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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.22 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2018
ARTIGOS
Pais encarcerados: a percepção de mães e crianças sobre a relação pais-filhos
Incarcerated parents: the perception of mothers and children on the parent-child relationship
Kellen Vasconcellos Ledel1 ; Josiane Razera2, I, II; Karla Rafaela Haack3, I, III ; Denise Falcke4, I
I Universidade do Rio dos Sinos – UNISINOS - São Leopoldo/RS
II Faculdade - IMED
III Fatec Dental CEEO
RESUMO
Objetivou-se compreender como crianças e suas mães avaliam o aprisionamento paterno e suas repercussões na dinâmica familiar e no desenvolvimento infantil. Participaram três crianças, com faixa etária entre sete e nove anos, sendo duas delas irmãs e as duas mães. Utilizou-se como instrumento uma entrevista semiestruturada e a hora do jogo diagnóstica. A análise foi baseada em estudo de casos múltiplos. Os resultados indicaram que o aprisionamento da figura paterna produz grande impacto na relação entre pais e filhos, seja pelo distanciamento físico, pela carência emocional e até mesmo por questões financeiras. Além disso, o tratamento destinado às mães e às crianças nos presídios, assim como os procedimentos de revista a que são submetidas, merecem atenção dos profissionais da saúde.
Palavras-chave: Relações pai-criança, Relações mãe-criança, Disciplina na prisão.
ABSTRACT
This study aimed to understand how children and their mothers assess parental imprisonment and its effects on family dynamics and child development. Participated three children, with ages between seven and nine, being two of them sisters and two mothers. The instruments used were a semi-structured interview and the game time diagnosis. The analysis was based on multiple cases study. The results indicated that the imprisonment of the father figure produces great impact on the relationship between parents and children, either by physical distance, the emotional deprivation and even for financial reasons. In addition, treatment for mothers and children in prisons, as well as inspection procedures to which they are subject, deserve the attention of health professionals.
Keywords: Parent child relations, Mother child relations, Prison discipline.
Introdução
O número de crimes ocorridos no Rio Grande do Sul é expressivo, visto que entre janeiro e dezembro de 2016 ocorreram 329.407 delitos consumados, conforme informado pela Divisão de Estatística Criminal da Secretaria da Segurança Pública. Pode-se pensar na criminalidade como uma possível consequência das contradições sociais, do desemprego e do aumento do nível da pobreza, que têm promovido desigualdades na sociedade. Também é possível refletir que o sistema penitenciário, que tem por missão regenerar, reintegrar e disciplinar indivíduos em conflito com a lei, acaba falhando na sua missão e distanciando ainda mais os presidiários da sociedade (Gonçalves, Ribeiro, & Ventura, 2015; Kosminsky, Pinto, & Miyashiro, 2005).
A prisão provoca rupturas com o mercado de trabalho, impacta na identidade social e interfere na vida afetiva, fragilizando questões que tem muito valor para qualquer pessoa (Redígolo, 2012; Sequeira, 2006). Dessa forma, o encarceramento ocasiona uma forma de exclusão, pois, mesmo quando volta à liberdade, geralmente um ex-presidiário leva consigo esse rótulo. Além disso, a família de um detento também ficará exposta a exclusão moral assim que ocorre o aprisionamento de um dos seus membros (Santos & Soares, 2009). É importante refletir que esses indivíduos, em muitos casos, também têm filhos, o que promoverá mudanças no sistema familiar, principalmente pelo distanciamento físico, em que o contato só ocorre nas ocasiões de visitas.
