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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental vol.12 no.22 Barbacena jan./jun. 2018
ARTIGOS
O feminino e suas nuances: uma relação entre o conceito de devastação e a violência contra a mulher
The feminine and its nuances: a relation between the concept of devastation and violence against women
Lo femenino y sus matices: una relación entre el concepto de la devastación y la violencia contra las mujeres
Marcella Pereira de Oliveira
Psicóloga pela USP; Mestre em psicanálise pela UFSC; Especialista em psicanálise pelo IPUSP; Formação em psicanálise pelo Clin-a; Psicanalista clínica; Coordenadora e professora no curso de Pós-Graduação em Psicanálise da UNIVAP; Professora na APVP.
RESUMO
Este trabalho está situado na linha de estudo sobre o feminino, com base na psicanálise de orientação Freud-Lacan. Tem por objetivo relacionar o conceito de devastação, trabalhado na teoria lacaniana como uma decorrência da relação mãe e filha cuja filha não encontra um lugar no desejo materno, com a prática habitual na sociedade brasileira de violência contra a mulher. O método de investigação foi estudo bibliográfico com os principais textos da psicanálise Freud-Lacan que tratam da temática do feminino, da devastação e da violência contra a mulher. Nos resultados, levanto a hipótese de que a devastação inerente ao feminino, quando não elaborada, reflete não só na relação da filha com sua mãe como também nas relações amorosas dessa filha enquanto mulher, a qual com frequência se envolve com homens, repetindo o modelo de relação com a mãe: sem lugar no desejo do Outro, antes mãe e agora marido. Na discussão, coloco que esse modelo de relação facilita a entrada da violência com essa mulher numa posição masoquista de aceite de qualquer comportamento do marido para com ela, até mesmo agressões físicas. É uma posição de assujeito: a mulher como objeto do Outro, o que lhes permite serem humilhadas, maltratadas e agredidas. Concluo dizendo que a forclusão do significante d'A mulher no inconsciente faz com que seja inerente ao feminino uma constante busca por uma consistência fálica que coloque limite ao seu gozo, fabricando algo com seu o sintoma a fim de que a devastação não leve ao pior —representado pela violência.
Palavras-chave: Violência; devastação; feminino; Freud; Lacan.
ABSTRACT
This paper is situated in the line of study on the feminine based on psychoanalysis from Freud-Lacan orientation. It aims to relate the concept of devastation, worked in Lacanian theory as a result of the mother and daughter relationship whose daughter does not find a place in the mother's desire, with the usual practice in Brazilian society of violence against women. The research method was bibliographical study with the main texts of Freud-Lacan psychoanalysis dealing with the female theme, devastation and violence against women. The results raise the hypothesis that the female inherent devastation, when not elaborate, reflects not only the relationship of the child with his mother as well as in love relationships this daughter as wife, who often engages with men repeating the relationship model with mother: no place in the desire of the Other, before mother and now husband. In the discussion, I put this relationship model facilitates the entry of violence with this woman accepted a masochistic position of any husband's behavior towards her, even physical attacks. It is a position of an object: woman as object of the Other, allowing them to be humiliated, abused and assaulted. I conclude by saying that the foreclosure of the signifier of The woman in the unconscious makes it inherent to the female a constant search for a phallic consistency that put limits to her enjoyment, making something with her symptom so that devastation does not lead to worse — represented by violence.
Keywords: Violence; devastation; female; Freud; Lacan.
RESUMEN
Este trabajo se encuentra en la línea de estudio en lo femenino, con base en el psicoanálisis de orientación Freud-Lacan. Su objetivo es relacionar el concepto de la devastación, trabajado en la teoría lacaniana, como resultado de la relación entre madre e hija, cuya hija no encuentra un lugar en el deseo de la madre, con la práctica habitual en la sociedad brasileña de la violencia contra las mujeres. El método de investigación fue el estudio bibliográfico con los principales textos de Freud- Lacan el psicoanálisis trata el tema de lo femenino, la devastación y la violencia contra las mujeres. Los resultados plantean la hipótesis de que la devastación inherente femenina cuando no elaborada refleja no solo enla relación de la hija con su madre, así como en las relaciones de amor de esa hija mientras mujer, que a menudo se relaciona con los hombres repitiendo el modelo de relación con la madre: sin lugar en el deseo del Otro, antes madre y ahora esposo. En la discusión, coloco que ese modelo de relación facilita la entrada de la violencia con esta mujer en una posición masoquista de aceptar cualquier conducta del marido hacia ella, incluso ataques físicos. Es una posición de objeto: la mujer como objeto del Otro; lo que les permite ser humilladas, maltratadas y agredidas. Concluyo diciendo que la conclusión de los significante de la mujer en el inconsciente hace que sea inherente a lo femenino una búsqueda constante de una consistencia fálica que ponga límites a su disfrute, haciendo algo con su síntoma a fin de que la devastación no conduzca a peor — representado por la violencia.
Palabras clave: Violencia; devastación; femenino; Freud; Lacan.
1 INTRODUÇÃO
Devastação é a tradução do termo francês ravage, que significa "arrasar, fazer estragos", segundo o dicionário Larousse. O termo em português no dicionário Aurélio significa "destruição, ruína".
