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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.10 no.19 Barbacena dez. 2012
Esquizofrenia: cuidando de possibilidades
Schizophrenia: minding possibilities
Rosa Eliza Zago NavesI; João Luiz Leitão ParavidiniII
IPsicóloga. Mestre em Psicologia da Intersubjetividade pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
IIProfessor Doutor do curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFU
RESUMO
Este trabalho visou discutir os cuidados dispensados a pacientes esquizofrênicos, considerando os efeitos que esses sofrem no que concerne à linguagem. Foram feitas as articulações entre teoria e clínica psicanalítica por meio da estratégia metodológica da construção de casos clínicos, pensada como uma modalidade de cuidado oferecido em um serviço público de saúde mental. O fio condutor desta pesquisa se baseou na exposição de três casos clínicos que sustentam a discussão teórico-clínica da relação entre escuta psicanalítica e transferência. Tais elementos são investigados a partir da teoria da representação em Freud, articulados às contribuições da clínica psicanalítica contemporânea e vinculados com a política de saúde mental da cidade de Uberlândia (MG).
Palavras-chave: Esquizofrenia; escuta psicanalítica; transferência; saúde mental; caso clínico.
ABSTRACT
The aim of this paper was to discuss the care provided to patients of schizophrenia, whereas taking into account the effects such people suffer in regards to language. The articulation between theory and Psychoanalytical Clinic was made through methodological strategy of construction of clinical cases, which is thought of as a mode of care offered in a public mental health service. The leitmotiv of this research is based on the exhibition of three clinical cases that will sustain the theoretical discussion of the relationship between Psychoanalytical Clinic listens and transfer. Such elements are investigated from the point of view of Freud's representation theory articulated with the contributions of contemporary Psychoanalytical Clinic also intertwined with the mental health policy of the city of Uberlandia (MG).
Keywords: Schizophrenia; psychoanalytic listening; transfer; mental health; clinical case.
1 INTRODUÇÃO
Freud, ao escrever seus casos clínicos, mantinha a repetição diferencial da série dos mesmos e, desse modo, também criava seu método nada cartesiano. Assim, acompanhava a singularidade dos casos que se apresentavam em sua prática, demonstrando que teoria e clínica se alimentam mutuamente.
É dentro dessa razão freudiana que este texto se sustenta1, buscando, no trabalho com pacientes esquizofrênicos, considerar as peculiaridades da linguagem e ainda responder a uma demanda institucional de resgate da cidadania.
Nesse sentido, procurando privilegiar a clínica e as questões teóricas que surgem embasadas nela é que foi escolhido o método de estudo de caso, que permite uma narrativa em que a transferência é presente, pois se considera que essa narrativa nasce tanto da vivência do pesquisado como também da vivência do pesquisador e essas serão ampliadas ou não segundo as lentes deste último. Dizendo de outro modo, nasce no encontro entre paciente e terapeuta por se tratar de clínica e não apenas de pesquisa. Também por se tratar da clínica, tem efeito nas escolhas metodológicas de uma pesquisa acadêmica.
Buscar circunscrever elementos teórico-clínicos que envolvem a relação da esquizofrenia com a linguagem possibilitou melhor apreender o processo de não representação envolvido nos casos estudados na pesquisa. Sobre a relação entre linguagem e esquizofrenia, o interesse voltou-se para o funcionamento da linguagem na esquizofrenia em suas especificidades, considerando o modo como o esquizofrênico se relaciona com a linguagem tendo em vista a percepção de representação desenvolvida por Freud ao longo de sua obra e a clínica associada a essa noção.
Caminhando com Freud, enquanto articulador teórico sobre a esquizofrenia, é importante ressaltar que sua obra não aborda de modo linear, ou em um único texto, esse tema. No entanto, percebe-se que existe a construção de uma proposta coerente sobre o funcionamento esquizofrênico e algumas orientações sobre a possibilidades de tratamento para essa formação psicopatológica.
