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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.23 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2019
ARTIGOS
Cuidados inconsistentes durante a infância e relações de apego na adolescência: um estudo de caso
Inconsistent childhood care and adolescent attachment relationships: a case study
Marcella Ranheri de Souza1, I ; Helena Centeno Hintz2, II, III
I Universidade do Vale de Itajaí
II Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e Família
III Associação Gaúcha de Terapia de Família
RESUMO
O presente trabalho consiste em um estudo de caso clínico de uma adolescente, realizado em um serviço de atendimento psicológico. Ao longo da terapia sistêmica individual foram abordados aspectos da história da paciente, como negligência, perdas, adoção intrafamiliar e apego inseguro. O processo terapêutico considerou a paciente no contexto da sua história, rede de relacionamentos e experiências, enfatizando os significados que ela atribuía a esses eventos. Assim, dentro das particularidades do caso, trabalhou-se para compreender o impacto na relação entre o tipo de cuidado recebido na infância e o apego na adolescência e construção de self. Entende-se que esse estudo pode contribuir para se pensar em estratégias de intervenção sistêmica que auxiliem a mudança na visão de pais ou cuidadores com relação ao apego de adolescentes.
Palavras-chave: Terapia sistêmica individual, Negligência, Teoria do apego, Adolescência, Relações familiares.
ABSTRACT
This work consists in a clinical case study of a female teenager, held in a psychological service. Throughout the individual systemic therapy aspects of the patient’s history were addressed, such as negligence, losings, intra-family adoption and insecure attachment. The therapeutic process considered the patient in the context of her history, relationships’ network and experiences, emphasizing the meanings that she attributed to these events. Thus, within the particularities of the case, the clinical work aimed to understand the impact on the relationship between the type of care received in childhood, attachment in adolescence and self-construction. This study may contribute to elaborate strategies of strategies of systemic intervention that help change the vision of parents or caregivers with regard to attachment of adolescents.
Keywords: Individual systemic therapy, Negligence, Attachment theory, Adolescence, Family relations.
Introdução
Segundo Johnson (2012), o desenvolvimento infantil saudável decorre, em parte, da saúde mental e bem-estar emocional dos pais e/ou cuidadores. O relacionamento estabelecido entre cuidador-criança-ambiente afeta diretamente os aspectos da aprendizagem, do desenvolvimento da mente, do cérebro, das emoções e dos relacionamentos das crianças.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, até janeiro de 2019, haviam 46.718 crianças em acolhimento no Brasil, registradas no Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas. Dentre os motivos de acolhimento estão, falecimento de progenitores, negligência, violência, abandono, dependência por drogas ou álcool dos pais ou responsáveis.
Estes dados corroboram com as informações descritas pelos autores Levy e Orlans (2012), sobre o número considerável de crianças expostas a ambientes prejudiciais, em que sofrem abusos/violências (físicos ou psicológicos) e têm negligenciadas a infância e as necessidades de determinadas fases do seu desenvolvimento. Visando a proteção da criança, muitas delas são encaminhadas para famílias temporária, extensa ou adotiva. A partir de então, faz parte do papel dos novos cuidadores o comprometimento em vista de auxiliar as crianças na recuperação do dano passado e possibilitar que tenham um crescimento positivo (Levy & Orlans, 2012).
A competência emocional desenvolvida ao longo da infância e a adolescência depende, em parte, da colaboração dos cuidadores como facilitadores para a qualidade do desenvolvimento da regulação emocional. Proporcionar um ambiente familiar com afeto, atenção, relação de apego de confiança e segurança pode facilitar o crescimento saudável da criança ou adolescente (Faria & Ponciano, 2018).
A adolescência é um período marcado pela busca de autonomia, independência, individuação e projetos de vida. Nesta busca pela identidade, o adolescente constrói e desconstrói, novos e antigos, aspectos de si, desenvolvendo novas características para o self (Rosset, 2009).
Conforme Rosset (2009), o adolescente não é adulto, apesar de ser cobrado como se fosse; não é criança, mas ainda é excluído dos assuntos importantes; não tem vida sexual autorizada, ainda que esteja se descobrindo; não é capaz nem incapaz e tem dúvidas se pode, sabe ou quer fazer qualquer coisa.
