do lugar social do louco (BOCK, 2003).

A Inglaterra inicia o processo conhecido como antipsiquiatria, com uma estrutura menos rígida e estereotipada, além de coexistirem comunidades terapêuticas autônomas e pequenas, substituindo as paredes hospitalares pelas relações que dão direitos à expressão do sujeito e à liberação de sua voz. Ainda segundo a proposta de Bock (2003), as experiências francesas e italianas foram além da destruição do modelo hospitalar psiquiátrico. Elas desestabilizaram lógicas, concepções, lugares sociais e saberes. O modelo francês focou a instituição e a cura do doente, enquanto o italiano teve o enfoque mais dirigido às intervenções no âmbito político e social. No entanto, Wadi (2000), discorrendo sobre os movimentos de "despsiquiatrização" no Brasil, sugere que, embora a Psiquiatria tenha se desenvolvido e se sofisticado com o passar do tempo, esta evolução não atingiu seu principal instrumento terapêutico, o manicômio, que parece resistir a qualquer tipo de sofisticação. As instituições, para a autora, ainda constituem um mero depósito de desventurados, que se afirmaram como um instrumento de pura exclusão simbólica do universo da cidadania.

A Organização Mundial de Saúde, em consonância com as propostas encontradas nos manuais norteadores de doenças mentais, corrobora a visão supracitada e defende a medicina tradicional através de uma perspectiva voltada para a soma de todos os conhecimentos teóricos e práticos utilizados para diagnóstico, prevenção e supressão de transtornos físicos, mentais ou sociais, com base exclusivamente na experiência e observação, e transmitidos verbalmente de uma geração para outra, enfatizando a doença e não o significado e a dimensão subjetiva construída pelo sujeito que vive a experiência da loucura. Esta concepção, produto da modernidade, entra em conflito com a abordagem do Construcionismo Social, que não deriva da observação direta, mas "parte de uma estrutura prévia de compreensão" (GERGEN ;& WARHUUR, 2001, p. 32), de forma que os fenômenos podem ter interpretações diferenciadas em função da base teórica que o terapeuta utiliza. Dentro desta lógica, os conhecimentos teóricos e as técnicas utilizadas para conclusão de um diagnóstico convergem para uma visão singular do funcionamento humano.

Seguindo a proposta do Construcionismo Social, citamos um estudo realizado por Denise Barros (2004) em uma sub-região de Bandiagara, na África, que apresenta uma concepção de doença (não só mental) indissociável de uma noção de força vital e práticas de tratamento voltadas para a subjetividade de cada indivíduo. A autora do livro "Itinerários da loucura em territórios Dogon" apresenta uma forma de interpretação desses fenômenos similar à perspectiva aqui defendida, por respeitar as particularidades e as crenças terapêuticas dessa sociedade, vinculando, portanto, a concepção de doença aos costumes por elas praticados.

Dessa forma, a sociedade Dogon (como é chamada na região) associa a manifestação da loucura a uma perspectiva social, através de processos terapêuticos e práticas ancestrais, de real e imaginário, de religiosidade e organização social. Nesta cultura, as diferenças não causam medo ou impulsionam a sociedade a aprisionar o diferente, existindo o respeito e a socialização desses indivíduos, pois os percebem como seres holísticos e parte integrada da realidade vigente, contrapondo-se aos manuais taxativos de doença mental, à história da loucura, à forma de tratamento destas patologias e à abordagem dada àqueles que não se enquadram em certas características da sociedade. Portanto, no contexto negro-africano, o conhecimento é esotérico e transmitido de maneira parcimoniosa, envolvendo uma concepção de causalidade, classificação, diagnóstico e tratamento da doença, estendida como manifestação de um desequilíbrio entre os diferentes componentes da pessoa, ou de sua relação com o mundo visível ou não visível (BARROS, 2004).

Um exemplo semelhante, que corrobora a proposta de Barros (2004), é colocado por Vasconcelos (1992) e refere-se a um caso de um africano que foi rotulado de "louco" em uma cidade francesa por reproduzir determinados comportamentos que destoavam daqueles típicos encontrados no novo contexto. Acreditavam que ele apresentava perturbações de conduta extremamente graves, de forma que a internação parecia inevitável. No entanto, os comportamentos executados por tal indivíduo eram apenas reflexos de rituais praticados por seu povo diante das alterações climáticas.

Esse caso, bem como toda variação na concepção da doença, incita reflexões acerca da compreensão da doença mental em diferentes contextos socioculturais, antecipando, de certa forma, uma discussão voltada para variações no atendimento terapêutico em funções de circunstâncias sociais. O padrão europeu, por exemplo, caracterizou e agrupou as doenças mentais de acordo com os seus sintomas, sua recorrência e sua classe social. Neste processo de classificação a pessoa doente passa a ser despersonalizada e sua identificação como espécie humana é anulada, por ser ela caracterizada apenas por um número, leito ou um símbolo.

Corroborando essa visão, Moffatt (1991) descreve as instituições psiquiátricas, através de estudos realizados na Argentina, como um depósito de seres humanos, exclusivamente pobres, que invalidaram seu "eu" e que foram esquecidos de forma consciente pela sociedade. Essa mesma forma de exclusão ainda pode ser observada atualmente, e é justificada como um mecanismo de defesa coletiva, que a sociedade utiliza para discriminar os indivíduos que burlam a lei social. Outra ilustração que demonstra o preconceito arraigado a uma perspectiva social é citada por Jodelet (1989), através de uma pesquisa realizada em uma cidade francesa que havia abolido as instituições psiquiátricas, para que assim os pacientes pudessem novamente se integrar ao ambiente familiar. Foi constatado que a exclusão e a discriminação continuavam presentes, tendo em vista que os pacientes não compartilhavam os utensílios domésticos e viviam em dependências separadas da casa central. Ou seja, a loucura era vista como algo contagioso e o convívio com esses indivíduos era interpretado, ainda, como abominável.