Conforme o Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Materiais em Estabelecimentos Prisionais da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Portaria n° 160/2014 – SUSEPE), que visa padronizar as normas quanto às visitas nos presídios do Rio Grande do Sul, os visitantes, de acordo com o item 19, só podem entrar nos presídios depois de passarem pela revista pessoal, independente da idade, assim como por uma revista íntima, mediante fundada suspeita. Durante a revista, o visitante fica de roupa íntima e passa por um detector de metal, sendo que no caso de crianças que usam fraldas, o responsável deve substituir a mesma mediante inspeção do Agente Penitenciário. Caso seja necessária a revista íntima, consta no item 19.2.1 que o visitante ficará sem nenhuma roupa e deverá passar pelo detector e inspeção pelo servidor, sem contato físico, e, quando necessário, terá que realizar agachamentos, conforme orientação. Os visitantes menores de idade, entre 12 e 17 anos, também são submetidos aos procedimentos de revista pessoal e minuciosa, contudo somente na presença de seu responsável.
Conforme descrito no regulamento, crianças menores de 12 anos não passam pela revista íntima, porém há relatos de familiares que apontam que nem sempre as normas estabelecidas são executadas desta forma (Santos, 2006). Convém lembrar que, de acordo com a Lei de Execução Penal – LEP (Lei nº 7.210, de julho de 1984), no que diz respeito à visitação de crianças, fica estabelecido que cada instituição prisional poderá reger suas próprias normas quanto a entrada das mesmas. Essa brecha da lei acaba permitindo que crianças sejam tratadas da mesma maneira que os adultos, enfrentando filas, a revista e até mesmo o preconceito dos policiais, que, muitas vezes, tratam os familiares dos presos como se eles também tivessem cometido algum delito (Goffman, 2008; Santos, 2006; Schilling & Miyashiro, 2008).
Embora a visita de uma criança ao presídio seja complexa, é um direito que ela possui, bem como os presidiários e seus familiares. Pesquisas científicas demonstram a importância da presença paterna no desenvolvimento da criança (Anastácio & Nobre-Leitão, 2015; Petito, Cândido, Ribeiro, & Petito, 2015; Schulz, 2015), não só pelas questões de contribuição ao sustento financeiro familiar, mas também no envolvimento com os filhos, tanto na educação, quanto nas brincadeiras e demais cuidados. Conforme descrito por Piccinini, Silva, Gonçalves, Lopes e Tudge (2012), a presença da figura paterna no desenvolvimento dos filhos está associada a um melhor desenvolvimento emocional, psicológico e social. Um vínculo forte com a figura paterna (Da Silva, 2015; Fitzpatrick, 1997) pode servir de fator de proteção para o desenvolvimento de comportamentos antissociais e violentos durante a infância, a adolescência e a idade adulta.
Quando a figura paterna é encarcerada, de alguma forma toda família é atingida (Pineda, Díaz, Javier, & Olaizola, 2014) e vivenciará essa pena junto, visto que a rotina de todos os membros familiares se altera. Considerando que, para os adultos, é difícil lidar com essa situação, ainda mais complicado torna-se para uma criança (Santos, 2006). Um estudo norte americano (Wilbur et al., 2007) comparou os níveis de depressão em 102 crianças e identificou que eram maiores naquelas que conviveram com o encarceramento da figura paterna, bem como mais problemas de comportamento externalizantes, segundo relato de seus professores, reforçando que o encarceramento dos pais pode trazer prejuízos para o desenvolvimento de seus filhos.
Para os pais que se encontram presos, é importante manter o vínculo com os filhos, contudo muitos deles possuem receios quanto ao fato das crianças frequentarem o ambiente prisional. Entre os medos que mencionam, é frequente o temor de haver alguma rebelião no dia em que os filhos estão visitando-os, o medo das influências negativas e da questão da humilhação que é a revista íntima (Silva & Guzzo, 2007).
