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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.1 Porto Alegre jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Transformações dos laços vinculares na família: uma perspectiva psicanalítica

 

Transformations of bond ties in family: a psychoanalytic perspective

 

 

Geisa Felippi1; Luciara Gervasio Itaqui2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo destacar as principais transformações da estrutura familiar na cultura ocidental moderna, pontuando mudanças históricas relevantes desde a época pré-moderna até a contemporaneidade. Aborda-se os laços vinculares na sociedade contemporânea, demonstrando suas relações com as principais reconfigurações ocorridas na estrutura familiar, utilizando-se da teoria psicanalítica como base para esse entendimento, objetivando refletir sobre as implicações para a clínica psicológica. Conclui-se que os sistemas simbólicos variam de uma cultura para outra, não sendo a proximidade genealógica, ou a consanguinidade, que determinam a qualidade dos vínculos, mas o lugar que o indivíduo ocupa no imaginário, e na circulação do desejo de quem o acolhe no mundo. Assim, o modelo de família tradicional pode estar sofrendo mudanças no sentido de novas configurações vinculares e cada individuo poderá adaptar-se e reinventar-se.

Palavras-chave: Família, Contemporaneidade, Psicanálise, Laços vinculares.


ABSTRACT

This article aims to highlight the major changes in the family structure in modern Western culture, analyzing relevant historical changes since the pre-modern era to contemporary times. It approaches the bond ties in contemporary society, demonstrating its relations with major reconfigurations in family structure, using the psychoanalytic theory as a basis for this understanding in order to reflect on the implications for the psychological clinic. We conclude that symbolic systems vary from one culture to another, is not the genealogy, or inbreeding, which determine the quality of the links, but the place that the individual takes the imaginary, and the circulation of desire, of whom welcomes him in the world. Thus, the traditional family model may be experiencing changes towards new link configurations and each individual can adapt and reinvent itself.

Keywords: Family, Contemporaneity, Psychoanalysis, Vinculares ties.


 

 

Introdução

Desde o século XVI até os dias atuais, a noção de família vem sofrendo importantes modificações em sua forma e em sua estrutura, assim como nas funções de cada um de seus membros, numa sutil correspondência com as transformações que propiciaram as condições de emergência da sociedade moderna e as de seu declínio. De acordo com estudos históricos, sociológicos e antropológicos da família (Ariès, 1981; Elias, 1993, 1994; Foucault, 1978/2012), a maior parte das afirmações de senso comum relativas à família no mundo ocidental moderno referem-se às suas características dentro do universo das camadas médias, tão afins ao núcleo ideológico da cultura ocidental moderna.

Durante séculos, a família baseou-se no sistema patriarcal, no qual o pai era tido como um Deus poderoso que reinava em seu lar. Com o passar do tempo, as mulheres começaram a reivindicar seus direitos e a família patriarcal começa a se transformar, passando por importantes mudanças na sua constituição, que acarretaram também mudanças no interior da família, em seu espaço subjetivo, articulado ao espaço social. É no interior da nova família burguesa que surge o investimento na criança e a construção da infância moderna (Ariès, 1981), responsável pela produção da tríade isolada e autocentrada do pai, mãe e filho, onde o laço conjugal passa a organizar a “matriz para o indivíduo adulto” (Foucault, 1978/2012, p. 199).

Desde o declínio do poder patriarcal e a ascensão das mulheres, uma nova ordem familiar vem se formando e transformando, o que gerou certa angústia nos críticos culturais ao apontarem para uma possível dissolução da família, dividindo a opinião dos ‘especialistas’. Seria de fato uma dissolução da família ou se trataria de uma transformação?

Para Lasch, “na verdade a família vem se desintegrando lentamente há mais de cem anos” (Lasch, 1991, p. 20). Já na compreensão da psicanalista Elisabeth Roudinesco (2003), a família tem sido a cada vez reinventada sobre novas bases. A autora levanta o paradoxo de que a família encontra-se atualmente em “desordem”, porém ela segue sendo “amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições”, tornando-se a única importância com garantia de proteção ao qual ninguém quer abrir mão (Roudinesco 2003, p. 198).