O conceito de devastação é trabalhado na psicanálise como referência à mulher que se deixa encarcerar inteiramente no papel de objeto do homem, fazendo dele não o seu sintoma, mas o seu estrago. Na teoria lacaniana, o estrago encontra- -se primeiramente entre mãe e filha — está relacionado ao Penisneid: quando a filha não deixa de esperar conseguir tudo da mãe.
Lacan (1965/2003) trabalha esse conceito em sua homenagem à Maguerite Duras sobre o caso de Lol Stein, uma de suas obras. Refere-se ao arrebatamento que foi a visão por Lol Stein de seu homem a traindo em um baile. Trata-se de um caso no qual a inconsistência de seu corpo como um objeto de desejo a fez ser entregue como objeto do desejo do outro; e, no momento dessa cena traumática, "sua nudez ficou por cima" (Lacan, 1965/2003, p. 201). Lol desde pequena nunca esteve exatamente ali. Ao perder o homem, perdeu-se no desejo do Outro. Nessa relação em que vivia como objeto indescritível, restou-lhe a vida vazia.
Freud (1931/2006) introduz uma questão inédita à sua teoria da sexualidade ao afirmar que a mulher que se casa ainda menina — sem ter se colocado em reflexão sobre a famosa frase: "o que quer uma mulher?" — tende a repetir com o marido o mesmo modelo de relação que teve com sua mãe, e não com o seu pai, o que estaria de acordo com a teoria do complexo de Édipo. Isso porque o primeiro objeto de amor da menina também é a mãe no período pré-edípico, e esse amor não desaparece por completo. O autor usa a palavra catástrofe, da mesma forma como os pós-freudianos usam a palavra devastação, referindo-se ao que acontece quando a menina não realiza o depósito de afeto sobre o pai, fixando-o na mãe.
Com ajuda dos pós-freudianos mencionados neste texto, podemos compreender que a dificuldade da menina em se desligar psiquicamente da mãe é devida à dificuldade de aquela encontrar lugar no desejo materno. Quando a mãe não é atravessada pelo gozo fálico do homem, ela não se divide em mãe e mulher: permanece toda mãe. Dessa forma, sua filha ou fica no lugar de seu fetiche ou fica no lugar de seu dejeto. Esse lugar provoca uma tensão nesse relacionamento afetivo e a consequente não elaboração dele, o que é fundamental para um posterior deslocamento de afeto.
A rivalidade da menina para com a mãe não é, portanto, apenas devida ao Penisneid — ou seja, a inveja do pênis seguida por raiva da mãe que é a culpada por ela não ter um —, mas também ao amor ambivalente da menina com a mãe nos primórdios da vida. Todo amor infantil é intenso, desmedido, insaciável e ambivalente, ou seja, dicotômico entre o amor e o ódio.
De acordo com Fuentes (2009), devastação é "caracterizada por um objeto rebaixado, sem lugar no desejo do Outro". Uma vez que o desejo materno não foi subjetivado pela filha, relacionado ao depósito de narcisismo efetuado pela mãe — sua majestade, o bebê — que culmina no que Freud (1914/2006) chama de "eu ideal", resta a esta filha uma posição de eterna demandante de afetos, resta-lhe uma inevitável identificação ao pior e permanecer colada à posição de objeto do Outro.
A devastação é ilustrada na obra Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, uma filha que deseja o sem-limite de uma mãe, algo que mais além, para além do domínio do falo: é quando se esgotam os semblantes. E essa demanda insaciável está relacionada à falta de lugar no desejo deste Outro materno, a esse rebaixamento a um lugar de resto.Lacan conecta toda a dimensão do desejo do sujeito ao lugar em que este ocupa no desejo do Outro, sendo este Outro o materno primordial. Quando o bebê percebe que a mãe não é uma extensão do seu próprio Eu, e sim um objeto com desejos próprios que vão muito além de seu corpo, surge um questionamento a respeito do desejo deste Outro. O que quer ele de mim? O que quer ele a respeito desse lugar do eu? São as perguntas que introduzem o sujeito na dimensão da demanda e do desejo, nos primórdios da vida (LACAN, 1962-1963/2005). A falta de lugar neste desejo do Outro é sinal da angústia.
Com a angústia e a devastação advém o pesado sacrifício de tolerar a civilização. Freud (1927/2006) fala sobre a dificuldade que a vida se torna sem as ilusões que permeiam os laços sociais — os quais são baseados nas relações de desejo. Não há avanço possível em termos de tecnologia e controle quando se trata de assuntos humanos. O sujeito só pode ser reconciliado com o seu sofrimento pela via do amor. O autor encerra o texto dizendo que "Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar". (FREUD, 1927/2006, p. 63).
2 MÉTODO
O método de pesquisa em psicanálise é algo difícil de separar da própria teoria psicanalítica, pois o próprio psicanalista já é em sua atuação um pesquisador. Nogueira (2004) partilha dessa afirmação ao dizer que em Freud já encontramos na descrição de cinco de seus casos clínicos a transmissão da pesquisa daquilo que é a psicanálise.