A fase é caracterizada por angústias, indefinições, mudanças pessoais, sociais e emocionais, que acontecem em conjunto com muitos desafios; como a escolha profissional e amorosa, lidar com as suas expectativas e dos pais e aquisição de responsabilidades. É de considerável importância para o adolescente o apoio parental, como base segura para estes novos desafios e decisões (Faria & Ponciano, 2018). Um dos pontos centrais do desenvolvimento psicológico é a aquisição da identidade, e o apego seguro facilita que adolescente possa absorver, de forma positiva, as mudanças experimentadas nesta fase (Both, Benetti, & Goodman, 2019).
Segundo Bowlby (1989), faz parte da natureza humana básica criar laços emocionais íntimos, desde o período neonatal até a velhice. Durante a infância, essa conexão emocional é estabelecida com os pais ou cuidadores (Levy & Orlans, 2012). No período da adolescência e vida adulta esses vínculos permanecem, sendo complementados por outros novos.
O centro dessas relações é o apego, uma conexão biológica, psicológica e social, constituída, inicialmente, entre a criança e os cuidadores nos primeiros anos de vida em busca de proteção (Levy & Orlans, 2012).
Ao descrever a teoria do apego, Bowlby (1989) refere-se a um tipo de vínculo onde o senso de segurança de alguém está intimamente ligado à uma figura de apego. A relação com esta figura transmite segurança e conforto, sendo chamada de “base segura” (Ramires & Schneider, 2010).
A presença desta figura de apego deve ser entendida, pela criança, como de fácil acessibilidade, não necessariamente a presença rápida e direta, mas disponível, proporcionando segurança de resposta. Enquanto que, a ausência é entendida como inacessibilidade, falta de respostas e insegurança (Bowlby, 1984).
O relacionamento da criança com os cuidadores é estabelecido pelo sistema inato de apego do bebê que demanda intimidade e comunicação. As figuras de apego protegem, nutrem e guiam o desenvolvimento do bebê e têm atitudes que favorecem ao apego seguro, como sorrisos, contato visual, afeto, colo e carinho (Levy & Orlans, 2012).
Estas primeiras relações de apego, estabelecidas na infância, influenciam o modelo de apego do indivíduo ao longo de sua vida (Dalbem & Dell’Aglio, 2005). Os modelos de vínculo com os cuidadores são absorvidos e internalizados na formação da personalidade, e determinarão as formas de agir e lidar frente às situações de vida (Abreu, 2005).
A partir do que foi descrito sobre a teoria do apego, podemos entender que quando o genitor tem comportamentos que respondem de maneira adequada à necessidade da criança, ela geralmente desenvolve um estilo de apego seguro, ou seja, a capacidade de ser independente mesmo que apegada à figura de apego (Diamond & Stern, 2012). As relações de apego seguro colaboram com o desenvolvimento de modelos internos caracterizados por valorização e apoio, relações em que as crianças aprendem expectativas sociais positivas e a exploração saudável do ambiente (Ramires & Schneider, 2010).
Por outro lado, quando as necessidades de apego não são respondidas de forma adequada, as crianças podem desenvolver diferentes estilos de apego inseguro, com sentimento de insegurança e desvalorização. Entre as consequências de relações aversivas e rejeição, o indivíduo pode gerar uma visão negativa de si e dos outros, duvidando da disponibilidade para receber ajuda em momentos de necessidade e estresse; demonstrando insensibilidade, raiva, agressão e falta de empatia (Pontes, Silva & Magalhães, 2007).
Alguns autores (Diamond & Stern, 2012; Bowlby, 1989) descreveram tipos de apego inseguro, como resistente e ansioso, ansioso com evitação, desconsiderador e, ansioso e não resolvido.
O objetivo deste trabalho é discutir, por meio da utilização de um estudo de caso, a relevância do papel da família na construção do apego e o impacto no período da adolescência.