1.1 Representação e não representação em Freud
Ainda que a noção de representação tenha sido utilizada em outros contextos, como na Filosofia, Freud, nos textos O Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895), Carta 52 (FREUD, 1896), A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900) e O inconsciente (FREUD, 1915a) atribui-lhe um significado muito próprio. Hans (1996, p. 399) indica que se trata "[...] de um suporte que representa a pulsão na esfera do inconsciente". Essa se faz presente no conjunto das ações humanas e se inscreve como tal. Desse modo, o homem passa a conhecer o mundo e a si mesmo por meio de suas experiências de representar.
Pode-se pensar, diante disso, que o homem se insere no mundo pela via da representação, sendo possível cogitar que a representação exerce sua função como uma ferramenta usada pelo homem para produzir conhecimento, como uma forma de se fazer conhecer. Por isso, pode-se entender que, ao se representar, supõe-se um pensamento que permita uma linguagem que sustente o se fazer conhecer. Diante disso, é necessário tecer uma breve consideração da edificação freudiana desse conceito.
Freud (1891) começa a construir o conceito de representação no texto As Afasias em que demonstra os fundamentos de sua teoria sobre o aparelho de linguagem, apresentando os conceitos fundamentais para a articulação de "representação de palavra" e "representação de objeto".
Durante o processo de construção da noção de representação, opera-se uma mudança na qual a representação de objeto reaparecerá no texto meta-psicológico O inconsciente, nomeada por "representação de coisa", conforme Freud (1915a, p. 206) mostra, de modo específico: "[...] a representação consciente abrange a apresentação de coisa mais a apresentação de palavra que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa apenas".
Nas esquizofrenias há um fenômeno psíquico em que a representação de coisa do objeto será recusada enquanto a representação de palavra será super investida. A palavra passa a ter a primazia e vai ocupar o lugar de coisa, dificultando a articulação entre concreto e abstrato. Ou seja, as palavras são tomadas como se fossem coisas na propriedade em que são ditas; a concretude da fala explicita um enunciado sem a articulação dos representantes psíquicos com o funcionamento inconsciente (representantes de coisas). É essa a visão que, naquele momento dos estudos freudianos, fundamentava a questão da representação nas esquizofrenias.
1.2 Palavras e coisas: uma porta se abre?
Em continuidade à sua teorização sobre a noção de representação, Freud (1915a, p. 207) aborda a esquizofrenia de modo a facilitar a compreensão do inconsciente, o que, em suas palavras, se justifica "[...] na medida em que parece indispensável a uma compreensão geral do Ics". Assim, palavra e coisa também se tornarão fundamentais à constituição do inconsciente, ficando claro que, na esquizofrenia, há uma regressão a um modo de funcionamento inconsciente de representar.
Entretanto, uma porta parece se abrir quando Freud (1917, p. 208) postula esse processo como sendo congruente à "[...] primeira das tentativas de recuperação ou cura que tão manifestamente dominam o quadro clínico da esquizofrenia". Desse modo, o esquizofrênico busca, por meio das palavras, encontrar o objeto perdido e será também por meio das palavras que ele tentará reconstruir seu mundo. Isso posto, pode-se afirmar que se está diante de uma clínica cuja dimensão é o fenômeno psicótico inscrito em um campo fora da dicotomia normal versus patológico, ou razão versus desrazão. Trata-se de uma dimensão clínica que valoriza o discurso psicótico e também suas produções, na medida em que é esse delírio que irá veicular um desejo.
Rinaldi (2000a, p. 2) fala de uma clínica que "[...] permite reconhecer a singularidade de cada sujeito no enfrentamento de um conflito que nos acomete a todos, ainda que com destinos diferentes [...]" e, por isso, a escuta do inconsciente passa a ser um instrumento fundamental para a realização de um trabalho terapêutico também nas esquizofrenias.
Esse universo clínico sugere que, sendo a fala do esquizofrênico afetada pelo não representado, caberá ao profissional em posição de escuta analítica se colocar enquanto suporte para que o acesso à inscrição simbólica possa advir.
1.3 Vários caminhos levam à clínica
Os desenvolvimentos de Freud a respeito da problemática da representação nas esquizofrenias sem dúvida são importantíssimos para o entendimento da clínica dessa formação patológica. Entretanto, não foi o único caminho que ele percorreu em busca da compreensão da loucura. Em seu artigo Neurose e psicose, Freud (1923-1924, p. 170) assegura que nas psicoses há "[...] um conflito entre o eu e o mundo externo [...]", há um desligamento do eu em relação ao mundo externo e a criação de um mundo fantástico.