Um outro aspecto importante a ser considerado em variáveis sociais, no que concerne ao atendimento terapêutico, refere-se às posturas dos psicólogos nos atendimentos, não descartando as influências da sociedade. Abib (1998), por exemplo, através de uma reflexão histórica, propõe argumentos que tentam desmistificar a concepção ainda vigente da origem da Psicologia a partir das experiências de Wundt e contextualiza o seu estabelecimento em função da atuação profissional dos psicólogos. O autor esforça-se para desconstruir uma imagem empirista (credibilidade dada à Psicologia em decorrência do laboratório de Wundt), por acreditar que esta se apresenta ausente de crítica filosófica e, consequentemente, de crítica política e social na pesquisa tecnológica da Psicologia alinhada à ideologia do controle social.

Essa ideia propõe reflexões acerca da postura dos psicólogos e dos objetivos que estes visam atingir no atendimento terapêutico. Mello (1997), por exemplo, acredita que os psicólogos não possuem, em sua formação acadêmica, uma orientação voltada para as necessidades populares, tendo em vista que o público que detém recursos financeiros para dispor de um tratamento psicoterápico é, no mínimo, pertencente à classe média. Esta proposta perpassa questões éticas e econômicas, e encontra-se inserida em um contexto estritamente social, demonstrando o quanto o atendimento psicoterápico varia em função das demandas dos diferentes segmentos da sociedade.

Portanto, o presente trabalho, embora reconheça o saber sistematizado da Psiquiatria atual, defendido nos manuais norteadores de classificação de doenças mentais, acredita que o desenvolvimento científico, com o modelo médico, transformou-se, de certa forma, em um entrave ao processo de dignificação aos intitulados "doentes". Acreditamos que esta visão configura-se como limitada por unificar os tratamentos aos indivíduos, negligenciando e ignorando a subjetividade de cada um deles. A perspectiva geográfica, assim como a histórica, proporciona uma fundamentação à opinião defendida aqui neste trabalho, através de exemplos que demonstram que as pessoas possuem certas particularidades, frutos do meio a que estão inseridas, e que devem ser consideradas no direcionamento ao atendimento terapêutico a ser aplicado, corroborando, assim, a proposta da teoria do Construcionismo Social.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta perspectiva, conclui-se que o Construcionismo Social apresenta um aporte teórico e, principalmente, filosófico consistente para fundamentar uma argumentação voltada para uma concepção ampliada do fenômeno "estar doente", por considerar dimensões geralmente negligenciadas por profissionais "modernos". Esta nova visão modifica o discurso terapêutico clássico e implica transformações conceituais e práticas, demandando, portanto, uma nova significação do processo e relação terapêutica.

Dessa forma, após expostos os argumentos de um debate que se propôs a discutir as concepções da doença em função de circunstâncias históricas, geográficas e sociais, conclui-se que, no ocidente, a concepção de doença/loucura/doença mental e as práticas de tratamento de determinadas patologias encontram-se tão condicionadas a uma perspectiva voltada para um modelo biomédico de atendimento, que acabam por não valorizar novas possibilidades de atendimentos psicoterápicos divergentes desta percepção. Esta prerrogativa, acreditamos, é consolidada através da reprodução de modelos já prontos de muitos profissionais, que afirmam que a psiquiatria constitui-se como um saber sólido inquestionável, fruto de investigações sistemáticas de bases fisiológicas e psicológicas.

Em suma, foi possível observar ao longo do texto que o processo saúde/doença não foi sempre visto da mesma forma, tendo obtido várias interpretações em diferentes momentos históricos, sendo conclusivo, portanto, que a dimensão histórica e social apresenta grande influência no modo como esta díade é concebida. Esse último modelo, atrelado à visão da Psicologia Social, ainda não está plenamente aplicado à prática, mas já vem transformando as implicações decorrentes das duas áreas anteriores. Portanto, o psicólogo passa a ter o desafio de contribuir e atuar efetivamente no campo da saúde, delimitando o seu papel e promovendo uma articulação entre saberes diversos, como o biológico, o social e o psicológico. Essa abordagem multidisciplinar, que integra o conhecimento científico a diversos segmentos, é importante para se ter uma compreensão holística dos pacientes e para a instauração de medidas efetivas que gerem mudanças no processo de desenvolvimento da saúde, medidas estas que estão além daquelas prescritas nos manuais psicológicos, ausentes de uma concepção ampliada desse fenômeno.

 

 

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Artigo recebido em: 19/11/2009
Aprovado para publicação em: 4/4/2010

 

 

* Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: icrvasconcelos@gmail.com
** Mestrando em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: samuel.bezerra.lins@gmail.com
*** Mestranda em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: geovanacv@gmail.com
**** Mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: karlacribeiro@yahoo.com.br Endereço para correspondência: Rua José Jardim, 95 Bairro dos Ipês, 58028-160, João Pessoa - PB. Telefone: (83) 8811-8314.

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