Tanto o método de pesquisa em psicanálise quanto a técnica psicanalítica contrastam com o método e as técnicas da ciência baseados em evidências, ou seja, na universalidade e na objetividade em detrimento da subjetividade. A psicanálise introduz com Freud um novo objeto de investigação: o inconsciente, o qual seria investigado por meio da fala. Com isso, se esse novo método pode ser colocado ao lado das ciências, é das ciências humanas, pois só os seres humanos constituem seu inconsciente por meio da fala. Outra nuance da psicanálise é o fato de não haver separação entre o sujeito e o objeto da pesquisa em razão do conceito de transferência. A pesquisa em psicanálise vai estar sempre envolvida com o tratamento, uma vez que a transferência é um fenômeno do humano.
É importante ressaltar que, embora sofra críticas a respeito da validade científica de sua teoria, em decorrência da escassez de objetividade, a psicanálise insiste em ser uma pesquisa sobre a subjetividade, não só do sujeito da pesquisa, o analisante, como também do analista, o qual precisa estar submetido também à sua análise pessoal para viabilizar o processo. É a única prática de pesquisa na qual o pesquisador está envolvido na relação, não é apenas um observador. Inclusive a psicanálise lacaniana utiliza do dispositivo do passe, no qual o analista precisa pensar sobre sua própria análise com a comunidade analítica, como um meio de aprofundar a importância desta.
De acordo com Safra (2001), o fato de a pesquisa em psicanálise não ser realizada a partir da metodologia tradicional, empírica, dicotômica na relação sujeito e objeto, com controle de variáveis e outras características objetivas, não faz dela menos séria e rigorosa em relação à sua prática. O que ocorre é que o rigor na investigação em psicanálise é comprovado pela fidelidade do pesquisador em relação aos princípios analíticos. Dessa forma, a psicanálise traz consigo outra forma de fazer ciência, na qual o rigor está na fidedignidade a um paradigma epistemológico, e não em um controle de variáveis. Gosto da afirmação de Safra (2001) de que o estudo universitário da psicanálise permite ao analista superar a sua transferência com a instituição psicanalítica de origem, proporcionando um direcionamento do saber para além do conceitual que foi aprendido na instituição de psicanálise.
A base teórica para o método é, portanto, a teoria psicanalítica de Freud a Lacan. Como disse Nogueira (2004), a pesquisa em psicanálise é singular. A pesquisa é a própria análise.
Lacan, em tentativa de encontrar o lugar científico da psicanálise, utiliza-se de matemas — fórmulas universais da matemática — para o nível da conceituação do caso, já que a linguagem matemática é a que serve para fazer ciência. A fórmula da fantasia, por exemplo, ilustra as construções de verdades dos analisantes ao longo de suas análises, que diz sobre as suas relações com o desejo. A fórmula é única, contudo os arranjos significantes que constroem a história são singulares. Há um universal que abarca, contorna um particular.
Dunker et al. (2002) aproximam o método analítico a um romance policial. Isso porque compartilham de um mistério, de uma situação enigmática — o sintoma no caso do primeiro e o crime no caso do segundo — a ser desvendada a partir de indícios e induções, com uma análise minuciosa das circunstâncias. Por meio da dedução, é possível circunscrever uma verdade consistente. Miller (2011) chama de varidades esse processo de construção de verdades sobre si mesmo que o analisante realiza com o analista. E dessa forma é configurado um caso clínico.
É por essas características que Lacan (1966/1998) aponta que a psicanálise pode ser colocada ao lado das ciências conjecturais: as ciências que constroem uma narrativa para buscar a causa de um problema. A causa do problema deste texto é a devastação como uma precondição do feminino à violência contra a mulher. A categoria de trabalho é o estudo teórico, mediante o método revisão bibliográfica, ou seja, o material será retirado dos principais textos da psicanálise de Freud, Lacan e seguidores destes que trabalham com a temática em questão.
3 RESULTADOS
3.1 O feminino e a sociedade atual
Neste trabalho venho enfocar a mulher vítima de violência doméstica do século XXI: seus impasses, suas questões, suas saídas; e levanto a hipótese da articulação da devastação apontada por Lacan (1965/2003) à mulher vítima de violência. Uma vez que a devastação ocorre quando os semblantes fálicos estão ausentes, essa falência que implica a escassez das dimensões imaginária e simbólica (LACAN, 1974-1975) pode ser facilmente pensada como uma abertura à dimensão Real, na qual a pulsão e os sentimentos ficam sem contorno: porta aberta à violência.
Miller (2005) reflete sobre a sociedade atual enfatizando a escassez de significantes mestres orientadores, ou seja, a ausência de conceitos fortes que orientem nossa conduta, mesmo que sejam semblantes da ordem do imaginário. Nesse novo cenário, é o próprio sujeito que precisa criar e seguir seus significantes mestres; eles não estão mais nas mãos do estado, da religião e da família como já estiveram em anos passados. A possibilidade de escolha é muito maior.
Penso que essa diversificação na possibilidade de escolhas, no que se refere aos modos de vida, é reflexo de lutas que aconteceram em décadas passadas pela conquista da liberdade. Ela, sim, veio. A sociedade de hoje é líquida (BOUMAN, 2001). Isso se refere tanto ao âmbito do trabalho, com a enorme diversidade de carreiras, quanto ao âmbito do amor, com as múltiplas formas de fazer casal.