Se, parafraseando Marx (1859/2010), a sociedade não se coloca questões a que já não tenha condições de responder, pode-se acompanhar quais questões colocaram-se sobre a família na tentativa de compreender seus processos de reconfiguração social. A partir disso, serão apresentados alguns destes aspectos históricos, que servirão de apoio para pensar sobre as questões colocadas sobre a família pelo contexto social atual, articulando a psicanálise como base para esse entendimento, objetivando refletir sobre as implicações disso na clínica psicológica.

Breve contextualização histórica

A família pré-moderna (Séc. XVI ao XVIII)

A família pré-moderna define-se pelo sistema do patriarcado, no qual predomina o poder do pai sobre a família, bem como o poder do estado sobre a sociedade. Neste contexto, a mulher restringe-se ao trabalho doméstico e a maternidade.

Roudinesco (2003) sustenta que a família deste período tinha como função principal transmitir o patrimônio, não levando em consideração a vida sexual e afetiva do casal. A autora afirma ainda que neste modelo de família a célula familiar repousa em uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal (Roudinesco, 2003, p. 19). O pai era o líder da família, estando nele o poder e o dever de controlá-la (Ariès, 1981).

Ariès e Chartier (1991) apontam que as mulheres, por sua vez, ficavam confinadas ao lar, eram excluídas dos papéis públicos e das responsabilidades políticas, administrativas, municipais, corporativas entre outros. A ocupação da mulher era prioritariamente doméstica, cuidando da casa, e sua vocação era ser mãe e esposa, papel esperado pela igreja e pela sociedade civil. Ela exercia o papel apenas de reprodutora, ocupando um lugar submisso e desqualificado, em que o masculino era superior e englobava o feminino.

As crianças dessa época pré-moderna eram vistas como ‘adultos em miniatura’,3 pois sua educação era baseada nos ensinamentos dos mais maduros, bem como sua convivência com crianças era escassa ou mesmo inexistente. As escolas eram frequentadas apenas pelos clérigos, portanto, a educação das crianças realizava-se a partir de atividades domésticas.

No entanto, começa-se a valorizar a educação da criança, não só o clérigo teria direito de frequentar escola. Começa a existir uma preocupação de isolar a juventude do mundo adulto, dessa forma, os jovens frequentariam a escola juntamente com crianças, aprenderiam no meio delas e não mais nas casas de famílias aprendendo sobre a vida adulta. Isso acarreta também uma aproximação da criança com a família, pois os pais se concentraram na criança. Roudinesco (2003) afirma que o pai toma posse do filho primeiramente por questão de sangue, por obter semelhanças e segundo por dar-lhe um nome, com o qual lhe confere uma identidade.

A família moderna (Séc. XVIII ao XIX)

A Revolução Francesa é o marco principal para que a família pré-moderna sofra modificações em sua formação e constituição. Nesse momento, legitima-se a denominação de família nuclear. Percebe-se aqui que a família se torna mais restrita, na qual os avós já não fazem mais parte desse núcleo, já não habitam o mesmo espaço. Neste período histórico-social, a família torna-se uma das estruturas de base da sociedade.

Com a Revolução Francesa a questão do patriarcado é questionada. Roudinesco (2003) afirma que a imagem do pai dominador cedeu lugar à representação de uma paternidade ética, sendo assim, o nascimento de uma nova figura paterna passa a imperar.

Nesse sentido, o pai da sociedade não se assemelha mais a um Deus soberano, foi acuado em um território privado, e questionado pela perda da influência da Igreja em benefício do Estado. O pai começa a tornar-se patriarca do empreendimento industrial, voltado para a economia. Nessa época, ocorre a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, ocasionando uma tentativa de igualdade de direitos aos cidadãos, isto é, equiparação de direitos entre homens e mulheres.

Os questionamentos com relação ao poder patriarcal abrem espaço para que as mulheres comecem sua própria revolução. O movimento feminista se propõe a reivindicar, principalmente, a liberdade sexual, ou seja, o direito da escolha sobre a maternidade e o direito de sentir desejos e prazeres.

