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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental vol.13 no.24 Barbacena jul./dez. 2021
ARTIGOS
Produção de sentidos sobre o sofrimento mental em mulheres com depressão na amazônia
Sense production on mental suffering in women with depression in the amazon
Producción de sentidos sobre el sufrimiento mental en mujeres con depresión en la amazônia
Eraldo Carlos BatistaI; Dulcineia Maria Pereira CostaII; Marlene Nogueira PinheiroIII; Neli Machado de Souza AhnerthIV
IDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS); prof. Dpto. de Psicologia da Faculdade Católica de Rondônia (FCR)
IIGraduada em Farmácia pela Faculdade São Paulo (FSP)
IIIGraduada em Psicologia e Especialização em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela Faculdade de Rolim de Moura - FAROL. Atua como Analista de Recrutamento e Seleção e Psicóloga Organizacional
IVGraduada em Psicologia pela Faculdade de Rolim de Moura - FAROL. Atua como Psicóloga Social na Secretaria de Assistência Social/SEMAS do município de Chupinguaia no estado de Rondônia
RESUMO
O objetivo deste estudo foi compreender os sentidos produzidos sobre o sofrimento mental por mulheres em fase de tratamento da depressão. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa realizado com 10 participantes do sexo feminino diagnosticadas com depressão. As informações foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas e analisadas de acordo com a orientação da Análise do Discurso sob a perspectiva da Psicologia Discursiva. A partir dos depoimentos foram identificados três repertórios interpretativos: 1) a desqualificação e a invisibilidade dos sintomas pelos familiares; 2) o impacto dos sintomas depressivos no relacionamento conjugal; 3) a terapia medicamentosa e a religiosidade como recursos utilizados no enfrentamento da depressão. As análises interpretativas mostraram que as vivências cotidianas dessas mulheres produzem sentidos permeados de contradições, ambiguidades e estigmas sobre o sofrimento mental. Conclui-se que a mulher com transtorno mental ainda continua vítima, silenciosa, de concepções construídas socialmente que desqualificam suas condições existenciais e materiais.
Palavras-chave: Mulher; Depressão; Produção de sentidos
ABSTRACT
The aim of this study was to understand the senses produced on mental suffering by women in the treatment of depression. This is a qualitative study conducted with 10 female participants diagnosed with depression. The information was obtained through semi-structured interviews and analyzed according to the Discourse Analysis orientation from the perspective of Discursive Psychology. From the testimonies, three interpretive repertories were identified: 1) the disqualification and invisibility of the symptoms by the relatives; 2) the impact of depressive symptoms on the marital relationship; 3) drug therapy and religiosity as resources used to cope with depression. The interpretative analyzes showed that the daily experiences of these women produce meanings permeated by contradictions, ambiguities and stigmas about mental suffering. It is concluded that the woman with mental disorder still remains a silent victim of socially constructed conceptions that disqualify her existential and material conditions.
Keywords: Woman; Depression; Production of meanings
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue comprender los sentidos producidos sobre el sufrimiento mental por mujeres en fase de tratamiento de la depresión. Se trata de un estudio de abordaje cualitativo realizado con 10 participantes del sexo femenino diagnosticados con depresión. Las informaciones fueron obtenidas por medio de entrevistas semiestructuradas y analizadas de acuerdo con la orientación del Análisis del Discurso bajo la perspectiva de la Psicología Discursiva. A partir de los testimonios se identificaron tres repertorios interpretativos: 1) la descalificación y la invisibilidad de los síntomas por los familiares; 2) el impacto de los síntomas depresivos en la relación conyugal; 3) la terapia medicamentosa y la religiosidad como recursos utilizados en el enfrentamiento de la depresión. Los análisis interpretativos mostraron que las vivencias cotidianas de esas mujeres producen sentidos impregnados de contradicciones, ambigüedades y estigmas sobre el sufrimiento mental. Se concluye que la mujer con trastorno mental sigue siendo víctima, silenciosa, de concepciones construidas socialmente que descalifican sus condiciones existenciales y materiales.
Palabras-clave: Mujer; La depresión; Producción de sentidos
INTRODUÇÃO
Reconhecida no mundo ocidental como um problema prioritário de saúde pública, a depressão tem sido um dos modos de adoecimento mais frequentes, com estimativa atual, segundo a World Health Organization (2015), de 350 milhões de pessoas. O seu acometimento evidencia o comprometimento das atividades cotidianas do indivíduo, bem como os seus relacionamentos sociais (BLAS & KURUP, 2010), tornando-se a principal causa de incapacitação e ocupando o quarto lugar entre as 10 principais causas de patologias. Estima-se que até 2030, a depressão estará em primeiro lugar no rol das morbidades com maior carga de doença no mundo, segundo as projeções da World Health Organization (2008), causando inabilidade no trabalho e, consequentemente, gerando custos financeiros e sociais aos governos.
Quanto aos aspectos psicopatológicos da depressão, estes afetam as funções afetivo-volitivas, embora estejam relacionados a praticamente todas as funções mentais. Tradicionalmente, as alterações do humor ou do afeto são consideradas as mais importantes na depressão, além das alterações relacionadas à energia vital e à atividade psicomotora do indivíduo (CHENIAUX, 2013); alterações cognitivas como déficit da atenção, da concentração e da memória, dificuldades de tomar decisões e pseudodemência depressiva e comprometimento da sensopercepção, percepção dos estímulos em menor intensidade, alterações da linguagem e do pensamento, além de baixo desempenho intelectivo (DALGALARRONDO, 2008). Além disso, o referido autor acrescenta que a pessoa com depressão pode apresentar aparência descuidada, atitudes lamuriosas, podendo ainda ocorrer desorientação alopsíquica e vivência subjetiva da passagem do tempo alentecida (DALGALARRONDO, 2008).