Se, por um lado, essa abertura a uma maior possibilidade de escolhas pode confundir o sujeito, que se sente perdido e procura por um analista na posição de mestre que lhe diga o que é certo fazer, por outro lado existe uma maior diversidade de formas de se fazer laço social. Essa diferenciação na sociedade trouxe um preço no que diz respeito à parceria amorosa. Em contrapartida, os discursos político-econômicos, representados nessa luta por liberdade, por exemplo, pelo movimento feminista, não dizem nada sobre o amor. A forma como a mulher irá se comportar em relação a um homem na parceria amorosa, na medida em que agora pode fazer dele seu objeto, já que ela quis ser independente e conseguiu, é um desafio para a clínica do século XXI.
A forma de se comportar como homem ou mulher e fazer casal não é, de forma alguma, inata ao homem. Como já dizia Lacan (1964/2008): "No psiquismo não há nada com que o sujeito pudesse se situar como ser macho ou ser de fêmea. O que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser humano tem que aprender, peça por peça, do outro" (LACAN, 1964/2008, p. 220). É reflexo da cultura e sociedade e depende de uma interpretação.
3.2 O feminino de Freud a Lacan
Para Lacan, ser mãe não basta para que o ser do sexo feminino encontre uma posição enquanto mulher na sexuação: é preciso ir mais além, situar-se e sustentar-se como objeto causa do desejo de um homem (LACAN, 1975/1982). O caminho do ter, ter um filho, apontado por Freud (1931/2006), não é suficiente. É no caminho do ser que a mulher encontra um contorno para lidar com a falta, que lhe é inscrita no corpo.
O conceito de mascarada, facilmente associado à ideia de a mulher gostar de usar maquiagem e adornos singulares, refere-se às múltiplas formas de semblantes do feminino: os nomes singulares da mulher se inscrever. Todos por meio do semblante, ou véu, aquele que lhe faz parecer algo, adquirir um rosto singular em meio ao gozo não todo inscrito na lógica fálica.
É importante lembrar que fálico remete ao que vai de encontro ao universo narcísico, ou seja, caminha em direção à sensação de completude. Portanto, restringir- se à dimensão fálica no amor está no desencontro do amor regido pelo desejo. O desejo faz o caminho contrário ao do narcisismo, pois é permeado pela falta, a qual começa com a castração. O amor é definido por Lacan (1975/1982) como "dar o que não se tem". Ele vem como saída para suportar a invencível incompletude: finge-se fazer Um. Só é possível amar suportando a castração, reflexão que vem desde o Banquete de Platão, uma vez que o objeto amado não está exatamente no parceiro, está mais além.
Freud foi acusado de misógino pelas feministas ao elucidar o Penisneid como uma questão crucial na análise de mulheres. Na verdade, o autor estava apontando para a impossibilidade de partilha entre os sexos, já que a diferença entre o significante masculino e o feminino não é da ordem da completude. Freud (1931/2006) aponta para dois complicadores no desenvolvimento da sexualidade feminina, que dizem respeito à troca do objeto amoroso do pai para a mãe e do órgão sexual do clitóris para a vagina. Diz ainda que existem três possíveis saídas da mulher no complexo de Édipo: a primeira seria a recusa da sexualidade — a neurose; a secunda seria a identificação com o masculino, que resulta da menina permanecer fixada na identificação com o pai no desfecho edipiano — a masculinidade, a qual pode resultar numa escolha de objeto homossexual; e a terceira seria o desejo de ter um filho, como um substituto ao desejo de ter um pênis, tomando o pai como objeto de amor — saída mais elaborada, na qual a mulher toma o pai como objeto, atingindo o caminho feminino do complexo de Édipo.
A psicanálise de modo algum rejeita o feminismo em sua importância político-econômica, embora o critique em termos de reduzir toda a problemática do feminino a um discurso sócio-histórico e encarar os dois sexos como completamente iguais em posição:
A psicanálise como clínica do singular pode ser a via fecunda de demonstração de que desejo e gozo não se reduzem a uma questão política de direitos, e que o sexo não é um livre arbítrio, mas o nome de uma divisão subjetiva que designa um impossível. O feminismo reduz o feminino a uma construção discursiva histórica e refuta a diferença sexual. Se o feminino é como tal inominável, resta como tarefa para cada mulher que se inscreva do lado feminino das fórmulas da sexuação encontrar um meio de tratar esse gozo real quando a referência ao falo não satura o gozo nas mulheres. (FUENTES, 2009, p. 104).
A autora acima trata da complexidade de se posicionar na partilha dos sexos, de uma forma singular, sustentando o próprio desejo. O modo de se fazer mulher, no uma a uma, não é de certo algo simples. É pela via do sintoma que a psicanálise, clínica do singular, abre caminho para uma mulher se encontrar. Ou seja, identificando- se com o próprio sintoma, e fazendo algo de singular com ele.
A forclusão do significante d'A mulher no inconsciente requer soluções de nomeações para ele. Não é por acaso que a mulher já foi designada por diversos nomes ao longo da história, desde os relacionados à difamação até os à adoração e beleza. Todo esse mistério em torno do feminino rende à mulher muito sofrimento, ao ponto de mulheres terem sido queimadas durante a Idade Média pela sua busca por liberdade.
Já nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud (1905/2006) inicia a reflexão sobre o feminino ao afirmar, referindo-se às transformações da adolescência, que
O desenvolvimento das inibições da sexualidade (vergonha, nojo, compaixão) ocorre nas garotinhas mais cedo e com menor resistência do que nos meninos. Nelas, em geral, a tendência ao recalcamento sexual parece maior, e quando se tornam visíveis as pulsões parciais da sexualidade, elas preferem a forma passiva (FREUD, 1905/2006, p. 207).
Observa-se o autor relacionando o feminino à passividade e ao recalcamento. Contudo, em nota de rodapé na mesma página, ele aprofunda na temática ao dizer que masculino e feminino não são simplesmente formas estanques de o ser humano se comportar enquanto homem ou mulher, mas sim categorizações psíquicas das mais complexas, as quais habitam a subjetividade tanto de homens quanto de mulheres:
É indispensável deixar claro que os conceitos de "masculino" e "feminino", cujo conteúdo parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se decompõe em pelo menos três sentidos. Ora se empregam masculino e feminino no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico. O primeiro desses três sentidos é o essencial, assim como o mais utilizável em psicanálise. A isso se deve que a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo. O segundo sentido de masculino e feminino, o biológico, é o que admite a definição mais clara. Aqui, masculino e feminino caracterizam- -se pela presença de óvulos e espermatozóides, e pelas funções decorrentes deles. A atividade e suas manifestações concomitantes — desenvolvimento muscular mais vigoroso, agressividade, maior intensidade da libido — costumam ser vinculadas à masculinidade biológica, embora essa não seja uma associação necessária, já que existem espécies animais em que essas propriedades correspondem antes na fêmea. O terceiro sentido, o sociológico, extrai seu conteúdo da observação dos indivíduos masculinos e femininos existentes na realidade. Essa observação mostra que, no que concerne ao ser humano, a masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação da atividade e da passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos, quanto no caso de independerem deles (FREUD, 1905/2006, p. 207).
Penso que esse texto é fundamental para a reflexão de como a psicanálise inicia o seu pensamento sobre as questões de gênero; como um semblante criado e recriado a todo instante, por meio das relações de identificação. A relação do feminino à passividade é, portanto, o ponto de partida para pensar nessa divisão subjetiva inerente à ideia de masculino e feminino como significantes que querem dizer algo para além da diferença biológica. A ideia é que o significante de um dos sexos predomine no sujeito, pois o significante do outro foi reprimido ao inconsciente.
3.3 A devastação de Freud a Lacan
Em Sexualidade Feminina, Freud (1931/2006), tornando a relação mãe e filha ainda mais instigante e complexa, afirma que na alienação psíquica em relação à mãe, posteriormente, encontramos a origem da paranoia das mulheres de ser morta, devorada pela mãe. A mãe — como alvo das primeiras súplicas de necessidades vitais da criança — está desde já em lugar de um objeto de amor de super importância tal que, com muita facilidade, esse amor pode ser revertido em ódio e hostilidade, uma vez que o oposto do amor é a indiferença: amor e ódio caminham juntos. O amor infantil é ilimitado, não tolera a frustração, sendo fadado a terminar numa atitude hostil. Quando a menina fantasia, possa essa fantasia ser real ou não, que a mãe não lhe amamentou o suficiente, já basta para que essa hostilidade para com o objeto materno tenha vazão.
O autor não poupa linguagem ao enfatizar que a sexualidade feminina não é nada simples, complexidade esta que já inicia na troca do alvo dos sentimentos amorosos da mãe pelo pai durante o período edípico. A menina sente raiva da mãe por esta não ter lhe dado um órgão sexual apropriado: se a mãe possui a vagina e o pai possui o pênis, a culpada pelo fato de a menina não ter o pênis seria, portanto, a mãe. O Penisneid, ou inveja do pênis, é algo com que Freud se depara nas análises de mulheres como um complicador para a mulher subjetivar a sua feminilidade e situar-se como mulher na partilha dos sexos.
Essa operação de desinvestimento no objeto materno vem a reforçar a possibilidade de sentimentos de hostilidade da mulher para com a mãe, os quais tiveram início desde os primórdios da vida. A competição da mulher com sua mãe, que tem como alvo o homem/pai, intensifica os sentimentos de ódio e agressividade.
E ainda ocorre a troca biológica de órgão sexual do clitóris para a vagina, tornando a sexualidade feminina ainda mais capciosa. Essa existência de dois órgãos sexuais nas mulheres traz ressonâncias na disposição bissexual inata do sujeito humano, a qual tem mais clareza nas mulheres do que nos homens. A troca para a vagina é acompanhada de tendências passivas e de calmaria nas tendências ativas — desde 1905, Freud associa o feminino à passividade.
Freud (1931/2006) ainda levanta a questão de que a posição da mulher de eterna demandante de afeto e cuidados maternos — o que é o estrago, a devastação — culmina na mulher repetindo esse modelo de relação com o marido, ao menos no primeiro casamento, principalmente em mulheres que se casam jovens.
O que acontece é que a mulher na posição de assujeito, sem lugar subjetivo, cola-se na posição de objeto de uso do Outro e, portanto, identifica-se com um objeto que não tem lugar no desejo desse Outro. Essa mulher, quando supera essa hostilidade pré-edipiana à mãe, tem mais chance de encontrar seu lugar como mulher num segundo casamento, pois o primeiro foi permeado por uma repetição de sua relação fracassada com o objeto materno.
Lacan (1965/2003) trabalha pela primeira vez o conceito de devastação em sua homenagem a Marguerite Duras pelo caso do arrebatamento de Lol Stein, uma obra que nos convida a entrar no universo do amor e suas vicissitudes, da relação triangular, da decepção amorosa.
Lol é uma mulher que ficou órfã cedo, e o acontecimento mais marcante de sua vida acontece num baile, quando acompanhada de seu noivo, fica petrificada com a chegada de Anne-Marie Stretter. Essa mulher rapta-lhe o noivo. Porém, Lol parece precisar desse casal recém-formado para dar continuidade ao fascínio que fora iniciado com a entrada dessa mulher no baile. O momento-chave da obra é quando Duras afirma que Lol não ficou afetada por amor, pela perda do marido — Lol não sofreu essa perda e nem sentiu ciúmes —, mas sim por ter sido separada do casal.
Após um tempo na casa de seus pais, Lol casa-se com outro homem, com quem tem três filhas e vive dez anos de sua vida em aparente normalidade. Lol adoece novamente quando com o seu marido vai visitar a casa de seus pais, após o falecimento de sua mãe, e encontra sua velha amiga Tatiana vivendo em situação de amante de um homem chamado Jacques Hold. O par formado por esses dois vem fazer suplência ao que havia ficado ressentido na famosa noite do baile, momento no qual Lol esteve mais próxima de captar o que significa o corpo de uma mulher ser incluído no desejo de um homem.
Lacan (1965/2003) afirma que Lol nunca esteve verdadeiramente presente. Diz que ela passa como uma alma que vagueava pela vida, e na cena do baile encontra o desespero. Lol surpreendentemente não se via como a terceira excluída da relação, mas, ao contrário, desejava que o casal não parasse de dançar, colocando- se como terceira incluída. Ela cai por terra quando deixa de vê-los. Lol fica sem palavras, perde a imagem de seu corpo na ausência do casal que a traíra. Na falta da palavra resta-lhe fazer suplência pela fantasia, a qual só vai acontecer mais de dez anos depois quando Lol encontra o casal Tatiana e Jacques Hold, os quais inclui em sua fantasia por se sentir incluída no olhar deles. Até esse encontro se dar, Lol leva uma vida errante e, em meio a encontros casuais, encontra um marido com quem mantém uma relação baseada na ausência.
Na teoria lacaniana encontramos o amor como uma possível saída para conter o gozo feminino. Quando o parceiro não entra no lugar de uma devastação, ele pode ter efeitos de contenção do gozo ao nomear a mulher de Sua mulher. Ou seja, o homem faz papel de um semblante fálico que dá consistência ao inconsistente do gozo feminino. Na ausência de um significante que inscreva A mulher no inconsciente, a nomeação d'A mulher pode produzir a ela uma inscrição fálica consistente.
A devastação trabalhada por Fuentes (2009) pode no cotidiano ser vista nas exigências indomáveis de mulheres que se submetem a dietas perigosas, cirurgias invasivas, horas intermináveis na academia de ginástica em uma busca sem limite por um ideal de corpo de mulher imposto de fora do próprio corpo — imposto pela mídia, pelo parceiro, ou até pela ideia de competitividade, se comparando com as mulheres rivais. Isso pela dificuldade de entrar em contato com o corpo próprio e descobrir-se mulher com o próprio sintoma, pela via da castração.
A devastação pode ser lida como uma das saídas à mulher para lidar com os impasses do feminino. Saída essa, deplorável. Lidar com o feminino é uma tarefa eterna às mulheres, já que ele está inscrito como o inconsistente, o não todo fálico na tábua da sexuação — Lacan (1975/1982) —, o que exige uma constante inventividade para dar consistência ao seu ser.
Em acordo com essa complexidade, ao longo da história ocidental, a mulher já foi vista de várias formas, assumindo diversos papéis sociais. Temos que maioria deles esteve associado à difamação e ao menosprezo, como se à mulher restassem papéis menos valorizados socialmente em razão de sua pouca capacidade de assumir funções consideradas mais elevadas.
Com Kant, no século XVI, temos a mulher como um ser incapaz de acesso à moral e à inteligência. Sua utilidade social estava vinculada a agradar ao homem e acompanhá-lo. Já com a modernidade e a família burguesa, houve a preocupação com a família e a educação dos filhos, restando à mulher sua tarefa de divisão em mulher, com sua feminilidade, e mãe. As formas como a mulher irá se posicionar em papéis em resposta ao feminino são múltiplas. Encontramos desde o transsexualismo até mulheres colocando regulamentos como formas de sedução como se fosse possível estabelecer um controle à pulsão. Encontramos também as mulheres que se dizem independentes e não se veem ao lado de um marido. Essa diversidade de imagens referentes à mulher é consequência do que a teoria lacaniana chama de forclusão do significante d'A mulher no inconsciente: uma vez que não há inscrição desse nome, é preciso inventá-lo e reinventá-lo a todo tempo. A referência ao falo não basta como orientação ao gozo feminino, que é mais próximo ao Real.
Em O instinto e suas vicissitudes, Freud (1915/2006) coloca que a transformação do amar em ser amado responde à dualidade da passividade e atividade inscritas no inconsciente. Penso que na devastação, com a mulher em posição de demandar eternamente um amor impossível, fica incapaz de receber passivamente. Em meio à angústia diante da inevitável possibilidade de perda do amor, essa mulher acaba por demandar mais e mais amor, infinitamente, numa busca que não é em nada sedutora para o homem, muito pelo contrário, o assusta.
Como efeitos da devastação, advêm angústia, melancolia, sensação de despersonalização, perda de si mesmo, fragmentação... são sentimentos muito mais próximos da mulher que do homem. O pior acontece quando a mulher permanece fixada a esse modo de gozo ilimitado que não fixa o sujeito ao seu corpo e leva à perda de controle. É o contato com o nada, a identificação com o resto.
A mulher, por outro lado, que permanece identificada ao tudo também não encontra seu lugar na sexuação. Para dar-se um lugar no desejo do Outro é preciso consentir com o não todo, ou seja, abdicar do Um, e tomar uma posição singular diante dos impasses do feminino.
O fato de a mulher ser mais narcisista advém de ela não ter o pênis e rivalizar com as demais para garantir sua consistência fálica. Em Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, Freud (1925/2006) coloca que o narcisismo feminino é a cicatriz decorrente do Penisneid. A mulher adorna sua aparência como compensação para a falta de adereço inscrita no seu órgão sexual. Os ciúmes também são outra decorrência do deslocamento da inveja do pênis para outro objeto, inclusive envolve outras mulheres como uma saída fálica para poder se afirmar com posse: eu o tenho, você não o tem.
Contudo, o pior vem quando ela perde a sua subjetividade nessa rivalidade e cai na posição de assujeito, ou seja, objeto de gozo, objeto escravo do Outro que não pode ser melhor do que ela. É a mulher que vive em função de competir e ganhar de um Outro, competição essa que ganha traços masoquistas, uma vez que a mulher anula o próprio desejo em função de um Outro. Este Outro pode ser uma mulher com a qual ela compete, ou um homem ao qual ela fica assujeitada ao desejo, ganhando nos dois casos traços masoquistas em sua subjetividade.
3.4 O masoquismo feminino
Freud (1919/2006) discorre sobre a fantasia "Uma criança é espancada", encontrada em meninas do período escolar, em três tempos, nos quais ciúme, masoquismo e rivalidade estão presentes.
O primeiro tempo inicia-se com a ideia "Uma criança é espancada" e encerra- se com uma formulação mais precisa: "O meu pai está batendo na criança que eu odeio". Aqui o ciúme prevalece como o afeto desencadeador: uma menina se vangloria com o fato de que outra criança, a qual ela não gosta, é punida com agressão pelo pai que ela ama. Esse pai, portanto, a ama também porque pune o outro e não a ela. Esse tempo o autor coloca como uma fantasia de nível consciente, a qual se acessa com facilidade.
Já o segundo tempo é visto como o mais importante e de nível inconsciente. Nunca será lembrada, mas pode ser construída em análise. Ele é descrito pela frase: "Estou sendo espancada pelo meu pai" — o que dá a fantasia um caráter nitidamente masoquista. Essa fantasia é uma irrupção do sentimento de culpa da menina, que obteve prazer incestuoso anteriormente ao ver o outro ser espancado pelo seu pai. O fato de ela ser advinda do sentimento de culpa faz com que permaneça inconsciente em razão da repressão.
Mulheres em quem o segundo tempo dessa fantasia atua a nível inconsciente apresentam dificuldade de lidar com qualquer figura que represente psiquicamente um pai, já que este a espanca, elas se sentirão espancadas no sentido de maltratadas com muita facilidade.
No terceiro tempo há uma indefinição tanto no agente quanto no receptor da agressão. Ele pode ser pensado na frase: "Bate-se em uma criança". O autor pensa esse tempo como relacionado à excitação sexual advinda da visão de uma criança sendo espancada, a qual proporciona a satisfação masturbadora. Castigos e outras demais humilhações podem aparecer aqui como substituindo a agressão física.
3.5 Violência contra a mulher
Uma vez que o feminino e seus impasses, sendo o mais focado neste artigo a devastação, já foram bem delimitados, resta antes de concluir dissertar sobre uma prática mundialmente comum e especificamente muito comum em nosso país: a violência contra a mulher. Dessa forma, será possível, na sequência, realizar uma articulação entre os impasses do feminino e a ocorrência dessa prática lastimável.
Silva (2010) nos lembra que a temática da desigualdade entre os gêneros vem de tempos muito remotos. Na Grécia antiga havia de forma escandalizada a crença de que a mulher era um ser inferior no circuito fálico, a ponto de a prática do homossexualismo ser frequente, restando à mulher a incumbência da reprodução. Foi preciso uma cadeia de pensamentos libertários no Século das Luzes, que culminou com a Revolução Francesa, para a mulher ser vista como um ser de valor social e poder reivindicar seus direitos, sem ser destinada à fogueira como fora na Idade Média.
No Brasil, após a revolução sexual da década de 1960, o movimento feminista trouxe à tona a liberdade econômica, política e sexual da mulher. Consequentemente, a mulher ganhou avanços no mundo do trabalho, econômico e no controle do próprio corpo, recriando todo um modo de relação com o homem.
Contudo, em todo o mundo e mais especificamente no Brasil, há altos índices de violência contra as mulheres concretizada em: agressões físicas e verbais domésticas, estupros, exportação de mulher, torturas físicas e psicológicas, entre tantas outras formas.
De acordo com Chauí (1996/1997, p. 116), as bases desses acontecimentos estão em um "conjunto de crenças, valores, saberes, atitudes que julgamos naturais, transmitidos de geração em geração sem questionamentos, e nos dá a possibilidade de avaliar e julgar positiva ou negativamente ‘coisas e seres humanos'". Ou seja, em razão de um estereótipo cristalizado sobre o sexo feminino como menos forte que o masculino, ao qual seriam dados os direitos; o que irracionalmente viabiliza que um sujeito possa ser maltratado por pertencer a uma classe de gênero inferior. Aqui estão as bases do preconceito: uma ideia preconcebida antes da reflexão sobre ela, de acordo com a mesma autora. Um conceito só se forma a partir do questionamento das ideias. Se isso não ocorreu, trata-se de preconceito — ele não inclui o pensamento.
A maioria das formas de preconceito contra a mulher encontra-se implícita na linguagem do dia a dia, embutida em falas como "É mulher mesmo", quando ocorre um acidente de trânsito; "Tô pegando geral", dos garotos adolescentes sobre as meninas; "Mulher não pode transar na primeira noite". Falas que passam a sensação de um medo do que a mulher pode ser capaz se ela vier a ser dona de suas escolhas e seu discurso.
De acordo com Silva (2010), a região de Pernambuco corresponde ao maior índice nacional de queixas de mulheres por violência doméstica e a região do Sudeste é que apresenta maiores queixas de estupro, talvez por ser a região mais populosa e por ser a porta de entrada do tráfico de mulheres.
4 DISCUSSÃO
A psicanálise faz a leitura de um sintoma social como algo em potencial para um efeito revolucionário na sociedade. Ao atribuir sentido ao sintoma de as mulheres serem agredidas, algo transformador acontecerá na vida delas e, portanto, na sociedade brasileira. Este algo transformador opera numa responsabilização por esse sintoma: ao relacionar o sentido do sintoma com a história de vida, o analista implica o paciente na causa de seu sofrimento e, portanto, responsabiliza-o por ele.
Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/1998) trata de precisar o objeto e, portanto, a importância da psicanálise em sua técnica de investigação do inconsciente, e posso colocar também como método de pesquisa do sujeito em sua dimensão profunda. Ele combate toda forma de reeducação emocional do paciente, sustentando que, quando se trata de psicanálise, o que está em jogo é o desejo. Portanto, qualquer forma de dirigir o paciente não renderá frutos. Ele afirma: "o analista cura muito menos pelo que ele diz e faz do que por aquilo que ele é" (LACAN, 1958/1998, p. 593).
Com isso, vejo que qualquer forma de tratamento que vise a educar a mulher espancada em vez de escutá-la, não será eficaz na busca pelas bases desse tipo de atitude. A técnica psicanalítica, com todo seu estudo e aprofundamento no feminino e na dimensão do inconsciente, utiliza o conceito de devastação para articular sobre a filha que se cala em seu desejo, e o faz por não encontrar lugar no desejo do Outro para que este escute a sua voz. A falta de lugar no desejo do Outro é vista na ausência de narcisismo depositado da mãe sobre a filha, ou seja, falta do recheio imaginário que preenche o sujeito com sonhos e fantasias. Esse sujeito desamparado, vazio de desejo sobre ele, ampara-se em qualquer figura que aparente capacidade de sustentá- -lo e mantê-lo vivo. O desamparo ocasionado pela devastação — ausência de desejo e lugar de dejeto ao olhar materno —, aliado ao masoquismo feminino — a mulher que goza ao ter seu corpo espancado —, culmina na violência contra a mulher.
Estudos de gênero, preocupações com o bem-estar da mulher, questionamentos sobre o ser mulher e sobre o feminino têm sido temas de debates dos últimos anos. Penso que a mulher, que foi inscrita como o Outro sexo desde sempre, causa desconforto em sua inscrição pela diferença. O diferente é o que causa desconforto, pois ataca o narcisismo. A tolerância para com o diferente, com o respeito, é o que trará uma sociedade com direitos mais justos e mais humana de se viver, construindo com o outro.
A lei Maria da Penha, promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, foi um grande avanço em direção à proteção da mulher e ao reconhecimento de sua vulnerabilidade social. A partir desse ano, a agressão à mulher é punida com mais severidade (SILVA, 2010).
5 CONCLUSÃO
A forclusão do significante d'A mulher no inconsciente sucumbe no conceito de feminino como algo que está para além de limites definidos pelo significante. Tal é a dificuldade de encontrar um nome para a forma de gozo do feminino, desenvolvida por Lacan no seminário XX, a qual está para além do gozo fálico: garganta de Irma, continente negro, furo no saber (CALDAS, 2012). Vale ressaltar que o fálico vai de encontro à sensação de completude, de acordo com o universo narcísico. Remete à lógica competitiva. O feminino está para além dessa lógica, embora passe por ela, não lhe basta. Está mais além. É um desafio à clínica do século XXI, atrelada à sociedade capitalista fálica, sustentar essa forma diferente de gozo, que está no desencontro do atual sistema social. Sustentar o gozo feminino pela via da mascarada fabricada com o sintoma, de forma que a devastação não leve ao pior e não culmine em violência.
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Artigo recebido em: 13/08/2016.
Aprovado para publicação em: 28/10/2016.