Para a criança que tem um pai preso, pode ser difícil lidar com essa barreira que impede o contato entre pai e filho. Para ela, o importante é estar com o pai independente do lugar ou circunstância. Porém, ao passar por momentos constrangedores, como no ato da revista, é impossível a criança não demonstrar o que está sentindo. Santos (2006) afirma que as crianças conseguem expressar seu sofrimento e angústia através de manifestações físicas no corpo, como dor, que, muitas vezes, passam despercebidas pelos membros da família ou até por médicos. Ainda, de acordo com o autor, é visível a falta que as crianças sentem do pai e o quanto é esperado por elas o encontro com eles no presídio, só que isso acaba acarretando um forte desgaste psíquico, tornando filhos de pais encarcerados mais suscetíveis a problemas, principalmente de comportamento (Geller, Cooper, Garfinkel, Schwartz-Soicher, & Mincy, 2012). Uma pesquisa norte americana identificou que essas crianças, geralmente, sofrem estigmatização no ambiente escolar e, com isso, os autores referem que o contato com o pai ou mãe no sistema penitenciário é importante, ainda que necessite de certo cuidado, especialmente quando a criança ainda não consegue ter um entendimento real da situação (Dallaire, Ciccone, & Wilson, 2010; Ormeño, Maias, & Williams, 2013).
Outro estudo realizado em Portugal, com pais encarcerados, refere que uma das principais preocupações desses pais, que remete às questões de gênero socialmente estabelecidas, está direcionada à promoção do sustento financeiro dos filhos. Ocorre que, em muitos casos, o encarcerado não consegue dar conta desse desejo de continuar auxiliando a família financeiramente, pois também está privado de recursos financeiros e, com isso, acaba buscando um estabelecimento maior das relações afetivas com essas crianças. A forma que o relacionamento entre pai e filhos se estabelecerá depende da trajetória desses indivíduos, inclusive antes do encarceramento. Autores pontuam que um bom relacionamento com a mãe e/ou outros cuidadores é fundamental, visto que a visita da criança depende dos referidos adultos (Machado & Granja, 2013).
Este estudo oportuniza a reflexão sobre a instrumentalização acerca de um problema de ordem social, especialmente sobre o estigma e o sofrimento que esses indivíduos, pais encarcerados, filhos e familiares, vivenciam. Tamanha complexidade deste fenômeno não é compatível com as produções científicas produzidas. Uma revisão sistemática dos anos de 1998 a 2011, elaborada por Ormeño, et al. (2013) localizou somente cinco estudos e destes, apenas dois avaliavam os filhos de homens encarcerados. Desde então, poucas produções abordam a temática (Machado & Granja, 2013; Miranda & Granato, 2016; Nardi, Jahn, & Dell´Aglio 2014). Partindo disso, a presente pesquisa teve como objetivo compreender como crianças e suas mães avaliam o aprisionamento paterno e como isso repercute na dinâmica familiar e no desenvolvimento infantil.
Método
O presente trabalho tem caráter qualitativo, transversal e exploratório, apresentado no formato de estudos de casos múltiplos, conforme proposto por Yin (2004). Os estudos de casos podem ser utilizados para investigações empíricas de um fenômeno em seu contexto de vida real, permitindo melhor compreensão dos casos a serem estudados. Conforme proposto por Martins (2006), estudos de casos permitem uma percepção da realidade a partir dos ensinamentos advindos do referencial teórico e das características particulares do caso a ser estudado.
Participantes
Participaram desta pesquisa três crianças e suas mães, sendo que uma delas estava em atendimento com um profissional da Unidade Básica de Saúde (UBS). A escolha destes participantes em relação aos demais se deu pelo critério de conveniência. Os critérios de inclusão foram: crianças com faixa etária entre sete e 11 anos e que, na época da coleta, estivessem vivenciando a situação de ter o pai preso. A partir do acesso às crianças, as mães também foram convidadas a participar da entrevista.
Instrumentos
Foi realizada uma entrevista semiestruturada com as crianças, que partiu de cinco questões capazes de abranger os objetivos propostos. No decorrer da entrevista, foram formuladas novas indagações, conforme o andamento da mesma. As questões inicialmente propostas foram: Como era a relação com o seu pai antes da prisão? Como foi para você saber que o seu pai foi preso? Como é ficar longe do seu pai? Como é o dia de visita ao seu pai no presídio? Como você se sente quando acaba a visita? A elaboração das questões surgiu a partir da revisão de literatura.