Como sintomas principais, a depressão possui perda ou ganho significativo de peso, insônia ou hipersonia, agitação ou retardo psicomotor grave o suficiente para ser observado por outras pessoas, humor deprimido a maior parte do dia, choro fácil, indiferença afetiva, sentimento de melancolia, fadiga ou perda de energia, sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada, reduzida capacidade de pensar, pensamento recorrente de morte, ideação suicida recorrente sem plano específico ou tentativa de suicídio (BLEIBERG e MARKOWITZ, 2016; BUTTERFIELD, 2015; DALGALARRONDO, 2008). A depressão, em muitos casos, pode estar associada a outros transtornos psiquiátricos mais severos, como a esquizofrenia, o transtorno de ansiedade e o uso de substâncias psicoativas, causando maiores prejuízos para os indivíduos acometidos (MACHADO, OLIVEIRA e DELGADO, 2013).
A prevalência dos estados depressivos segundo os sexos mostra que a depressão pode ocorrer tanto em homens quanto em mulheres, de todas as idades e de qualquer classe social. No entanto, estudos no exterior (SOMERS et al., 2006; BUTTERFIELD, 2015) e no Brasil (STOPA et al., 2015) têm apontado diferenças de gênero como subgrupos de riscos. Para esses pesquisadores o gênero feminino é visto como um dos componentes específicos na cadeia causal que leva à depressão e as mulheres são mais vulneráveis que os homens a vivenciar transtorno depressivo em algum momento da vida.
Além dos fatores já mencionados, estudos têm apontado a faixa etária concernente aos anos reprodutivos da mulher, sendo considerado entre 18 e 44 anos de idade como o período de maior vulnerabilidade à depressão, sobretudo no período compreendido entre o início da gravidez e os primeiros meses após o nascimento do bebê, marcado por grandes mudanças biológicas e psicológicas para a mulher, que podem precipitar a ocorrência/recorrência do transtorno depressivo pós-parto (O'HARA, 2009). Além dos sintomas característicos da depressão na população em geral, como humor deprimido, perda de interesse, sentimentos de baixa autoestima e diminuição da concentração, o período do puerpério é marcado por alterações hormonais e mudanças no relacionamento familiar e na relação da mãe com o bebê (RUSCHI et al., 2007; VETTORAZZI et al., 2012). A depressão pós-parto também se associa à disfunção sexual ao provocar a diminuição da libido e comprometer as relações afetivas da mulher com o parceiro (JOHANNES et al., 2009). De modo geral, esses estudos parecem apontar para uma condição natural/hormonal da mulher como mais propensa à manifestação de sintomas depressivos.
Por outro lado, a releitura da depressão sob a perspectiva de gênero pode levar a outro quadro epidemiológico, diferente do tradicional, que aponta um hiperdiagnóstico de depressão entre mulheres e uma invisibilidade entre os homens. Acredita-se que os fatores psicossociais podem potencializar o desenvolvimento do transtorno (SILVEIRA et al., 2018; DANTAS e LOYOLA, 2017; ZANCAN e HABIGZANG, 2018; GONÇALVES et al., 2018.). Ou seja, a manifestação dos sintomas depressivos deve ser compreendida em toda a sua complexidade, na qual os aspectos sociais e históricos específicos da mulher confluem. De outra maneira, pensar a implicação das relações de gênero na saúde mental gera a reflexão sobre a participação dos valores e papéis de gênero na constituição do sujeito, não apenas como ela se expressa, mas também como sofre (ZANELLO, 2014). De forma mais específica, é preciso levar em consideração os fatores que se entrecruzam na vida das mulheres, para que seja possível uma avaliação dos sintomas depressivos e a elaboração do tratamento (GONÇALVES e MACHADO, 2008).
Diante dessas considerações buscamos refletir sobre o impacto da depressão na vida da mulher a partir do posicionamento teórico do construcionismo social. A ênfase dessa perspectiva teórica é dada ao modo como os significados dos fenômenos não estão necessariamente inerentes a esses fenômenos em si, e sim como se desenvolvem por meio de interações dentro de um contexto social. O construcionismo social examina como indivíduos e grupos contribuem para a produção da realidade social percebida e do conhecimento (BERGER; LUCKMANN, 2007).
Sendo assim, a escolha dessa temática se deu pela possibilidade de haver outros olhares além daqueles que foram construídos socialmente em torno do sofrimento mental da mulher. Existem outros discursos que se constroem em oposição à naturalização dos transtornos depressivos na mulher que buscam desfazer e denunciar o jogo da "verdade" sustentado pelo estereótipo de gênero em nossa sociedade. Utilizando os pressupostos do construcionismo social, compreende-se que existe um amplo espectro de possibilidades que levam a outras dimensões que se vão revelando e nos convidando a atravessar o limiar dos novos mundos de significado que desmistifica tal construção (GERGEN e GERGEN, 2018).
Ainda em concordância com as ideias construcionistas, Nogueira (2001) afirma que o que se pensa ser a "verdade", isto é, as ideias correntes e aceitas de compreensão do mundo, é apenas um produto, não da observação objetiva do mundo, mas do processo social das interações nas quais as pessoas estão constantemente envolvidas. Sendo assim, o debate sobre o sofrimento mental da mulher e sua interface com as relações de gênero, bem como os modos pelos quais elas são construídas no cotidiano, "possibilitam que a discussão avance para o questionamento e a desconstrução dessas relações e das ações que elas engendram" (PEDROSA e BRIGADÃO, 2014, p. 219).
