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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre jul. 2013
ARTIGOS
A delicada construção de um vínculo de filiação: o papel do psicólogo em processos de adoção
The delicate making of a filiation link: the role of the psychologist in adoption procedures
Lidia Levy de Alvarenga1; Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt2
Professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio
RESUMO
O trabalho propõe uma reflexão crítica sobre questões envolvidas no processo de adoção. Tomam-se como bases teóricas diversas pesquisas contemporâneas sobre as consequências do abrigamento no processo de subjetivação da criança, assim como estudos sobre sua inserção em família substituta. Através das contribuições de Winnicott, busca-se compreender o processo de maturação da criança abrigada, em suas relações com o ambiente. O papel do Psicólogo como intermediário no estabelecimento das relações entre os futuros pais e a criança a ser adotada é destacado como de grande importância. Um caso de adoção mal sucedido é apresentado como exemplo da necessidade do trabalho do psicólogo.
Palavras-chave: Adoção, Abrigamento, Narcisismo, Idealização, Mediação.
ABSTRACT
This article proposes a critical reflection on the issues involved in adoption process, Several present-day studies on adoption are taken as theoretical references for the understanding of the consequences of living in orphanages, as well as inclusion in foster families, in chidren´s subjective development. Through Winnicott´s contributions it aims to understand the maturation process of sheltered children, and their relationship with the environment. The mediator role played by Psychologists between the prospective parents and the child to be adopted is highlighted. A case of unsuccessful adoption is presented as an example of the importance of this role.
Keywords: Adoption, Shelter, Narcissism, Idealization, Mediation.
Introdução
No presente trabalho propomos uma reflexão sobre o processo de adoção, discutindo o lugar ocupado pelos profissionais que compõem a equipe técnica dos abrigos e as dificuldades hoje existentes no preparo da criança/adolescente durante o período que antecede sua delicada inserção em família substituta.
As instituições de abrigo têm a função de acolher e assistir crianças e adolescentes que, por algum motivo, tiveram que ser retiradas de suas famílias ou foram por elas abandonadas e garantir-lhes condições de estabilidade, continuidade e regularidade. A Nova Lei Nacional da Adoção (2009), em seu artigo 92, atribui-lhes os deveres de preservação dos vínculos familiares e de integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem.
O abrigamento deveria ser temporário uma vez que se pretende promover as condições necessárias à reintegração familiar ou ao encaminhamento para família substituta, nos casos de abandono de recém-nascido ou naqueles em que ocorreu destituição do poder familiar. Entretanto, a permanência no abrigo pode se estender até que a maioridade seja atingida, casos em que a instituição torna-se responsável pela constituição e construção da subjetividade da criança privada do convívio familiar.
Ao perder o caráter temporário, a instituição passa a participar da construção da identidade, da autoestima e da aquisição de competências cognitivas e sociais de crianças e adolescentes. Neste sentido, espera-se que ali encontrem referências, formem vínculos afetivos, elaborem e signifiquem sofrimentos e traumas.
Ayres, Coutinho, Sá e Albernaz (2010) realizam uma interessante pesquisa bibliográfica acerca das produções acadêmicas referentes às temáticas do abrigamento, convivência e destituição do poder familiar, entre os anos de 2000 a 2008 e constatam, em alguns artigos, a construção de estigmas institucionais que aprisionam crianças e adolescentes abrigados em determinadas formas de ser. Déficits como problemas de atenção, dificuldade de aprendizagem, prejuízos em relação a mecanismos de defesa, carência afetiva, excesso de agressividade, dificuldade de expressão e dificuldade na formação de novos laços afetivos, inclusive no próprio espaço do abrigo, são relatados e atribuídos à institucionalização e à ruptura dos vínculos com a família de origem. As autoras concluem que, mesmo tendo conquistado o estatuto de sujeito de direitos, a criança institucionalizada ainda é observada através de uma lógica estigmatizante.
Em contraposição aos textos que apontam para sequelas psicológicas quase irreversíveis em decorrência de uma institucionalização precoce e prolongada, vêm sendo produzidos artigos que trafegam em outra direção (Yunes, Miranda & Cuello, 2004; Siqueira & Dell'Aglio, 2006; Salina-Brandão & Williams, 2009). Nestes, além de serem mencionados estudos da literatura nacional que enfatizam os riscos de uma infância inteira passada longe do convívio com a família, valoriza-se uma literatura mais recente que reconhece o abrigo como parte integrante da rede de apoio social e afetivo. Considera-se assim o abrigo como capaz de oferecer um espaço para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes e se constituir em uma alternativa positiva, quando o ambiente familiar é desorganizado e caótico.
Orionte e Souza (2005) entendem que as mediações produzidas no contexto em que a criança está inserida são fatores altamente significativos para a construção da vinculação afetiva. As autoras percebem uma enorme disponibilidade da criança abrigada para estabelecer novos vínculos, apesar de, em um primeiro momento, uma desconfiança fazer-se presente e ir se transformando à medida que uma gradativa confiança se estabelece. A desconfiança inicial revela o temor de um novo abandono.
Quando o abrigamento deixa de ser temporário e a instituição passa a ser o local onde referências e vínculos afetivos são construídos, a perspectiva de uma adoção demanda da equipe técnica um trabalho de preparação da criança/adolescente. São casos onde já houve uma ruptura com a família de origem, mas podem existir marcas de apego a intermediários e/ou uma desconfiança diante do desconhecido. Assim é que uma preparação deficiente da criança, tanto quanto candidatos mal informados e mal preparados dificultam o processo de construção da filiação, gerando profundos sentimentos de fracasso em todos os envolvidos.
Ao escolhermos refletir sobre o desencontro vivido em um processo de adoção e o consequente fracasso do novo projeto de vida proposto a uma criança abrigada, consideramos, ainda, a multiplicidade de fatores que influenciam o desenvolvimento humano e que tanto podem promover bons encontros como estar na base de trágicos mal-entendidos.
O que envolve uma adoção?
Um projeto de adoção revela, além do desejo explicitado de ter um filho, necessidades específicas de cada sujeito, reflexos de suas histórias psíquicas, que repercutirão na relação a ser estabelecida com a criança. Já em algumas crianças abrigadas, observamos o desejo de serem adotadas e, ao mesmo tempo, uma idealização da família de origem juntamente com o esforço para conservar uma imagem positiva dos genitores. Consequentemente poderão expressar uma resistência diante dos pais adotivos, em uma tentativa de preservar os laços com sua história de origem, mas também, ao contrário, buscar assumir de forma precipitada uma nova identidade, pelo receio de não serem aceitas.
Para que um trabalho psíquico de filiação seja feito, Ozoux-Teffaine (2004) reconhece a necessidade do desenvolvimento de determinadas etapas. Para a autora, os primeiros momentos pós-adoção em muito se assemelham ao que ocorre em um nascimento, caracterizando-se por uma fase de ilusão criadora. Momentos marcados por um idílio entre pais e filhos, quando são observadas intensas expectativas de satisfações narcisistas. Pais encantados, envolvendo a criança com atenções e cuidados. Esta fase inicial da inscrição da filiação é marcada por regressões diversas. A criança faz reivindicações de maternagem na busca de contato e busca ser o único e exclusivo objeto do amor dos pais, em um movimento de reconstrução de um bom objeto de apego primário (Levy, 2009).
Na adoção tardia, também para Peille (2004), verifica-se de parte a parte um processo de sedução. A criança demanda cuidados, demanda satisfações para suas necessidades e, neste primeiro tempo, parece desejar apagar o que viveu anteriormente. Os pais, por sua vez, estão em busca de um filho e desejam acreditar que os sinais da sedução infantil já indiquem uma ligação.
Anzieu, no prefácio ao livro de Ozoux-Teffaine (1987), percebe uma relação entre as etapas a serem ultrapassadas em casos de adoção tardia descritas pela autora e as fases do desenvolvimento de um envelope psíquico por ele descrito (Anzieu,1989). Constata que a criança adotada tardiamente vive um processo psíquico regressivo, que a remete a um estado imaginário próprio ao recém-nascido, leva-a a percorrer novamente as fases de constituição de um Eu-pele e a viver um segundo nascimento.
Assim é que, segundo Ozoux-Teffaine (2004), o período inicial, no qual se procura incorporar o modelo da nova família, costuma ser seguido por uma fase de desilusão estruturante, marcada por atitudes agressivas. A necessidade de separar-se da pele comum, criada para auxiliar na constituição de uma identidade específica, dará início a um período doloroso no qual se espera que os pais consigam suportar as tensões, os ataques de fúria, o silêncio. A autora entende que a criança, ao vivenciar angústias persecutórias, rejeita e se faz rejeitar. A criança precisa atravessar a posição esquizo-paranóide no sentido de uma posição depressiva, renunciando à atração das primeiras imagos parentais, para vincular-se aos pais adotivos reais. Espera-se que os adotantes sejam capazes de não se deixar ferir profundamente em sua capacidade parental e em sua autoestima, possam conter e serem depositários da memória da criança, facilitando uma regressão necessária, que precede a retomada do processo de desenvolvimento. Espera-se que funcionem como um continente estável, capaz de continuidade, pois, caso não consigam efetuar a função de metabolizar as ansiedades infantis, poderão reforçar a vivência traumática pré-existente.
Neste sentido, Winnicott (1975, 2000) nos ajuda a compreender o processo do ponto de vista da criança: de acordo com o autor, pode-se dizer que a criança passa inicialmente por um modo de relação em que o objeto é subjetivo, portanto passível de ser investido de todas as fantasias, boas e más. “A relação de objeto imatura precisa dar lugar, ao longo do tempo, ao modo de relação chamada uso do objeto, que envolve a colocação do objeto no mundo externo, fora do controle onipotente e integrando os aspectos bons e maus” (Winnicott, 1975, p. 121). No intervalo, porém, temos o passo mais difícil do desenvolvimento humano. Entre a relação e o uso é preciso surgir a percepção, pelo sujeito, do objeto como fenômeno externo, não como entidade projetiva. Em outras palavras, trata-se do reconhecimento do objeto como entidade por seu próprio direito, dotado de qualidades e falhas que o tornam um ser real. Nesse momento do desenvolvimento, o sujeito está criando o objeto no sentido de descobrir a própria externalidade, experiência que depende da capacidade do objeto de sobreviver ao ódio gerado pela desilusão. É importante que neste contexto, “sobreviver” signifique não retaliar os ataques, pois a retaliação só viria confirmar para a criança, no plano da realidade, o seu poder de destruição, e consequentemente a ameaça representada pelo ambiente, fazendo-a reviver o trauma da rejeição.
Para Winnicott (1983), um ambiente suficientemente bom pode ser definido como a capacidade dos cuidadores de proporcionar segurança e continência frente às possíveis crises e testes que a família irá enfrentar, permitindo que estas aconteçam e, mesmo assim, permaneça estável, em termos da segurança e continência com que consegue se apresentar frente às crises e testes pelo qual passará e pela capacidade de permitir que estes aconteçam e, mesmo assim, continuar estável. O holding exerce diferentes funções nos distintos momentos da vida e sua importância se mantém, uma vez que sustentação e reconhecimento são elementos imprescindíveis na vida afetiva do ser humano. Sendo assim, é possível afirmar a necessidade absoluta do holding no processo de inserção da criança adotada em sua nova família. Podemos então afirmar a necessidade absoluta do holding em um momento tão delicado como o início da convivência da criança adotada com sua nova família.
Em uma terceira etapa, o sentimento de pertencimento a uma nova linhagem exige o luto das imagos parentais originárias e uma reconstrução de seu romance de origem apoiada nos novos pais. Espera-se que, ao final de um processo de luto pela família biológica, a representação dos pais de origem, mantida inconsciente, possa conviver com a dos pais adotivos. Assim como os pais biológicos de um bebê precisam realizar um trabalho de luto do filho ideal para aprender a amá-lo na realidade, a adoção de uma criança ou de um adolescente exige capacidade de adaptação e um descolamento da criança real em relação à criança imaginária. Winnicott (2000) nos diz que a elaboração do processo de ilusão e desilusão sobre uma criança idealizada pelo desejo parental será determinante para a consolidação dos vínculos objetais com ela e para a constituição de um representante relacional que permita ocorrer o processo de amadurecimento.
Vargas (1998) descreve o movimento da criança adotada tardiamente para se identificar com as novas figuras parentais, mas percebe a dificuldade existente na criação de novos vínculos. São comuns esforços feitos durante o processo de adaptação para alcançar uma imagem positiva de si mesma, que venha a ser valorizada por aqueles com quem passou a conviver, assim como, é fundamental que os adotantes estejam disponíveis para acolher suas necessidades emocionais mais primitivas.
Ozoux-Teffaine (1987) assinala a necessidade de um investimento narcísico na criança abandonada precocemente e adotada tardiamente para que esta possa ir gradativamente desligando-se definitivamente da mãe biológica. Há a premência de uma vinculação afetiva segura e contínua que, inevitavelmente, não ocorre na institucionalização. Contata-se que o luto pela mãe biológica é necessário para que a adotante seja adotada pela criança. A criança terá que renunciar ao retorno da mãe biológica para permitir um investimento da família adotiva.
Lévy-Soussan (2004) reforça a importância do trabalho de filiação, que tem por objetivo fazer a criança entrar na história familiar de seus pais e dela se apropriar, caso contrário, estarão mantendo o “estrangeiro em casa”. A criança deverá ser investida de um mandato transgeracional, fundado na trama do narcisismo parental e realizar um trabalho de luto por sua família de origem, um trabalho de reapropriação fantasmática de seu passado.
Em estudo sobre a devolução de crianças, durante o período de convivência que antecede a adoção, Levy, Pinho e Faria (2009) constatam que características como dificuldades em lidar com o diferente e suportar frustrações, a falta de vínculo, a incapacidade de conter a agressividade da criança e dar-lhe um sentido, estiveram presentes em todas as situações de devolução estudadas.
Por tudo isso, torna-se evidente a importância do trabalho do Psicólogo em processos de adoção. Chamamos a atenção para o fato de que cada caso demanda um tempo e um manejo específicos, nem sempre atualmente possíveis no trabalho institucional. É necessário se pensar em estratégias apropriadas, de modo que possam ser minimizadas as probabilidades de fracasso, como ocorrido no caso citado a seguir. Este ilustra uma situação em que o processo de adaptação da família adotiva à criança, e desta à família, teve consequências trágicas para ambos os lados envolvidos. Vale lembrar que, a utilização deste caso como material de pesquisa foi autorizado mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pela Juíza responsável pelo processo de adoção.
O caso de Jéssica: da idealização à decepção
A menina a quem demos o nome fictício de Jéssica se encontrava abrigada praticamente desde o seu nascimento. Já estava com nove anos de idade quando surgiu a possibilidade de uma adoção internacional. Ela era descrita pelos funcionários da instituição como “uma menina impossível, que briga com os meninos mais velhos, desafia a todos, além de fazer inúmeros relatos sobre sua família de origem que em nada correspondiam a sua história”. A equipe técnica da instituição se perguntava sobre uma possível estrutura psicótica da criança.
Em função disso, um estudo psicológico foi solicitado e realizado no Serviço de Psicologia Aplicada de uma Universidade. Jéssica veio à primeira entrevista de avaliação psicodiagnóstica vestida de um modo desleixado, despenteada, muito agitada e falando algumas coisas desconexas. Um alto déficit cognitivo, se considerarmos os padrões esperados para sua faixa etária, era facilmente observável, não sabia os dias da semana, o dia do seu aniversário, nem em que série estava na escola. Jéssica não sabia ler nem escrever e ainda estava no primeiro ano do ensino fundamental.
Entretanto, vale aqui destacar o trabalho de Siqueira e Dell'Aglio (2006), onde se ressalta que, para investigar as particularidades de desenvolvimento vivenciadas por crianças e adolescentes institucionalizados, é fundamental considerar este contexto diferenciado, em lugar de observar os déficits encontrados através de uma comparação com crianças e adolescentes que se desenvolvem em outros contextos.
Talvez pela atenção que recebera, Jéssica vem ao encontro seguinte parecendo outra criança, não só pelos cuidados com sua aparência física, mas querendo mostrar que sabia fazer contas de somar e subtrair. Nesta ocasião, fez um desenho bastante revelador: uma cena em que os dois apresentadores do Jornal Nacional narravam a notícia de um assalto. Os detalhes da cena e dos apresentadores estavam fiéis a aqueles presentes no programa. O casal global emerge como modelo idealizado e vem se juntar a uma imagem materna igualmente idealizada.
Pouco se sabe sobre a história desta criança, além do fato de ter chegado recém-nascida a uma instituição, onde a genitora também podia ficar abrigada e onde foi deixada após alguns meses. A partir daí passou por três abrigos. São várias as versões que dá para sua história e várias as idades em que supõe ter sido separada da mãe. Descreve o primeiro abrigo como uma casa grande que “tinha sofá, televisão, piscina e parque, onde brincava muito, andava de bicicleta, o sol entrava pelas janelas e a iluminava” [sic]. A imagem da mãe se confunde com uma “tia pequena loira” [sic], que lhe dera um batom, possivelmente uma das cuidadoras da instituição.
A ausência de informações sobre a filiação remeteu-nos à representação de um mundo fantástico, que magicamente produziria transformações em sua vida. Geralmente, observa-se na criança abrigada uma expectativa de reencontrar os pais ou encontrar uma família que a adote e a inclua numa linhagem. Jéssica, em uma das versões de sua história, relatou que sua mãe cuidava dela, até o dia em que a levou para o abrigo de carro e a deixou lá, aos dois anos. A menina declarou seu desejo de “ser pequena de novo” [sic] e, sabendo da possibilidade de uma adoção, comentou que os pais iriam chegar para tirá-la daquela “lata velha” [sic], descrevendo que “enquanto meu pai trabalha, a minha mãe fica em casa para cuidar de mim” [sic].
A idealização da figura materna e do casal parental que viria salvá-la veio contrapor-se de modo marcante ao casal que, na realidade, se propôs a adotá-la. A mulher de aproximadamente 40 anos, que também havia sido adotada quando bebê, tinha algo a reparar em sua própria história através desta adoção. Era uma pessoa com dificuldades de expressar afetividade, gorda, de aparência desleixada, que em nada poderia ser comparada à “fada madrinha” do Jornal Nacional. O homem, apesar de mais afetivo, não conseguia ocupar um lugar mais presente junto à menina. As primeiras semanas de convivência foram caóticas, culminando em um empurrão dado por Jéssica que derrubou, literalmente, a mulher. Muito fragilizada, esta não foi capaz de fornecer um continente seguro à crise gerada pela frustração que acometeu a criança. Cabe aqui lembrar que o estágio de convivência que precede a sentença de adoção nos processos de adoção por estrangeiros tem a duração mínima de 30 dias. No presente caso, os requerentes solicitaram a ampliação do período de convivência por mais um mês, expressando ao mesmo tempo seu desejo de concretizar a adoção e sua desistência do intento. A rejeição mútua era visível e a equipe técnica, que os acompanhou durante o estágio de convivência decidiu por sua interrupção, com o retorno de Jéssica ao abrigo.
Reflexões sobre um fracasso
O caso de Jéssica gerou profundos sentimentos de perda, não apenas na criança e no casal, mas também nos profissionais envolvidos no processo de adoção, e assim nos remeteu a uma reflexão sobre diversas questões.
Se entendermos a adoção como uma via de mão dupla, a criança deve poder adotar aqueles que desejam adotá-la. Jéssica não havia desinvestido a mãe idealizada e não estava ainda pronta para adotar a mulher que na realidade também apresentava dificuldades para adotá-la.
No caso relatado, nem Jéssica, nem a mulher que pretendia ser sua mãe adotiva, conseguiram se descolar das imagens pré-existentes. A frustração de Jéssica, gerada pela desilusão sofrida na experiência com a realidade levou-a a um movimento de intensa agressividade, buscando destruir o objeto causador da desilusão.
Ao nos voltarmos para o outro lado desta história, ou seja, para o desejo de parentalidade expresso pelos candidatos a pais adotivos, encontramos de modo simétrico uma representação idealizada dos pais em relação à criança que iriam encontrar. Provavelmente uma criança grata e pronta para receber e dar amor, na medida certa para atender ao particular desejo da mãe. Tendo sido ela mesma adotada, a mulher que veio ao encontro de Jéssica, havia construído fantasias reparatórias em relação a seu próprio abandono.
Toda relação entre um filho e seus pais implica momentos de sofrimento em que um trabalho de luto precisa ser mobilizado. Trata-se da ressignificação da criança-ideal, em que a mãe deixa de ver o filho como perfeito, buscando então na vida real, razões para valorizá-lo.
No que se refere a Jéssica, a criança concebida imaginariamente pela mulher que se candidatara a adotá-la era linda, carinhosa, dócil e, provavelmente estaria carregada da missão de realizar os sonhos que desejava tornar realidade. Surgiu em vez disso uma menina selvagem, carente, desconfiada. Neste caso, seria necessário haver por parte dos pais, uma capacidade de dar um amor incondicional aliado a muita paciência para recriar o ambiente propício de acolhimento, cuidados e holding do qual Jéssica foi privada. Ou seja: um casal de pais com características adultas, bem estruturado e generoso. O que parece ter ocorrido foi o inverso, principalmente no que se refere à mãe, que supomos ter tido suas feridas narcísicas dolorosamente reabertas na relação com a criança.
Do lado de Jéssica, as imagens construídas desde a infância para dar conta da ausência do holding materno não diferem daquelas que povoam o imaginário de inúmeras crianças em situação de abrigamento. É muito comum vermos crianças que, mesmo após a situação de maus tratos, queiram voltar para sua mãe. Cuidadores, mães sociais e madrinhas entram e saem de suas vidas. Corso e Corso (2006) discutem as três faces maternas através do conto da Cinderela: a mãe, a madrasta e a madrinha. A mãe é tida como bondosa, admirável, frágil; é a mãe que perdemos quando nos separamos dela. Esse é o momento chamado por Winnicott (1975) de desilusão. A morte da mãe boa não significa que ela tenha se perdido em nosso imaginário.
A figura da madrinha representa a lembrança boa de uma infância em que a mãe completava a criança. A madrasta vem para coroar essa desilusão, traduzida no conto pela relação mãe-filha em que o pai aparece superposto a importância do bebê. O dom da fada madrinha é o de “restituir algo que uma filha já teve, quando era objeto do olhar materno apaixonado de que os pequenos se nutrem” (Corso & Corso, 2006, p. 111). O surgimento da madrinha possibilita uma reconciliação com a dimensão da mãe boa.
Jéssica, em sua condição de abrigamento desde o nascimento nos leva a pensar sobre as formas que a figura materna foi assumindo em seu imaginário. A menina precocemente abandonada, desde sempre entregue à própria sorte em abrigos, que não conheceu uma mãe de verdade (a não ser talvez nos primórdios da sua vida), criou na fantasia uma mãe-fada como única forma possível de conviver com sua desilusão frente ao mundo. Privada deste olhar desde muito cedo, Jéssica criou ficticiamente na sua memória vazia uma mãe tão perfeita que seria necessário encontrar condições muito favoráveis para fazer a passagem da representação ideal para uma mãe real.
Tudo o que Jéssica conta envolvendo sua relação com a mãe pode ser entendido como fantasia: “uma criação que substitui a realidade por uma produção imaginária” (Winnicott, 1975, p. 45). Em suas histórias, sua mãe aparece cuidando dela, fazendo sua comida enquanto ela brinca e quando conta que sua mãe a deixou no primeiro abrigo diz, em seguida, que gostava muito de lá, era feliz e brincava muito. As fantasias em relação à figura materna ajudavam Jéssica a suportar a condição de abandono. Através da fantasia tentou corrigir uma realidade insatisfatória.
Uma pesquisa realizada por Orionte e Souza (2005), na qual se pretendeu dar voz à criança institucionalizada, teve por objetivo compreender o significado do abandono, tomando por base três categorias de significados: a invisibilidade, a transgressão e os vínculos afetivos.
Para estas autoras, a invisibilidade se revela quando a criança desaparece como sujeito e o que prevalece é a decisão da autoridade sobre o seu desejo e o seu destino. Embora a invisibilidade da criança possa ser percebida em seu discurso, nem todas aceitam passivamente essa condição e buscam tornarem-se visíveis de várias formas. Assim é que a transgressão apresenta-se como contraposição à invisibilidade, sendo a forma encontrada por crianças institucionalizadas para denunciar sua insatisfação e expressar suas necessidades. A rebeldia contra tudo e contra todos revela a necessidade de um ambiente que a sustente, uma necessidade de ser reconhecida e vista por alguém (Winnicott, 1975). Jéssica tem sido invisível até então. Em sua invisibilidade constrói fantasias que pretendem sustentar sua angústia diante da falta de referências.
Um esvaziamento psíquico vai sendo produzido em decorrência das poucas manifestações de investimento na vida de uma criança precocemente abandonada. Há pouco espaço para que ela possa falar de seu sofrimento e de sua incompreensão sobre o que possa ter ocorrido em sua história. Quanto mais transcorre o tempo sem que lhe sejam fornecidas informações e não havendo um espaço para externalizar suas dúvidas, a criança pode começar a alimentar-se de defesas mágicas, para não sucumbir à angústia. Na medida em que o trabalho de luto não pode ser feito, cristaliza-se uma idealização dos pais de origem. A criança se agarra a um amor idealizado para dar conta de uma espera constantemente frustrada.
Ao ser indicada para uma possível família substituta, que não corresponde ao modelo que havia imaginado, Jéssica reage de forma transgressora por não encontrar no ambiente uma figura que acolha suas reações agressivas e seja capaz de metabolizá-las; ao contrário, se defronta com figuras que, fragilizadas, não conseguem sustentar sua demanda. Diante dos possíveis pais de carne e osso, descobriu-os muito diferentes da mãe de sua fantasia e da família representada pelo “casal global”, os pais virtuais perfeitos do seu imaginário. Assustou-se, decepcionou-se e reagiu do único modo que sabe reagir: agrediu violentamente essa mãe da realidade, que por sua vez se mostrou frágil, sem condições psíquicas para suportar a rejeição, e reagiu (de maneira recíproca) na mesma moeda.
Bettelheim (1980) utiliza uma das versões de contos de fadas que giram em torno do tema “o pescador e o gênio” para tentar capturar o sentimento de desamparo de uma criança, diante do desaparecimento materno. Na referida versão, o gênio, ao ser libertado da garrafa, tornou-se tão cruel a ponto de desejar matar a pessoa que o libertou. O processo vivido pelo gênio é descrito da seguinte maneira por Bettelheim:
Enquanto ficou confinado na garrafa durante os primeiros cem anos ele 'disse de coração': Aquele que me libertar, eu o enriquecerei para sempre. Mas passou-se o século inteiro, e quando ninguém me libertou, eu entrei pelos segundos cem anos dizendo: Àquele que me soltar, eu abrirei os tesouros ocultos da terra. Ainda assim ninguém me libertou, e passaram-se quatrocentos anos. Então disse eu: Àquele que me soltar, eu satisfarei três desejos. Mesmo assim, ninguém me libertou. Em consequência, encerrei-me em cólera, e com excessiva ira disse para mim mesmo; Aquele que me soltar, daqui por diante, eu o matarei... (Bettelheim,1980, p. 38).
O conto nos mostra as modificações pelas quais uma criança vai passando entre a esperança e a desesperança, entre acreditar que a mãe irá voltar e permanecer congelada no sentimento de rejeição, entre a expectativa de ser amada e as explosões de agressividade diante de alguém que possa decepcioná-la novamente.
Com fundamento nas contribuições acima, podemos reconhecer o quanto, no delicado processo de uma adoção, a ajuda de intermediários se faz imprescindível para a elaboração dos sentimentos envolvidos.
O papel dos intermediários
Ozoux-Teffaine (2004) destaca a importância de um trabalho de acompanhamento que ajude os adotantes a atravessar o período intermediário, marcado por angústias persecutórias, em direção à construção da filiação. Crine e Nabinger (2004), por sua vez, explicitam a necessidade da mediação de um espaço-tempo transicional para que ambas as partes possam elaborar gradativamente expectativas e frustrações. Para a autora, a equipe local preenche de alguma forma o papel de continente de esperanças, ilusões e angústias em momentos chaves, principalmente, quando complicações ocorrem, geralmente na segunda semana de convivência, quando após as novidades, pedidos feitos pelas crianças se sucedem e os limites dos pais são testados.
Os estudos realizados durante o período de habilitação dos requerentes têm por objetivo verificar a capacidade de acolhimento e desejo de exercer a parentalidade. Paiva (2004) comenta que as devoluções ainda ocorrem por dificuldades de adaptação de ambas as partes e por conflitos que se revelam na formação do novo vínculo. A autora relembra a necessidade de um tempo para que os pais adotivos possam elaborar a nova condição e se adaptar às mudanças que advém com a chegada de uma criança, principalmente quando se trata de uma adoção tardia. A existência de um período de convivência antes da adoção ser legalmente deferida é valorizada, pois visa permitir que as dificuldades e dúvidas existentes sejam dirimidas.
Peiter (2008, 2011) defende a necessidade de intermediação realizada por profissionais especializados durante o processo de colocação de uma criança em família adotiva. Insiste no fato de que muitas crianças disponíveis para a adoção não estão preparadas psicologicamente para ligarem-se a outra família, de modo que se deve priorizar a dimensão do tempo psíquico da criança em relação ao tempo jurídico. Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indicar a necessidade de preparação gradativa para o desligamento da instituição, a autora não encontrou material publicado que relatasse este trabalho em instituições de abrigo. Na maior parte delas o que se realiza é uma avaliação da criança, de modo a concluir sobre sua “adotabilidade”. É importante relembrar que esta foi a motivação que provocou o encaminhamento de Jéssica ao Serviço de Psicologia Aplicada de uma Universidade. Contudo, o que se evidenciou durante os atendimentos, foi a urgência de um trabalho de preparação muito mais do que a necessidade de uma avaliação psicodiagnóstica.
Ghirardi (2008), ao abordar os aspectos da subjetividade de pais adotivos envolvidos com a experiência de devolução, verificou que devido à ferida aberta no narcisismo parental, intensificavam-se conflitos já existentes e eram gerados sentimentos de incapacidade. Vivências anteriores ligadas ao desamparo são reeditadas e a devolução provoca intenso sofrimento psíquico tanto nas crianças quanto nos adotantes. A atuação dos profissionais de psicologia é fundamental principalmente no suporte emocional a ser dado à criança.
Os psicólogos procuram realizar atendimentos e orientações, objetivando facilitar a adaptação entre a criança e a família. A equipe técnica deverá ajudar a criança em seu luto pela mãe de origem assim como aos futuros pais adotivos que nem sempre conseguem lidar com a rejeição. Quando se considera inviável a permanência da criança na família substituta, ocorre o seu abrigamento, sendo realizada uma audiência especial que antecede a formalização da desistência.
No caso relatado, os candidatos à adoção, vindos do estrangeiro, diante de um contexto e de uma língua desconhecida, podem ter tido acentuada uma fragilidade pré-existente, sendo levados a perder a confiança em sua capacidade de parentalidade. Diante da regressão de Jéssica, o casal não compreendeu suas reações; apesar do pai fazer movimentos de uma maior aproximação afetiva, a mãe parecia priorizar a necessidade de educá-la. Durante o período de convivência, a equipe técnica procurou trabalhar com os adotantes as dificuldades que foram surgindo; entretanto, ficou evidente que não haviam podido elaborar questões de suas histórias pessoais que favorecessem a construção da parentalidade nem apresentaram recursos psíquicos para dar conta do que encontraram.
De acordo com Golse (2004) há uma dimensão defensiva na narratividade que, ao realizar processos de ligação, tem uma função antitraumática. Portanto, não poder falar ao outro, não poder falar a si mesmo reforça o trauma. No caso de Jéssica, fica clara a necessidade de um trabalho terapêutico a ser feito para promover uma elaboração da vivência traumática, através da construção de um vínculo de confiança que lhe permita ressignificar sua história.
Considerações finais
Muitas vezes, um forte sentimento de insegurança marca a existência de crianças adotadas tardiamente, em virtude das limitadas condições de investimento afetivo e de estabilidade emocional apresentadas pelas figuras significativas que fizeram parte de suas histórias.
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Quando os adultos que se propõem a cumprir o papel de pais adotivos são incapazes de corresponder à demanda da criança, corre-se o risco de um novo abandono, uma nova decepção, uma descrença nos adultos, gerando profundas sequelas que poderão ficar para sempre impressas na vida destas crianças. O trágico desencontro entre Jéssica e seus candidatos a pais reforça a relevância da dimensão ética a ser preservada em situações em que de modo frequente os sentimentos podem se apresentar em um equilíbrio precário. No caso em questão, a avaliação psicológica da criança apontava para um comprometimento cognitivo e afetivo ligado às condições ambientais em que viveu, resultando em um quadro onde se misturavam extrema carência, idealização de uma família “perfeita”, sentimentos de desconfiança e comportamentos agressivos. Tal situação teria demandado uma cuidadosa preparação dos pais, no sentido de ajudá-los a promover acolhimento e estímulos à criação de vínculos de confiança. Estes pais, no curto período do estágio de convivência, defrontaram-se com dificuldades para as quais não encontraram condições emocionais que lhes permitissem superá-las.
Os técnicos que fazem a intermediação durante o período de convivência têm em sua experiência histórias nas quais o desejo dos adotantes é posto à prova. Para tal, o apoio do psicólogo pode ser imprescindível, ajudando os adultos na promoção de um “ambiente suficientemente bom” como preconiza Winnicott (2000), que sobreviva aos ataques da criança, não confirme suas ansiedades de abandono e lhes possibilite vislumbrar novos horizontes existenciais. Entretanto, a situação descrita neste trabalho nos remete à necessidade de uma cuidadosa reavaliação do que vem sendo feito até hoje de modo a encontrar formas mais efetivas de contribuir para o delicado processo de intermediação, em seu objetivo de ajudar na construção de vínculos de confiança entre a criança e os futuros pais.
Referências
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Endereço para correspondência
Lidia Levy de Alvarenga
E-mail: llevy@puc-rio.br
Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt
E-mail: mines@puc-rio.br
Recebido em: 19/06/2013
Revisado em: 09/08/2013
Aceito em: 16/08/2013
1 Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.
2 Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.