As entrevistas foram conduzidas de forma aberta, respeitando os limites e o tempo de cada criança. A Hora do Jogo Diagnóstica (Aberastury, 1992), que consiste em uma entrevista que tem como base o brincar livre e espontâneo da criança, foi utilizada como dispositivo para interação ao longo da conversa. Por meio dessa técnica é possível identificar conteúdos inconscientes, como defesas, ansiedade, medo, agressividade e outros. As mães também responderam a uma entrevista na qual foram solicitadas a expressar sua opinião sobre a relação dos filhos com o pai, antes e após o encarceramento.
Procedimentos para coleta de dados e análise de dados
A partir da seleção dos entrevistados, conforme critérios descritos anteriormente, os responsáveis e posteriormente as crianças foram convidados a participar do estudo pessoalmente onde eram atendidos na Unidade Básica de Saúde – UBS, localizada na região metropolitana de Porto Alegre/ RS, local no qual ocorreram as entrevistas. Foi combinado um horário específico para a realização da entrevista para a pesquisa, independente do horário do atendimento na UBS.
A análise integrativa de cada caso foi realizada, visando compreender como crianças e suas mães avaliam o aprisionamento paterno e as possíveis repercussões na dinâmica familiar e no desenvolvimento infantil. A partir da análise vertical de cada caso, foi realizada uma análise horizontal, buscando semelhanças e particularidades entre os casos, compondo a síntese de casos cruzados, conforme proposta por Yin (2005).
Considerações éticas
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade XXX, sob parecer de número 11/103. Foram respeitadas todas as diretrizes e normas para pesquisas que envolvem seres humanos de acordo com Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). As mães assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi garantida a confidencialidade dos dados e preservação da identidade dos participantes.
Resultados
Caso 1
A mãe Paula, compareceu a entrevista, acompanhada de seus dois filhos, Renata e Marcos. Durante o momento a entrevista, Renata consegue passar de forma clara detalhes sobre o comportamento do irmão, supostamente demonstrando ocupar um papel de cuidadora dele. Esse por sua vez, ao interagir com a pesquisadora, apresenta uma linguagem infantilizada, ficou de cabeça baixa durante toda a entrevista, não falou muito e chorou em alguns momentos.
Os pais das crianças casaram-se jovens e foram morar nos fundos da casa da mãe de Júlio. Paula é vendedora em uma loja, trabalha até a noite e finais de semana, por isso é a sogra quem leva as crianças na escola e fica com elas até a mãe voltar do trabalho. Segundo Paula, a sogra tem ajudado muito desde a prisão do marido. Júlio está preso há quatro anos por tráfico de drogas. “Se tivéssemos dinheiro para pagar um bom advogado ele não tinha ficado nem uma semana preso”, relata Paula. Os filhos eram pequenos na época da condenação do marido e, de acordo com ela, quem mais sente a falta de Júlio é o filho mais novo. Ela recorda que “tudo que o pai dele queria era um filho homem, então quando ele nasceu foi a alegria da casa. Quando o Marcos entrou para a escolinha a primeira vez, eu fui levar ele, daí ele me perguntou se o pai é que ia buscar ele depois, partiu meu coração. Já a Renata nem fala muito nele e quando chega lá ela fica mais no canto dela”, declara a mãe.
