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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.1 Porto Alegre jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Diferenciação do adulto jovem: um estudo de caso em atendimento familiar

 

Young adult differentiation: a family therapy case study

 

 

Priscila Gasperin Pellegrini1, I, II, III ; Isabela Machado da Silva2, IV, V ; Monica Barreto3, VI ; Maria Aparecida Crepaldi4, VII, VIII

I Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
II Especializanda em Terapia Relacional Sistêmica no Instituto Familiare
III Membro do Núcleo de Estudos do Trabalho e Constituição do Sujeito (NETCOS)
IV Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília - UnB
V Membro do Laboratório de Família, Grupo e Comunidade (LABFAM)
VI Psicóloga do Serviço de Atenção Psicológica da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
VII Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC
VIII Membro do Laboratório de Psicologia da Saúde, Família e Comunidade (LABSFAC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma mãe e um filho adulto jovem buscaram atendimento psicológico em função dos conflitos existentes entre eles. Identificou-se uma estrutura familiar marcada pela fragilidade das fronteiras entre os subsistemas, destacando-se o distanciamento entre os pais e o emaranhamento mãe-filho. Evidenciava-se dificuldade no estabelecimento de limites no relacionamento e no ambiente físico em que viviam. Essa ausência de fronteiras claras pode dificultar o processo de individuação e a aquisição de autonomia. Realizaram-se atendimentos quinzenais, a partir do referencial relacional-sistêmico. Iniciou-se a psicoterapia com sessões conjuntas com mãe e filho, às quais se seguiram sessões individuais alternadas, com o objetivo de reforçar as fronteiras e a diferenciação entre eles, destacando-se perspectivas e projetos pessoais. Ambos demonstraram crescente capacidade para refletirem sobre si mesmos, sem recorrerem às queixas sobre o relacionamento e investindo em outros relacionamentos. Constatou-se que a terapia relacional-sistêmica pode contribuir para o reestabelecimento de possibilidades e desenvolvimento da autonomia.

Palavras-chave: Terapia familiar, Relações familiares, Desenvolvimento do adulto, Adulto jovem.


ABSTRACT

A mother and a young adult son sought psychological counseling because of the conflicts between them. It was identified a family structure marked by the fragility of the subsystems boundaries, which was associated to a detachment between the parents and to the mother-child entanglement. Their difficulty in establishing relational and environmental boundaries was evident. This absence of clear boundaries can hinder the individuation and autonomy process. The family therapy was held fortnightly, using the relational-systemic referential. Psychotherapy began with joint sessions with mother and son, which were followed by alternated individual sessions with the objective of strengthening the boundaries and the differentiation between them. The therapists emphasized personal perspectives and projects. Both have shown growing ability to think about themselves without recurrently complain about the relationship and to invest in other relations. It was noted that systemic-relational therapy may contribute to the re-establishment of possibilities and to the autonomy development.

Keywords: Family therapy, Family relations, Adult development, Young adult.


 

 

As condições sociais, políticas e econômicas influenciam a família e demandam adaptações na sua estrutura, em seu funcionamento e na vivência das diferentes etapas do ciclo de vida familiar (Carter & McGoldrick, 1995). Dentre essas etapas, encontra-se a adultez jovem, momento em que se espera que os filhos saiam da casa dos pais para estudar, trabalhar ou constituir sua própria família. No contexto atual, questões como as dificuldades que o jovem enfrenta para ingressar e manter-se no mercado de trabalho (Wendling & Wagner, 2005), o elevado custo habitacional (Cobo & Saboia, 2010) e as comodidades de que os filhos tendem a desfrutar quando moram com os pais podem contribuir para que os adultos jovens sigam morando com suas famílias por um maior período de tempo (Silveira & Wagner, 2006). Além disso, Henriques, Féres-Carneiro e Magalhães (2006) ressaltaram a diferença existente nessa transição para indivíduos de classes socio-econômicas distintas. Questões psicológicas e sociodemográficas também podem se mostrar relevantes, como o aumento da idade ao casar e o número de divórcios e separações (Cobo & Saboia, 2010).

Estudos sobre essa etapa do ciclo vital familiar têm contemplado tanto famílias em que os filhos saem de casa nesse momento, como aquelas em que isso não ocorre. Aqueles que se enquadram na primeira categoria citam os impactos da saída dos filhos de casa para os pais, relacionando-a, por vezes, à sensação de ninho vazio e caracterizando-a como um período de mudança na vida dos pais (Sartori, 2012; Sartori & Zilberman, 2009). As pesquisas sobre o tema sugerem situações como o surgimento de conflitos entre os pais (Hiedemman, Suhomlinova, & O’Rand, 1998) e maiores índices de problemas físicos, emocionais e financeiros, quando se comparam esses pais e mães àqueles que vivem na presença de filhos e netos (Liu & Guo, 2007). Estudo nacional realizado por Cerveny (1997) sugeriu que, em nossa cultura, a saída dos filhos da casa dos pais não tende a ser encarada como uma transição natural e costuma estar associada a brigas e casamentos prematuros dos filhos. Outros autores (Bee, 1997; Papalia & Olds, 2000), no entanto, destacaram que embora esse momento possa ser permeado por algum desconforto, a maioria dos pais tende a encarar essa fase com tranquilidade.