Roudinesco (2013) afirma que esse movimento foi revolucionário, colaborando para a emancipação das mulheres, o que contribuiu para que a sexualidade feminina fosse valorizada e para que a questão do casamento também se modificasse. O matrimônio na época patriarcal era arranjado pelos familiares, já na família pré-moderna isso muda, resultando no casamento por amor.

Começa-se a reconhecer a família monogâmica, pois une um homem e uma mulher com consentimento mútuo, privilegiando a paixão, o amor e o desejo sexual (Roudinesco, 2003). Através do movimento feminista4 a mulher conquista um novo espaço, tendo um ganho de poder maior do que tinham. Ela é considerada como dotada de uma capacidade afetiva maior que a dos homens e eles, por sua vez, como seres dotados de maior racionalidade.

Sendo assim, a teoria da diferença sexual e moral entre os sexos ocasiona em um movimento fundamental da descontinuidade histórica que se operou através dela: a figura da mãe. A mulher passa, então, a possuir o instinto materno, uma invenção estritamente dessa época, pois as mães pré-modernas não tinham o instinto nem o amor materno, que se constitui na fase moderna.

“O elemento distintamente novo, aqui, era a associação da maternidade com a feminilidade, como sendo qualidades da personalidade – qualidades estas que certamente estavam impregnadas de concepções bastante firmes da sexualidade feminina” (Giddens, 2003, p. 54). Nesse período, configura-se também a separação entre o público e o privado, com o ganho do poder das mulheres, há uma transformação civilizadora, na qual a governabilidade vai mudar, vai se transformar e se deslocar no século XIX.

O valor do Estado-nação que era medido pela extensão de seu espaço territorial, passa a ser definido pela qualidade de vida de sua população. Surge, então, a preocupação com a família, como critério de qualificação da população, e o poder político começa a dar importância para as boas condições de saúde e de educação no interior da família nuclear burguesa.5

A criança começa a ser uma figura importante na família, além de passar pelo desejo da mãe, ela passa a ter um papel importante para a economia. A figura da mãe é complementar dessa nova forma de economia política e de maneira que a criança passa a ter esse estatuto importante. Esta nova concepção de infância colaborou para o surgimento de uma nova ideia de família. A criança deixou de ser vista como um pequeno adulto, passando a ser uma pessoa com qualidades características a ela: suscetibilidade, vulnerabilidade, inocência, onde exigia um tempo de formação afetuosa, protegida e longa (Lasch, 1991).

Ter uma família bem qualificada implicava que as crianças seriam objeto de investimento6, sendo assim, a escolaridade passou a ser obrigatória. A criança passa a ser a representação do futuro, toda a organização familiar se dará em torno do bebê, uma nação rica é aquela que investe e educa a criança.

Com o poder que a mulher começa, aos poucos, a adquirir, é ela quem vai cuidar das crianças, torna-se responsável pelo investimento doméstico: família, escola e saúde. A mãe é uma espécie de gestão da qualidade dos filhos da família nuclear burguesa.

Foucault (1978/2012) afirma que apesar de existir novas regras, as relações entre pais e filhos devem manter-se bem codificadas e respeitar as obrigações que ambos necessitam exercer, tais como: obrigações de ordem física (higiene), amamentação das crianças pela mãe, vestuário adequado, entre outros cuidados e benefícios em relação à saúde e bem-estar da criança.

O autor segue afirmando que a família deve-se tornar um núcleo concentrado, saciado, fixo, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança, organizando-se de forma que fique mais próxima à infância, tendo a tendência de tornar-se um espaço instantâneo de sobrevivência e de evolução, acarretando assim, um efeito de intensificação dos indivíduos e das relações que integram a família no sentido específico: pais e filhos.

Foucault (1978/2012) afirma que com esses acontecimentos ocorre também uma inversão de eixos no laço conjugal, sustentando que “o laço conjugal não serve mais apenas (nem mesmo, talvez, em primeiro lugar) para estabelecer a junção entre duas ascendências, mas para organizar o que servirá de matriz para o indivíduo adulto. Sem dúvida, ela serve ainda para dar continuidade a duas linhagens e, portanto, para produzir descendência, mas também para fabricar, nas melhores condições possíveis um ser humano elevado ao estado de maturidade. A nova “conjugalidade” é, sobretudo, aquela que congrega pais e filhos. A família – aparelho estrito e localizado de formação – se solidifica no interior da grande e tradicional família-aliança” (Foucault, 1978/2012, p. 199).