Renata é mais apegada à mãe. Paula comenta que nas visitas ao pai, é Renata quem ajuda a levar as sacolas, por isso ela sempre vai com a mãe para as visitas. Renata declarou também que gosta de ir visitar o pai, apesar de ser cansativo, “um dia antes a gente já tem que deixar tudo arrumado, precisa separar tudo se não, não entra. A minha mãe às vezes faz bolo e sempre leva comida para a gente comer lá. O ruim é sair de madrugada e ficar na fila”. Quanto ao irmão, ela diz que ele sempre dorme, tanto no ônibus quanto na fila e que, às vezes, dorme durante a visita também, “a minha mãe ainda tem que levar roupa para ele, porque ele deu para fazer xixi na calça”. Por isso, Marcos, às vezes, fica em casa: “ele é muito fraquinho, toda hora tem alguma coisa, então deixo ele com a avó, ele fica triste por não ver o pai, mas vou fazer o que, né? Quando ele era pequeno eu tinha pena de levar ele, porque tinha que tirar a fralda na frente da policial e colocar outra, às vezes estava muito frio e ele chorava um monte”, comenta Paula. Com relação à revista, ela diz que os filhos nunca tiveram que passar pela revista íntima, só ela foi quem passou, porém já ouviu muitas mulheres na fila dizendo que os filhos pequenos foram submetidos a esse procedimento, “teve uma que disse que a filha de cinco anos teve que tirar toda a roupinha e fazer agachamento na frente do espelho. Se para a gente já é humilhante, imagina para uma criança. Sempre tenho que tirar a roupa na frente deles [filhos] né, por isso prefiro não levar tanto o Marcos, ele é menino, já dá mais vergonha”.
De acordo com a mãe, Marcos não se alimenta muito bem, o que é um motivo de preocupação para ela. Paula comenta que quando eles vão ao presídio sempre levam comida para passar o dia lá com Júlio, porém Marcos não come nada o dia todo. Ela disse que desde pequeno ele é assim, ela levava mamadeira e ele não tomava. “O Marcos sempre volta de lá chorando, ele queria ficar mais tempo. Às vezes, quando chega em casa está até meio quente. Já disse para ele parar de ser dengoso que acaba ficando doente de verdade”, refere Paula.
Renata, a filha primogênita do casal, mencionou que sempre sai para brincar com os amigos na rua, depois que chega da aula, porém Marcos nunca vai junto, preferindo ficar em casa assistindo TV com a sua avó, “ele é envergonhado, não tem amigos, pelo menos eu nunca vi, ele nunca quer sair de casa para nada”. Ela comentou sentir falta de ter o pai por perto, como era antes, “a gente via desenho junto”.
Marcos fala pouco e, com a cabeça baixa, comenta não lembrar como era antes da prisão do pai, mas diz se sentir triste por não ter ele por perto todos os dias. Com relação às visitas, disse apenas que sente sono por ter que sair tão cedo de casa, mas que gosta de ficar com o pai.
Caso 2
Amanda compareceu a entrevista acompanhada da mãe Luana. A mãe conta que Anderson (esposo) foi preso cinco vezes, mas sempre saía em pouco tempo, porém desta vez ele já está há um ano e dois meses no presídio, por furto de veículos, “por isso tenho ido visitá-lo com as crianças”, comenta Luana. Quando ocorreu a prisão, ela estava grávida de seis meses do Guilherme, por isso Anderson não viu o filho nascer. Só foi conhecer ele com um ano, em uma visita. Luana disse que evitou levar o filho antes por causa da revista, “tem que tirar a roupinha e com esse frio dava pena, então esperei ele crescer mais”.
Luana não costuma levar os três filhos juntos nos dias de visita, geralmente vai um de cada vez, conforme relata: “é difícil pegar ônibus e sair de madrugada com sacolas e mais os filhos pequenos”. Amanda é a única que sempre vai com a mãe ao presídio, “ela é mocinha, vai junto porque me ajuda. Os pequenos eu deixo com uma vizinha”. Luana acredita que Amanda é a única dos filhos que entende bem o que houve com o pai, por isso é quem mais sente falta dele, “agora é ela quem fica responsável pela casa e cuida dos irmãos, pois eu preciso trabalhar, estou me virando, fazendo faxina”.
Amanda está na 2ª série, pois repetiu o ano. Sobre isso, ela refere que: “é difícil fazer os temas, tenho que cuidar da Nívea e do Guilherme, fazer comida para eles, limpar a casa...”. Sobre o relacionamento dela com a mãe, comenta saber que ela está triste, porque não consegue ganhar dinheiro para pagar as contas, “agora que o meu pai está preso e não pode trabalhar, minha mãe faz faxina em um monte de casas, mas ganha pouco”.
