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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.8 no.15 Barbacena dez. 2010
ARTIGOS
Ordálio e Delírio: de Terceiro Excluído a Escolhido
Ordeal and Delusion: from the Third Excluded to the Chosen One
Elisa CoelhoI; Valeska ZanelloII
IBacharel em Psicologia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB), Especialista em Psicopatologia pelo Centro de Atenção à Saúde Mental (ANANKÊ)
IIDoutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB), Psicóloga, Bacharel em Filosofia pela (UNB), Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (PCL) do Instituto de Psicologia (IP), da UnB
RESUMO
Freud trouxe importantes contribuições para a compreensão das psicoses ao mostrar, especificamente no delírio, o funcionamento de um narcisismo inflacionado, cuja função seria resguardar minimamente o sujeito. O delírio seria uma tentativa do eu de se preservar diante de uma realidade inassimilável. O ordálio, vivência de uma situação que coloca à prova a estrutura do sujeito, parece exercer aí um papel fundamental, enquanto fator desencadeador de sua quebra e da produção delirante. Este trabalho teve como objetivo fazer uma análise psicodinâmica de um caso de psicose esquizofrênica, por meio das contribuições psicanalíticas.
Palavras-chave: Psicose; esquizofrenia; ordálio; narcisismo; delírio.
ABSTRACT
Freud brought important contributions to the understanding of psychoses when he showed, specifically on delusion, the operation of an inflated narcissism, whose function would be minimally protect the individual. Delusion would be an attempt from the I to preserve itself in front of a non-assimilable reality. Ordeal, the experience of a situation that checks the individual's structure, seems to exert a fundamental role, while it is a triggering factor of the individual's breakdown and delirious productions. This paper aimed at analyzing psychodynamically a case of schizophrenic psychosis, throughout psychoanalytic contributions.
Keywords: Psychosis; schizophrenia; ordeal; narcissism; delusion.
1 INTRODUÇÃO
Ainda hoje é possível verificar como muitas das concepções psiquiátricas referentes à esquizofrenia permanecem arraigadas aos conceitos desenvolvidos por Kraepelin, no século 19. Kraepelin, como a maioria dos estudiosos da sua época, acreditava que as alterações orgânicas do cérebro eram a causa das doenças mentais, cabendo aos médicos somente esperar o progresso da ciência para poderem tratar desse problema de forma eficaz (WAELHENS, 1990).
A descrição clínica centrava mais na busca da identificação de uma soma de alterações particulares, ao invés de evidenciar o sentido global e a estrutura significativa da totalidade de um comportamento tido como patológico (WAELHENS, 1990). Esse modo de pensar trouxe como consequência um empobrecimento do entendimento das psicopathologias, ou seja, da disposição afetiva fundamental dos sujeitos e de seus modos de funcionamento psicodinâmico (MARTINS, 2003, 2005).
Freud trouxe grandes contribuições para o campo da Psicopatologia, ao ultrapassar uma semiologia indicial e qualificar a produção simbólica dos sintomas. Em outras palavras, uma de suas maiores contribuições foi apontar o sintoma como sendo expressão do funcionamento psíquico, isto é, a ideia de que o sintoma tem sentido e possui uma função psicodinâmica.
2 PSICOSE: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
A concepção psicanalítica do inconsciente oferece, para a compreensão das psicoses, grandes contribuições e vantagens consideráveis. Nessa vertente, o denominador comum das psicoses é encontrado em uma perturbação primária da relação libidinal com a realidade, em que a maioria dos sintomas manifestos (particularmente a construção delirante) é compreendida como tentativa secundária de restauração do laço objetal (LAPLANCHE; PONTALIS, 2008).
Em "Neurose e Psicose", Freud (1924b) apresenta uma "fórmula" que aponta uma importante diferença entre o funcionamento de uma neurose e de uma psicose: a neurose seria o resultado de um conflito entre o eu e o isso, ao passo que a psicose seria um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo.