Método
Este trabalho, de natureza qualitativa, caracteriza-se como um estudo de caso clínico. Portanto, será descrito o processo da terapia sistêmica individual de uma paciente de 19 anos, atendida em um serviço de atendimento psicológico no Sul do Brasil. Os atendimentos ocorreram semanalmente, por um período de seis meses, com sessões de aproximadamente 50 minutos.
A paciente, Alice, foi trazida à clínica por sua cunhada, Anelise (44 anos), que buscou o atendimento devido a dificuldades da família em lidar com a adolescente e situações em que ela cometeu pequenos roubos, mentiras e desobediência. Anelise entende que Alice necessita de um espaço terapêutico para conversar e se conhecer melhor.
Iniciou-se então, o atendimento individual de Alice, com eventuais sessões em que Anelise participou. Será descrita uma síntese das sessões e acontecimentos significativos, para contextualizar a história da paciente.
No que se refere às questões éticas, a cliente assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual previa a utilização dos dados relativos aos atendimentos em produções científicas, evidentemente, resguardando-se a confidencialidade e a privacidade. Nesse sentido, para preservar as identidades, todos os nomes adotados no presente estudo são fictícios. Do mesmo modo, foram omitidas informações que eventualmente permitissem a identificação da paciente e de outras pessoas que compunham a sua rede de relacionamentos.
Relato do caso
Alice é filha de João e Angélica, que vivenciaram uma relação em período que João estava separado. João foi casado com Solange e, entre idas e vindas, tiveram dois filhos, Flávia e Bento (figura 1). O pai de Alice veio a falecer quando ela tinha aproximadamente um ano e, nessa época, o conselho tutelar entregou a menina para os cuidados da madrasta.
Alice não se recorda mas percebeu, em fotos de aniversários, a mãe e tia materna participando de sua vida, enquanto ela morava com Solange. Alice se questiona do porquê a tia teria deixado a sua tutela com pessoas estranhas (Solange), ao invés de ter ficado com ela.
Por volta de seus cinco e seis anos, Alice e Angélica moraram juntas na garagem de Solange. Ela conta que a mãe havia perdido a casa que morava na Região Metropolitana de Porto Alegre e foi morar lá. Angélica volta para sua cidade, sem Alice, depois que Solange acusa-a de roubar algo da casa.
Segundo Anelise, a sogra contou muitas mentiras e toda a família tem dificuldade em entender os motivos de Solange ter aceitado criar Alice e como se deu este processo.
Entre seus seis e nove anos, Alice lembra de conviver com a tia materna e seus primos, mas não tem lembranças de contato com a mãe. A tia levava Alice para sua casa, passava a tarde lá, e ouvia histórias de Angélica e fotos da tia e da mãe.
Alice e Anelise se conheceram alguns meses antes dela completar nove anos. Anelise relembra o quanto ficou incomodada e impressionada com a forma como a menina era tratada, com a infância negligenciada. Ela conta que ficou muito marcada com a situação que ocorreu no dia do aniversário delas (fazem no mesmo dia), em que chamou Alice para cantar parabéns e soprar velinhas juntas e Solange ficou muito irritada.
Algum tempo após o aniversário, Alice passa a morar com o irmão e a cunhada, no apartamento deles. Morou com o casal por dois anos, até que, após contar muitas mentiras, é confrontada por eles e não consegue dizer a verdade. Diante desta situação, Alice volta a morar com Solange.
Aos 13 anos, Alice é informada pela tia materna sobre o falecimento de sua mãe. Solange acompanha a tia na casa de Angélica para buscar pertences pessoais e documentos. Alguns desses pertences (a maioria objetos, como cremes) são entregues a Alice, pela tia. Os documentos, como certidão de nascimento e óbito, foram levados por Solange, que os queimou. Anelise tentou investigar, mas não obteve sucesso; apenas descobriu que Angélica foi enterrada como indigente.
A partir de então, Alice começa a juntar peças de sua história e entender que Solange não é sua mãe. Ela refere que apesar de acreditar que Solange era sua mãe, sabia quem era Angélica e que haviam segredos na família, “aquelas coisas que os adultos pensam que as crianças não sabem, mas elas sabem; só que é confuso” [sic].