Questões vivenciadas pelos pais na época em que o filho sai de casa, tais como a aposentadoria e a menopausa (Sartori & Zilberman, 2009), a qualidade da sua relação conjugal, bem como a história de cada família tendem a influenciar o impacto que esse evento exercerá sobre os pais. Esse período tem suas bases na adolescência e representa parte do processo de independência do filho em relação à sua família (Carter & McGoldrick, 1995). Outros autores abordam a fase do ninho cheio ou geração canguru, que se refere à permanência dos adultos jovens na casa dos pais. Nos últimos anos, pesquisadores brasileiros têm dedicado especial atenção a esse fenômeno (Cobo & Saboia, 2010; Ferreira, Rezende, & Lourenço, 2011; Henriques et al., 2006; Silveira & Wagner, 2006; Vieira & Rava, 2010, 2012). Esses estudos dedicaram-se a discutir as repercussões desse movimento, para pais e filhos, e mostraram que o fato de permanecer morando na casa dos pais não deve ser encarado como o ponto central dessa questão, mas que as relações estabelecidas entre o filho adulto jovem e seus pais quanto à diferenciação, escolha profissional e independência financeira colaboram expressivamente para a permanência. De acordo com Henriques et al. (2006), o adiamento da saída da casa dos pais é um reflexo da ambivalência de sentimentos relacionados ao afastamento e à perda de papéis, além da instabilidade e incerteza da vida fora de casa.

Cabe ressaltar, no entanto, que a condição de permanecer morando na casa dos pais não deve ser encarada como um problema a priori. Faz-se necessário investigar o relacionamento estabelecido entre o adulto jovem e sua família, bem como sua realidade socioeconômica.

De adolescente para adulto jovem

Um dos aspectos que influencia a relação pais e filhos está relacionado à idade destes, pois, quando são pequenos, predomina a função de nutrição, que se caracteriza por prover alimentos, cuidado e bem-estar físico. Diante do crescimento dos filhos, passam-se a destacar as funções de controle e orientação, em que os pais buscam passar as regras e sugestões para os filhos e buscam permitir que eles possam experimentar tomar decisões e sobreviver (Ramos & Stein, 2000).

Na adolescência, as regras colocadas pelos pais ainda devem ser respeitadas pelos filhos, embora estes tendam a adquirir um papel de maior relevância em sua negociação (Minuchin, 1982). Nesse momento, é dada aos jovens a possibilidade de experimentar diferentes papéis para que possam estabelecer, aos poucos, o que querem ou não ser. Assim, a adolescência caracteriza-se por uma crise para a formação de identidade (Erikson, 1972). Os limites, agora, devem ser mais permeáveis e flexíveis, para permitir que os adolescentes possam aumentar sua independência, mas também pedir ajuda para situações com as quais não conseguem lidar sozinhos. É uma fase na qual os adolescentes priorizam seus próprios relacionamentos e ideias, o que contribui para a necessidade de alterar as regras de funcionamento familiar (Carter & McGoldrick, 1995; Minuchin, 1982).

Diante dessas mudanças, conflitos não-resolvidos entre pais e avós, bem como sentimentos de rejeição e da perda podem se mostrar presentes. Alguns pais podem tentar controlar os adolescentes, proibindo-os de realizar algumas atividades ou limitando a expressão de suas opiniões. Como contestação, eles podem reagir de forma extremamente agressiva, procurando os avós para ter apoio (Carter & McGoldrick, 1995). A escolha de companheiros também pode ser um problema. No processo de busca por sua identidade, os jovens podem optar por relacionamentos ou estilos de vida com os quais suas famílias não concordem. Além disso, a preferência pela companhia dos amigos e a busca por momentos de privacidade pode despertar nos pais sentimentos de confusão e mágoa, principalmente considerando-se que “o desejo da mãe de proximidade pode ser recebido com agressão e rejeição, e ela, magoada, pode reagir de maneira semelhante” (Carter & McGoldrick, 1995, p. 226).

O estresse familiar tende a ser maior nas fases de transição do ciclo de vida familiar, tais como a adolescência. O nível de estresse vivenciado por cada família será influenciado por questões transgeracionais relacionada à sua história, bem como por questões relacionadas aos demais relacionamentos familiares e aos sistemas mais amplos nos quais a família se insere, como, por exemplo, as questões socioeconômicas. Quanto maior o estresse, mas difícil, para a família, será lidar com os desafios inerentes a esse momento. Em famílias em que o conflito é percebido de forma negativa, o adolescente pode sentir dificuldade em dividir suas ideias e angústias, gerando distanciamento (Carter & McGoldrick, 1995).

Na fase seguinte, a da adultez jovem, os filhos se lançam ao mundo e os pais precisam encontrar outras ocupações para preencher o espaço antes tomado pela sua criação. Carter e McGoldrick (1995) salientaram que as dificuldades dessa transição podem fazer com que as famílias segurem os filhos consigo ou podem proporcionar sentimento de vazio aos pais. Tradicionalmente, as mulheres costumam sentir mais essa mudança por terem se envolvido mais com a criação dos filhos. Essa fase, frequentemente denominada de ninho vazio, tende a ser relatada como uma fase de sofrimento para as mulheres, especialmente para as que dedicaram todo o seu tempo à casa e à família. Por outro lado, estudos mais recentes têm contrariado essa visão ao demonstrarem que as mulheres não lamentam o crescimento e a partida dos filhos e que valorizam a possibilidade de aproveitar o tempo livre (Carter & McGoldrick, 1995). Carter e McGoldrick (1995) ainda enfatizaram que, nesse estágio, tende a ocorrer também a entrada dos cônjuges e netos no sistema familiar. Assim, além de os pais terem que encontrar novas atividades que compensem a partida dos filhos, eles estão se preparando para tornarem-se avós e precisam lidar com os próprios pais, que, em função da idade, possivelmente tornam-se mais dependentes. É uma fase que demanda a reestruturação do sistema conjugal.