Dessa maneira, concordamos com a afirmativa de Vasconcelos et al. (2010) ao considerar que a perspectiva do construcionismo social pode ser uma importante ferramenta para uma (re)leitura do processo saúde-doença, por considerar aspectos relevantes para a abordagem e compreensão dos fenômenos e por possibilitar uma análise da dimensão subjetiva da realidade social. Diante do que foi problematizado, o objetivo deste estudo é compreender a construção de sentidos sobre o sofrimento mental por mulheres em fase de tratamento da depressão.
1. Método
Este estudo foi realizado com base em uma pesquisa de caráter descritivo, utilizando o método qualitativo, que possibilitou a produção de sentidos por mulheres que convivem com a depressão. O referencial teórico-metodológico utilizou como aporte a Psicologia Discursiva (POTTER e WHETERELL, 1987), que se alinha aos pressupostos do construcionismo social (GERGEN e GERGEN, 2010). Na Psicologia Discursiva o discurso psicológico do senso comum é transformado em práticas de discursos e estudado sem qualquer referência específica da psicologia acadêmica. Compreende-se que os conceitos que as pessoas usam em suas vidas cotidianas têm suas próprias maneiras de funcionar, simplesmente porque são os meios reais e empiricamente disponíveis por meio dos quais elas explicam a si mesmas (EDWARDS, 2004).
Destarte, a Psicologia Discursiva focaliza seu interesse na atenção à construção do conhecimento no discurso e na explicação de como se produz tal conhecimento, como se constrói a interpretação da realidade e como as interações entre analistas e participantes criam e adquirem sentido (IÑIGUEZ, 2004). Os processos de produção de sentido na Psicologia Discursiva são compreendidos como construções sociais, coletivas e interativas, por meio dos quais as pessoas inseridas em um determinado contexto sócio-histórico-cultural constroem os termos a partir dos quais compreendem e significam os fenômenos (SPINK e MEDRADO, 2004) que têm a linguagem como base. Em síntese, a Psicologia Discursiva é entendida como o estudo de como as pessoas constroem, montam, ocultam os relatos que descrevem e invocam estados e características psicológicas (EDWARDS, 2004).
Foram entrevistadas 10 mulheres diagnosticadas com depressão, com idades entre 27 e 81 anos, sendo seis casadas, duas divorciadas e duas viúvas. Quanto à ocupação, seis se declararam donas de casa, duas eram agricultoras, uma trabalhava como doméstica e uma como professora. No que se refere à vida financeira, apenas quatro mulheres exerciam atividade remunerada, com renda de dois ou mais salários mínimos. Sobre os aspectos religiosos, oito mulheres se declararam católicas praticantes e duas, evangélicas. Foram listados como critérios de inclusão dos participantes na pesquisa: 1) estar diagnosticada com depressão; 2) ter idade igual ou superior a 18 anos; 3) apresentar nível de consciência e orientação preservada e nível satisfatório de verbalização.
A pesquisa foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de um município do interior do Estado de Rondônia, com aproximadamente 60.000 habitantes. Compõem a equipe de profissionais duas psicólogas, um psiquiatra, um enfermeiro, dois farmacêuticos, um técnico de enfermagem, dois técnicos administrativos e uma auxiliar de serviços gerais. No que se refere à estrutura física, o referido CAPS possui salas individuais para atendimentos psicológico, psiquiátrico, recepção, atividades em grupo, para arquivo de documentos, uma cozinha, dois banheiros, um almoxarifado e uma área grande utilizada pelos usuários para aguardar atendimento.
Após a aprovação da pesquisa, os participantes foram contatados para apresentação dos objetivos do estudo e convite de participação. As entrevistas aconteceram numa sala da instituição, de acordo com a disponibilidade de cada participante nos dias de realização da oficina, após a leitura e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e tiveram duração média de 35 minutos. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.
Para a constituição e a análise do corpus da pesquisa, foram realizadas entrevistas abertas que abordavam sobre os sentidos produzidos pelos usuários quanto à sua participação nas atividades musicais desenvolvidas no CAPS, realizadas entre junho e dezembro de 2015. Como método de análise do material empírico utilizou-se a Análise do Discurso.
Existem várias definições de Análise do Discurso e cada uma delas satisfaz as próprias preocupações dos distintos autores e enfatiza aspectos diferentes. Em linhas gerais, Análise do Discurso refere-se ao estudo das práticas linguísticas para esclarecer as relações sociais estimuladas e mantidas pelo discurso (IÑIGUEZ, 2004). Nesse estudo o caminho teórico-metodológico escolhido para analisar o corpus baseou-se na proposta de Análise do Discurso sob a orientação da Psicologia Discursiva, na qual toda linguagem, mesmo a aparentemente descritiva, é sempre construtiva e constitui uma ação (POTTER e WETHERELL, 1987). A partir dessa proposta, a análise das informações coletadas seguiu as seguintes etapas: a) leitura flutuante; b) transcrição na íntegra das entrevistas; c) leitura atenta do material construído e do caderno de campo e d) análise dos repertórios interpretativos identificados nas informações colhidas (POTTER e WHETERELL, 1987).