Segundo Alice, após a morte da mãe, ficou muito rebelde e desobediente, não ia a escola, nem ao curso. Então, Solange procura o conselho tutelar em busca de uma solução, relatando não conseguir lidar com a adolescente.
Aos 14 anos Alice é levada para um abrigo institucional, onde fica por um período de três meses. Em audiência, é questionada se quer ficar no abrigo ou voltar para casa com a madrasta. Alice decide voltar para casa. Por decisão do juiz, ela poderia voltar, mas, junto com Solange, deveriam fazer terapia de família.
Durante a terapia, Alice relembra de serem trabalhadas questões de seu comportamento, mentiras, brigas; mas que Solange não era cooperativa. Em algumas sessões, Bento e Anelise também participaram.
Solange ameaça levar Alice novamente para o acolhimento institucional e Anelise busca assistente social, conversa com Bento e decidem adotar a adolescente.
Durante este processo de adoção, Anelise descobre que Alice sempre recebeu duas pensões da Previdência Social, por parte do pai e da mãe. Solange omitia esta informação, sempre reclamando de dinheiro e gastos, e privando Alice.
Há quatro anos Alice está residindo com o casal. Anelise relata a dificuldade da família em não saber se pode confiar e a falta de demonstração de agradecimento por parte da adolescente.
Discussão
Alice foi criada, na maior parte de sua infância, por Solange (madrasta). A partir das lembranças da paciente, entende-se que esta não foi uma figura de apego saudável e disponível. Alice relata que não existia uma relação de afeto entre elas, apenas xingamentos, privações e punições (físicas e castigos). Relembra de vizinhas e mães de colegas, que a tratavam de forma mais carinhosa.
Com a chegada de Anelise na família, esta percebe que Alice era criada de forma que sua infância estava sendo omitida e, com pequenos movimentos, tenta fazer modificações (compra bonecas e roupas, arruma seu cabelo). Anelise acredita que entre os motivos para Solange ter aceitado criar Alice, era devido as pensões que ela recebia por falecimento dos pais, visto que nunca tratou a menina com amor e carinho.
Alice referiu não ter muitas informações sobre os pais, como foi o relacionamento entre eles, seu nascimento, a família materna biológica e os motivos pelos quais não permaneceu com a mãe. A madrasta demonstrava resistência em falar sobre os assuntos que envolviam a origem e filiação de Alice. Sempre tratados de forma velada, geraram segredos familiares que interferem diretamente na construção de identidade da paciente. De acordo com as autoras Camicia, Silva e Schmidt (2016), os segredos familiares se referem a acontecimentos ocorridos no âmbito da família, que podem vir a interferir e influenciar no ciclo de vida, gerando repercussões disfuncionais no desenvolvimento individual de seus membros.
Durante os avanços das crianças para a adolescência (entre os 13 e 16 anos), elas aprimoram a capacidade de contemplar, ao mesmo tempo, várias perspectivas de diversas situações, ou seja, começam a ter uma visão mais ampla e complexa do self e dos outros (Moretti & Holland, 2012). Com base nas percepções de Alice, sua adolescência se dividiu em dois momentos: tranquilidade até os 13 anos e rebeldia, desde então. Percebe-se que o marco para essa divisão foi o falecimento da mãe, momento em que a paciente analisa sua vida sob outras perspectivas. Como consequência, começa a se questionar sobre sua história, sua criação, como poderia ter sido, os segredos velados e o porquê de precisar passar por tantas perdas.
Durante o processo terapêutico de Alice, foram discutidos alguns sentimentos que perpassam sua relação com a figura materna, como abandono, perda e culpa. Além disso, trouxe muitas questões para as quais não haviam respostas seguras; como a separação materna durante a infância, a história da morte da mãe e sua crença de que poderia ter evitado ou ajudado. Esses aspectos da história de vida de Alice pareciam impactar as relações que ela estabelecia, principalmente, com os membros da família. A partir da dificuldade de vinculação, de confiar e o medo da perda, temas trabalhados em sessões, buscou-se compreender os padrões de apego envolvidos nas relações familiares e o quanto poderiam repercutir na vida presente da adolescente.