Além do impacto provocado pela saída dos filhos sobre os pais, outros fatores devem ser considerados na compreensão da permanência do filho adulto jovem da casa dos seus pais. Vieira e Rava (2012) destacaram, por exemplo, o conforto proporcionado pelo lar parental como um dos fatores relacionados à permanência do adulto jovem. A estrutura do sistema familiar é outro fator assinalado, sendo que, em famílias com fronteiras rígidas, caracterizadas pela pouca comunicação e troca entre os subsistemas (Minuchin, 1992) torna-se mais difícil realizar mudanças e o indivíduo sentirá que precisa ser aquilo que o sistema exige (Andolfi, 1984). Souza (2010) exemplificou essa situação:

Tomando um exemplo caricatural, pode acontecer que não seja permitida a entrada do adulto jovem no subsistema familiar adulto, pois a necessidade de mudanças pelas transições do ciclo de vida familiar não é reconhecida pela família. Assim, se o indivíduo fazia parte do subsistema criança, não poderá deixar de participar do mesmo e ingressar em outros subsistemas, primeiramente de adolescente e posteriormente de adulto, será sempre tratado de acordo com as regras para criança. (p. 21)

Carter e McGoldrick (1995) destacam que o adulto jovem precisa aceitar seus pais como são, enquanto estes necessitam reconhecer no filho uma pessoa com objetivos e desejos próprios, sem esperar que viva de acordo com as ideias e valores dos pais. Mesmo assim, é importante salientar que ninguém é considerado como detentor de controle unilateral sobre outra pessoa, pois o controle está inserido na forma como o sistema está organizado e continua a atuar (Papp, 1992). A passagem pelos estágios do ciclo de vida e o modo de lidar com as crises dependem dos recursos de que a família dispõe e também de como as gerações passadas lidaram com essas mesmas crises (Carter & McGoldrick, 1995). Na família de origem as pessoas aprendem valores, como se relacionar, o que devem esperar de si e do outro, entre outros aspectos. Esses aprendizados afetam a maneira de agir nos relacionamentos íntimos e sociais. Assim as vivências na família de origem podem dificultar o autodesenvolvimento e o processo de diferenciação do adulto jovem.

Famílias emaranhadas

O sistema familiar cumpre com suas funções por intermédio de subsistemas compostos pelos membros da família que se organizam de acordo com fatores como gênero, função, geração, entre outros (Minuchin, 1982). Cada membro da família faz parte de vários subsistemas simultaneamente. Um adulto jovem solteiro pode fazer parte dos subsistemas individual, fraternal, dos filhos adultos e dos homens (ou mulheres), entre outros (Minuchin, 1990).

As fronteiras dos sistemas e subsistemas são as regras que estipulam quem participa do que e como deve se dar essa interação, servem para proteger a diferenciação do sistema. Elas devem ser nítidas para que o sistema funcione sem interferências inconvenientes, mas permitindo contato entre os membros (Carter & McGoldrick, 1995; Minuchin, 1982). Os extremos de funcionamento das fronteiras são denominados de emaranhamento e desligamento. Se as fronteiras não são nítidas, a diferenciação de cada um dos membros fica comprometida e o emaranhamento emocional passa a fazer parte da convivência familiar (Minuchin, 1982). De acordo com Carter e McGoldrick (1995), os membros das famílias emaranhadas podem sofrer prejuízos porque o sentimento de pertencer ao sistema exige que o indivíduo abra mão de sua autonomia. Minuchin (1982) enfatizou que, quando não há diferenciação no sistema, os integrantes são desencorajados a explorar o mundo por si mesmos. O emaranhamento não permite que o indivíduo se desenvolva emocional e psicologicamente e pode manter uma família distante de sua comunidade (Carter & McGoldrick, 1995). Quando isso acontece, há prejuízos em potencial para as habilidades cognitivo-afetivas das crianças. Nessas famílias, deve-se, portanto, fortalecer as fronteiras para facilitar a individuação dos seus membros (Minuchin, 1982).

Tanto o emaranhamento como o desligamento são padrões muito difíceis de mudar e não são tão opostos quanto parecem (Carter & McGoldrick, 1995). McGoldrick, Gerson e Petry (2012) frisam que “quanto mais fechadas se tornam as fronteiras de um sistema, mais imune ele será às interferências do ambiente e, consequentemente, mais rígidos serão os padrões familiares” (p. 35).

Transgeracionalidade e diferenciação

A transgeracionalidade se caracteriza pela transmissão de padrões de relacionamento familiar que se repetem através das gerações (Falcke & Wagner, 2003). Carter e McGoldrick (1995) chamaram a atenção para a dificuldade de estimar a repercussão dos padrões de relacionamento sobre as gerações que se seguem. As relações estabelecidas na família de origem representam o alicerce do comportamento futuro e para o conhecimento dessa dinâmica, faz-se necessário compreender o que é transmitido ao longo das gerações, que pode tanto enriquecer a experiência dos membros familiares, quanto prendê-los a histórias e necessidades de outras pessoas. De acordo com André-Fustier e Aubertel (1998) a base da transmissão transgeracional situa-se no reconhecimento de que o indivíduo está inserido em uma história preexistente, da qual se torna herdeiro e prisioneiro. Cabe ressaltar que, em muitos casos, mesmo quando o indivíduo tenta buscar pelo modelo oposto de comportamento da família, acaba sofrendo as consequências por não seguir o padrão familiar estipulado (Falcke & Wagner, 2005).