Com relação ao pai, Amanda diz que fala sempre com ele por telefone, “ele liga quase toda semana, sempre que a minha mãe consegue dinheiro para mandar cartão de celular para ele usar lá dentro”. Por isso, refere não sentir tanta saudade. Quando foi solicitado que contasse como era antes da prisão, ela refere que era bom, mas que o pai não parava muito em casa, “ele tava sempre trabalhando, mas, às vezes, a gente saía de carro. Quando ele tava de carro novo sempre levava todo mundo para dar uma volta”.
Ao ser indagada sobre as visitas ao presídio, Amanda relata ser muito cansativo, pois é longe, precisam acordar cedo e também ficar na fila. Ela volta com sono e, muitas vezes, não consegue acordar no outro dia para ir à aula, “eu sei que preciso ir para ajudar a minha mãe a carregar as sacolas. O bom é que eu passo o dia lá com meu pai”.A entrevistada também comenta sobre as condições do presídio em que o pai se encontra, “a única coisa ruim é que não dá para fazer xixi, minha mãe disse que é para segurar porque o banheiro da cela é sujo, daí chego em casa com dor na barriga. Lá dentro tem um cheiro ruim. Uma vez, vi um bicho no pátio, falei para a minha mãe olhar o gatinho, mas ela me disse para ficar quieta que aquilo era um rato”. Com relação ao procedimento de revista, Amanda diz que algumas vezes já teve que tirar toda a sua roupa na frente de uma policial, até as peças íntimas: “fiquei com muita vergonha”.
Discussão
Ao examinar como as três crianças percebem a situação do encarceramento da figura paterna, observa-se a existência de um grau de preocupação, tanto no que diz respeito às visitas ao pai no presídio, quanto à configuração familiar apresentada nesse momento, considerando a ausência do pai na rotina diária da família. Desta forma, o pai, que antes também era provedor do sustento da família, não pode contribuir financeiramente nesse momento, ficando a cargo da mãe essa responsabilidade com os gastos. Este fato gera uma série de modificações nas funções e nos papéis familiares. No segundo caso, verificou-se que o papel desempenhado pela mãe anteriormente, de cuidado com a casa e os filhos, passou a ser realizado pela filha mais velha, visto que a mãe saiu em busca de trabalho. Dessa forma, ocorre uma mudança significativa na organização familiar, a ausência do pai e a atual sobrecarga da mãe, pode ser desencadeante de estresse nas crianças, que pode apresentar uma decaída no rendimento escolar, sintomas clínicos e até mesmo depressão (Pinto, Carvalho, & Sá, 2014; Rebelo, Verissimo, Maló-Machado, & Silva, 2013; Santos & Soares, 2009).
O declínio do desempenho escolar, também pode estar associado a criação dos filhos por apenas um dos cônjuges (Ribeiro, Da Silva, & Cezar-Vaz, 2012), visto que todas as responsabilidades acabam sobrecarregando o genitor cuidador. O referido excesso de funções pode ter ocasionado um maior envolvimento dos filhos nas atividades domésticas. No caso de Amanda, é evidente que, após a ausência do pai, ela ficou com mais responsabilidades familiares, para sua mãe poder trabalhar, tais como cuidar da casa e dos irmãos menores, sendo esta uma possível justificativa para ter menos tempo para estudar e brincar com outras crianças de sua idade, podendo ocasionar mais dificuldades no processo de aprendizagem. Amanda torna-se uma filha parentalizada, assumindo o lugar do genitor ausente ou das atribuições maternas (Vieira & Rava, 2012). O envolvimento das crianças com as atribuições domésticas pode ter dois lados, um que permite que elas aprendam a cuidar, reconhecer e perceber as necessidades da casa e dos irmãos, contudo, quando as demandas são demasiadas, é possível que seu desenvolvimento seja prejudicado, visto que elas precisam vivenciar a infância (Poleto, Wagner, & Koller, 2004).