O processo de interação, entre a criança e o cuidador, gera um “sistema de regulação mútua” em que ambos se influenciam ao longo do tempo, ou seja, é tudo aquilo que a criança aprendeu e absorveu em seu convívio com este cuidador (amor, limites, respeito, raiva, insensibilidade). Além disso, o apego também é influenciado pela rede emocional ampla da família nuclear e extensa, assim como sistemas sociais (comunidade, escola) (Levy & Orlans, 2012). Os autores descrevem alguns aspectos, a partir do apego seguro, que são considerados importantes para o desenvolvimento da criança: assegurar um refúgio (através da proximidade e segurança do cuidador disponível); ensinar a confiança, intimidade e a reciprocidade (que serão importantes para estabelecer relacionamentos ao longo da vida); construir um self positivo (sentimentos de competência, autovalorização e crenças positivas) e fator protetivo, através de recursos que possam minimizar o estresse e perdas no decorrer da vida (resiliência) (Levy & Orlans, 2012).
Em diversos momentos, como quando Alice comunica a vontade de terminar o ensino médio e cursar a universidade, é possível perceber a existência de resiliência, podendo ser atribuído aos sistemas sociais dos quais fez parte na infância, como a escola, colegas e vizinhas. Com relação aos outros aspectos, e levando em consideração o tipo de cuidado que foi fornecido por Solange, a paciente manifesta dificuldades.
As crianças com histórico de negligências e sabotagem de apego tendem a repetir os modelos de relacionamento negativo aprendidos, ou seja, poderão provocar a rejeição (para confirmar alguma crença que possuem), manter o controle (ao serem rejeitadas) e evitar a proximidade emocional, causando raiva nos pais. Assim, movidos pela raiva, eles reprimem e rejeitam, confirmando a crença negativa. Essas crianças acreditam que a melhor forma de lidar com os problemas, é através da manipulação e controle, e as pessoas (rede social e família) que participam de suas vidas não são preparadas para lidar com esses comportamentos (Levy & Orlans, 2012). Alice relembra que, na infância, era orientada a nunca mentir, “quem fala a verdade não merece castigo, mas eu sempre ficava de castigo” [sic]. Com o tempo, aprendeu que não havia compreensão ao contar a verdade, então mantinha as mentiras e contava com a sorte para não serem descobertas. Anelise sempre desaprovou as mentiras e, com votos de confiança, começou a ensinar Alice de que poderia confiar nela e contar a verdade, pedir auxílio quando precisasse. Em algumas situações, Alice sente-se à vontade para confiar em Anelise, mas ambas não externalizam toda a verdade para Bento, ou seja, ainda pode haver castigo se contar a verdade.
É esperado que pais adotivos tenham diversos papéis na vida da criança, como fornecer amparo para lidar com as perdas, contribuir para a construção da autoestima e encorajar o apego seguro e relações saudáveis. Em geral, as interações em processos adotivos têm capacidade para serem terapêuticos, visto que, por meio de atitudes, reações e a criação de um ambiente protegido, proporcionam um contexto para mudanças positivas (Levy & Orlans, 2012).
Anelise e Bento, desde os oito anos de Alice, tentaram ser presentes e por duas vezes, acolheram a menina em sua casa. Na segunda vez, decidiram iniciar o processo adotivo, pois acreditavam que dessa forma seria mais efetivo educá-la e fornecer uma família.
Quando a criança está em processo de adoção, é preciso levar em consideração a história de apego rompido que ela possui, visto que pode apresentar dificuldade em se vincular. Em geral, apresentam comportamentos desafiantes, são opositoras, controladoras, não confiáveis, têm esquemas de crenças negativos e atitudes antissociais (Levy & Orlans, 2012). Apesar do casal ser parte da família extensa de Alice e já existir algum vínculo, eles são resistentes em ser empáticos e pacientes com os comportamentos citados, que são as respostas da adolescente.