A questão da saúde torna-se um fato importante também para a economia da sociedade, ocasionando em uma revolução médica. Foram criadas inicialmente áreas da saúde específicas para as mulheres e crianças: a Ginecologia, que por sua vez, irá controlar as doenças; a Obstetrícia irá cuidar para que não ocorram acidentes durante o parto; a Pediatria, uma medicina voltada apenas para as crianças; a Puericultura, medicina voltada aos bebês, recém-nascidos e também a construção de exames pré-nupciais, para produzir uma população saudável. “(...) a família se tornou o agente mais constante da medicalização” (Foucault, 1978/2012, p. 199).

Diferentemente da época pré-moderna na qual a maioria dos casamentos era realizada, não sobre o alicerce da atração sexual, mas arranjados pela família, a época moderna se caracteriza também pelo amor romântico. Giddens (2003) afirma que o amor romântico inseriu a ideia de uma narrativa para uma vida individual, ou seja, introduziu o eu e o outro em uma história pessoal, sem ligação com os processos sociais, portanto não deixando as escolhas familiares interferir na relação romântica com o outro.

A ideia de romance contribuiu para as mudanças no século XIX, afetando amplamente a vida social. O surgimento do amor romântico precisa ser compreendido juntamente com as influências que afetaram as mulheres, tais como: primeiramente foi a criação do lar, segundo foi a modificação nas relações pais e filhos e em terceiro a descoberta da maternidade (Giddens, 2003).

Com o movimento feminista em busca da emancipação das mulheres, o direito do homem sobre a família começa a ser relativizado, o homem assumiu o poder do trabalho, contudo o controle das mulheres sobre a criação dos filhos aumentou à medida que as famílias ficavam menores. As crianças passaram a ser identificadas como suscetíveis e precisando de atenção emocional, ou seja, o centro da família deslocou-se da autoridade patriarcal para a afeição maternal (Giddens, 2003).

O amor romântico, segundo Giddens (2003), projeta-se em apoiar-se e idealizar-se no outro, ele acarreta a questão da intimidade, porque ele representa uma comunicação psíquica, um encontro de almas que tem caráter de aperfeiçoar. Para o autor, a ideia do amor romântico foi mantida por muito tempo com a associação entre: amor com o casamento e com a maternidade; e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez que descoberto, é para sempre.

O amor romântico pressupõe a possibilidade de se determinar um vínculo emocional durável com o outro, tendo-se como base as qualidades intrínsecas desse próprio vínculo. É o precursor do relacionamento puro7 também permaneça em tensão em relação a ele.

Além das mudanças em relação ao papel da mulher e do homem, resultando em modificações no âmbito familiar, outro marco importante para a história dessa época foi o direito de divórcio. Foi em 1884, o restabelecimento pela República do direito ao divórcio, apesar de ter sido sempre condenado pelos conservadores. Com a aprovação dessa lei, abre-se espaço para o medo de que sua propagação resultasse na morte da família e na abolição do sentimento da alteridade.

De fato, o divórcio abriu precedentes para os quais houvesse uma dissolução em determinadas famílias que optassem por ele. O casamento perdeu efetivamente sua força simbólica conforme aumentava o número das separações (Roudinesco, 2013).

Apesar do medo e das grandes movimentações em relação ao divórcio, sabe-se que a instituição familiar não teve seu fim, e sim novos arranjos, novas formas de relacionar-se em família começam a eclodir na esteira da mudança das mentalidades da época na contemporaneidade. Como bem afirma Roudinesco (2003), a família moderna deixou de ser considerada como um modelo de força divina ou do Estado, e foi sendo cada vez mais descentralizada, apesar de permanecer a instituição mais sólida da sociedade.