A fala de Amanda, quando diz que sabe que sua mãe está triste porque não consegue ganhar dinheiro suficiente para pagar as contas, deixa claro o seu envolvimento com os problemas e preocupações da família. Conforme Nardi, et al. (2014) e Seymour e Hairston (2001), grande parte das crianças que possuem pais aprisionados, convivem com a pobreza antes e após a prisão da figura paterna. Já no que diz respeito às consequências do aprisionamento da figura paterna para Marcos, evidenciou-se várias formas, entre elas tristeza, choro, falta de apetite, sono excessivo, enurese e evitação, não querendo falar sobre isso. Conforme Da Rocha, Emeric e De Mattos Silvares (2012), a enurese apresentada por crianças geralmente está associada a problemas de internalização, mais especificamente a sintomas como ansiedade e depressão.
Segundo Seymour e Hairston (2001), a maioria das crianças que vivenciam a situação do encarceramento paterno pode apresentar diversas emoções como temor, ira, ansiedade, culpa, solidão e tristeza, comportamentos como isolamento e até mesmo baixa no rendimento escolar. Essas reações são relacionadas a diversos fatores, como o estresse provocado pela separação do pai, o estigma que sofrem pela sociedade devido a essa situação e também a identificação com a figura paterna que se encontra preso.
Os sintomas de Marcos podem ser indícios de depressão. A depressão em crianças, geralmente é percebida através de perturbações comportamentais, como isolamento, choros silenciosos, não brincar com outras crianças, sonolência diurna, distúrbio do apetite como recusa alimentar e enurese (Carvalho & Ramires, 2013), podendo haver também dificuldade de separação do adulto responsável. Esses sintomas são visíveis em Marcos através das falas da mãe e da irmã. Ainda, de acordo Miranda, et. al (2013), é comum que crianças fiquem deprimidas quando existem problemas familiares, os quais fazem não se sentirem amadas ou protegidas.
Quanto ao fato da Renata demonstrar um distanciamento do pai durante as visitas, pode ser por medo de se apegar a ele novamente e perdê-lo mais uma vez, assim como pode ser por estranhar o estabelecimento prisional. Fator este que influiu na qualidade do relacionamento entre pai e filha. No caso do Marcos, quando o pai foi preso ele tinha entre três e quatro anos, por isso não estranhou o presídio durante as visitas, considerando que o vínculo entre pai e filho foi se estabelecendo no próprio ambiente prisional.
Com relação à revista, as entrevistas apontaram que as mães sentem-se receosas em levar os filhos para visitar os pais justamente por causa deste procedimento, pois segundo as entrevistadas a revista padrão, na qual os visitantes ficam apenas com as roupas íntimas, é, muitas vezes, obrigatória tanto em adultos quanto em crianças. A revista íntima, na qual eles ficam sem nenhuma roupa, segundo o regulamento da SUSEPE não pode ser realizada em crianças menores de 12 anos, mas acaba ocorrendo em crianças pequenas mesmo com a proibição do presente regulamento. Situação esta que se confirma nas entrevistas, conforme relatou a mãe de Marcos e Renata, que disseram já ter ouvido outras mães comentarem na fila que seus filhos passaram pela revista íntima, e também nos relatos de Amanda que disse já ter passado por isto. Ficou evidente, também, o constrangimento de uma das mães por ter de se despir totalmente na frente dos filhos, pois entram na sala de revista junto com elas, o que provoca um sentimento de humilhação para as mesmas.
Faz-se necessário repensar o procedimento de revista, até mesmo pela pouca eficácia do mesmo em impedir a entrada de armas e drogas nas penitenciárias, que acabam chegando até os presidiários por outros meios. Do mesmo modo que, no presente estudo, ficou confirmada a presença de telefone celular junto ao pai que estava preso, através do qual ele fazia contato com a família.
