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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.17 no.2 Porto Alegre dez. 2013
ARTIGOS
As reverberações da separação conjugal dos pais no relacionamento entre irmãos
Reverberations of parental divorce on fraternal relationship
Angélica Paula Neumann1, I; Eliana Piccoli Zordan2, II
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
II Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo investigar as reverberações da separação conjugal dos pais no relacionamento fraterno. A amostra foi composta por três pares de irmãos adolescentes, com idades entre 13 e 16 anos, filhos de pais separados. Os instrumentos utilizados foram um questionário sobre a configuração familiar, uma entrevista semiestruturada e o Familiograma. A análise dos dados foi realizada via Análise de Conteúdo. Os resultados indicam que a organização familiar anterior e após a separação conjugal dos pais, os padrões afetivos, o modo como os pais lidam com a ruptura conjugal e o modo como reorganizam as relações coparentais são fatores que interferem no relacionamento fraterno após a separação. Também são relevantes os aspectos específicos da fase do desenvolvimento, pois quando os pais, após a ruptura da conjugalidade, mantêm uma coparentalidade funcional, os filhos ficam mais liberados para seguir em suas tarefas desenvolvimentais.
Palavras-chave: Relacionamento fraterno, Separação conjugal, Coparentalidade, Família.
ABSTRACT
The aim of this study was to investigate the reverberations of parental divorce in sibling’s relationships. The sample was composed by three pairs of teenage brothers, aged from 13 to 16 years, children of divorced parents. The instruments used were a questionnaire about family configuration, a semi-structured interview and Familiogram. Data analysis was performed by Content Analysis. Findings indicate that the family structure, the emotional patterns and the way parents have dealt with marital disruption and have reorganized coparental relations are factors that influence on fraternal relationship after divorce. It’s also important to consider the specificities of adolescence. When parents maintain functional parental relations after divorcing, their children are free to move on with their developmental tasks.
Keywords: Fraternal relationship, Divorce, Coparenting, Family.
Introdução
O relacionamento fraterno é, de forma geral, o mais longo de todos os relacionamentos da vida de uma pessoa. Dotado de características e peculiaridades próprias, é o único vínculo íntimo e diário com pessoas iguais e pertencentes ao mesmo nível da hierarquia familiar. Os irmãos são as pessoas com quem se compartilham as raízes e com quem se mantêm as relações mais francas, constituindo-se tanto como fonte de conflitos quanto de ajuda e companheirismo ao longo da vida (McGoldrick & Watson, 2011; Osório, 2002; Papalia, Olds, & Feldman, 2006; Silveira, 2002).
Apesar de estudos atuais sobre o tema focalizarem principalmente aspectos como competição, ciúme e rivalidade, muitos outros sentimentos fazem parte desta relação. As disputas entre os irmãos são comuns à maioria das famílias, porém possuem um caráter mais lúdico que agressivo e têm como finalidade a garantia da individualidade, o atendimento de interesses e, ocasionalmente, o desfrute de vantagens (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007). Na visão de Silveira (2002), a vivência destes sentimentos no relacionamento fraterno oportuniza o aprendizado de diferentes habilidades, servindo como um laboratório para as relações que serão experimentadas fora do núcleo familiar.
A relação fraterna sofre transformações no decorrer do desenvolvimento, assumindo características distintas em cada fase do ciclo vital. Sua qualidade também é suscetível à influência de fatores como o relacionamento entre o subsistema parental e deste com os filhos, o gênero, a diferença de idade, o temperamento e a dinâmica familiar, assim como as demais transformações que ocorrem ao longo do ciclo vital de cada indivíduo dentro da família (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007; McGoldrick & Watson, 2011; Silveira, 2002).
Em momentos de crise, como na vivência de separações conjugais, existe a tendência de ocorrer maior aproximação e aumento na intensidade das relações entre os irmãos, assim como maior interdependência entre eles. Nessas situações, o vínculo fraterno pode desempenhar um papel importante como sustentáculo do equilíbrio familiar (Fernandes, Alarcão & Raposo, 2007; Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007).
Em uma pesquisa brasileira sobre a percepção dos filhos acerca da separação de seus pais, Souza (2000) encontrou maior coesão entre o subsistema fraterno durante esse processo. Entretanto, a autora identificou na amostra estudada que, paralelamente a essa aproximação, houve tensão e bloqueio na comunicação, pois os participantes pouco conversaram entre si sobre a separação dos pais, seja no período da crise ou em momentos posteriores de suas vidas.