A sexualidade e o amor, a centralidade dada ao filho, a maternalização da família, a dissociação entre desejo e procriação marcam a configuração de valores da época e produzem tanto a busca de emancipação e liberação de uma sexualidade socialmente reprimida quanto suas formas sintomáticas de punição interiorizadas pelos sujeitos. “Apoiada desde seu nascimento em tal concepção da sexualidade, a psicanálise foi, portanto ao mesmo tempo o sintoma de um mal-estar da sociedade burguesa, presa das variações da figura do pai, e o remédio para esse mal-estar” (Roudinesco, 2003, p. 93).

A família contemporânea

Na contemporaneidade novos modelos de família reconfiguram-se. Neles, as fronteiras de identidade entre os dois gêneros (feminino e masculino) são um pouco mais fluidas e permeáveis: a mulher conquistando espaço no mercado de trabalho, atuando também como chefe de família, o homem podendo também cuidar do lar. Há mãe e pais solteiros, uniões homoafetivas com e sem filhos, adoções, produção independente, bebê de proveta.

Nesse contexto, no início de fevereiro de 2014 a câmara promoveu uma enquete sobre o conceito de família. O objetivo é avaliar se os cidadãos são favoráveis ou contrários ao conceito incluído no Projeto de Lei 6583/13, que cria o Estatuto da Família, definindo-a como núcleo formado “a partir da união entre homem e mulher”.

O deputado argumenta que “a família vem sofrendo com as rápidas mudanças ocorridas em sociedade, enfrentando uma crise”. E que, apesar de a Constituição prever que o Estado deva proteger esse núcleo, “o fato é que não há políticas públicas efetivas voltadas para a valorização da família e ao enfrentamento de questões complexas no mundo contemporâneo”. Polêmicas em torno de uma suposta ‘crise da família’ não constituem algo de fundamentalmente novo na nossa história.

Nesse sentido, abordar o tema família é uma tarefa complexa, todos nós pertencemos a algum tipo de família. Assim, nossas ideias, nossas percepções, ou nossas reflexões sobre ‘família’, por mais objetivas que sejam, estão inevitavelmente marcadas pela nossa própria experiência, tanto nas nossas famílias de origem quanto naquelas que constituímos.

Quando nos perguntamos, ‘o que é família?’, duas noções distintas, ainda que inter-relacionadas, podem ser evocadas. Numa perspectiva mais ampla, ‘família’ pode referir-se a um grupo de indivíduos que se reconhecem ou que são reconhecidos como ‘parentes’, seja esse parentesco estabelecido através de elos de consanguinidade, de adoção ou casamento. Isso pode incluir centenas de pessoas que se estendem tanto através de gerações (pai, mãe, avós, bisavós, tataravós maternos e paternos, ou filhos, netos, bisnetos, tataranetos e assim por diante), quanto colateralmente (irmãos, tios, primos, sobrinhos de primeiro ou segundo grau em diante), ou seja, pessoas que podem nem mesmo se conhecer pessoalmente ou que mantém pouco contato umas com as outras.

Há, porém, outra noção de família, bem mais restrita, que se limita ao que sociólogos e antropólogos denominam de família nuclear ou conjugal, ou seja, pai, mãe e filhos. Tal como expresso nas definições oferecidas pelo Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (2010): “pessoas aparentadas, que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos”, ou ainda, ”comunidade constituída por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial e pelos filhos nascidos dessa união”.

Podemos observar que essas definições são, sobretudo, ‘definições normativas’ vez que, para além da explicação do termo, definem também determinadas ‘normas’. Definem antes como a família deve ser e não necessariamente o que é, oferecendo, assim, não uma definição e sim um modelo ou ideal de família. Veja-se, por exemplo, que no caso em questão, o modelo implica em união heterossexual e monogâmica (um homem e uma mulher), união por laço matrimonial, coresidência (que vivem, geralmente, na mesma casa) e apenas duas gerações de parentes - o pai, a mãe e os filhos - e, no caso dos filhos, somente os nascidos dessa união.

Ora, não é necessário recorrermos a dados estatísticos para percebermos que essa noção ou modelo de família, deixa de fora muitas famílias brasileiras, provavelmente várias que conhecemos na vida real. Basta apenas lembrar que, mesmo tendo em conta as definições acima, famílias são entidades fluidas, cujo tamanho e composição podem variar significativamente em função de nascimentos, óbitos, casamentos e separações.