Segundo Levy e Orlans (2012), e como aconteceu na família de Alice, em geral, pais adotivos não recebem preparação para lidar com a bagagem emocional da criança, o que consequentemente gera um impacto negativo na família. Esses pais possuem expectativas excessivas sobre ajudar e proteger alguém e sofrem com suas perdas, apegos e questões não resolvidas com a família de origem (Levy & Orlans, 2012). Os padrões de relacionamento negativos se estabeleceram entre o casal e Alice, tornando a comunicação entre eles destrutiva e gerando um clima de tensão e desespero, principalmente por parte de Anelise, que se sente impotente.
O histórico de apegos anteriores da criança será imprescindível para a adaptação na família adotiva, e irá depender da qualidade dos vínculos estabelecidos anteriormente e suas reações às perdas e separações. As crianças adotadas têm uma perda significativa do vínculo mãe-bebe (que se desenvolve durante a gravidez e intensifica após o nascimento) e precisam entender sua tristeza em relação a ela para formarem apegos seguros e relações saudáveis (Levy & Orlans, 2012). As perdas que Alice sofreu foram muitas e em diversos âmbitos, desde a separação da mãe na infância, a privação de ser criada por ela, conhecê-la, amar e ser amada, até o falecimento da mãe e a descoberta dos segredos.
Vivenciar perdas graves podem fazer as crianças reagirem de duas principais formas, por temerem ser rejeitadas e abandonadas: provocar a rejeição, sendo desafiadoras e agressivas; ou, sendo dóceis e calmas e se tornarem introvertidas e tristes. Independentemente de qual reação, é preciso que a família receba assistência e assim, possa vir a auxiliar a criança a entender suas perdas, ressignificar sua tristeza e dar abertura para se apegar à família adotiva (Levy & Orlans, 2012).
As crianças com histórico de infâncias difíceis, quase sempre, vêm a ser egocêntricas e solicitam muita atenção, com dificuldades de aperfeiçoar a habilidade de dar e receber. Elas evitam a proximidade e sentirem-se expostas, por falta de confiança e a percepção de não merecerem nada (Levy & Orlans, 2012). Esse padrão de self negativo pode prejudicar o apego seguro, pois a criança desenvolveu uma imagem de si como indesejada, quebrada, que não merece atenção e carinho. Estas crenças e comportamentos negativos tendem a ser reforçados pela raiva dos pais, por não saberem como reagir (Levy & Orlans, 2012).
Conforme dito anteriormente, as crianças podem desenvolver diferentes estilos de apego inseguro, como consequência de relações aversivas e rejeição, gerando uma visão negativa de si e dos outros, duvidando da disponibilidade para receber ajuda em momentos de necessidade, demonstrando insensibilidade, raiva, agressão e falta de empatia (Pontes, Silva & Magalhães, 2007).
Dentre os tipos de apego inseguro citados na literatura, é possível entender que Alice aprendeu a evitar a proximidade, não procurar por ajuda, mostrar-se autoconfiante, com um apego evitador (Levy & Orlans, 2012). Em determinadas situações também é possível identificar tendências evitadoras-medrosas, que são relacionadas com a fuga da dor, ao mesmo tempo que deseja a conexão, quer ser amada, mas se sente só, insegura, não valorizada e não merecedora (Moretti & Holland, 2012).
Em seu livro, Bowlby (1989) traz a descrição de um apego resistente e ansioso, no qual a criança é insegura, incerta, que demonstra ansiedade quanto à exploração do mundo a sua volta. Esses pais se mostram disponíveis e prestativos em algumas situações e não em outras, utilizando de ameaças de abandono como forma de controle. Anelise e Bento, sem instrução de como serem pais adotivos, em muitos momentos agiram de acordo com o apego inseguro de Alice, reforçando suas crenças e comportamentos negativos.