Oliveira e Cerveny (2010) estudaram o relacionamento entre irmãos no contexto do recasamento de seus pais e constatou que as relações no subsistema fraterno podem variar entre maior aproximação ou distanciamento. Outra pesquisa, que investigou o divórcio destrutivo, encontrou que o subsistema fraterno pode funcionar como um recurso de suporte aos filhos nas situações de conflito entre o par parental (Juras, 2011).
Cada vez mais frequentes na sociedade contemporânea, as separações conjugais e os divórcios têm se constituído como uma alternativa para a resolução de relacionamentos insatisfatórios (Féres-Carneiro, 2003; Krüger & Werlang, 2005; Nogueira, 2006; Zordan & Strey 2011), sendo considerados, por alguns autores, como uma crise normativa do ciclo vital (Carter & McGoldrick, 2001; Ríos-González, 2005). Nessa perspectiva, produzem um desequilíbrio no sistema, acarretando mudanças, perdas e ganhos que podem trazer oportunidades de crescimento e promoção desenvolvimental para todos os sujeitos envolvidos (Raposo et al, 2011; Yu, Pettit, Lansford, Dodge, & Bates, 2010, Linares, 2010). Mais que um evento isolado, é um processo complexo que envolve múltiplas tarefas, afinal, são grandes os ajustes que precisam ser feitos em nível emocional e prático, envolvendo a adaptação à separação e a organização da nova vida (Carter & McGoldrick, 2001; Linares, 2010; Peck & Manocherian, 2001; Souza, 2000).
Com base no espectro de mudanças que podem ocorrer na organização e nos papéis familiares em situações de separação conjugal e divórcio, esta pesquisa teve como objetivo investigar a reverberação da separação conjugal dos pais no relacionamento entre irmãos. Para isso, buscou identificar a percepção dos participantes acerca da relação com seus irmãos antes e após a separação de seus pais e verificar como esta relação se articula com a busca de diferenciação e independização esperada na adolescência.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa três pares de irmãos adolescentes com idades entre 13 e 16 anos, de nível socioeconômico e cultural médio. Três participantes eram do sexo feminino e três do sexo masculino. Em apenas uma das fratrias havia um terceiro irmão. No momento da pesquisa, os pais estavam separados há no mínimo dois e no máximo sete anos, e o genitor com quem eles moravam não estava residindo com um novo parceiro.
A tabela abaixo caracteriza os participantes:
Instrumentos
Foram utilizados três instrumentos para a coleta de dados: a) Questionário de identificação, formulado para obter informações sobre a configuração familiar dos participantes, b) Entrevista semiestruturada, com perguntas sobre o relacionamento fraterno no momento da separação conjugal dos pais, as possíveis reverberações deste fenômeno no relacionamento fraterno e o modo como os participantes percebiam o relacionamento com os seus irmãos no momento da entrevista, e c) Familiograma, um questionário fechado que avalia a percepção de afetividade e conflito em díades familiares (Baptista et al, 2009, Teodoro, 2006).
O Familiograma consiste em uma lista de 22 adjetivos a serem analisados por meio de uma escala Likert, dos quais 11 representam afetividade (carinhoso, alegre, agradável, verdadeiro, afetivo, protetor, amoroso, acolhedor, harmonioso, atencioso e precioso) e 11 conflitos (confuso, nervoso, estressante, baixo-astral, ruim, sufocante, tenso, frio, difícil, agressivo e chato). Apesar de esse instrumento medir os níveis de afetividade e conflito de maneira quantitativa, no presente estudo, o Familiograma foi utilizado como disparador para a investigação qualitativa do relacionamento fraterno. Nesse sentido, após o preenchimento pelos participantes, os mesmos foram solicitados a explicar os motivos de suas respostas.
Procedimentos
A amostra foi composta por conveniência, através de convite realizado em escolas para turmas de 8ª série do Ensino Fundamental e 1º e 2º anos do Ensino Médio. Os alunos que manifestaram interesse em participar da pesquisa foram contatados posteriormente por telefone, quando foi marcado um encontro com os pais para a explicação do estudo e para colher a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Realizou-se uma entrevista piloto na qual se constatou não ser necessário efetuar mudanças nos instrumentos. Devido a isso, as informações obtidas nessa entrevista foram inclusas na análise dos dados. A aplicação dos instrumentos foi individual. No rapport inicial, os participantes consentiram com a gravação em áudio da entrevista.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim sob o nº 0130.0.232.000-10. Todos os participantes, por serem menores de 18 anos, tiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por seus responsáveis antes da entrevista.