De modo geral, é possível perceber que as crianças entrevistadas tiveram modificações na sua dinâmica familiar após a prisão do pai, o que é algo esperado devido à situação, por si só, ser muito impactante. Além disso, a ausência do pai no ambiente familiar, assim como a situação de ir visitá-lo no ambiente prisional, é um forte gerador de estresse. Zamora (2004) enfatiza que a criança fica em risco psicológico quando há uma mudança na configuração familiar. É importante, para um desenvolvimento saudável, que a família sirva de mediadora dos reflexos negativos que a ausência do pai provoca na vida emocional do filho.
Considerações finais
Essa pesquisa verificou que, em termos gerais, o aprisionamento da figura paterna produz impacto na relação entre pai e filhos, assim como tende a modificar a dinâmica familiar, seja emocional ou financeiramente. Os relatos das crianças e também de suas mães, mostram que os filhos que passam pela situação do encarceramento paterno possuem, mesmo com pouca idade, capacidade de entender o fato vivenciado e expressam seus sentimentos, com relação à ausência do pai, através de sintomas comportamentais e sinais como baixo rendimento escolar, sonolência, falta de apetite e enurese, que acabam sendo tratados, na maioria das vezes, com indiferença pelos familiares.
Essa pesquisa fundamentou-se na percepção de apenas cinco indivíduos, mesmo assim permitiu identificar aspectos relevantes da vivência das crianças e de suas mães, participantes do estudo, que podem ser aprofundados em outras pesquisas, com diferentes objetivos e delineamentos metodológicos, gerando maior reflexão sobre temática que possui grande relevância social, com impacto em curto e longo prazo para os filhos envolvidos.
As questões abordadas através das entrevistas evidenciam que a situação vivenciada pelos filhos ao visitar os pais no presídio é desencadeadora de alto desgaste psíquico. A precariedade do sistema prisional, no que diz respeito às instalações e ao tratamento dispensado aos familiares dos presos, principalmente quando se trata de crianças, é algo que pode ferir a garantia de preservação dos direitos humanos, pois, de acordo com as mães entrevistadas, é dispensado aos filhos o mesmo tratamento dado aos adultos, como fila, revista e certas condutas de indiferença, especialmente na hora da revista. Deve-se levar em conta que o controle deve existir sobre os apenados e não ser extensivo aos seus familiares.
Quanto ao vínculo paterno, pode-se perceber que a relação entre pais e filhos se mantém mesmo com poucas visitas, deixando claro que o que fortalece este vínculo é a qualidade da relação. Entende-se que as visitas ao presídio são um fator positivo tanto para o pai que está preso, quanto para os filhos, pois é de suma importância reforçar os vínculos parentais. Sendo assim, é importante criar políticas que acolham as crianças nos presídios em dias de visita, pois é esperado que elas não percam o vínculo com os pais, sendo este um fator de proteção para as mesmas e de ampliação das possibilidades de ressocialização dos detentos.
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Endereço para correspondência
Denise Falcke
Av. Unisinos, nº 950
CEP 93022-000
São Leopoldo/RS, Brasil
Telefone: (51) 3591-1122 Ramal 1253
E-mail: dfalcke@unisinos.br
Enviado em: 22/06/2017
1ª revisão em: 27/08/2017
Aceito em: 10/10/2017
1 Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/ UNISINOS – São Leopoldo/RS.
2 Psicóloga e especialista em dinâmicas das relações conjugais e familiares pela Faculdade Meridional – IMED. Mestre e doutoranda pela Universidade do Rio dos Sinos – UNISINOS -– São Leopoldo/RS. Professora do curso de Psicologia da Faculdade – IMED.
3 Psicóloga formada pela Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT, Mestre e doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. É professora do Curso Tecnólogo em Radiologia da Fatec Dental CEEO.
4 Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, especialização em Terapia de Casal e Família pelo Instituto de Terapias Integradas (ITI), mestrado em Psicologia Clínica e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Universidade do Rio dos Sinos – UNISINOS.