Dando continuidade às argumentações baseadas em Freud e utilizadas no estudo dos casos, destaca-se outra maneira com a qual ele apresenta a psicose:
[...] não há apenas método2 na loucura, como o poeta percebera, mas também um fragmento de verdade histórica, sendo possível supor que a crença compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de fontes infantis desse tipo. (FREUD, 1937, p. 285).
A partir dessa afirmação, Freud então propõe ao analista que use um fragmento da história do sujeito com o objetivo de reconstruí-la. Ele assegura que se trata apenas de uma conjectura do analista que pode ou não terminar com a lembrança do paciente.
Reminiscências comporiam o delírio? A visão de Freud (1937) parece ser mesmo essa. Por isso, ele enfatiza que os delirantes poderiam se beneficiar dessa técnica de construção tanto quanto os neuróticos, uma vez que esse trabalho tomaria em consideração o fragmento de história do sujeito, com todas as deformações e ligações com o dia presente, para reconduzi-lo de volta ao passado a que pertence. Na clínica atual, chama-se a isso de historicização, que pode ser considerada como uma tentativa própria do paciente de sair do estado de fragmentação a partir da tentativa de produzir efeitos de sentido. De acordo Macedo, Werlang e Dockhorn (2008, p. 79), "[...] historicizar é montar um tecido de representações das imagens, marcas e emoções dispersas e recuperar o atípico e o singular, o que ficou expulso, o que só tem vez no sintoma".
Tem-se, então, uma clínica que se propõe a trabalhar a historicização a partir do sintoma do sujeito e que é uma tendência no trabalho com psicóticos nessa clínica atual, como se tem visto com outros autores contemporâneos que dão relevância ao trabalho de historicizar na clínica psicanalítica - autores esses como Antônio Quinet e Kiryllos Neto.
Parece que trabalhar num campo em que a não representação se faz presente exige maior atividade do analista, pois implica em pensar sobre seu fracasso possível ou limitações no espaço de escuta. O paciente está colocado na impossibilidade de ter acesso a outras ordens discursivas, uma vez que não pode tomar uma posição diferente na fala e na linguagem, já que seu dizer desconhece a língua em dimensão caleidoscópica. Não há transitividade entre as representações. Assim, defronta-se com uma questão que nenhuma clínica psicanalítica de psicóticos digna poderia ignorar: um esforço por fazer as representações transitarem. Portanto, colocar-se em posição de que se faz necessário querer atender ao querer falar do psicótico, do louco, do esquizofrênico.
Macedo, Werlang e Dockhorn (2008, p. 80) sugerem que o ato de escutar na clínica psicanalítica atual, com suas demandas singulares, obriga-nos a ir além das questões interpretativas. Desse modo, essas autoras entendem que, na clínica contemporânea, "[...] fazer trabalhar a teoria freudiana implica esse trabalho de mútua alimentação entre o corpo teórico e os recursos da técnica".
Essa posição está justificada, sob o ponto de vista operatório, sobre dois pilares: a atenção flutuante e a transferência, defendidos por Rinaldi (2000a), mesmo que sua possibilidade seja fragilizada na psicose. Esse pensamento está em consonância com o de Meyer (2006), a qual entende que a possibilidade de transferência nas psicoses, na clínica atual, se dá por meio de uma articulação entre transferência e desejo do analista.
Tem-se, então, a viabilidade da clínica das psicoses por meio de uma aposta que estaria ligada a uma condição do lado do analista. Com base nessas colocações, é possível ponderar que, apesar da relação particular que o esquizofrênico estabelece com a linguagem - o que tem por consequência um esvaziamento simbólico que quase sempre é objeto da lógica de exclusão presente na sociedade capitalista -, as funções que se operam por meio da escuta psicanalítica passam a ter efeito na clínica atual. Tem-se, portanto, uma prática clínica mais refinada, em que a escuta, nesse caso, passa a ter as funções de atenção flutuante e transferência também na esquizofrenia e em que esta última poderá ser viabilizada mediante o acolhimento por um destinatário. Então, passa a se efetivar um processo de transferência que não se dá como no campo transferencial das neuroses. Trata-se de um campo que funciona como um espaço de metabolização para acolher as possibilidades de se fazer representar.