Costa (2000) enfatizou que “ainda que o indivíduo se considere livre, encontra-se subordinado a uma verdadeira assembleia de cidadãos, em permanente atividade em seu mundo interno, fornecendo-lhe pareceres favoráveis ou desfavoráveis” (p. 102). Fazem parte dessa assembleia os avós, pais, irmãos e outros familiares importantes que apoiam ou criticam os comportamentos (Falcke & Wagner, 2005). As famílias selecionam o que julgam importante para ser passado para as gerações seguintes, assim como definem o que é melhor esquecer para garantir a manutenção familiar (Penso, Costa, & Ribeiro, 2008). Essa transmissão se dá por meio dos mitos, legados, crenças, segredos e ritos familiares (Penso et al., 2008; Wagner & Falcke, 2005).

Em alguns momentos do desenvolvimento da família, pode ocorrer um choque de transmissões transgeracionais. Em períodos de crise, por exemplo, o indivíduo vivencia com mais proximidade algumas questões da sua família de origem. Segundo Carter e McGoldrick (1995), algumas crises são previsíveis, como o casamento, a adolescência dos filhos e o envelhecimento. Outras, são imprevisíveis, como a perda de status econômico familiar.

Segundo Bowen (1991), o maior problema nas famílias é a fusão emocional, e o principal objetivo, a diferenciação. A fusão emocional surge de uma necessidade de proximidade, enquanto a diferenciação é um processo contínuo relacionado ao desenvolvimento do indivíduo em seu meio familiar. Para Kerr e Bowen (1988), o nível de diferenciação de um indivíduo encontra-se relacionado aos níveis de diferenciação presentes em gerações anteriores, bem como aos relacionamentos que se estabelecem na família nuclear. Esse nível de diferenciação determina o estilo de vida de uma pessoa, sendo que as mudanças nesse quesito são bastante difíceis. Pessoas com baixo nível de diferenciação tendem a se envolver em conflitos com maior frequência, mesmo que tentem ajustar-se no modo como agem.

As crianças experimentam o pertencimento e a diferenciação como parte da família e aprendem que pertencer quer dizer participar, reconhecer-se como membro da família, compartilhar as crenças, valores, regras, mitos e segredos. Diferenciar significa tornar-se singular, ter direito de pensar e expressar-se sem se restringir pelos valores que a família defende, estando relacionado, portanto, com o desenvolvimento da autonomia (Martins, 2005).

Bowen (1991) utilizou o conceito de triângulo e de diferenciação como base da estrutura do sistema emocional. O autor apontou que as relações entre duas pessoas apresentam tendência à instabilidade e, quando a tensão emocional do sistema formado por duas pessoas for maior que um determinado nível, envolve-se uma terceira no conflito, permitindo-se que a tensão seja descarregada dentro do triângulo. O sistema é estabilizado, por exemplo, quando duas pessoas se unem contra uma terceira. Um sistema emocional pode incluir vários triângulos independentes, mas o triângulo mais importante é aquele formado por um filho e seus pais. Nesse relacionamento, serão aprendidos os modelos relacionais triangulares, que se manterão consideravelmente estáveis nas relações futuras. Quando a triangulação do conflito familiar envolver os filhos de forma intensa e os pais não conseguirem separar o filho dos seus sentimentos, ações e pensamentos, o processo de diferenciação da criança será prejudicado e ela própria terá dificuldade em diferenciar seus pensamentos e sentimentos, bem como agir de forma autônoma em relação aos demais.

O foco da terapia, segundo essa abordagem, estaria centrado no processo de diferenciação dos membros da família. No entanto, Bowen (1991) destacou que, às vezes, o sistema familiar está tão fechado que não é possível trabalhar com a família de forma conjunta. O trabalho consiste então em ajudar um dos membros da família a alcançar um nível maior de diferenciação que poderá restaurar a função do sistema familiar. Aumentar a possibilidade de diferenciação envolve trabalhar com o indivíduo para que ele use a posição “eu” e para que fale o que sente em vez de dizer o que o outro faz. Dessa forma, contribui-se para o reestabelecimento do diálogo entre os membros da família. Com isso, altera-se a dinâmica familiar e são estabelecidas novas formas de interação (Martins, 2005). Segundo Bowen (1991), por menor que seja a alteração sofrida pelo sistema emocional em decorrência da diferenciação, é possível atingir um desequilíbrio no sistema familiar que favoreça sua reorganização.

Como mencionado, o processo de desenvolvimento do indivíduo é permeado pelas mudanças que ocorrem no ciclo de vida da família (Carter & McGoldrick, 1995), o que inclui a adultez jovem, fase em que o indivíduo tende a se deparar com a necessidade de decidir sobre quais padrões familiares manterá e quais buscará reconstruir. A saída de casa do adulto jovem não é condição para que o processo de diferenciação seja eficaz, pois a distância territorial entre os membros familiares não é equivalente à distância emocional. Além disso, é possível que o sistema familiar adapte-se à permanência do adulto jovem e que se organize, mantendo fronteiras claras, estabelecendo limites, fornecendo liberdade e autonomia, permitindo que o indivíduo separe-se psicologicamente ao mesmo tempo em que compartilha regras, deveres e o sentimento de pertencimento à família.

Considerando-se a complexidade dessa transição do ciclo de vida familiar, este estudo tem como objetivo discutir como a psicoterapia relacional-sistêmica pode contribuir para o enfrentamento desse momento, auxiliando a diferenciação familiar, o estabelecimento das fronteiras e favorecendo o desenvolvimento de novas possibilidades de relacionar-se.