Análise dos dados
As entrevistas semiestruturadas e os comentários verbais ao Familiograma foram transcritos na íntegra e posteriormente submetidos à Análise de Conteúdo, na modalidade Análise Temática (Minayo, 2007). Esta modalidade consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, e foi operacionalizada através de três etapas: 1) Pré-Análise, que consiste na organização dos dados e na elaboração de indicadores que orientem a compreensão das informações, 2) Exploração do material, que se refere à classificação dos dados através da elaboração de categorias de análise, e 3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação, que se configura como a análise propriamente dita, a partir da qual são propostas inferências e interpretações associadas ao referencial teórico utilizado.
Resultados e Discussão
A partir da avaliação dos dados coletados, foram formuladas três categorias de análise: "Sentimentos frente à separação dos pais", "Reverberações da separação conjugal no relacionamento fraterno" e "Relacionamento fraterno atual", sendo esta última dividida em duas subcategorias, denominadas "É briga por nada mesmo" e "A gente briga, mas se gosta".
Sentimentos frente à separação dos pais
No período que antecedeu a separação conjugal dos pais, a maioria dos participantes referiu ter percebido que algo não estava bem no relacionamento de seus genitores. Quando a separação de fato aconteceu, os sentimentos despertados nos filhos foram variados. Para as meninas, o sentimento predominante frente à ruptura conjugal foi de choque, como exemplificado na fala abaixo:
"Um pouquinho antes dos meus pais se separarem eles já tavam meio de mal, assim, daí a minha mãe falou que provavelmente eles iam se separar [...] Nossa, eu fiquei em estado de choque, desespero [...] a minha mãe tinha me falado que isso podia acontecer, mas eu tinha, hum, uma esperança de que não acontecesse, né?". (Irmã, Fratria 3, 15 anos)
Entre os meninos, o irmão da fratria 3 referiu ter achado estranho, enquanto os irmãos das fratrias 1 e 2 relataram poucas lembranças e emoções sobre o contexto da separação dos pais:
"Ah, sei lá, que... eu morava numa casa daí meu pai foi morar em [outro lugar]. Ah, sei lá, foi estranho (risos). Tipo... sei lá... eu ia ficar sem ver todos os dias meu pai assim. Eu vejo ele todo dia, mas não por tanto tempo que nem antes [...] Ah, minha irmã e minha mãe ficaram tristes, eu sei lá, nem tanto. Ele ainda é meu pai." (Irmão, Fratria 3, 13 anos)
Como se pode constatar, a notícia da separação dos pais gerou diferentes sentimentos nos irmãos da mesma fratria, os quais variam entre indiferença, tristeza e sensação de "choque", esta última predominante entre as participantes do sexo feminino. Mesmo diante da percepção de conflito entre os pais e das ameaças prévias de separação, para estas participantes, a notícia de que um dos pais realmente iria sair de casa despertou este sentimento, resultado encontrado também por Brito (2007) ao estudar filhos de casais em processo de separação. Uma hipótese para essa diferença de gênero reside na ideia de Moura e Matos (2008), de que filhas mulheres têm maior necessidade de proximidade emocional e maior dependência do relacionamento dos pais, bem como maior sensibilidade aos seus conflitos.
Independente do sentimento frente à separação dos pais, os participantes relataram em unanimidade que não conversaram com seus irmãos sobre o assunto, como demonstra a fala do irmão da fratria 1:
"Não, a gente não conversou, a gente não sabia muito sobre isso [...] nós era pequeno [...] nem entendia direito". (Irmão, Fratria 1, 16 anos)
Para Oliveira e Cerveny (2010), independente do gênero dos filhos, sentir-se impactado é uma das primeiras reações experimentadas frente à notícia da separação dos pais, acompanhado da sensação de confusão e de estar perdido. No presente estudo, o impacto em saber que a própria família passaria por um processo de ruptura pareceu mobilizar os filhos a tal ponto que os impediu até mesmo de conversar uns com os outros sobre o assunto, constatação realizada também por Souza (2000), quando identificou que, seja durante ou depois da separação conjugal, os irmãos pouco conversaram sobre o tema. Diante desta dificuldade, pode-se hipotetizar que o falar sobre seja sentido como a concretização da separação para os filhos, pois implica em eles mesmos verbalizarem e admitirem um para o outro a ruptura familiar.