Em "A perda da realidade na neurose e na psicose" (1924a), Freud dá continuidade às suas reflexões sobre as diferenças entre os mecanismos neuróticos e psicóticos, aprimorando sua análise. Para ele, o eu do psicótico, a serviço do isso, se afastaria de um fragmento da realidade. Duas etapas são discernidas, das quais a primeira arrastaria o eu para longe da realidade, enquanto a segunda tentaria reparar o dano causado e restabelecer as relações do sujeito com a realidade.
Na psicose, a forma como esse processo se dá é por meio da criação de uma nova realidade, que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, a qual foi abandonada. Essa segunda etapa serve ao desejo de poder do isso. Desta forma, a realidade é repudiada e há uma tentativa de substituição desta. Em outras palavras, o neurótico abdicaria de seus desejos em função de sua adaptação às exigências da realidade; ao passo que, na psicose, seria a realidade remodelada, em função da realidade de desejo (por meio do delírio).
Freud reflete que, provavelmente na psicose, o fragmento da realidade rejeitado constantemente se impõe à mente do indivíduo, concluindo, desta forma, que o estado psicótico é uma doença de defesa; é uma tentativa desesperada do eu para se preservar diante de uma representação inassimilável que ameaça sua integridade.
No final do seu texto "Neurose e Psicose", Freud levanta a questão de qual seria o mecanismo por cujo intermédio o eu se desligaria do mundo externo, levantando a hipótese de que tal mecanismo deveria abranger uma retirada da catexia enviada pelo eu. Foi a partir desse ponto que outros autores concentraram-se na tarefa de entender os mecanismos da psicose.
Nasio (2001) organizou essas ideias propostas por Freud e introduziu outras, desenvolvidas por ele próprio e por Lacan, no que se refere aos mecanismos de defesa do eu, que levam o sujeito à psicose. Segundo esse autor, primeiro há a rejeição violenta da representação irreconciliável para fora do eu, ou seja, o eu expulsa para fora uma ideia que se tornou intolerável para ele, por ter investimento em excesso, e, assim, separa-se da realidade externa da qual essa ideia é a imagem psíquica. "Assim, o eu fica impotente e, às cegas, amputa uma parte de si mesmo - a representação de uma realidade que lhe é insuportável" (NASIO, 2001, p. 36).
Ao dizer "desprender-se", "expulsar para fora de si", "amputar de si", Nasio refere-se ao termo introduzido por Lacan de "foraclusão", ou chamado por ele de "foraclusão localizada". Isso significa que uma representação psíquica, que foi demasiadamente superinvestida pelo eu, fica subitamente privada de qualquer significação. A expulsão significa retirada brutal de significação. Como resultado, o eu é "vazado em sua substância" (NASIO, 2001), e esse furo no eu corresponde a um furo na realidade. O último momento desse processo seria a substituição da realidade perdida por uma outra, ao mesmo tempo interna e externa, chamada de delírio ou alucinação.
Desta forma, o processo psicótico inicia-se pela expulsão brutal de um pedaço do eu e resulta na percepção alucinada do pedaço rejeitado, transformado numa nova realidade, realidade essa alucinada.
3 ORDÁLIO, NARCISISMO E PSICOSE
No dicionário Houaiss (2004), o termo ordálio é definido como provação extrema; calvário. Na história do Direito, ordálio refere-se a uma prova judiciária feita com a concorrência de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como um julgamento divino; um juízo de Deus. Na etimologia do termo, no latim, o termo ordal faz referência a julgamento, juízo. O termo ordalie referia-se a provas judiciárias empregadas na Idade Média para estabelecer a inocência ou a culpa do acusado.
Segundo Martins (1995), Freud introduz esse termo pela primeira vez ao demonstrar a importância do simbolismo paterno, no caso Schreber (FREUD, 1911). Este, em Memórias de um Doente dos Nervos (SCHREBER, 1995), se gaba por conseguir olhar para o sol fixamente sem se ofuscar. Freud faz um paralelo entre essa proposição delirante e a relação das águias com seus filhotes, que são submetidos a esse teste do sol ao nascerem, a fim de serem reconhecidos como descendentes legítimos. Assim como o processo usado pela águia com seus filhotes é um ordálio, ou um teste de linhagem, muitos homens fizeram desse teste um costume sagrado, existindo, em várias culturas, provas ordálicas.