 

Método

Este trabalho, de natureza qualitativa, caracteriza-se como um estudo de caso clínico. As pesquisas de caso único interessam-se por uma unidade específica de análise, que podem ser um paciente, terapeuta-paciente, um grupo ou a interação entre eles (Eells, 2007). Nas pesquisas que envolvem psicoterapia, os estudos de caso permitem a análise longitudinal da interação (Hilliard, 1993), auxiliam a compreensão do processo de mudança e permitem a consideração da subjetividade do encontro terapêutico (Serralta, Nunes, & Eizirik, 2011).

Para este estudo, serão descritos os atendimentos da Família A, realizados quinzenalmente, por um período de três anos, em um serviço de atendimento psicológico de uma universidade do sul do Brasil. Os atendimentos ocorreram na modalidade de coterapia com equipe reflexiva5 (Andersen, 1991). A mãe (Joana, 60) procurou atendimento devido a uma dificuldade de organização do filho (Gabriel, 37) que vinha gerando muitos conflitos entre eles. Iniciou-se então o atendimento familiar, com a presença da mãe e do filho. No último ano, optou-se por atender os membros da família individualmente, sendo que cada um era visto uma vez por mês. Para contextualizar a história da família, será descrita uma síntese dos atendimentos com a família, com relatos clínicos de acontecimentos significativos durante o tratamento.

A mãe e o filho foram os únicos membros da família a comparecerem aos atendimentos. O pai (Claudio, 67) e o filho mais velho (Guilherme, 40) não participaram de nenhuma sessão, embora Joana e Gabriel tenham afirmado que o convite lhes foi apresentado várias vezes e os terapeutas também tenham entrado em contato para convidá-los.

Para o desenvolvimento deste artigo, utilizaram-se os relatos dos atendimentos, cujos dados foram submetidos a uma análise narrativa (Polkinghorne, 1995). Essa modalidade de análise organiza os acontecimentos apresentados em uma estrutura temporal coerente, na qual os elementos apresentados são reorganizados de forma a responder à questão de pesquisa, destacando-se os significados atribuídos pelos próprios participantes às suas experiências.

No que se refere às questões éticas, a família assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que previa que os dados oriundos dos atendimentos poderiam ser utilizados em produções acadêmicas, desde que resguardada sua privacidade e confidencialidade. Nesse sentido, apresentam-se nomes fictícios como forma de preservar suas identidades, além de omitirem-se informações que pudessem contribuir para a sua identificação.

Relato do caso

História da família

Joana relatou que sua mãe batia nela e cuidava muito do irmão “doentinho”, o que fez com que se sentisse preterida. O pai era bom com ela, não batia. O casamento de Joana com Claudio foi apresentado como uma válvula de escape, era um rapaz trabalhador, dava presentes, tinha uma boa família. Joana tinha um plano: quando Claudio fizesse o pedido de noivado, ela terminaria, mas a mãe discordou, pois achava que a filha não se casaria nunca mais. Depois do casamento, passaram alguns anos juntos e sem filhos, morando próximos à mãe dela. Joana, porém, relatou que sua mãe manipulava-os muito, até que decidiram morar em outro local. Segundo suas palavras, Joana manteve o casamento com Claudio porque sentia pena pelo fato dele ser alcoólatra. A relação do casal era conturbada, tendo sido relatada a existência de brigas e agressões físicas.

De acordo com Joana, Guilherme foi criado pela avó, sua mãe, que julgava a filha como incapaz para ser mãe. Entretanto, Joana orgulha-se ao dizer que Gabriel é o filho preferido, pois ela pôde criá-lo como quis.

Motivos apresentados para a busca por atendimento

Quando o atendimento teve início, Joana já passava pouco tempo em casa com o marido e os filhos, pois estava morando na casa onde passavam as férias. Joana passava a semana toda lá e só voltava no final de semana para casa, quando assumia todo o serviço de casa que não foi realizado durante a semana pelo marido e os filhos. Ela também cuidava dos negócios da família, repassando parte dos proventos obtidos aos filhos.

Joana relatou sentir culpa por estar abandonando a família, pois é isso que eles pensam que ela está fazendo. Diz gostar de cuidar de todos e sentia que os filhos e o marido a achavam inútil. De acordo com ela, Gabriel era muito nervoso e se exaltava facilmente. Além disso, era desorganizado com suas coisas e não gostava de limpar o quarto, no qual acumulava diversos objetos. Joana demonstrou-se bastante incomodada com isso, afirmando que aonde ele ia, precisava pegar alguma coisa para guardar: pote de adubo da casa do tio, algo da praia, objetos de festas, pedaço de madeira velha. Joana afirmou se preocupar muito com Gabriel. Preocupava-se com até que horas ele ficaria dormindo e sempre ligava para ver se estava tudo bem.

Joana queixava-se que ninguém a ajudava para fazer o serviço e manter a casa organizada. Segundo ela, Gabriel não entendia que ela não conseguia mais fazer as mesmas coisas que antigamente, pois não tem a mesma disposição. Guilherme não incomodava, já parecia mais independente, porém mantinha-se trancado no quarto a maior parte do tempo, enquanto Gabriel queria que a mãe ficasse sempre com ele.

Joana contou que Gabriel não aceitava os pais estarem separados, embora tenham tentado conversar. A avó (mãe de Joana) também pedia para que ela ficasse perto dos filhos. Joana reconhecia que Gabriel era carinhoso quando a ajudava e que deixava de fazer suas coisas para ficar com ela. Mesmo com Joana ficando na casa de férias durante a semana, tanto ela como Gabriel relatavam passar certo tempo juntos.