Reverberações da separação conjugal dos pais no relacionamento fraterno
Os participantes relataram percepções diversificadas sobre as reverberações da separação conjugal dos pais no relacionamento com seus irmãos. De modo geral, essas percepções variaram entre aumento nas brigas, maior distanciamento e maior aproximação, assim como percepção de nenhuma mudança.
Para a fratria 1, um aspecto que se destaca é o aumento na briga entre os irmãos. Segundo o irmão desta fratria, por um lado, essas brigas são decorrentes da fase do ciclo vital que vivenciam:
"Nós não brigava muito quando nós era pequeno. Mais agora que a gente começou a ficar mais adolescente nós começamos a brigar mais. [...] eu acho que da mesma maneira que nós agia quando era pequeno nós tamo agindo agora, só tamo brigando um pouquinho mais, por causa da nossa idade". (Irmão, Fratria 1, 16 anos)
De fato, a adolescência é uma fase de muitas mudanças físicas e emocionais. Esta etapa do ciclo vital se caracteriza pela solidificação da identidade e estabelecimento da autonomia em relação à família (Preto, 2001, Peck & Manocherian, 2001), aspectos que podem exacerbar o conflito entre irmãos.
Por outro lado, porém, o irmão da fratria 1 demonstra que a organização dos pais no cuidado dos filhos e no estabelecimento das novas rotinas também é um fator de interferência no relacionamento entre os irmãos, podendo facilitá-lo ou dificultá-lo:
"Mas ano passado, quando a gente morava com a mãe, a gente brigava bem mais do que a gente briga agora. [...] Não sei. Acho que é porque a gente tá fazendo bem mais coisa, tipo, agora é dividido os serviços, daí a gente não briga tanto". (Irmão, Fratria 1, 16 anos)
Desde a década de 80, estudos vêm demonstrando que os filhos respondem à maneira como seus pais se relacionam. Pesquisa de MacKinnon (1989) mostrou que a qualidade da relação fraterna está relacionada com a qualidade da relação entre os pais, independente de estarem casados ou separados. Na década seguinte, Erel e Burman (1995) comprovaram a chamada hipótese spillover, que trata da ideia de que a maneira como a relação conjugal é vivida transborda para a relação entre pais e filhos. Essa hipótese, também comprovada por pesquisadores brasileiros (Mosmann, Zordan, & Wagner, 2011), reitera a importância de considerar as relações entre a díade conjugal e/ou parental quando se investigam crianças e adolescentes. Nesse sentido, a relação fraterna pode se constituir como um "termômetro" da dinâmica familiar durante o processo de adaptação à separação dos pais, à medida que tem o potencial de denunciar dificuldades maiores na organização da família.
O relato das fratrias 2 e 3 corrobora tal hipótese. Na fratria 2, ambos os irmãos relataram que as brigas são uma constante em suas vidas. "Brigas", para esta fratria, foi um tema muito presente em todas as falas, o que pode estar relacionado a um padrão familiar de relacionamento em que o conflito predomina, uma vez que seus pais já haviam ameaçado separar-se outras vezes:
"[...] eles se separaram, não sei, brigaram. [...] Eles fazem o que querem, né?. [...] eles já tinham falado que iam se separar outras vezes por causa de outros motivos". (Irmão, Fratria 2, 14 anos)
A forma como a relação fraterna se constrói está vinculada aos valores, ao compartilhamento de experiências e aos espaços familiares propiciados pelo sistema, os quais irão oferecer as ferramentas para que se estruture uma relação fraterna de cunho mais ou menos positivo (Buchanan, McGue, Keyes, & Iacono, 2009; Killoren, Thayer, & Updegraff, 2008; Silveira, 2002). Na perspectiva de Mosmann, Zordan e Wagner (2011), os filhos aprendem formas de relacionamento e de resolução de problemas ao presenciar o modo como os pais solucionam seus conflitos, comunicam-se, demonstram afeto e, principalmente, adaptam-se às dificuldades da vida. Desta forma, depreende-se que, para a fratria 2, as brigas ocorridas após a separação conjugal dos pais foram uma continuidade do relacionamento fraterno prévio. Conforme apontam Hack e Ramires (2010), a separação dos pais muitas vezes implica em descontinuidades e rupturas no holding familiar, gerando sentimentos de perda e desamparo.