Essa pesquisa recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) sob o Parecer n. 1.176.325 e CAAE n. 44394515.3.0000.5300. Para garantir o anonimato das participantes utilizaram-se os seguintes nomes de flores: Dália, Lágrimas de Cristo, Violeta, Bromélia, Lírio, Amor Perfeito, Rosa do Deserto, Margarida, Flor de Lótus e Begônia.
2. Resultados e Discussão
Por meio dos depoimentos coletados, as análises se deram a partir de três repertórios interpretativos: 1) a desqualificação e a invisibilidade dos sintomas pelos familiares; 2) o impacto dos sintomas depressivos no relacionamento conjugal; 3) a terapia medicamentosa e a religiosidade como recursos utilizados no enfrentamento da depressão. Diante da proposta teórico-metodológica desse estudo, discorremos como as ideias construcionistas têm se apresentado no campo da saúde mental, partindo do pressuposto de que a díade "saúde-doença" possuiu várias interpretações ao longo do tempo, todas estas concebidas em função das especificidades de cada contexto, cultura, sociedade e momento histórico (Vasconcelos et al., 2010).
2.1. A desqualificação e a invisibilidade dos sintomas pelos familiares
Esse repertório é marcado por discursos que relatam episódios negativos no relacionamento entre a mulher diagnosticada com depressão e seu contexto familiar. Foram identificadas em enunciados a ausência de apoio e a desqualificação dos sintomas da doença pela família, além da influência negativa da depressão na relação conjugal.
O impacto que o transtorno mental provoca no grupo familiar está estreitamente relacionado à posição que a pessoa em sofrimento mental ocupa na família e ao papel social que esta assume. O homem, quando presente nesse grupo, por ser na maioria das vezes o provedor da família, quando é acometido pelo transtorno mental a renda familiar tende a ser comprometida. No entanto, a mulher, por ser o elo organizador do grupo, quando se encontra em sofrimento mental, parece afetar muito mais a família (Rosa, 2011). Isso pode ser visualizado nos trechos a seguir:
[...] depois que eu adoeci a convivência com minhas filhas ficou muito conturbada [silêncio]. Com a filha mais velha é mais difícil ainda; ela é igual ao pai, aquele gênio difícil, sabe? O que chega na ponta da língua ela fala [silêncio]. O pior é que já não consigo mais falar com a mesma autoridade que eu falava antes (Lírio).
Olha, o meu filho não me leva para a igreja, não é muito atencioso para mim, não. Eu tenho que ficar explicando para ele que não pode ser assim. Desde sempre é comigo. Eu fiquei viúva ele ficou comigo; ele casou, eu fiquei com ele. Então, tem vez que eu fico até triste [silêncio]. Então, eu vejo as coisas e fico quieta se não ele grita comigo; eu fico quieta (Violeta).
Nas falas anteriores pode-se observar que o acometimento de sintomas depressivos nessas mulheres afetou não só a saúde física e mental, mas também o desempenho da função matriarcal na família constituída, sobretudo, pela autoridade. Além disso, a construção social da divisão sexual do trabalho reproduzida através dos tempos parece repercutir como fator adicional ao sofrimento das entrevistadas. Sob a ótica do construcionismo social entendemos que o processo saúde/doença não é mera expressão ou atualização do plano biológico, mas sim derivado de vários fatores que se produzem historicamente, que são expressões da totalidade de relações vividas pelo indivíduo (VASCONCELOS et al., 2010).
De outra forma, o papel da mulher é construído socialmente mediante a associação de valores da família, maternidade, trabalho, além de meio de sobrevivência; trata-se de um fato social construtor da identidade, da tradição e até mesmo da cultura de algumas regiões. Do ponto de vista construcionista, essas falas produzem sentidos construídos a partir de suas vivências cotidiana, como afirma Gergen e Gergen (2010, p. 24) "[...] quando uma pessoa fala de realidade sempre fala a partir de uma tradição cultural". Nesse sentido, o baixo rendimento ou a incapacidade momentânea de realizar "suas obrigações domésticas" (atividade atribuída socialmente à mulher) parece provocar nessas mulheres sentimento de frustração por não conseguirem assumir seu papel social no contexto familiar, como mostram as falas a seguir:
É muito difícil para mim, sabe? Eu sempre gostei de ter minhas coisas bem organizadas, minha casa limpa... e hoje não tenho ânimo para fazer nada. Não cuido nem de mim mais [silêncio]. Me sinto envergonhada (Lágrimas de Cristo).
Eu já não cuido do meu filho como cuidava antes. Às vezes fico até com vergonha de ver ele assim. Daí fico pensando: "O que as pessoas vão falar de mim? Que mãe eu sou?" Uma mulher que não cuida direito das suas obrigações é muito feia (Margarida).
De outra maneira, os fragmentos anteriores revelam a permanência da população feminina subordinada ao confinamento do universo doméstico e às atividades associadas à reprodução biológica e social da descendência. Dessa forma, o não cumprimento dessas exigências impostas parece favorecer a potencialização e a cristalização dos sintomas depressivos. Pode-se observar que a maioria das entrevistadas se dedica inteiramente à família e à criação dos filhos, destacando-se uma conduta antiga em que a responsabilidade de cuidar da prole era totalmente materna, como se pode constatar nas falas a seguir:
Tomo conta da casa, e só eu e meu "velho". Tudo depende de mim. É muito difícil! [silêncio] (Begônia).