Com base nessas breves reflexões a respeito das implicações clínicas e sociais com os modos de representar que podem tomar a forma de não representação na esquizofrenia, pretende-se, de agora em diante neste texto, apresentar a prática por meio da exposição da busca por possibilidades nessa clínica através de três casos clínicos.
2 MARINA, MARTINHO E MARIA: TRÊS CASOS CLÍNICOS
2.1 Caso 1: Marina
Marina é uma mulher de meia idade, magra, cabelos levemente grisalhos, solteira. Quando chegou ao ambulatório, praticamente não falava. Limitava-se a responder às perguntas da analista com um "sim, senhora" ou com um "não, senhora"3. Parecia desconfiada e olhava muito a analista. Em Marina, era clara a evidência de um isolamento causado por anos de internação psiquiátrica, cujo tratamento era exclusivamente medicamentoso e, assim, sua fala nunca era escutada.
Marina disse: "Nasci no gelo, no gelo do Oceano Atlântico". A analista ficou intrigada com essa colocação e foi conversar com a cunhada de Marina. Esta lhe disse que a mãe de Marina morreu durante o parto. A partir disso, a analista pôde entender porque ela disse ter nascido no gelo. Entendeu, por essa fala, a falta de aconchego da mãe, dos braços para pegá-la, das mãos para acariciá-la e do seio para amamentá-la, imaginando o desamparo desse serzinho ainda incipiente.
Essa questão do nascimento não é uma questão qualquer, pois remete à fantasia do nascimento: Como os adultos me fizeram? Eu fui desejada?
Marina emitia um som parecido com uma narração de algum fato em uma rádio fora de sintonia. Lembrava, sim, uma emissão sonora que antecede à própria linguagem. Este "meu barulhozinho" como ela mesma o chamava é uma forma de fazer suas "inuções".
Analista: Inuções?
Marina: É. Uma inução. Por exemplo: eu fiz uma inução que a senhora foi buscar recurso para mim.
Dizia isso fazendo referência à consulta psiquiátrica que a analista acabara de agendar para ela. Essa palavra "inução" tem um valor maior que uma construção neológica. Percebe-se que ela fazia um esforço enorme para mostrar que estava bem: "Estou bem, estou trabalhando, arrumo a casa, lavo o banheiro, tomo meus remédios". Não se lembrava de passagens da infância, apenas dizia que era bem tratada.
Resumindo sua história, embasado no relato de sua cunhada, Marina foi entregue ainda recém-nascida a um casal, porque sua mãe morreu em trabalho de parto. Foi adotada por esse casal como filha biológica. Quando contava com sete anos de idade, sua mãe adotiva também morreu. O pai adotivo casou-se novamente, o que lhe rendeu uma "má-drasta". Por conta dos maus tratos sofridos, Marina saiu de casa, perdeu-se e passou anos no hospital psiquiátrico do Juqueri (São Paulo). Depois de descoberta pela família, veio morar com seu irmão de laço sanguíneo.
Mas ela disse, em outro momento: "Tá tudo certo, não tenho assim uma inução de que alguma coisa vai acontecer comigo".
Entende-se "inução" como expectativa ou esperança e que, de qualquer forma, parece dizer que não consegue vislumbrar o futuro. Outra hora, conversando sobre levar a vida com bom humor ela diz assim:
Marina: Humor é um aprazível que a gente tem na gente que faz a gente ter um pensamento bom e ficar assim nos causos de humorismo, isso é humor. Fica aprazível, feliz.
Analista: Deixe sair o que você está pensando.
Marina: Eu não tenho muita facilidade de ficar assim humorística assim não. Mas, na passagem do ano, a gente fica assim humorista. Sabe, aquelas festas, aquelas coisas todas, a gente fica humorista.
Nesse momento, Marina colocou em evidência que não queria falar mais, a despeito da insistência da analista. Era muito difícil ouvir dela mais que algumas poucas frases, como se ela se bastasse e o tudo mais não lhe interessasse tanto.
A analista refere não saber até onde suas insistências em fazer Marina falar as levaram. Porém, a cada encontro ela se propunha a ouvi-la. Quem trabalha com psicóticos sabe o quanto é difícil a fala desses indivíduos endereçada àquele que escuta.
À medida que se sentiu ouvida pela analista e pelo grupo, Marina começou a dar sinais de começar a fazer alguma aliança com esse grupo. Ela disse: "É tão bom frequentar esse grupo, o grupo vai me aguentando. Aqui eu gosto de todos, são bons, todos gostam de mim e eu gosto deles também".
Essa fala de Marina, mais que ensaiar uma aliança com o grupo, disse da sua posição enquanto um. Com isso, se quer enfatizar que cada vivência é única, cada caso é um, dentro de um trabalho desenvolvido em um grupo. Por isso, foram aceitas as formas de expressão tal qual elas foram criadas e, a partir disso, o grupo ouviu novamente a história de Marina: "Nasci no gelo, no gelo do Brasil (ou será brasil?), isto é, brasa gelada, verdadeiramente no gelo, quer dizer então, que a gente não sabe conversar." E quando questionada: "Como assim?", a resposta vem categórica: "O que eu falei tem lógica: eu nasci no gelo".
Em vão, tentou-se usar uma fala que pudesse buscar um pouco de sentido como "sua mãe morreu no seu parto", porque naquele momento ela só conseguia ouvir seu delírio e a certeza que emanava dele: "Morreu, mas eu deixei essa mãe que morreu no meu parto, deixei...". Na sequência, perguntou se isso fazia com que ela se sentisse no gelo. Ao que ela prontamente respondeu que não. "Fez sentir minha mãe, Genri Noruega, não é mais Clotilde (nome da mãe adotiva). A Noruega é tensa, aguenta a solidão de um dia... é uma história fina".
Essas falas, muito impactantes, como a mãe morta deixada como um objeto tornado abjeto pela raiva sofrida por Marina ter sido abandonada por ela, fizeram a analista pensar que a paciente buscava esse objeto materno na mãe adotiva, mas também não conseguiu alcançá-lo. Essa forma confusa que ela se apresenta em relação às mães parece colocar em xeque a posição freudiana em que a mãe é "certíssima" (Freud, 1909, p. 220). Não há encontro com o objeto materno, nem com a mãe morta e nem com a adotiva. Menos ainda com a "má-drasta".
Diante da fala de Marina, percebeu-se que não se tratava de dar sentido, mas de por os significantes em trabalho. Isso fez a analista pensar que ela lança mão desses significantes por não possuir os enunciados necessários para construir seu próprio relato histórico. Assim, recorre a países (origens) e mães como pontos de referência, não porque ela tenha perdido sua bússola, mas por que ela jamais a possuiu.
Ainda que Marina não tenha conseguido sair do domínio trágico da representação de coisa e que suas lembranças padecessem de um enfraquecimento, foi possível situar que ela deu alguns passos quando tentava buscar sua origem. Até agora, no momento de escrita deste texto, esse tem sido o seu caminho. Talvez existam outros que possam abrir novas possibilidades.
2.2 Caso 2: Martinho
Martinho é um rapaz de 28 anos, solteiro, que tem sido atendido no serviço de saúde mental há aproximadamente um ano. Quando procurou o serviço, apresentava alguns fenômenos elementares4 bem evidentes.
Antes de sua primeira crise trabalhava como concursado no serviço público. Durante seu primeiro episódio de esquizofrenia, cultivava plantas mortas em pequenos vasos em seu quarto com a crença de que elas iriam renascer. Diante da impossibilidade de continuar a trabalhar, foi afastado do serviço e, desde então, tem tido uma relação quase que exclusiva com a mãe.
Avaliada a necessidade de atendimento diário, a analista o encaminhou ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), onde foi atendido por alguns meses. Desde que foi reencaminhado ao serviço ambulatorial, se fazem presente em sua fala no grupo assuntos relacionados à família e demonstra um discurso excessivamente otimista, parecendo rejeitar o que não é perfeito no âmbito familiar.
Ao perceber sua necessidade de falar, a analista colocou-se numa postura de atenção àquilo que era trazido por ele, indicando estar à escuta do que dizia. Ele, frente a isso, disse, em determinada ocasião:
Martinho: Eu tô aqui nesse tratamento com a dona Rosa, tá sendo bom. A gente então, pára, senta, reflete, a gente fica mais tolerante. Meu pai cortou uma perna, né? (inaudível) Então, eu tô me sentindo mais bonito. Lá em casa tá tudo bem, né?
Nesse momento, percebeu-se que algo muito precioso delineava-se em sua fala. Ao fazer referência à pessoa da analista, esta pensou na possibilidade dele estar aceitando sua presença e começando um processo de endereçamento de sua fala para ela, uma vez que lhe ofereceu escuta no intuito de encontrar uma via de acesso ou contato com ele.
Martinho: Meu pai apesar de não ter uma perna, ele tem uma cara de normal, tem cadeira de roda, tem minha mãe também, sempre foi trabalhadora, ela faz doce.
E continua:
Martinho: Às vezes, a gente tá com a vida melhor, né? Feixe Clair que tem tá indo bem, nossa... Sentindo bem com a gente, sentindo bem com os outros.
A analista aproveita para intervir e fazer perguntas:
Analista: O que está indo bem?
Martinho: Lá em casa não tem ninguém doente mais, né? Só meu pai que está de aparelho, mas vamo que vamo. Sempre falar, sempre sorrir. Lá em casa tem seis pessoas na família, minhas irmãs trabalham. Uma trabalha no restaurante, a outra trabalha na padaria. Amigo a gente tem, então tá indo bem, né?
Estava clara a indicação do paciente quanto ao exagero em seu otimismo relacionado à sua família, por exemplo, em "meu pai está de aparelho" no lugar de dizer que o pai está na cadeira de rodas porque perdeu uma perna. Diante dessa constatação, a analista fez nova intervenção dizendo que ele podia se permitir e ficar triste quando julgar necessário. Isso foi dito na tentativa de levá-lo a pensar um pouco em seu discurso otimista. Ao que parece, essa intervenção quase de nada adiantou. Ou seria a crença da analista era de que água mole em palavra-pedra dura...? Mas não foi dessa vez que furou. Em outra sessão, quando perguntou como ele havia passado, ele repete a história de que "está tudo bem" dizendo que tem ajudado a mãe a fazer doce e tem comido bastante:
Martinho: Então quer dizer que está tudo bem. De qualquer maneira eu joguei futebol. Meu time ganhou de um a zero, o placar quase virou, acho bom né? Eu levei uma bolada no nariz, diverti bastante, dei um monte de passe pra fazer gol, valeu viu. Tenho feito bastante esporte em casa, na rua. A coisa tá melhorando.
Com ele "está sempre tudo bem", o que de certa forma dificulta trabalhar suas angústias. Entende-se esse "tudo" como algo da ordem do absoluto, talvez a revelação de seu sentimento de onipotência.
Martinho ainda demonstra enredar-se numa tragédia marcada por passividade e otimismo que tentam disfarçar seu sofrimento uma vez que "[...] o novo e imaginário mundo externo de uma psicose tenta colocar-se no lugar da realidade [...]", segundo Freud (1923-1924, p. 209). Parece ter sido essa a maneira que ele encontrou de cerzir a trama/drama de sua vida que havia sido (inter)rompida.
Também se acredita que Martinho só pôde expressar sua singularidade no grupo porque se sentiu acolhido e sabia que havia alguém para ouvi-lo. De fato, participar do grupo permitiu, e ainda permite, a ele conversar com outras pessoas que não sejam exclusivamente as de sua família. Para ele, o espaço do grupo também tem se mostrado como ampliação de vínculos, quando diz que: "No grupo as pessoas estão se esforçando para melhorar, é bom o momento que cada um fala, a amizade que a gente faz". Além disso, ele tem realizado um trabalho de coleta de material reciclável no bairro em que mora.
Ao se considerar o caso de Martinho dentro do contexto da política nacional de saúde mental, pode-se dizer que estamos produzindo seu caminho na reinserção social. No entanto, para a psicanálise, que inaugura outro conceito com o sujeito do inconsciente, ele é responsável por suas escolhas. Nesse sentido, só se dá conta da emergência desse sujeito do inconsciente na clínica se houver um profissional disposto para acolher o delírio e ser o destinatário do discurso na psicose.
2.3 Caso 3: Maria
Maria traz claramente as características de vestimentas e cabelos ao modo evangélico, muito semelhante aos de sua mãe. Usa tailleur e scarpin, o que a deixa com uma aparência de muito mais velha que seus 32 anos.
É notável como a mãe se adianta a seus desejos e exerce, de certo modo, a função de porta-voz. Embora também seja extremamente zelosa, ela contribui para uma relação de fusão entre mãe e filha.
Maria enfrenta uma luta desesperadora para encontrar suas próprias palavras, como no dia em que procurou a analista ao final da sessão de grupo, quando todos já haviam saído e lhe disse:
Maria: Eu, no ponto de vista, tô comendo uma, comendo duas, comendo mais de uma força. Uma força tá dentro dela de poder dirigir, ter um veículo, eu achei importante. Apesar dos pesares, ela não tem culpa da diferença entre ela e o irmão dela. Então, assim, a gente aonde uma vai a outra está atrás. A gente pensa em conjunto e a gente faz em conjunto. Mesmo assim, a gente defendendo a ceia, a gente tem que habilitar a não comer demais.
Apesar de seu modo floreado e rebuscado de falar, Maria ia dizendo, sessão após sessão, das coisas que sente e como as sente e a analista também, a cada sessão, se propunha a ouvi-la. Em outro dia, a analista perguntou-lhe se ela estava indo à fazenda da família ultimamente e ela respondeu, de forma muito curiosa: "Tenho. Lá estão discutindo salsinha, cebolinha, coentro. Lá eu mexo com jardim, eu cuido do glossário, deu muita bromélia". Nessa fala, se teve a certeza de estar ouvindo as tais palavras-coisas proferidas por Freud (1915a) e coisas-palavras, em que a extensão de uma e outra é convulsionante.
A seu modo, diz da angústia que sente diante da percepção de si:
Maria: Eu quero pedir sua ajuda nas ciências. Eu estudei matemática, eu sei matemática. Mas a ajuda que eu quero pedir é nas outras ciências. Eu não sei português. Eu não sei. Eu falo as pessoas não entendem. Eu não queria ser assim tão fora de mim. Será que tem jeito de você fazer alguma coisa que eles queriam que eu fizesse?
Percebe-se que as alterações da linguagem em Maria são gritantes, mas ela tem conseguido falar de suas alegrias e de suas dores. Se existe algo que tem tido alguma mudança nesse acompanhamento de Maria é sua forma de se apresentar. O que faz pensar, mesmo minimamente, que ela tem conseguido expressar seus sentimentos. Nesse ponto, se pensa na relação transferencial, pois se Maria pôde falar ao longo desse tempo e a analista pôde ser sua ouvinte foi porque se criou um laço no qual a confiança foi estabelecida. Outra questão que se considera importante é que, em termos de política de reinserção social, Maria tem feito ensaios para voltar a cantar no coral de sua igreja.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto e o que foi apresentado e discutido permitem sustentar que o que dá movimento a essa forma de trabalho com a linguagem e a escuta de pacientes esquizofrênicos é a articulação entre teoria e clínica psicanalítica, por meio da estratégia metodológica da construção de casos clínicos. Salienta-se, nesse momento, que por meio do caso clínico, foi possível aproximar-se do legado de Freud cujo método é parte constitutiva de sua metapsicologia. Com a disposição metódica de caso, teve-se a oportunidade de jogar luz teórica na clínica e ainda avaliar o quanto a psicanálise pode contribuir com práticas aplicadas ao campo da saúde mental, sobretudo no que se refere aos cuidados com esses pacientes esquizofrênicos.
Nesse caminho, foram apresentadas reflexões em torno da escuta psicanalítica. Essa foi a via de acesso tanto para os estudos de casos quanto para a prática clínica. A escuta cuidadosa, sustentada pelo discurso psicanalítico, constitui-se enquanto atenção flutuante e suporte para a transferência. Com a finalidade de viabilizar esta última, foi importante colocar-se no lugar de analista/parceiro nas construções daquele que dava seu testemunho: o sujeito esquizofrênico.