Na fratria 3, por sua vez, a separação conjugal dos pais não gerou mudanças significativas no relacionamento fraterno, mas possibilitou-lhes maior aproximação decorrente da necessidade de permanecerem sozinhos enquanto a mãe trabalhava:
"Não, eu acho que não afetou muito o relacionamento com o meu irmão [...], acho que talvez o que mudou é que como nós ficamos mais tempo juntos, só eu e ele, no caso, porque a minha mãe trabalha e o meu pai não mora com a gente, que a gente acabou se aproximando um pouco mais assim, mas não mudou". (Irmã, Fratria 3, 15 anos)
Através de suas falas, ambos os irmãos demonstraram possuir um bom relacionamento, o que pode estar associado a uma organização familiar que prevê a continuidade nos padrões relacionais, pois mesmo não residindo com o pai, o irmão desta fratria afirmou que o vê todos os dias. Pesquisas demonstram que a frequência de visitas do genitor que não reside com os filhos está associada ao envolvimento parental, mostrando que, quanto maior a proximidade dos genitores que não detêm a guarda dos filhos com os mesmos, maior a tendência de envolvimento nas práticas educativas parentais e melhor o relacionamento dos filhos com seus pais (Fabricius & Luecken, 2007; Grzybowski & Wagner, 2010a). Estes achados corroboram a afirmação de Carter e McGoldrick (2001) de que, em situações de separação conjugal, todos os membros da família se beneficiam quando existe uma paternidade continuamente compartilhada.
Relacionamento fraterno atual
A análise do relacionamento atual dos participantes com seus irmãos revelou duas subcategorias: "É briga por nada mesmo" e "A gente briga, mas se gosta".
Na subcategoria "É briga por nada mesmo", a maioria dos participantes destacou que as brigas, independente de terem aumentado ou diminuído após a separação dos pais, são uma constante no relacionamento com seus irmãos:
"Melhorou um pouco, mas a gente continua brigando, assim, bastante". (Irmã, Fratria 1, 14 anos)
Os motivos atribuídos a essas brigas foram: ser "coisa de irmão", "besteiras", brincadeiras e disputas:
"Por besteirinha assim sabe, por nada. Eu às vezes começo incomodando ela, ela às vezes me incomoda. Daí começa a brigar [...]". (Irmão, Fratria 2, 14 anos)
Considerando a complexidade e multideterminação envolvida nos processos familiares, entende-se que as brigas entre os irmãos perpassam tanto a organização familiar após a ruptura quanto o momento do ciclo vital familiar. Assim, a organização funcional e idiossincrática da família torna-se uma maneira efetiva para minimizar as relações conflituosas, quando exacerbadas, e possibilitar que as brigas assumam um caráter positivo no processo de diferenciação e desenvolvimento da individualidade dos irmãos.
A subcategoria "A gente briga, mas se gosta" revela que, para a maioria dos participantes, apesar das brigas, circulam entre os irmãos sentimentos de afeto e proteção:
"Mas a gente respeita um ao outro. A gente briga, mas se gosta bastante". (Irmã, Fratria 3, 15 anos)
"Eu acho que eu sou bastante". Protetor assim eu sou muito, eu sou bastante. Com os dois eu sou protetor. (Irmão, Fratria 2, 14 anos)
Esta circularidade entre momentos de brigas e sentimentos de afeto, carinho e proteção vai ao encontro das propostas teóricas encontradas na literatura (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007; Osório, 2002; Papalia et al, 2006; Peck & Manocherian, 2001; Silveira, 2002). Nas três fratrias estudadas, a separação conjugal dos pais ocorreu quando os filhos estavam na infância tardia ou na pré-adolescência, o que possibilitou um período inicial de adaptação, em que as mudanças inerentes à puberdade não eram tão intensas. Nesse sentido, no momento atual da adolescência, a separação não parece ter se constituído como um complicador da busca pela independização e diferenciação esperada nesta fase do ciclo vital, dada a compreensão proposta por Goldsmid e Féres-Carneiro (2007) de que as brigas adolescentes entre irmãos são resultado da necessidade de cada irmão de garantir o seu espaço e se individualizar. Nesse sentido, pode-se entender que a atribuição causal feita pelo irmão da fratria 1 e pela irmã da fratria 2, de que as brigas têm relação com a entrada na adolescência, significa que, de forma geral, a separação conjugal nestas famílias não parece ter dificultado esta busca por diferenciação e independização.