Joana costumava ocupar a maior parte da sessão contando os acontecimentos recentes e queixando-se do filho. Quando os terapeutas diziam querer ouvir a versão de Gabriel sobre o que era contado, ela alertava-os de que ele não falaria a verdade. Além disso, sugeria que os terapeutas fossem mais claros com ele, e como ela já o conhecia, traduzia-lhe o que era dito.

O desenvolvimento do atendimento

Os terapeutas trabalharam com a família a questão de cada um ter o seu espaço e como é importante que isso seja respeitado. Joana dizia estar fazendo como aprendeu na terapia e estar deixando Gabriel no mundo dele. Embora Joana constatasse que as relações entre ela e a família estavam diferentes e Gabriel tenha comentado que a terapia ajudou a mãe “a parar de encher o saco dele”, percebia-se que ele ainda se ressentia do recente afastamento da mãe enquanto ela demonstrava dificuldade em reconhecê-lo como um homem adulto, capaz de tomar suas próprias decisões.

No último ano da terapia, optou-se por atender mãe e filho individualmente, com o objetivo de reforçar as fronteiras do subsistema mãe-filho (Minuchin, 1982). No atendimento individual agendado para Gabriel, o mesmo comentou que a mãe queria ir ao atendimento com ele e solicitou ajuda dos terapeutas para reforçar a questão de um não invadir o espaço do outro.

Nos atendimentos individuais, Joana passou a trazer uma nova preocupação em relação a Gabriel, que estava namorando uma nova moça, que era sua amiga. Embora no início Joana tenha manifestado satisfação com o relacionamento, ressaltando a esperança de que a moça o ajudasse a ser mais organizado, logo ela passou a destacar os defeitos que via nela. Gabriel, por sua vez, relatou diversas situações nas quais a mãe demonstrou incômodo em relação às suas namoradas, pois não seriam boas o suficiente para namorarem com ele. Gabriel defendeu-se alegando ser “grande” o suficiente para saber o que fazer, mas que a mãe sentia muito ciúme.

Em seguida, no entanto, Gabriel comentou que a mãe poderia estar certa, já que, às vezes, quem vê a situação “de fora” pode analisar melhor. As terapeutas trabalharam com ele a diferença entre terminar um relacionamento por ter percebido por si mesmo não gostar de uma pessoa e fazê-lo por pressão familiar.

Joana disse estar bastante preocupada com o que Gabriel fará quando ela morrer, pois ele ainda é um “crianção”, não tem horário, não tem organização, vai ficar perdido. Ele, por outro lado, dizia que sabia se cuidar sozinho e que ele era criança quando era pequeno.

Durante o processo terapêutico desta família, os terapeutas trabalharam no sentido de favorecer a individuação de Gabriel, que já é um homem adulto, permitindo que ele tenha opiniões diferentes da mãe, que possa discordar dela, que possa escolher suas parceiras e organizar suas atividades particulares sem que isso seja visto como falta de amor pela mãe. Com Joana, enfatizou-se o quanto ela se dedicou ao marido e aos filhos. Agora que eles já são adultos, ela pode usar o tempo para atividades que lhe interessem. Além disso, trabalhou-se sobre como transformar o prazer de ficar com a mãe em um momento prazeroso para ambos, pois os filhos estão crescidos, adultos, e as relações agora são outras. Nesse sentido, houve uma mudança significativa no conteúdo das sessões. Inicialmente tanto Gabriel como Joana concentravam-se em queixar-se do outro e em buscar alianças com os terapeutas durante suas sessões individuais. Com o passar do tempo, no entanto, cada um passou a ocupar esse tempo para falar de seus sentimentos e planos pessoais.

Por intermédio desses esforços de Gabriel e Joana para conviverem de uma forma melhor, Joana demonstrou maior compreensão sobre o fato de que Gabriel não é mais uma criança. Gabriel passou a conseguir expressar seus sentimentos e ideias com maior facilidade. Iniciou um relacionamento com outra moça e decidiu viajar sozinho com ela. Gabriel comentou ter se surpreendido quando a mãe disse ter gostado da notícia. Joana relatou que Gabriel estava passando vários dias fora de casa e que ela começou a tentar lidar de outra forma com isso por entender que ele esteja se divertindo e aproveitando outros momentos.

 

Discussão

Um tema recorrente durante as sessões com a Família A era o emaranhamento entre Joana e Gabriel, destacando-se a ausência do respeito ao espaço físico, emocional e relacional do outro. Diante disso, Papp (1992) recorda a importância de os terapeutas refletirem sobre o que acontecerá se o sintoma for eliminado, como a família funcionará sem ele, ao invés de apenas concentrar-se em eliminá-lo. É possível compreender o sintoma apresentado por Gabriel como relacionado tanto ao conflito conjugal de Joana e Claudio como à relação que se estabeleceu entre ele e sua mãe. Por um lado, o filho aparecia como a companhia que ela não encontrava no marido; por outro, era a oportunidade de ela demonstrar que poderia ser mãe, de ser a preferida. Percebe-se, assim, a existência de processos de triangulação, cuja a ansiedade presente nesses relacionamentos era predominantemente direcionada para Gabriel, dificultando seu processo de diferenciação (Bowen, 1991).