As famílias nucleares podem eventualmente expandir-se para ‘famílias extensas’, incluindo mais de duas gerações ou parentes colaterais, ou então, perder parte dos seus membros, reduzindo-se ao que se identifica como ‘famílias parciais’: por exemplo, famílias constituídas só pelo par conjugal, famílias em que um dos membros desse par (pai ou mãe) estão ausentes, famílias constituídas apenas por parentes colaterais (irmãos). Há também famílias em que, por motivo de trabalho, alguns de seus membros são obrigados a viver longe da casa por longos períodos de tempo, voltando ao lar apenas periodicamente (como no caso de marinheiros, por exemplo).

Devemos considerar também que muitas famílias não são constituídas através de laços matrimoniais formais, mas por união consensual, fato este já reconhecido na Constituição de 1988, que ampliou o conceito de família para incluir entidades familiares constituídas por pais, casados ou não, e seus filhos, em convivência estável. A nova constituição reconheceu também como entidade familiar qualquer comunidade formada tanto pelo pai ou pela mãe e seus descendentes.

No entanto, nossa legislação ainda prioriza o viés heterossexual do modelo de família vigente, reconhecendo com dificuldade a união de parceiros do mesmo sexo como constituidores de entidade familiar, independentemente ou não de uma convivência estável e da existência de filhos. A partir disso, podemos pensar que o que está em crise é o modelo ou ideal de família inspirado na ideologia patriarcal.

Implicações para a clínica psicológica

Valer-se da psicanálise para sustentar que apenas um modo de subjetivação é gerador de"saúde psíquica" pode ser um tanto equivocado. O modelo de família tradicional nunca foi sinônimo de “normalidade”.

O argumento segundo o qual a presença do par homem/mulher é indispensável para a produção de “subjetividades sadias” não se sustenta. A prática clínica, sobretudo a infantil, é rica em exemplos no qual o problema apresentado pela criança é um sintoma dos pais, e em situações nas quais se poderia esperar um desfecho preocupante, esta consegue reinventar o simbólico, este que discutimos anteriormente, de forma que não apresenta nenhum sintoma particularmente dramático.

Se, como vimos, os sistemas simbólicos variam de uma cultura para outra, não é a proximidade genealógica, ou a consanguinidade, que determinam a qualidade dos vínculos. O denominador comum em todos os arranjos familiares e aqui incluímos os novos arranjos é o lugar que o bebê ocupa no imaginário, e na circulação do desejo, de quem o acolhe no mundo.Portanto, o modelo de família tradicional pode estar sofrendo mudanças no sentido de novas configurações vinculares e cada individuo poderá adaptar-se e reinventar-se.

 

Referências

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Elias, N. (1994). O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda (2010). Dicionário Aurélio. Curitiba: Positivo.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Geisa Felippi
E-mail: geisafelippi@yahoo.com.br

Enviado em: 25/08/2014
1ª revisão em: 04/06/2015
Aceito em: 06/07/2015

 

 

1 Psicóloga e Psicoterapeuta.
2 Psicóloga, Psicoterapeuta e Mestre em Psicologia pela PUCRS.
3 Segundo Ariès (1975), não havia ainda a ideia de uma separação entre o que seria um ‘mundo do adulto’ e um ‘mundo da criança’. O sentimento de infância surgirá somente a partir do Séc. XVII na França.
4 Movimento a favor da igualdade dos direitos para os dois sexos que resultou na emancipação das mulheres, bem como uma transformação da sociedade que esboçou o final do século XVIII.
5 Palestra de Joel Birmam proferida no programa café filosófico. Disponível em: //www.youtube.com/watch?v=LYsIwmoWk_U.
6 “Sua majestade ao bebê” dirá Freud (1914) em sua obra “Introdução ao Narcisismo” ao mencionar que os pais investem em seus bebês o seu próprio narcisismo abandonado, fazendo com que exista uma supervalorização na relação afetiva com os filhos.
7 Relacionamento puro refere-se a uma situação em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação, portanto só continuará enquanto ambos envolvidos extraem satisfação suficiente.

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