Uma hipótese possivelmente relacionada a esse entendimento é a compreensão de que, nas fratrias estudadas, a manutenção da parentalidade pelos pais permitiu que os filhos pudessem permanecer em seus papeis de filhos no sistema familiar, assim dando continuidade ao processo de resolução das tarefas inerentes à fase do ciclo vital que estavam vivendo. Diversas pesquisas sustentam essa ideia, apontando que a reorganização da relação interpessoal entre os ex-cônjuges e a elaboração da dissolução conjugal estão diretamente relacionadas com a qualidade das relações coparentais e com o nível de conflito familiar após o divórcio (Dantas, Jablonski, & Féres-Carneiro, 2004; Grzybowski & Wagner, 2010b; Lamela, Figueiredo, & Bastos, 2010; Sbarra & Emery, 2008).
Nesta pesquisa, não se investigou a qualidade do relacionamento dos pais antes e após a separação conjugal, mas diante das circunstâncias já expostas, pode-se inferir que, quando os pais conseguem resolver os problemas da conjugalidade através da separação conjugal e são capazes de dar conta das tarefas da parentalidade de forma funcional, toda a família terá condições de se reorganizar frente aos desafios inerentes ao ciclo vital. Isso possibilita aos filhos vivenciar as fases do desenvolvimento subsequentes com todos os ganhos, perdas, alegrias e conflitos que lhes são inerentes, inclusive na vivência do relacionamento fraterno.
Considerações finais
Esta pesquisa teve como objetivo investigar a reverberação da separação conjugal dos pais no relacionamento entre irmãos. Entre os principais resultados, encontrou-se que o relacionamento fraterno de filhos de pais separados está vinculado às etapas do ciclo vital e ao modo como cada família se organiza frente à separação conjugal, o que se articula com os padrões afetivos e relacionais anteriores à ruptura e ao modo como os pais lidam com esta ruptura e reorganizam as relações coparentais.
De modo geral, na amostra estudada, a separação conjugal dos pais não parece ter dificultado a busca de independização e diferenciação esperadas na adolescência, visto que o relacionamento fraterno dos participantes não difere do apresentado pela literatura em adolescentes de famílias denominadas originais. Isso parece estar relacionado ao fato de os pais terem prezado pela manutenção da parentalidade, permitindo aos filhos manterem-se nos papeis filiais, sem precisar assumir tarefas e papeis que não lhes cabem no sistema familiar.
Dentre as limitações do estudo, ressalta-se que apenas os filhos foram entrevistados, enquanto a separação conjugal é um fenômeno complexo que envolve diferentes figuras familiares. Certamente, a participação de outros membros da família enriqueceria o entendimento e as conclusões alcançadas. Além disso, é necessário considerar que não foram investigados outros fatores familiares que podem facilitar ou dificultar a relação entre irmãos no contexto da separação conjugal de seus pais, como o relacionamento com os genitores, as circunstâncias nas quais a separação conjugal ocorreu e a relação com outras pessoas significativas para os participantes. Incluir estes aspectos pode ampliar a compreensão da complexidade envolvida nas relações familiares nesse contexto. Outro fator que merece destaque nos estudos sobre famílias divorciadas refere-se às questões judiciais da separação, tais como as concessões de guarda e as demandas relativas à pensão alimentícia, visto que esses arranjos também repercutem na reorganização familiar, tanto em seus aspectos práticos quanto emocionais e relacionais.
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Endereço para correspondência
Angélica Paula Neumann
E-mail: angelicaneumann@gmail.com
Eliana Piccoli Zordan
E-mail: epzordan@uricer.edu.br
Recebido em: 09/10/2013
Revisado em: 29/01/2014
Aceito em: 03/02/2014
1 Psicóloga pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
2 Psicóloga. Doutora em Psicologia. Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim.