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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.10 no.19 Barbacena dez. 2012
Perfil epidemiológico dos pacientes atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial
Epidemiological profile of patients treated in a Center for Psychosocial Care
Alice Ananias dos Santos MangualdeI; Camila Chamon BotelhoII; Marcelo Ribeiro SoaresIII; Jucymara Ferreira CostaIV; Ana Carolina Magalhães JunqueiraV; Carlos Eduardo Leal VidalVI
IAcadêmica de Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena (FAME)
IIAcadêmica de Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena (FAME)
IIIAcadêmico de Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena (FAME)
IVPsicóloga do Centro de Atenção Psico-social de Barbacena
VPsicóloga do Centro de Atenção Psico-social de Barbacena
VIPsiquiatra. Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Barbacena (FAME)
RESUMO
Estudo transversal com o objetivo de delinear o perfil dos pacientes atendidos no Centro de Atenção Psicossocial de Barbacena. Foram avaliados 583 prontuários de um total de 4.000 usuários atendidos no período de 2003 a 2008. A idade média dos participantes foi de 38,7±3,6 anos; a maioria dos pacientes era do sexo masculino (56,6%), casados ou em união estável (48,8%), com baixa escolaridade (60%), com passado de tratamento psiquiátrico (64,7%); 28,8% eram portadores de quadros psicóticos, 22% de transtornos afetivos e 20% de transtornos decorrentes do uso de substâncias. Mais da metade dos pacientes não estava em crise quando procurou o atendimento indicando a necessidade de maior investimento e capacitação nos níveis primário e secundário de atenção à saúde.
Palavras-chave: Centro de atenção psicossocial; transtornos mentais; psiquiatria; epidemiologia.
ABSTRACT
Cross-sectional study aimed to delineate the profile of patients treated at the Center for Psychosocial Care of Barbacena. There were assessed 583 medical records of a total of four thousand users attended from 2003 to 2008. The average age of participants was 38.7±3.6 years and the majority of patients were male (56.6%), married or in stable (48.8%), low education (60%) and with past psychiatric treatment (64.7%); 28.8% suffered from a psychotic condition, 22% of affective disorders and 20% of problems caused by substance use. More than half of the patients was not in crisis when he sought care indicates a need for increased investment and capacity at primary and secondary health care.
Keywords: Mental health services; mental disorders; psychiatry; epidemiology.
1 INTRODUÇÃO
A atual política nacional de saúde mental consiste na redução progressiva dos leitos psiquiátricos e na ampliação e fortalecimento da rede extra-hospitalar, constituída principalmente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Contempla ainda a inclusão das ações de saúde mental na atenção básica (BRASIL, 2004; VIDAL; BANDEIRA; GONTIJO, 2008).
O CAPS é um tipo de serviço de saúde comunitário que oferece atendimento diário a pacientes portadores de transtornos mentais severos e persistentes, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo, de acordo com a gravidade do quadro clínico. Define-se como atendimento intensivo aquele destinado aos pacientes que necessitam de acompanhamento diário; semi-intensivo é o tratamento destinado aos pacientes que necessitam de acompanhamento frequente, mas não precisam estar diariamente no CAPS; nãointensivo é a modalidade de assistência na qual o paciente, em função da menor gravidade do quadro psíquico, pode ter uma frequência menor de atendimento (BRASIL, 2004).
Ainda compete ao CAPS regular a entrada dos pacientes na rede de assistência psiquiátrica em sua área de atuação e dar suporte ao atendimento à saúde mental na atenção básica. De acordo com parâmetros populacionais, capacidade de atendimento e o perfil da clientela assistida, os CAPS são divididos em CAPS I (municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes), CAPS II (em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes), CAPS III (municípios com população acima de 200.000 habitantes, atendendo 24 horas/dia, inclusive feriados e finais de semana, com leitos para internações breves), CAPSi II (referência para o atendimento a crianças e adolescentes em uma população de cerca de 200.000 habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local) e CAPSad II (referência para o atendimento de usuários com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas em municípios com população superior a 70.000 habitantes) (BRASIL,2004).
Os CAPS foram criados para serem um dos pilares da reforma psiquiátrica e funcionar como intermediário entre o atendimento ambulatorial e a internação após a alta de pacientes de hospitais psiquiátricos. Com uma lógica inversa à hospitalização, os CAPS têm conseguido avanços na reinserção social dos doentes, mas enfrentam dificuldades estruturais e ainda não têm cobertura suficiente em todos os estados. Considerando todas as modalidades de atendimento, existem atualmente 1.541 CAPS em todo o país, mas sua distribuição territorial é desigual e não atinge o parâmetro de uma unidade para cada 100 mil habitantes (BRASIL, 2010). Exceção é feita ao município de Pelotas, no Rio Grande do Sul, com cobertura de uma unidade para cada 50 mil habitantes (TOMASI et al., 2010).
A implantação desses novos dispositivos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) aponta para a necessidade da avaliação desses serviços e dos resultados obtidos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) incentiva a prática da avaliação contínua dos serviços de saúde mental com o objetivo de promover sua qualidade, examinar a eficácia e a efetividade dos mesmos, e obter informações para o desenvolvimento de outros programas no futuro (BANDEIRA; GELINAS; LESAGE, 1998; OMS, 2001; LIMA; BANDEIRA; GONÇALVES, 2003; VIDAL; GONTIJO; BANDEIRA, 2007).
Essas avaliações devem contemplar aspectos estruturais e assistenciais (VIDAL; GONTIJO; BANDEIRA, 2007) e incluir tanto a perspectiva dos profissionais quanto a dos usuários dos serviços e a de seus familiares.
No que se refere aos usuários, importa caracterizar e analisar o seu perfil social, demográfico e nosológico. Neste sentido, alguns estudos já foram realizados em regiões brasileiras buscando a caracterização de pacientes usuários de CAPS (TOMASI et al., 2010; NASCIMENTO; GALVANESE, 2009; PELISOLI; MOREIRA, 2005; MONTANARI, 2005; ANDREOLI et al., 2004; FARIA; SCHNEIDER, 2009).Outros trabalhos privilegiaram a abordagem qualitativa ou abordaram o serviço de acordo com a perspectiva dos profissionais, dos usuários e da família (OLSCHOWSKY et al., 2009; CAVALCANTI et al., 2009; NUNES et al., 2008; CAMATTA; SCHNEIDER, 2009) Estes dados são essenciais para a determinação de prioridades no âmbito da saúde mental, bem como para projetar e avaliar intervenções em saúde pública.
Como já mencionado, a partir do processo de desinstitucionalização, os CAPS têm sido a principal porta de entrada para as pessoas que buscam o atendimento em saúde mental, seja em regime ambulatorial ou hospitalar. Tal mudança ocorreu também em Barbacena, cidade do interior de Minas Gerais, tradicionalmente conhecida como "cidade dos loucos" devido ao grande número de leitos hospitalares existentes em passado não muito distante. Desde sua criação em 2002, o CAPS municipal funciona como regulador da rede assistencial em saúde mental e reduziu o número de internações em hospitais psiquiátricos. Até o momento, porém, não foram realizados estudos para descrever o perfil epidemiológico dos pacientes atendidos no CAPS de Barbacena, que foi o objetivo do presente trabalho.
2 MÉTODO
Trata-se de estudo transversal com o objetivo de delinear o perfil dos pacientes atendidos no CAPS por meio das informações obtidas dos seus respectivos prontuários. O estudo foi realizado em Barbacena, município localizado no Estado de Minas Gerais, com população aproximada de 130 mil habitantes.
Foram avaliados 583 prontuários de um total de 620 selecionados de forma sistemática. A amostra foi calculada tendo por base uma população de aproximadamente 4.000 usuários atendidos no serviço desde a sua inauguração até o ano de 2008, considerando-se um erro amostral de 4% e um nível de significância de 5%.
Os dados foram extraídos diretamente dos prontuários médicos sendo coletadas informações sobre as seguintes variáveis relacionadas ao primeiro atendimento no serviço: idade, sexo, tempo de tratamento, diagnóstico psiquiátrico (CID 10), tipo de encaminhamento, procedência, ocupação, histórico de internações anteriores, medicação utilizada, destino do paciente após atendimento, e tipo de instituição ou segmento da rede de saúde que encaminhou o paciente ao CAPS. Os dados foram armazenados e processados por meio do software Epi-Info 6.4., e apresentados na forma de tabelas. Teste do χ2 foi realizado para verificar associação entre variáveis categóricas. Diferenças foram consideradas significativas com p<0,05. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presidente Antônio Carlos.
3 RESULTADOS
Dos 583 prontuários avaliados, 56,6% pertenciam a pacientes do sexo masculino. A idade média dos participantes foi de 38,7±3,6 anos; 474 pacientes (81,3%) tinham idade entre 18 e 50 anos.
Quanto ao estado civil apenas 60% dos prontuários (n=350) continham esta informação, sendo a maioria (48,8%) composta por pacientes casados ou em união estável. Também com relação às variáveis escolaridade e ocupação a maioria dos prontuários estava incompleta. Considerando-se os dados disponíveis, 22,6% dos pacientes eram analfabetos ou não tinham concluído o primeiro grau. Entre 235 prontuários analisados, 29,4% eram de pacientes assalariados e 44,2% de desempregados, aposentados ou beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Tanto para escolaridade, quanto para ocupação, não houve diferenças significativas entre os sexos (p=0,47). Em relação à procedência, 481 pacientes eram provenientes da zona urbana. Os dados referentes às características sociodemográficas dos pacientes são apresentados na Tabela 1.
Em relação ao histórico psiquiátrico, 18,3% foram atendidos pela primeira vez em serviços de saúde mental e 64,7% tinham passado de alguma modalidade de tratamento psiquiátrico ou de pelo menos uma internação hospitalar. Para 17% essa informação não estava disponível. Quanto ao perfil diagnóstico os pacientes foram agrupados de acordo com as seguintes categorias da CID 10: transtornos por uso de substância (F10 a F19); transtornos psicóticos (F20 a 29); transtornos do humor, ansiedade e transtornos neuróticos (F30 a F49); retardo mental (F70-F72); os demais foram agrupados na categoria "Outros", que incluiu aqueles sem informação (3,9%) e os com mais de um diagnóstico (6,7%). Encontrou-se diferença significativa (p<0,01) entre os sexos com relação aos diagnósticos de transtornos de humor (mais frequente nas mulheres) e transtornos psicóticos e uso substâncias (mais elevado nos homens). Em relação aos motivos do atendimento, a maioria (75%) apresentou mais de um sintoma, sendo mais comuns os quadros de depressão e ansiedade, uso de álcool ou drogas, presença de delírios e/ou alucinações, e quadros de agitação psicomotora. Tentativas de suicídio foram responsáveis por apenas 1% dos atendimentos. Quase 60% dos usuários faziam uso de mais de um medicamento, não se observando diferenças significativas entre gênero e uso de medicação (p=0,09). Os dados relativos à morbidade psiquiátrica são apresentados na Tabela 2.
Em relação às modalidades de atendimento, 51% dos pacientes realizaram o tratamento no próprio CAPS em algum dos regimes oferecidos, em ordem crescente de frequência: intensivo (integral, 24 horas), semi-intensivo (diurno, manhã ou tarde) ou nãointensivo (uma a três vezes por semana). Os serviços de saúde foram responsáveis por 40,1% dos encaminhamentos e o restante dos atendimentos originou-se por demanda espontânea, do próprio paciente ou de seus familiares, que acompanharam os usuários em 81% dos atendimentos.
4 DISCUSSÃO
O CAPS municipal realiza todos os tipos de atendimento, desde a dispensação de medicamentos até a indicação de internação psiquiátrica. Nos primeiros anos de sua implantação houve uma redução substancial do número de internações (mais de 50%). Contudo, esse fenômeno não foi observado nos anos posteriores, tendo oscilado de 166 hospitalizações em 2002 para 397 em 2007(dados não publicados).
A maioria dos usuários que ingressou no CAPS era do sexo masculino, ao contrário do observado em outros serviços, onde predominou o atendimento a mulheres (TOMASI et al., 2010; NASCIMENTO, GALVANESE, 2009; MONTANARI, 2005). É provável que essa diferença esteja relacionada ao fato do serviço atender usuários de álcool e outras substâncias psicoativas, já que o município ainda não dispõe de um CAPSad para atender esses pacientes. Esse fato, inclusive, explica a distribuição das principais categorias diagnósticas atendidas, observando-se um percentual semelhante de pacientes portadores de transtornos do humor e de usuários de substâncias. Ao contrário, em outros serviços os diagnósticos mais prevalentes foram os de esquizofrenia e transtornos de humor (TOMASI et al., 2010; NASCIMENTO; GALVANESE, 2009; MONTANARI, 2005; PELISOLI; MOREIRA, 2005).
Outro indicador analisado foi a origem da procura por atendimento dos pacientes. Os serviços de saúde, em todos os seus níveis de complexidade (atenção básica, ambulatórios e serviços de urgência), foram responsáveis por menos da metade dos encaminhamentos. A maior parte dos atendimentos originou-se pela demanda espontânea do próprio paciente ou de seus familiares. Tal achado pode representar uma boa inserção e aceitação do CAPS pela comunidade. Em contrapartida, isso pode ser indicativo da inexistência de uma rede eficiente de cuidados à saúde no município, o que impossibilita um sistema adequado de referenciamento. O pequeno percentual de pacientes atendidos com história de tentativa de suicídio também parece sugerir essa deficiência. Em pesquisa realizada por um dos autores no ano de 2009, verificou-se que a taxa de mortalidade por suicídio na microrregião de Barbacena entre 2003 e 2008 foi de 7,4 óbitos por 100.000 habitantes, superior ao coeficiente nacional. No mesmo período foram registradas 738 tentativas de suicídio (VIDAL et al. 2009).
Por outro lado, o fato de mais de quatro quintos dos pacientes terem sido acompanhados por familiares parece sugerir o interesse dos mesmos em acompanhar o tratamento de um de seus membros. Esta postura favorece o tratamento em base comunitária e mantém o indivíduo vinculado ao seu ambiente, o que pode melhorar a adesão ao tratamento, potencializar os resultados e o prognóstico do transtorno psiquiátrico. Com o processo de desinstitucionalização, a família passou da condição de cúmplice e vítima da doença mental para o de protagonista na construção do projeto terapêutico dos pacientes (CAMATTA; SCHNEIDER, 2009).
Outros resultados apontam também na direção de uma demanda compatível com a que é esperada em outros centros comunitários (MONTANARI, 2005; PELISOLI; MOREIRA, 2005). O perfil clínico de paciente crônico é um deles, o que é sugerido pela média elevada de idade dos pacientes e o grande número de indivíduos com passado de tratamento psiquiátrico.
Como era de se esperar, quase todos os usuários do CAPS usaram medicação psiquiátrica e a maioria fez uso de mais de um medicamento. Contrariamente ao previsto, considerando-se a elevada prevalência do transtorno bipolar na comunidade, apenas um número reduzido de pacientes fez uso de estabilizadores de humor. É provável que isso tenha ocorrido, porque o estudo registrou somente o primeiro atendimento do paciente no CAPS, o que pode comprometer o diagnóstico.
No serviço avaliado observou-se o atendimento de quase todas as categorias de transtornos mentais, sendo mais frequentes aquelas consideradas menos graves, o que não é o esperado para essa modalidade assistencial. O elevado número de usuários que não se encontravam em situação de crise no momento do atendimento indica a necessidade de maior investimento e capacitação nos níveis primário e secundário de atendimento (atenção básica e ambulatórios de saúde mental, respectivamente).
Alguns dos resultados acima sugerem a revisão do modelo assistencial de saúde mental ofertado pelo município (e também de outras cidades), já que o padrão usual de funcionamento do serviço estudado tem se apresentado muito mais como um ambulatório do que como um centro de atenção psicossocial, conforme já observado em outro estudo (NASCIMENTO; GALVANESE, 2009). Por outro lado, o funcionamento inadequado dos CAPS termina por reproduzir o modelo de cronificação que existia em muitos hospitais psiquiátricos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2010).
Vale aqui ressaltar que alguns cuidados devem ser tomados ao se examinar estes resultados. O primeiro deles é que o levantamento registrou apenas o primeiro contato do paciente com o CAPS, o que pode levar a interpretações falsas sobre os diagnósticos observados. Outro ponto a ser considerado se refere à falta de qualidade das informações obtidas dos prontuários, uma vez que muitos registros estavam ilegíveis ou não preenchidos, o que limita os resultados do presente estudo.
Alguns fatores importantes não foram avaliados, tais como a disponibilidade de recursos humanos, sua capacitação e sobrecarga do trabalho. Estudo realizado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo para avaliar o tratamento oferecido nos CAPS daquele estado verificou, entre outras limitações, insuficiência de pessoal, ausência de capacitação e supervisão profissional e não conformidade dos prontuários médicos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2010). No que tange aos usuários, são necessários estudos relacionados à satisfação com o serviço, à redução de sintomas e curso da doença, qualidade de vida e destino dos pacientes após a alta.
REFERÊNCIAS
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Artigo recebido em: 22/08/2011
Aprovado para publicação em: 10/06/2013