Joana e Gabriel assumiam atitudes reativas em relação um ao outro, o que vai ao encontro da análise apresentada por Kerr e Bowen (1988) de que, quanto mais reativa emocionalmente é a pessoa, mais persistentes são os pensamentos de que o outro precisa mudar. A literatura aponta que há enormes prejuízos para o sistema familiar quando o nível de diferenciação é baixo. As situações trazidas por Joana e Gabriel sugerem o baixo nível de diferenciação da família. Joana diz que Guilherme se fecha no quarto, o que pode ser interpretado como uma forma de evitar intimidade, sugerindo que é melhor não interagir do que lidar com as reações dos membros da família. Além de Guilherme, Joana também procura seu espaço para ficar sozinha na casa de férias da família. Como enfatizado por Kerr e Bowen (1988), as pessoas com baixo nível de diferenciação tendem a se envolver em conflitos, mesmo que tentem realizar vários autoajustes para preservar a harmonia: Joana contou que limpava e arrumava toda a casa, fazia o almoço, cuidava dos negócios da família e ainda assim sentia que não satisfazia as expectativas do marido e dos filhos. Gabriel, por sua vez, alegava que fazia tudo o que a mãe pedia, mas que mesmo assim brigavam. Pode-se perceber que assim como é difícil para Gabriel diferenciar-se da família, também o é para Joana. Carter e McGoldrick (1995) ressaltam que as mulheres passavam de suas famílias de origem para as famílias de procriação, sem que houvesse espaço e tempo entre essa transição para que elas pudessem ser independentes, o que ocorreu com a própria Joana.

Carter e McGoldrick (1995) observaram que “a vida familiar é uma contínua troca de guarda multigeracional” (p. 87). Nesse caso, as fronteiras entre os subsistemas mostravam-se excessivamente permeáveis (Minuchin, 1982) e a família se encontrava presa a essa situação de fusão emocional (Bowen, 1991). De acordo com Carneiro (1983), o emaranhamento entre mãe e filho expõe o quanto um precisa do outro para se completar. Como trazido por Carter e McGoldrick (1995), nessa situação, o indivíduo precisa abrir mão de sua autonomia para se sentir parte do sistema. Mesmo afirmando que não quer atrapalhar a vida do filho, querer que ele tome suas próprias decisões sem fazer nada obrigado, como ela teve que fazer, Joana infantilizava a relação com Gabriel, dificultando que ele agisse como adulto. Quando Joana buscava o modelo de comportamento oposto ao da mãe, tentava rejeitar o padrão da família e, mesmo assim, sofria consequências semelhantes às do padrão estipulado (Falcke & Wagner, 2005). Minuchin (1982) tratou dessa questão enfatizando que os membros da família são desencorajados a explorar o mundo por si mesmos quando não há diferenciação do sistema, além de apresentarem dificuldade para se desenvolverem emocional e psicologicamente. A família A era um sistema familiar bastante rígido, em que todos exerciam sempre os mesmos papéis, o que contribuía para o isolamento do sistema e de seus membros (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012).

No que se refere ao desenvolvimento dos filhos e à sua entrada no mundo adulto, é importante que se dê atenção à angústia que essa transição gera nos pais, que, muitas vezes, não sabem como agir frente a tantas mudanças. Ainda que possa ser preocupante em qualquer fase do ciclo de vida familiar, o emaranhamento na adolescência e na adultez jovem tende a manter o indivíduo extremamente envolvido com a família de origem e distanciado de seus próprios desafios e aquisições. Nesse sentido, seria muito importante para Gabriel experimentar o mundo exterior à família, inclusive novos relacionamentos íntimos (Carter & McGoldrick, 1995).

Joana relatou que não se sentia mais útil e trouxe essa queixa em vários atendimentos. Carter e McGoldrick (1995) lembram que os pais costumam relatar um vazio sentido em decorrência da independência dos filhos, pois não se sentem mais úteis. Como destacado por Knobel (1981), os pais precisam elaborar o luto da infância conforme os filhos vão crescendo, o que não ocorreu na família A, visto que ambos os filhos já tinham 40 anos e ainda eram vistos e tratados como crianças. Esse processo inibe a diferenciação de Gabriel e Guilherme, contribuindo para o prolongamento de sua permanência na casa dos pais. Conforme Carter e McGoldrick (1995), essa sensação de vazio tende a apresentar-se com maior ênfase quando a identidade do indivíduo está estabelecida prioritariamente em um papel específico, como no caso de Joana e sua identificação com o papel de mãe. Joana parece ter investido suas energias nesse papel por não se sentir realizada e gratificada como filha, irmã ou esposa.

Gabriel trabalha e já não depende financeiramente dos pais, mas diz não pensar em morar longe deles por sentir que uma mudança significaria deixá-los para trás. Como citado por Vieira e Rava (2012), o conforto do lar parental também pode ser um dos fatores considerados por Gabriel para permanecer em casa. A perspectiva de Joana é que Gabriel continue morando em casa, quer continuar tendo o filho por perto.

Quando se trata do desenvolvimento humano e familiar, é inevitável o estresse relacionado à transição entre as diferentes fases e às questões mal resolvidas na família de origem (Carter & McGoldrick, 1995). Porém, quanto maior a rigidez do sistema e mais difícil a comunicação, provavelmente mais difícil será o enfrentamento desses momentos (Olson, 1991). Para Minuchin (1982), o estresse relacionado a situações novas faz parte do processo de mudança e continuidade. O sistema dispõe de padrões alternativos, porém qualquer mudança maior que o limite tolerável pelo sistema, será motivo para despertar mecanismos que reestabeleçam o equilíbrio anterior. Isso ficou claro na Família A, quando Joana quis determinar como precisam ser as mulheres com as quais o filho se relaciona, de forma similar a como sua mãe agiu, obrigando-a a casar com Claudio. Assim, pode-se perceber como o sistema trabalha e como a relação de Joana com a mãe influenciou a forma como ela educou os filhos e manteve-se perto deles.