Segundo Martins (1995), esse teste de linhagem remete ao problema essencial da origem do sujeito: o seu Édipo. O ordálio exemplifica o modo como o Édipo é elaborado, pois o complexo de Édipo introduz uma dupla inscrição: a primeira diz respeito à diferença entre os sexos e a segunda, à diferença de gerações (MARTINS, 2002).
O psicótico tem medo de encontrar o Édipo, pois este traz em si fantasias ordálicas terrificantes, principalmente no que diz respeito a uma inversão do mito edípico, ou seja, ao invés do filho que mata o pai, um pai que mata o filho (MARTINS, 1995). Desta forma, é possível compreender o motivo da recusa do psicótico em elaborar a questão edípica. Essa recusa faz o sujeito recuar para formas mais regressivas de fantasias, ao universo maternal, não progredindo no universo societário, ou seja, não atravessando o Édipo (MARTINS, 2002).
A fantasia ordálica, logo que uma psicose é desencadeada, é vivida enquanto realidade no campo da consciência: na leitura lacaniana, o abolido internamente retorna como Real. O ordálio é vivido pelo psicótico como prova que o coloca frente a uma "potência sobrenatural absoluta"1: uma perigosa provação, a qual coloca em risco sua própria existência. Nessa situação ordálica, o sujeito se sente desprovido do seu querer, da sua própria vontade, sendo sua existência colocada em xeque, de forma radical.
Como apontamos anteriormente, para Freud, o motivo da dissociação com o mundo externo é alguma frustração muito séria de um desejo por parte da realidade - frustração esta que parece intolerável para o sujeito. A frustração, no caso do psicótico, constitui-se em uma situação ordálica, colocando em xeque o funcionamento narcísico do sujeito. Essa frustração é externa, e seu efeito patogênico depende do eu: em uma tensão desse tipo, permanece fiel à sua dependência do mundo externo e tenta silenciar o isso - no caso da neurose -, ou se deixa derrotar pelo isso, sendo, assim, arrancado da realidade na psicose (FREUD, 1924a). Trata-se da recusa2 ou repúdio, modo de defesa, segundo Freud, que consiste em uma recusa por parte do sujeito em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante; no caso, que remeteria à castração. A castração, dentre outras coisas, seria traumática por apontar a impossibilidade de permanência no lugar do Eu Ideal (falo imaginário da mãe).
Freud aponta que, na psicose, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos, mas retira-se para o eu: é a megalomania (FREUD, 1914). No delírio, temos uma inflação do Eu: o narcisismo colocado em xeque pela frustração da realidade (situação ordálica) desencadeia uma hiperproteção narcísica (um hiperinvestimento no Eu). O delírio encontra-se aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação entre o eu e o mundo exterior. Dessa forma, na leitura psicanalítica, o delírio possui uma função de tentativa de cura no mecanismo psíquico do psicótico. Freud permite pensar que, na própria dinâmica do discurso delirante, encontra-se a possibilidade de "resgatar a trilha na qual emerge um sujeito na psicose" (SCHAUSTZ, 1998, p. 86).
Nasio (2001) resume os três objetivos correlatos que o delírio atinge: dar sentido a uma experiência de desmoronamento que deixa o sujeito aniquilado, descobrir um vínculo possível com o outro, onde ele parecia haver desaparecido e restabelecer uma forma de temporalidade.
As manifestações psicóticas como o delírio ou a alucinação não são, portanto, vistas como efeitos imediatos de uma dada causa orgânica, como a Psiquiatria tende a ver, mas consequências derivadas da luta travada pelo eu para se defender de uma dor insuportável.
Do ponto de vista psicanalítico, segundo Martins (1995), a existência de um ordálio real na infância do futuro psicótico não é condição necessária e única para o desencadeamento posterior de uma psicose; há a possibilidade da existência de um mundo de fantasias criadas pelo sujeito, independente dos fatos objetivos. Isto é, trata-se da realidade psíquica. Assim, o que importa é a maneira como esse sujeito elabora tais fantasias, remetendo à questão fundamental da estrutura do sujeito e a importância da travessia (ou não) do Édipo.