Alice traz em sua história diversos prejuízos, causados devido ao que não recebeu de sua cuidadora (Solange), como ausência de afeto, baixa autoestima, enfraquecimento da subjetividade (pela falta de relações afetuosas e individualizadas), dificuldades para administrar sua independência e estabelecer novas relações afetivas; que são citados por Penso e Moraes (2016) como consequências da presença de múltiplos cuidadores em instituições de acolhimento. Os autores trazem a percepção do cuidador como mediador de comportamentos que a criança aprenderá, no entanto, múltiplos cuidadores tornam os laços afetivos quase inexistentes, fortalecendo os impactos do abandono e rejeição. Evidencia-se a importância da vinculação afetiva do cuidador com a criança, a fim de potencializar o acolhimento emocional, confiança, proteção e segurança para explorar e captar o mundo a sua volta (Penso & Moraes, 2016).
A partir do que foi abordado, sobre a importância das relações entre cuidador e criança, é possível entender que, entre muitos segredos, uma história de vida sem respostas e vínculos frágeis, a paciente não se sentia pertencente à família. Ao residir com o irmão e a cunhada, Alice passou a integrar efetivamente o núcleo familiar de Anelise, que se mostrou acolhedor e uma possível ponte que permitiria o fortalecimento em reconhecer-se como membro de uma família. Os adolescentes, em geral, experimentam o pertencimento e a diferenciação do núcleo familiar e assimilam que pertencer é fazer parte, participar, sentir-se membro da família e partilhar de mitos, crenças, segredos e valores (Pellegrini, Silva, Barreto, & Crepaldi, 2015).
No processo da adolescência, entre pertencimento e diferenciação, ocorrem novas descobertas, a busca por identidade adulta e comportamentos reivindicatórios, que muitas vezes são vistos como desobediência e rebeldia, apesar de serem característicos dessa etapa da vida (Faria & Ponciano, 2018). Entre os aspectos que refletem a importância do diálogo na família estão as novas negociações e apoio dos pais. O adolescente busca discordar dos pais para mostrar-se como um indivíduo com opinião própria, e assim, eles precisarão estar abertos a ouvir novas ideias e permitir diferentes possibilidades que favoreçam o amadurecimento e independência (Faria & Ponciano, 2018).
O novo núcleo familiar permite que Alice se sinta pertencente e segura, mas se mostram com dificuldades em perceber seu processo de diferenciação. Bento e Anelise enviam mensagens confusas para Alice, exigindo que a adolescente seja responsável e tenha autonomia, mas não validam suas opiniões e ponto de vista. Apesar de possibilitar um ambiente seguro, Alice não se vê confiante e capaz o suficiente para agir sozinha, e quando busca por auxílio sente-se rejeitada e incompreendida.
Os autores Diamond e Stern (2012), descrevem a importância de o cuidador permanecer afetuoso durante o processo de diferenciação, e assim, o adolescente se sentir merecedor de ser amado, enquanto conquista a individualidade. A elaboração de um apego seguro auxilia na autonomia apropriada e ambas são construídas uma sobre a outra (Diamond & Stern, 2012).
Dentre o que foi descrito sobre as características esperadas para esta etapa do desenvolvimento, é possível perceber que, em alguns momentos, Anelise demonstrou dificuldades em diferenciar seu papel, ora como mãe/responsável, ora como cunhada/amiga. Frente a colisão de papéis e o difícil manejo com Alice, na tentativa de ver resultados, Anelise utilizava de uma comunicação hostil, resultando em conflito e afastamento.
Segundo Levy e Orlans (2012), a comunicação é mais efetiva quando os pais conversam de forma carinhosa e validadora, facilitando o apego seguro. Os autores trazem como exemplo de comunicação afetuosa, o contato visual e o toque carinhoso, que permitem um ouvir mais respeitoso, promovendo a cooperação. Da mesma forma, discursar e criticar utilizando-se de ameaças, favorece ao desafio e respostas hostis. Empregar um método de comunicação mais saudável e positivo direciona a criança a buscar suas próprias soluções e evita brigas (Levy & Orlans, 2012).