Além disso, em momentos de desequilíbrio, os membros da família tendem a pensar que os outros não estão cumprindo com seus deveres, como aconteceu com o marido e os filhos de Joana, ao insinuar que ela estava abandonando-os e com Joana, quando cobrava a atenção do filho. Esse processo pode estar relacionado aos mitos familiares, que reforçam quais tipos de comportamentos são aceitos e esperados, bem como aqueles que são condenados (Falcke & Wagner, 2005).

De acordo com Minuchin (1982), as famílias buscam terapia porque as negociações destinadas a uma transição bem sucedida não puderam ser realizadas. Se a família tem problemas devido a uma transição recente é mais fácil ajudá-la do que uma família que bloqueou as negociações adaptativas durante um longo período, como no caso da Família A. O autor destacou que a confiança da família no terapeuta é muito importante em momentos de estresse, desequilíbrio e mudança, visto que a resposta de outros membros pode ser de insistência na manutenção do sistema, pois quando uma pessoa aumenta seu nível de diferenciação, tende a afetar o equilíbrio do grupo familiar (Bowen, 1991). Minuchin (1982) enfatizou que “este movimento é facilitado pela compreensão do terapeuta, por seu apoio e confirmação das experiências e necessidades sentidas dos membros da família” (p. 111).

Como pode-se perceber pelo relato e tempo de atendimento, foi preciso prestar atenção, ainda, ao “tempo da família” e respeitar suas percepções acerca da compreensão do problema. Neste caso, os terapeutas buscaram agir como criadores de fronteiras, tornando-as nítidas (Minuchin, 1982). A iniciativa de separar os membros da família para atendimentos individuais buscou justamente reforçar a diferenciação entre os subsistemas e, com isso, contribuir para a autonomia tanto de Gabriel como de Joana. Além disso, Bowen (1991) salientou que, quando o sistema familiar está muito fechado, é difícil trabalhar com vários membros da família, fazendo-se necessário colaborar com um dos membros para que ele alcance um nível maior de diferenciação, o que poderá contribuir para o funcionamento do sistema familiar.

Esse trabalho mostra como o esforço sistemático para trabalhar as dificuldades pertinentes ao ciclo de desenvolvimento familiar pode contribuir para que as famílias aprendam a lidar de novas formas com as restrições que dificultaram o seu crescimento por tanto tempo (Carter & McGoldrick, 1995). Adquirir a capacidade de separação não pressupõe que o indivíduo deve deixar de investir em suas relações familiares, pelo contrário, ele investirá de uma forma diferente e mais adaptativa.

 

Considerações finais

Espera-se que este trabalho contribua para a compreensão do ciclo de desenvolvimento familiar e das possibilidades de intervenção junto a famílias que se encontram vulneráveis diante de momentos de transição. Pôde-se perceber que esses momentos de transição rompem com a estabilidade do sistema e faz-se necessária uma reorganização. O conceito de diferenciação mostrou-se útil à elucidação dos processos de relacionamento familiar, considerando a família como um todo. Destaca-se a importância de compreender a situação trazida pela família a partir de um olhar que contemple sua história. Esse entendimento pode autorizar algumas famílias a mostrarem sua rigidez e dificuldade para alterar a forma de se relacionar.

Como pode-se perceber pelo relato e tempo de atendimento, foi preciso prestar bastante atenção ao “tempo da família” e, no sentido de propiciar um espaço, também físico, no qual cada um pudesse manifestar suas vivências, os atendimentos individuais foram de extrema importância para a mudança no relacionamento familiar.

Este estudo proporcionou o questionamento e a reflexão sobre novas formas de se relacionar, que não envolvam um demasiado sacrifício da autonomia individual. Dessa forma, o indivíduo pode vivenciar relações que envolvam reciprocidade e transmitam segurança, mantendo o espaço para desenvolver e manifestar suas próprias ideias e sentimentos.

 

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Endereço para correspondência
Priscila Gasperin Pellegrini
E-mail: prigasperin@gmail.com

Enviado em: 22/04/2015
Aceito em: 26/05/2015

 

 

1 Psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e especializanda em Terapia Relacional Sistêmica no Instituto Familiare. Membro do Núcleo de Estudos do Trabalho e Constituição do Sujeito (NETCOS).
2 Psicóloga, com Doutorado em Psicologia pela UFRGS e formação em Terapia de Família pelo Domus. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, membro do Laboratório de Família, Grupo e Comunidade (LABFAM).
3 Psicóloga, com especialização em Terapia Relacional Sistêmica pelo Instituto Familiare e em Saúde da Família pela UFSC. Psicóloga do Serviço de Atenção Psicológica da UFSC.
4 Psicóloga, com Doutorado em Saúde Mental pela UNICAMP e especialização em Terapia Familiar e de Casal pelo ITF. Professora Titular da UFSC, membro do Laboratório de Psicologia da Saúde, Família e Comunidade (LABSFAC).
5 A prática da Equipe Reflexiva, foi desenvolvida nos trabalhos de Tom Andersen (1991), baseados no Construcionismo Social. A equipe reflexiva faz parte do setting terapêutico e os terapeutas solicitam sua participação em alguns momentos da sessão, convidando-os a uma reflexão sobre o que puderam perceber até o momento.

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