Quanto a isso, Quinet (2003), em uma leitura lacaniana, afirma que:
se, no primeiro tempo lógico do Édipo o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai é o que vem barrar o Outro onipotente e absoluto, inaugurando a entrada da criança na ordem simbólica. A criança não é mais submetida a um outro onipotente que apresenta uma lei que não legaliza, uma lei de caprichos. É devido à intervenção do Nome-do-Pai no Outro que a lei é instalada para o sujeito no lugar do Outro. O Outro se constitui para o sujeito como lugar da Lei, o Outro do pacto da fala. (p. 13).
A Castração exerce aí, portanto, um papel fundamental, segundo Freire (1998):
Pensando o conceito de Castração, descobrimos que ele não é unívoco e deve ser compreendido no interior de um complexo. O Complexo de Castração aponta, em primeiro lugar, para a diferença anatômica entre os sexos; em segundo lugar para a triangulação edípica; e, em terceiro lugar, como desdobramento das anteriores, a interdição do incesto e no estabelecimento da Lei - e aqui está inserida também a questão da identificação para que a Lei possa ser internalizada. (p. 105).
O Complexo de Castração envolve sempre, dessa maneira, a interdição, uma situação de perda e de separação. O psicótico, ao não atravessar o Édipo nem a Castração - que o colocariam em uma posição subjetiva no que tange à diferença sexual e à diferença de gerações (Martins, 2002) -, não progride a um plano simbólico, societário. Sua relação com o Outro se coloca a nível imaginário e narcísico. Se, nas neuroses, as formações do inconsciente só podem ser apreendidas por meio de seus disfarces, na psicose "o Outro fala, aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror, pânico, exaltação" (QUINET, 2003, p. 17).
Neste sentido,
A posição estrutural do sujeito na psicose é a de ser objeto do gozo do Outro, objeto de uso do Outro, esse Outro absoluto que reproduz o primeiro tempo lógico do Édipo, quando a criança se encontra identificada ao falo imaginário da mãe como objeto de seu uso pessoal. Trata-se aqui de uma analogia, pois não há Édipo propriamente para o psicótico. (QUINET, 2003, p. 17-18).
Essa não-travessia coloca em evidência o funcionamento narcísico do sujeito psicótico, não havendo a passagem do ser o Eu Ideal (falo imaginário da mãe) para o ter o Ideal de Eu (por meio da inscrição do Nome-do-Pai).
A partir das contribuições teóricas da Psicanálise acima abordadas, sobretudo o ordálio, o narcisismo e a castração, buscou-se realizar uma análise psicodinâmica de um caso de psicose esquizofrênica (pseudônimo José).
4 METODOLOGIA
Foi realizado um estudo de caso com um paciente de 42 anos (José), diagnosticado de esquizofrenia paranoide. O estudo de caso, diferentemente de um caso médico, que é representativo de uma doença, exprime a própria singularidade do ser que sofre e da fala que ele nos dirige (NASIO, 2001).
Os encontros se deram em um Centro de Convivência do Hospital-Dia de uma clínica particular. Além dos relatos do paciente, o prontuário deste foi lido como forma de levantamento de mais dados biográficos. Outros detalhes foram coletados por meio de entrevistas com psicólogos mais antigos que trabalharam diretamente no caso do paciente.
O sujeito aqui estudado relatou sua "história" ao longo de um ano, ao menos uma vez por semana, sem pressão exercida pela pesquisadora, e com seu consentimento para a realização da presente pesquisa.
5 ESTUDO DE CASO
José (pseudônimo), 42 anos, cresceu em uma casa com quatro mulheres: sua avó, sua mãe e duas irmãs. Sua mãe teve três filhos, todos de pais diferentes. Marli, mãe de José, não só nunca morou com nenhum dos pais de seus filhos, como também nunca teve o apoio deles na criação dos mesmos, por julgar "desnecessário". José conheceu seu pai em uma idade tardia. Aos 11 anos, sua avó faleceu.
José relatou que, em dado momento em sua adolescência, desejou morrer, fazendo esse pedido para Deus, em oração. Ao não ter seu desejo realizado, encarou esse fato como uma resposta Divina: "Deus não queria que eu morresse" (sic). José encontra significado em tudo. Essa "resposta" Divina foi interpretada como um sinal de que deveria procurar a Igreja Católica, iniciando uma fase de intenso fervor religioso.
Até os 20 anos, José nunca tinha namorado e tinha poucos amigos. No seu relato, mencionou somente um amigo, com o qual tinha afinidade. Nessa idade, José foi presenteado com um livro pela sua mãe, sem motivo aparente. O livro, escrito por um psicólogo, apresentava uma temática envolvendo culpa e medo, cuja mensagem ao final sugeria às pessoas a ideia de aproveitarem mais a vida, viverem os momentos e se preocuparem menos com o que os outros pensavam. Esse livro causou grande impacto em José, passando ele a viver essas mensagens como regra.
Após esse momento, José diz ter ficado "egocêntrico", só se preocupando com ele mesmo. Passou a ser agressivo com aqueles com quem convivia, pois deixou de se preocupar com a opinião dos outros. Trata-se de um aumento de investimento da libido sobre o Eu.
José ingressou na Universidade, no curso de Engenharia Civil, onde permaneceu por oito anos, com algumas reprovações, sem chegar a concluir o curso. Enquanto era universitário, José trabalhava em um banco particular, chegando a trabalhar em dois bancos em um determinado período.
Aos 20 anos, em 1987, em uma viagem realizada a fim de visitar seu pai no Estado de Sergipe, conheceu uma moça chamada Joana, a qual lhe despertou interesse. De volta a sua cidade natal, manteve contato com ela, por meio de correspondências. Depois de um ano, voltou a Sergipe e pediu-a em casamento. José relata que tomou essa atitude por influência do livro, que defendia a necessidade de as pessoas viverem o presente, fazendo o que lhes viesse à cabeça.
Após essa segunda viagem, José trouxe Joana para sua cidade, mesmo sem a aprovação da mãe. Marli, ao descrever Joana, se remete a ela como esquisita e mal educada. Relata que os dois se trancavam no quarto de José, afirmando, inclusive, que Joana roubava coisas da sua casa. O que é possível, de fato, aferir neste momento é que Joana rouba-lhe o filho.
O conflito familiar foi tamanho, que Joana voltou para Sergipe, apesar de a data do casamento já estar marcada para o dia 25 de dezembro. José pediu para ela voltar, prometendo que eles morariam juntos em um espaço só deles. Joana retornou, e se casaram no dia 28 de dezembro, indo residir em uma quitinete e, após seis meses, mudaram-se para um apartamento. Ao casar, José largou a Universidade, permanecendo apenas em um dos bancos em que trabalhava.
Nesse meio tempo, Joana preparava-se para um concurso. José concedeu-lhe "colas" necessárias para a realização da prova. A consequência da aprovação de Joana causou um enorme mal em José. Este arrependeu-se de ter lhe fornecido cola, pois tal ato era "repreendido pela Bíblia" (sic); consequentemente, ficaria em maus termos com Deus. Diante desse mal estar, José pediu para Joana não assumir o cargo, chegando a exigir que ela escolhesse entre estar casada com ele ou assumir seu emprego. Joana escolheu assumir o emprego e eles se separaram.
Enquanto estavam separados, José partiu para uma busca mais intensa por Deus. Após um curso de evangelização, começou a pregar a palavra divina em residências. Mesmo separados, José e Joana continuavam a se encontrar, e Joana engravidou. Essa nova realidade imposta foi vivida de forma tão difícil por José, que ele considerou a possibilidade de aborto. Mais uma vez, ficou mal ao sentir que Deus estaria repreendendo seus pensamentos. É possível perceber como essa nova realidade foi ameaçadora para José, vivida como a imposição do desejo de um Outro, em sua forma mais radical, podendo ser feito um paralelo com a situação ordálica da passagem ritualística e da falta de livre arbítrio do sujeito. O aborto não podia ser uma opção, visto haver a recriminação e o desejo de Deus.