[. . .] eu via que tudo o que eu estava passando era sozinha, meu marido não se manifestava. Só então eu percebi que eu sempre fui independente, não precisava muito dos cuidados dele, ele sempre teve a vida dele, os negócios dele. Eu criei as crianças sozinha, ele não participou de nada. Eu não tinha percebido a falta de cuidado, de carinho, de amor; eu sempre estava pronta prá ele desde que a gente se casou. Agora eu vi que estive sempre sozinha; casa, escola, filhos, marido quando estava em casa. Eu era boazinha, fazia de tudo pra não brigar (Flor de Lótus).
Cinco entrevistadas afirmaram morar na zona rural e cinco na zona urbana. Assim, observaram-se as condições de saúde das mulheres que residem na zona rural, que em sua maioria dependem de terceiros para se locomoverem até a cidade em busca de atendimentos no CAPS, como é possível perceber no relato de Violeta, moradora da zona rural: "[. . .] Só vim na cidade para pegar as receitas. E mesmo assim tenho que esperar a boa vontade dele [do filho]". Pesquisa realizada por Zanello, Fiuza e Costa (2015) com pacientes usuários do CAPS identificou que uma das principais queixas das mulheres após o acometimento da depressão ocorre com relação aos afazeres domésticos (cuidar dos filhos e da casa). Estas reclamam que não têm disposição para cumprir com os trabalhos do cotidiano. Ou seja, as mulheres também enfrentam estresses adicionais, como sobrecarga de responsabilidades, ausência de apoio familiar, condição de mães solteiras e cuidado de pais idosos.
O sofrimento causado pela ausência familiar coincide com o fortalecimento das crenças negativas existentes, da perda da própria imagem, autonomia, ratificando o desejo de transição de funcionalidade da mulher no âmbito familiar. A falta de apoio da família aparece nas falas carregadas de sentimentos negativos gerados, sobretudo, pela invisibilidade dos sintomas no seio familiar.
O que eu percebo é que ninguém se importa comigo aqui em casa [silêncio]. Na maioria das vezes eu vou só ao médico. Sabe, é como se eles [os familiares] tivessem acostumado com meu estado de saúde (Lírio).
Eu fico triste porque minha família não acredita nas coisas que sinto (tristeza, angústias, falta de interesse etc.). Meu marido fala que um pouco é frescura minha (Begônia).
É complicado, porque mesmo eu indo ao médico, trazendo os remédios e as receitas meu marido fala que isso "é coisa da minha cabeça". Isso deixa a gente ainda pior (Lágrimas de Cristo).
Os discursos anteriores mostram como essas mulheres vivenciam o estigma do transtorno mental dentro da própria família. As conversas permitiram observar que a leitura feita pelos familiares sobre os sintomas revela que estes ora são ignorados, ora são percebidos como algo inventado, ou seja, o sofrimento da mulher é desqualificado. De acordo com Rosa (2011), a família tende a integrar as disposições físicas com as de ordem mental, quando o transtorno que não atinge as funções de orientação espacial, lucidez, entre outras, da pessoa em sofrimento mental, traduzindo esses sintomas como manha, preguiça, falta de vontade ou de caráter. Observa-se que o contexto familiar no qual essas mulheres estão inseridas influencia negativamente na forma como os sinais e sintomas da depressão lhes são apresentados.
2.2. O impacto dos sintomas depressivos no relacionamento conjugal
Esse repertório objetivou compreender os sentidos produzidos acerca do impacto da depressão na vida conjugal das participantes. No entanto, esse foi um dos temas em que as participantes foram mais resistentes em dialogar. Ou seja, a identificação desses sentidos se deu mais nas entrelinhas do discurso do que na fala literal dessas mulheres. De acordo com a visão construcionista social, isso se dá pelo fato de que "a tarefa de criar o eu relacional não é fácil, porque as palavras para nós disponíveis são fruto de uma tradição individualista" (GERGEN e GERGEN, 2010, p. 47). Ainda segundo os autores supracitados, podemos falar indefinidamente sobre nossos pensamentos, sentimentos, desejos, esperanças, sonhos etc., no entanto, dispomos de pouquíssimas palavras para descrever relações.
As conversas sobre o relacionamento afetivo com o companheiro traziam em seus discursos relatos permeados de culpabilidade sobre a baixa qualidade da vida conjugal. Por outro lado, compreender a desvantagem da mulher na relação conjugal implica um olhar mais atento às desigualdades de gênero. Para Pedrosa e Brigadão (2014), a leitura de que as relações de gênero atravessam todas as relações sociais é uma contribuição fundamental para que se desenvolvam estratégias para superar as desigualdades sociais.
A alteração quantitativa ou qualitativa da afetividade da pessoa com depressão é um dos múltiplos sintomas que caracterizam esse transtorno. Entre estes encontram-se a apatia, que é a indiferença afetiva, e o sentimento da falta de sentimento (DALGALARRONDO, 2008). Nos trechos a seguir é possível observar o sofrimento das entrevistadas ao perceberem a baixa expressão de afetividade pelo cônjuge.
Meu marido reclama muito porque eu não acompanho ele sempre nas visitas aos amigos. Mas não é porque eu não quero, mas o desânimo não me deixa eu sair de casa. Mas parece que ele não entende isso (Violeta).
Às vezes eu fico me sentindo culpada por não ter mais aquele desejo que eu tinha pelo meu marido. Assim, de chegar e abraçar ele, beijar [risos], sabe como é [silêncio] (Lírio).
Por outro lado, o sentimento de culpa pode ser compreendido por meio da construção social do papel desempenhado pela figura feminina na sociedade. Historicamente, a mulher sempre ocupou um lugar hierarquizado na relação conjugal, baseado na discriminação, na exclusão, na submissão e na subordinação ao marido. Além disso, imperava a ideia de que carinho, amor e afeto eram deveres da esposa para com o marido.
Durante as entrevistas, os temas relacionados às experiências na vida conjugal ganhavam notoriedade quando o assunto era sexo. A depressão pode alterar significativamente o desempenho sexual do indivíduo em decorrência de vários fatores como, por exemplo, a diminuição da libido, um dos sintomas do próprio transtorno (DALGALARRONDO, 2008).
Quando a conversa era especificamente sobre a vida sexual entre os cônjuges, pôde-se observar que esse assunto produzia no mínimo dois discursos diferentes entre as entrevistadas. Embora houvesse um consenso nas afirmativas sobre um certo grau de comprometimento na qualidade da relação sexual após algum tempo de diagnóstico da depressão, dois grupos divergiram quanto à compreensão do esposo sobre tal realidade. Como se pode observar nos trechos a seguir, essas duas entrevistadas entendem como positiva a atitude do esposo de não exigir que façam sexo sem sentir vontade.
Agora meu marido até me evita na cama; mas eu sei, eu já falei pra ele que não posso... Ele sabe que se eu não tomar meu remédio, eu não sou ninguém. Daí ele nem me procura prá sexo, deita e vira pro canto e vai dormir. Mas eu sei que ele queria, qual homem que não quer [risos]. Ainda bem que ele não me abandonou por isso (Begônia).
Nunca fomos muito chegados um do outro [carinhosos], ele no canto dele, e eu no meu desde que casamos. No sexo ele nunca foi exagerado; às vezes ele procurava, mas nada muito fora do normal. Se ele não procurasse, eu também não ligava (Violeta).
Por outro lado, essa "compreensão" do esposo pode ser interpretada como uma forma velada de afastamento afetivo da esposa, percebido nesse fragmento: "[. . .] deita e vira pro canto e vai dormir". É importante ressaltar que a vida afetiva conjugal não se restringe ao sexo, outros atributos como: atenção, carinho, amor e afeto também são importantes para a relação. Por outro lado, essas falas reproduzem a construção social da supremacia masculina de iniciativa na relação sexual e da condição de servidão da mulher: "[. . .] Se ele não procurasse, eu também não ligava".
Outro aspecto importante a ser observado é o fato de a entrevistada perceber a permanência do esposo ao seu lado como um bônus para ela: "[. . .] Ainda bem que ele não me abandonou por isso". Outra participante amplia essa visão ao considerar como aspecto positivo o adoecimento, uma vez que sua condição de saúde aproximou o cônjuge.
[...] o médico psiquiatra queria me internar, aí meu marido não deixou, porque lá ele não tinha condições de cuidar de mim. O meu marido sabe que grande parte do que me aconteceu é culpa dele. Ele já aprontou muito, sabe? Agora não, se tem uma coisa boa que a doença trouxe foi isso, a atenção dele. Ele mudou muito, isso foi bom (Begônia).
Embora a fala anterior aponte o novo comportamento do esposo como ganho secundário percebido pela esposa, ela também parece revelar a insegurança conjugal dessa mulher, visto que a nova atitude dele não ultrapassa a barreira de sua obrigação marital. Para Rosa (2011), quando o cônjuge do sexo masculino assume o encargo de cuidador, este é compreendido como se estivesse extrapolando o seu papel, pois quando é a mulher que se encontra em sofrimento mental há uma tendência de ser mais facilmente abandonada pelo marido do que na situação inversa. Ou seja, mesmo que o agravamento da doença seja atribuído às atitudes do companheiro, a mulher goza do prazer de estar doente por desfrutar momentaneamente de apoio, carinho e atenção do cônjuge.
Por outro lado, ao contrário dos depoimentos anteriores, as conversas também denunciaram o sofrimento da mulher em ter que satisfazer os desejos sexuais do esposo mesmo contra a vontade.
[. . .] ele [o esposo] é obcecado por sexo, doente mesmo, sabe? Não aceita um "não". Se eu me negar para ele, ele faz um escândalo, nem se importa que a filha está em casa [silêncio]. Descobri que ele toma estimulante sexual, aí eu não aguento, não sei por qual motivo que ele faz isso. Parece que tem medo, que se não fizer sexo todo dia vou arrumar outro. Aí é daquele jeito. Ele faz o que quer, vira para o lado e dorme, e eu vou chorar; é muito triste [silêncio]. No outro dia a minha filha vai para o trabalho e o meu filho para a escola, eu fico calada, não consigo desabafar (Rosa do Deserto).
Essa fala revela a hierarquização de boa parte dos relacionamentos da cultura brasileira, expressada em conformidade com os valores de nossa sociedade patriarcal, que subjuga o corpo da mulher ao status de objeto do homem, em que o sexo é visto como sinônimo de cumprir deveres matrimoniais e como valor simbólico de troca (ZANELLO, FIUZA e COSTA, 2015). Isso pode ser observado nesse fragmento do depoimento: "[. . .] Ele faz o que quer, vira para o lado e dorme [. . .]". A relação sexual acontecia apenas para satisfazer o cônjuge.
Por outro lado, Hollist et al. (2016) alertam que o fato de a mulher tradicionalmente se sentir mais responsabilizada pelo relacionamento conjugal do que o homem pode acarretar maior associação entre satisfação conjugal e depressão para as mulheres. Embora esta fala seja de uma pessoa que já se encontra com depressão, a vivência na relação conjugal parece potencializar o seu sofrimento: "[. . .] ele vira para o lado e dorme, e eu vou chorar; é muito triste [silêncio]. No outro dia a minha filha vai para o trabalho e o meu filho para a escola, eu fico calada, não consigo desabafar".
Observa-se nesse discurso que nenhuma das mulheres referiu-se ou atribuiu a sua insatisfação sexual ao uso de medicamentos ou aos sintomas da depressão como um fato isolado, mas a um conjunto de fatores. Ainda sobre a vida conjugal, observou-se que a maior parte do sofrimento relatado pelas entrevistadas estava relacionada mais ao modo como eram tratadas pelos seus companheiros do que ao transtorno depressivo em si. Entretanto, do ponto de vista construcionista, Grandesso (2014) afirma que em relações construídas nas emoções de aceitação e amor, quando um problema afeta uma pessoa, todos os que estão envolvidos com ela sofrem.
2.3. A terapia medicamentosa e a religiosidade como recursos utilizados no enfrentamento da depressão
Nesse repertório buscou-se identificar nos discursos das entrevistadas os sentidos produzidos sobre os recursos terapêuticos utilizados no cotidiano no enfretamento da depressão. Durante os encontros, foi possível observar por meio das falas de algumas das entrevistadas que, associada ao tratamento medicamentoso, a religiosidade, materializada por meio da fé, tem se tornado um elemento fundamental na luta contra os impactos sintomatológicos da depressão.
2.3.1. Terapia medicamentosa
Quando interrogadas sobre o tempo de uso de psicotrópicos, as respostas variaram de dois a 20 anos. Chama atenção o fato de que todas as entrevistadas relataram a ocorrência de vários sintomas psicoemocionais quando tentaram interromper o uso de medicamentos, como mostram os trechos das falas a seguir:
[. . .] uma vez eu fiquei cinco dias sem tomar o remédio e fui parar no hospital. Eu via cobras dentro de casa, fui cortar um frango e joguei fora porque estava cheio de minhocas dentro. Um horror! Eu nem olho muito para as paredes com medo de ver coisas [risos]. Agora eu tomo certinho e não paro por nada (Lágrimas de Cristo).
[. . .] eu já tentei falar que não posso parar; eu não posso. Se eu não tomar o citalopran de manhã, uma hora dessa eu não ando mais. Eu fico flutuando. Eu me sinto muito, muito mal. Então, eu tenho que tomar ele. Eu não posso deixar ele faltar, principalmente esse. Então, eles [familiares] são contra; eles acham que eu não preciso; eles não me compreendem. Então, muitas vezes, eu estava ali na cama, eu queria morrer, eu queria morrer, só vinha isso na cabeça (Rosa).
Nessa última fala, a colaboradora manifesta seu descontentamento com a incompreensão da família sobre a importância do tratamento medicamentoso no alívio dos sintomas depressivos. A participação da família no processo de reabilitação da pessoa acometida por um transtorno mental é fundamental para o êxito do tratamento e isso requer mais empenho e comprometimento dos familiares na busca de informações sobre a doença e sua terapêutica.
Em outros momentos o uso de medicação foi apontado como uma estratégia utilizada para trazer equilíbrio e estabilização nos momentos de agravamento do transtorno. Nos dois trechos a seguir, é possível observar que os sentidos produzidos por essas mulheres sobre os efeitos do tratamento medicamentoso vão além da atuação destes no organismo. A inibição do descontrole emocional permite que essas mulheres reflitam sobre suas ações e atitudes de ajuda no enfrentamento da doença.
[. . .] minha vida é mais ou menos, né, "fia". É difícil um dia que eu não sinto nada. Hoje mesmo estou agitada. Dá uma ardência [levou a mão no peito na altura do coração], a cama não está boa, o chão não está bom, sentada também não está bom. Muita ansiedade e estresse que parece que está rasgando meus nervos. Hoje mesmo já tomei o remédio de estresse, tenho medo de me descontrolar. Depois que eu tomo o remédio, eu não sinto nada (Begônia).
[. . .] eu tomo remédio sempre, para viver um pouco [silêncio], senão eu faço uma loucura [silêncio] (Bromélia).
Essas falas mostram que essas mulheres buscam na medicação uma base para aliviar seus problemas (sintomas) que, em muitos casos, não são apenas de ordem fisiológica ou psicológica, mas também de ordem social, econômica e cultural. No entanto, vale ressaltar que a psicoterapia, sobretudo os encontros grupais, ainda é a melhor indicação como alternativa de alívio ao sofrimento para essas mulheres. Nesse sentido, a perspectiva construcionista pode ser utilizada para orientar encontros grupais como espaço privilegiado para problematizar e desconstruir repertórios (PEDROSA e BRIGADÃO, 2014) negativos internalizados por essas mulheres.
2.3.2. Espiritualidade
Nesse repertório interpretativo buscamos compreender como essas mulheres utilizam da tradição religiosa como elemento positivo na trajetória de enfrentamento da depressão. De acordo com o construcionismo social, a tradição religiosa, assim como a tradição científica tem suas próprias maneiras de construir o mundo, pois ela encerra determinados valores e aprova determinadas formas de vida (GERGEN e GERGEN, 2010). Durante os encontros, as conversas eram permeadas por expressões de cunho religioso. Em todas as entrevistas, Deus aparece como apoio emocional no enfrentamento à patologia. Sobre tal fato, Faria e Seidl (2005) afirmam que a religiosidade é um fator positivo nos momentos de crise, pois é nela que muitas pessoas se prendem para não se suicidar e encontrar alívio para situações que oprimem. Os trechos a seguir mostram como Deus ocupa um lugar central na vida das entrevistadas.
[. . .] eu sempre tive Deus para me ajudar. [. . .] eu sempre peço a Deus para abençoar os meus filhos e parentes para que eles possam prosperar materialmente e espiritualmente (Violeta).
[. . .] minha filha participou de uma vigília de 12 dias para Deus curar ela. Eu falava: "Minha filha vai ser curada em nome de Jesus". Depois de um tempo ela parou de ter crise. Aí nós mudamos o nome dela para Milagre. Hoje nós chamamos ela de Milagre, eu e as irmãs dela (Amor Perfeito).
Observa-se nesses depoimentos que a interlocução com Deus é um pedido de alívio do sofrimento não só da entrevistada, mas também de outros membros da família. Ainda de acordo com Faria e Seidl (2005), na religiosidade intrínseca o indivíduo procura viver sua fé, utilizando-a como um artifício para melhorar sua vida em todos os âmbitos.
Em outros momentos, essa mesma fé também é depositada na esperança de uma possível cura da depressão.
[. . .] sabe, filha, a minha fé me mantém viva. Deus é bom comigo; me deu vida até aqui, e eu agradeço (Begônia).
Eu tentei me matar; eu fui até o paiol onde estava o veneno. Mas graças a Deus ele não deixou. Ele disse: "Daqui você não vai passar". Aí, graças a Deus, eu consegui me controlar, e eu peço a ele todo dia, e ele está me curando (Dália).
Essas falas mostram que a menção da cura fundamentada na fé como estratégia de enfrentamento do processo por essas mulheres pode ser entendida de forma positiva quando utilizada como recurso auxiliar ao uso de medicamentos para enfrentar as dificuldades impostas pelo transtorno. Um estudo realizado por Nicolino et al. (2011), para verificar a adesão de pessoas com esquizofrenia à medicação, apontou que para uns somente a fé era suficiente para curar o transtorno, enquanto para outros a fé e o tratamento medicamentoso eram complementares. A esse respeito os referidos autores ressaltam que nem sempre psiquiatria e religião se excluem mutuamente e que ambas podem beneficiar os indivíduos.
É importante lembrar que o estudo das relações entre espiritualidade e saúde mental tem se configurado como campo emergente entre pesquisadores dessa área. Em decorrência dessa interface, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), da American Psychiatric Association, introduziu uma nova categoria que aborda os temas culturais e religiosos ou espirituais. A seção intitulada Considerações éticas e culturais do Manual objetiva orientar os profissionais de saúde a lidar com pacientes de diferentes crenças, vivências ou comportamentos religiosos, sem necessariamente julgá-los como psicopatológicos. Todavia, compreender e respeitar o mundo espiritual do paciente é perceber sua ação no aspecto psicossocial.
Considerações Finais
Este estudo buscou compreender os sentidos produzidos sobre o sofrimento mental por mulheres com depressão na região amazônica. A partir da análise interpretativa construcionista compreende-se que o sofrimento dessas mulheres resulta das dificuldades relacionais familiar e conjugal. Por meio do discurso delas, observou-se que os familiares desqualificam os sintomas inerentes à doença. Acredita-se que as desqualificações podem contribuir para os sentimentos de tristeza, angústia e solidão.
A pesquisa mostrou o quanto o transtorno mental afeta a relação conjugal, tanto afetiva quanto sexualmente, seja em decorrência da própria doença, seja em virtude da medicação utilizada no tratamento. Os resultados apontam que as mulheres vivenciam situações diferentes no que se refere à sexualidade com os parceiros. Algumas relataram a compreensão do companheiro, enquanto outras revelaram submissão e obrigação de praticar o ato sexual. No entanto, há uma generalização comum entre elas: todas destacam a perda do sentimento de prazer inerente à prática sexual. A falta de afetividade por meio de demonstrações de carinho e atenção também causam impacto na saúde mental.
Diante desse contexto, de conviverem com as mudanças advindas da doença, as entrevistas demonstram que as mulheres encontram na fé estratégias de enfrentamento para lidarem com os sintomas e, até mesmo, para manterem a esperança de cura, ao lado da medicação, que consideram imprescindível. No entanto, ressalta-se que é fundamental o apoio familiar para se obter sucesso no tratamento, fator psíquico que apareceu como queixa principal das entrevistadas.
Sugere-se que sejam realizados trabalhos de psicoeducação com as famílias, a fim de desmitificar a doença e de realizar aconselhamento familiar preventivo, o que pode aumentar a coesão entre os membros da família no sentido das suas relações de interajuda. Além disso, conclui-se que o construcionismo social apresenta como um aporte teórico e metodológico consistente na modificação do discurso clássico sobre a naturalização do sofrimento mental da mulher ao possibilitar uma nova significação do processo e relação terapêutica. Nessa perspectiva, a indicação de terapias breves e focadas em falas que buscam alternativas que visam à substituição da discussão do problema, podem produzir melhores resultados terapêuticos. Do ponto de vista construcionista essa técnica estimula conversas sobre as forças, os recursos e as possibilidades relacionais.
Finalizando, vale lembrar que mais pesquisas sobre o tema são necessárias para novas construções de conhecimentos e que futuros estudos deveriam considerar a necessidade de avaliar populações com proporções semelhantes de homens e mulheres. A partir desses achados, ações de políticas públicas, como grupos de apoio e orientação a essa população, devem ser implementadas. Contudo, espera-se que este estudo sirva de sinalizador para outras pesquisas nessa mesma região, a fim de comparar os resultados aqui encontrados.
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