A história de apego dos cuidadores interfere diretamente no cuidado com a criança ou adolescente, pois elas internalizam crenças, expectativas sobre si mesmas e dos relacionamentos, baseados na atenção e dedicação que receberam (Levy & Orlans, 2012). A forma que o cuidado é proporcionado, seja positiva ou negativa, irá resultar nos padrões de crenças da criança, sejam eles de valorização ou desvalorização, competência ou incompetência, sentir-se amado ou não merecedor de amor (Levy & Orlans, 2012). Neste sentido, o senso de self de um indivíduo é construído a partir da regulação emocional aprendida com os cuidadores, ou seja, a maneira como eles reagiram frente às suas emoções influenciará, também, como a criança tenderá a agir (Abreu, 2005). As alterações que ocorrem no período da adolescência podem revelar as falhas, que foram internalizadas nos primeiros anos de vida e, até então ocultas, gerando as dificuldades na organização do senso de identidade (Both, Benetti, & Goodman, 2019). Em vista disso, é possível compreender o quanto o histórico de modelos negativos de Alice, durante a infância, influencia sua construção de identidade hoje.
Considerações finais
A partir do que foi discutido, podemos entender que existe uma relação direta entre o tipo de cuidado recebido na infância e a construção de self na adolescência. É visível que, cuidadores afetivos e responsivos, criam crianças com modelos internos saudáveis e visão de self positiva. Enquanto que, o oposto, em geral, gera crianças inseguras com senso de self negativo, interferindo em suas relações, vinculação e a forma como interpretam qualquer apoio recebido. As crianças que sofreram maus-tratos não foram ensinadas a identificar, regular e comunicar suas emoções. Em consequência, aprenderam a escondê-las, sempre com uma resposta geral de raiva e esquiva para reduzir a sensação de vulnerabilidade (Levy & Orlans, 2012).
Espera-se que, sob a ótica da Teoria do Apego e da abordagem sistêmica, este trabalho possa contribuir para elucidar a importância do acompanhamento terapêutico em processos de adoção, levando em consideração o ciclo de desenvolvimento familiar, histórias de apego individual e as possibilidades de intervenção junto as famílias, a curto e longo prazo. Através de auxilio profissional, o sistema familiar pode atuar no sentido de manterem-se neutros emocionalmente como resposta a comportamentos negativos e expressando emoções positivas em resposta ao comportamento positivo. Assim, podem ensinar as crianças a perceber e falar sobre as emoções em um ambiente empático e protegido, permitindo o entendimento saudável e a comunicação das emoções (Levy & Orlans, 2012).
O estudo proporcionou a reflexão sobre as necessidades de apego de crianças e adolescentes, que muitas vezes demoram mais a serem vistas, pois estão disfarçadas com comportamentos rebeldes e agressivos. Esporadicamente esses comportamentos são entendidos como formas de apego inseguro, com estratégias para manter a proximidade, mesmo que prevendo a rejeição e buscando modos de se proteger (Moretti & Holland, 2012).
Contudo, é importante destacar que, não se pretende generalizar os resultados verificados no processo terapêutico em questão. Desse modo, buscou-se compreender o caso a partir de suas particularidades, mas pensando em estratégias de intervenção sistêmica, que venham a contribuir para modificar a visão de pais ou cuidadores, em relação ao comportamento-problema de jovens, e assim, trabalhar com ferramentas que melhorem a qualidade do relacionamento cuidador-filho, possibilitando a redução do papel dos comportamentos disfuncionais (Moretti & Holland, 2012).
Referências
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Endereço para correspondência
Marcella Ranheri de Souza
E-mail: marcella_rsouza@hotmail.com
Helena Centeno Hintz
E-mail: hchintz@terra.com.br
Enviado em: 19/07/2019
1ª revisão em: 28/10/2019
Aceito em: 26/11/2019
1 Psicóloga, especialista em Terapia de Casal e Família pelo Domus, psicóloga residente no programa multiprofissional em Atenção Básica e Saúde da Família pela Universidade do Vale de Itajaí.
2 Psicóloga, sócia fundadora, docente e supervisora do Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e Família. Psicoterapeuta Individual, de Casal e Família. Editora da Pensando Famílias. Presidente da Associação Gaúcha de Terapia de Família – 2018-2020.