Perto do nascimento da filha, sua mãe recebeu uma ligação anônima, avisando que o pai da criança não era José. A repercussão dessa informação na família de José foi tamanha que, não só pararam de apoiar Joana, como José não registrou sua filha ao nascer. Porém, durante seu relato, José afirmou que nunca duvidou da sua paternidade, e foi ele que levou Joana ao Hospital, quando esta entrou em trabalho de parto.
Em 1992, após um mês do nascimento da filha, José buscou um retiro espiritual na cidade de Anápolis, GO. Nesse retiro, foi abordado o tema sobre o fim do mundo e, ao final do encontro, sobre iluminação. Assim, após o retiro, José passou a acreditar que havia sido iluminado e que teria se tornado um santo. Percebe-se o início do processo de rejeição da realidade externa - nascimento da filha -, dando espaço a uma nova realidade: a sua santificação. Há uma quebra da situação especular, imaginária, dual, entre José e Joana: um terceiro se introduz na cena e desestabiliza o precário equilíbrio psíquico de José.
Com sua santificação, José torna-se o instrumento de transmissão da mensagem de Deus para os outros santos. Se o nascimento da filha foi vivido como desmoronamento, o quebrar da tênue organização psíquica de José, com a subsequente retirada da libido dos objetos, o delírio passou a ser um reinvestimento libidinal. Ao ser excluído da relação imaginária com Joana, agora é o escolhido em uma relação imaginária com Deus. Como nos diz Quinet (2003, p. 18): "Por falta de referência simbólica, o sujeito psicótico funciona no registro imaginário, onde o outro é tomado como espelho e modelo de identificação imediata (...). O semelhante é apreendido apenas no registro do imaginário onde a relação especular é a regra".
A paternidade só é articulada a partir do registro simbólico, e é justamente este que falta a José. Assim, o encontro com Um-pai, que se situa em posição terceira, na relação imaginária diádica, evoca o surto. Esse encontro, evento desencadeador da quebra de José, é o evento ordálico: a gravidez de Joana que ele deve aceitar, por se tratar da vontade divina... O delírio, vindo a suprir a Forclusão do Nome-do-Pai, é uma peça que se cola na falha da relação com o mundo da realidade.
Após o retiro, uma série de delírios bizarros começaram a tomar conta da sua vida. Ao chegar em casa, José achou que seu sobrinho estava possuído pelo demônio e tentou exorcizá-lo, pois agora era santo. Sua irmã, psicóloga, disse-lhe que deveria procurar tratamento, pois ele claramente não estava bem. No entanto, por estar "iluminado", não a escutou.
Após esse episódio, José recebeu o comando de Deus de que deveria caminhar até a catedral da cidade, para que o final do mundo se concretizasse. De onde estava, partiu para a catedral. No meio do caminho, sentiu arrepios no corpo, atribuindo esse fato aos espíritos. Como deveria chegar à catedral com o espírito puro, José tirou sua roupa e continuou sua caminhada nu. Ele justificou esse fato fazendo referência aos índios. Foi apreendido na rua por policiais, resgatado pela família e levado para o hospital central da cidade.
Já internado, no meio da madrugada, olhou pela janela e viu o sol nascer: "o sol estava lindo e vermelho" (sic). Esse fato foi interpretado por José como uma segunda chance concedida por Deus, cabendo a ele tentar novamente alcançar a catedral. Desprendeu-se da contenção e fugiu do hospital. No caminho da saída, diz ter escutado "Olha o cordeiro de Deus". Novamente, continuou correndo rumo à catedral, nu, pois o Reino dos Céus era lá, e cabia a ele chegar lá para que o mundo pudesse acabar. Mais uma vez, é contido pela polícia, retornando para o hospital. Dessa vez, é amarrado por dois dias, sendo introduzido no Haldol®, queixando-se de que o medicamento o deixara sem iniciativa.
Ao relatar tudo isso, José anuncia com grande serenidade (sua principal característica): "Isso que vocês psicólogos chamam de crise, eu chamo de evento de fé. Foi o que me aconteceu" (sic). José encara seu surto como uma experiência mística religiosa, na qual ele se tornou um instrumento de Deus.
Desde sua primeira internação, José recebeu diversos outros comandos de Deus, caracterizados como estranhos. Ele experimenta uma passividade frente a esses comandos: não se trata de compreendê-los, mas de acatá-los. Fica clara aí a dinâmica psíquica da psicose, tal qual apontamos acima:
Se, no primeiro tempo lógico do Édipo o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai é o que vem barrar o Outro onipotente e absoluto, inaugurando a entrada da criança na ordem simbólica. A criança não é mais submetida a um outro onipotente que apresenta uma lei que não legaliza, uma lei de caprichos. (QUINET, 2003, p. 12).
Como falta a inscrição do Nome-do-Pai, esse Outro, Deus, é onipotente, restando-lhe apenas submeter-se. Em igrejas, por receber os comandos, sentou-se na cadeira do padre diversas vezes, sendo expulso. Recebeu também o comando de que deveria avisar a um Presidente da República a respeito de um atentado planejado contra este, dirigindo-se à residência do presidente para tentar contatá-lo. José não tem dúvida a respeito da veracidade dos "fatos". Seu delírio foi se estendendo, envolvendo diferentes áreas da sua vida.
Ao ser questionado a respeito de como acontecem os comandos de Deus, José explica com uma metáfora: "É como se eu fosse uma luva e Deus a mão que entra na luva. Os movimentos são ditados pela mão; a mim só cabe executá-los" (sic). Essa metáfora destaca a extrema passividade frente aos desejos de Deus. Ele afirma que esses comandos não passam pela audição; a força toma conta dele, e ele se deixa levar. Quando é tomado pela força, José começa a transmitir a linguagem dos santos. São gestos repetitivos com as mãos e com o corpo, ao rodopiar e andar de um lado para o outro. Ele não sabe interpretar essa linguagem; porém, não se mostra incomodado com isso. Para ele, basta saber que foi o Escolhido por Deus para realizar a transmissão desses sinais. Esse delírio constituído por José pode ser categorizado como bizarro, ao se referir a uma perda de controle do indivíduo sobre a mente ou o corpo, sentindo que seu corpo e ações são manipulados por algo externo; no caso de José, por Deus.
José afirma que há um espírito que, apesar de ele não o ver, sempre o acompanha. Por mais que José não entenda de fato o que está sendo transmitido através dele para os santos, ele desenvolveu uma maneira própria de se comunicar com Deus, por meio do movimento realizado pelo seu maxilar. Quando seu canino vai para frente, a resposta de Deus é "sim"; para trás, é "não". Deus responde às suas perguntas de acordo com o movimento do seu maxilar.
Em 1994, José se reconciliou com Joana e voltou a morar com ela e sua filha. É só nesse momento que ele registrou sua filha, reconhecendo sua paternidade perante a lei. Nesse período, mudou de religião: de católico passou a ser evangélico, visto que a Igreja Católica não lhe levou muito longe. Morou com Joana por mais quatro anos, até o momento em que a força o tomava a maior parte do seu dia. Não conseguia se concentrar em mais nada, inclusive no seu trabalho. José foi internado pela sua mãe no Hospital Psiquiátrico da cidade em que habita; em seguida, foi levado para uma clínica particular por quase dois meses.
Aos poucos, José perdeu interesse por tudo: trabalho, esposa e filha. A libido aqui foi claramente concentrada em seu Eu e na formação delirante. Em 1998, foi afastado do trabalho e se tornou incapaz, cabendo a sua mãe a realização da sua separação de Joana e de seu pedido de aposentadoria. Após seu "evento de fé", José foi aos poucos perdendo sua habilidade de conviver e funcionar socialmente.
José iniciou seu tratamento no Centro de Convivência (CC) de uma clínica particular em 2001, sendo esse início difícil, devido ao fato de ele sempre ser desviado do seu caminho por causa dos comandos recebidos de Deus. Seu tratamento só se iniciou com uma Acompanhante Terapêutica (AT), que o levava para o CC e outros lugares de seu interesse, como a igreja.
José atualizou sua fantasia ordálica de Terceiro Excluído, abrindo um surto, quando sua AT engravidou, semelhantemente à sua primeira crise decorrente da gravidez de sua mulher. Nesse período, José fez algumas atuações, colocando-se em risco, como andar em vias movimentadas, andar pela Esplanada, caminhar até o lago da cidade e cruzá-lo a nado. Nessa situação, ele tirou toda a sua roupa na beira do lago, atravessando-o e chegando a sua casa, após uma caminhada de mais de 15 km. Coube à sua irmã e cunhado a recuperação de suas roupas e documentos que foram abandonados.
Atualmente, José frequenta o CC quando não é desviado do seu caminho devido aos comandos de Deus, comando estes que ele não controla. Também tem o hábito de viajar muito com sua mãe. José não se considera como portador de um transtorno mental, afirmando que só acata o tratamento para a tranquilidade da sua mãe, que o considera "louco". Não se vê como um doente mental, e sim como alguém não compreendido em todas as esferas sociais.
6 (IN)CONCLUSÕES
A possibilidade de ser o Terceiro Excluído (castração em uma relação no plano imaginário, especular) ameaçou de tal forma o narcisismo de José, que só lhe coube rejeitar essa realidade e substitui-la por outra que não o ameaçasse: de Terceiro Excluído - experiência que remete à castração e à diferença entre gerações (paternidade), as quais atualizam a fantasia ordálica - passa a ser o Escolhido por Deus como instrumento de transmissão da mensagem divina para os santos. Esse delírio megalomaníaco preenche o espaço que foi esvaziado devido à Foraclusão do Nome-do-Pai vivida por ele. De terceiro excluído, José passa a ser o Escolhido, preservando seu eu da ameaça terrificante da desintegração.
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Endereço para correspondência:
Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa Norte, Brasília, DF
CEP: 70910-900. E-mail: elisacoelho@gmail.com
Artigo recebido em: 03/05/2010
Aprovado para publicação em: 01//09/2010
Originalmente, este trabalho foi apresentado ao curso de Psicologia do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB), como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Psicologia pela primeira autora, sob orientação da segunda.
1 Experiência fenomenológica, por parte do sujeito psicótico. Ver Martins (1995).
2 Verleugnung: modo de defesa apontado por Freud como sendo comum nas psicoses e no fetichismo. Remete à recusa da ausência do pênis na mulher, à castração. A recusa da realidade exterior aparece como ponto de partida das psicoses, em um Freud mais tardio. Segundo Freire (1998), Freud inicia a compreensão das psicoses por meio da tentativa de aplicação dos conceitos de recalque e projeção, utilizados para as neuroses. No entanto, percebe as diferenças dos mecanismos presentes na psicose. Depois dos artigos sobre o caso Schreber (FREUD, 1911), Sobre o narcisismo (FREUD, 1914) e O Inconsciente (FREUD, 1915), Freud traz à luz o mecanismo específico das psicoses: a recusa/o repúdio (Verleugnung) e a rejeição (Verwerfung). Lacan, mais tarde, aponta a Foraclusão (o equivalente de Verwerfung, em Freud) como sendo o mecanismo específico das psicoses. Segundo Laplanche e Pontalis (2008), tal termo liga-se, além de Verwerfung (rejeição) em Freud, aos termos Ablehnem (afastar, declinar), Aufheben (suprimir, abolir) e Verleugnen (renegar, recusar). Segundo Hanns (1996), o verbo e o substantivo Verwerfen e Verwerfung apontam para o sentido de eliminação, liquidação. Na Foraclusão, haveria, portanto, uma abolição simbólica da castração, isto é, uma rejeição do significante do Nome-do-Pai para fora do simbólico, não sendo integrado no inconsciente do sujeito.