A construção dos casos clínicos fez entrever que o caso, por possuir um traço metódico, possibilita uma articulação viva entre teoria e clínica, na qual ambas se alimentam reciprocamente promovendo o afastamento das generalizações teóricas. Os casos, neste trabalho, estiveram para além da narrativa dos sintomas e possibilitaram questionamentos acerca da clínica com pacientes esquizofrênicos, sobretudo no que diz respeito à transferência. Com base nesses questionamentos, pode-se considerar como um achado a possibilidade da transferência na clínica das esquizofrenias, que tem como efeito a construção de um novo saber.
A busca pela teoria freudiana da representação auxiliou no entendimento do processo da irrepresentabilidade nas esquizofrenias. Diante disso, pôde-se observar que há um modo inconsciente de representar que é comprovado pela clínica pelo modo direto e sem postergação que esses pacientes falam. Entretanto, esse modo de representar foi tido por Freud (1917) como uma tentativa de cura.
Seguindo essa lógica, ficou evidente, com este estudo, que a clínica com esquizofrênicos exige um espaço para que estes possam se expressar de modo a tornar possível a abertura de caminhos para a representação. Com isso, aumenta a possibilidade de encontrar formas de lidar com o estado de fragmentação próprio da esquizofrenia. Desse modo, reafirma-se que pensar o conceito de representação na clínica contemporânea da esquizofrenia significa estender o espaço da escuta psicanalítica com o objetivo de alcançar o não representado. Assim, ressalta-se a importância de se abrir caminhos para que forças pulsionais possam se inscrever no universo simbólico por meio da parceria analista-paciente.
Considerando o modo singular de estabelecimento da transferência na esquizofrenia, se fez presente neste estudo a necessidade de se trabalhar com manobras que visassem à destituição do analista de ocupar o lugar de ser o único portador do saber e, ao mesmo tempo, oferecer a sustentação da consistência da alteridade. Como já foi dito, essas manobras se referem ao lugar em que o analista ocupou na transferência durante esse trabalho: o de suportar o lugar de não saber e testemunhar a fala do psicótico, oferecendo-se como parceiro na escuta de suas construções delirantes.
Diante do exposto, considere-se que, com este estudo, pode-se produzir uma reflexão acerca da construção de práticas clínicas, por meio do "Um" do caso conduzido pela transferência. Além disso, no que diz respeito à sua interface com a saúde mental, prevaleceu a crença na possibilidade de se manter uma clínica voltada para a escuta psicanalítica dentro de um programa que valorize a política de inserção social. Assim sendo, vigorou a articulação entre clínica e política, pois se buscou ultrapassar a dissociação entre estas.
Por fim, acredita-se que este trabalho possa ter como efeito a criação subsídios para se pensar a clínica das esquizofrenias, tendo como base as discussões teóricas e metodológicas colocadas. Desse modo, espera-se que essas discussões possam ser levantadas para além dos muros da Universidade. No mais, esse caminho nos trouxe até um ponto em que a crença aponta para a possibilidade dessa clínica que tem como marca a escuta cuidadosa da palavra do sujeito esquizofrênico.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondênciaI:
Rua Alexandre Marquez, 477, Martins - Uberlândia, MG
CEP: 38400-446. E-mail:rosa-eliza@bol.com.br
Endereço para correspondênciaII:
Avenida Uirapuru, 934, Cidade Jardim - Uberlândia, MG
CEP: 38412-166. E-mail: jlparavidini@gmail.com
Artigo recebido em: 04/12/2012
Aprovado para publicação em: 01/07/2013
1 Este texto é um recorte da dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia em 2012, também intitulada Esquizofrenia: cuidando de possibilidades.
2 Alusão à fala de Polônio em Hamlet, conforme nota do editor, no texto citado.
3 As citações entre aspas no corpo do texto se referem às falas dos pacientes e analista gravadas em grupo terapêutico realizado semanalmente na unidade de saúde, no grupo nomeado de "Solta a língua".
4 Segundo a psicopatologia se trata dos transtornos da associação, da afetividade, autismo e ambivalência comuns
à esquizofrenia.