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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Problemas de comportamento infantil no contexto da família em crise conjugal: contribuições da terapia sistêmica

 

Problems of children's behavior in the family context: contributions from systemic therapy

 

 

Cristina dos Santos Padilha1, I ; Joseana Garcez da Luz Seidler2, II, III ; Danielle Doss Damo Martins da Silva3, II, III

I Curso de Especialização em Terapia de Casal e Família
II Associação Brasileira de Terapia Familiar - ABRATEF
III Ciclos Instituto de Formação em Terapia de Casal e Família

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende articular elementos de um atendimento clínico familiar à luz do referencial sistêmico, buscando entender as influências do sistema familiar, especificamente do subsistema conjugal, para o surgimento e a perpetuação de sintomas desafiadores infantis. O estudo caracteriza-se como qualitativo e utiliza a abordagem metodológica do estudo de caso clínico, descrevendo o processo de terapia sistêmica familiar da criança de cinco anos identificada como Maiara. Foram oferecidos sete atendimentos, mas a família só compareceu em quatro deles. Os resultados evidenciam que a criança, através de suas crises convulsivas e de suas atitudes desafiadoras, expressa uma dificuldade do grupo familiar, mais especificamente uma crise conjugal que vinha se agravando após a chegada dos filhos. Considera-se que as sessões realizadas auxiliaram a família nas mudanças que necessitava realizar, evitando a sobrecarga emocional de seus membros, bem como a somatização da paciente identificada.

Palavras-chave: Terapia sistêmica, Sintomas desafiadores infantis, Crise conjugal.


ABSTRACT

The present article aims to articulate elements of a clinical family service using the systemic referential. The aim is to understand the influences of the family system, specifically the conjugal subsystem, for the outbreak of and perpetuation of children's challenging symptoms. This qualitative study uses the methodological approach of the clinical case study, it describes the process of systemic family therapy of the five-year-old child identified as Maiara. Seven appointments were offered, but the family only attended four of them. The results show that the child, with her convulsive crisis and challenging attitudes, expresses a difficulty of the family group, more specifically a marital crisis that was getting worse after the arrival of the children. It is considered that the sessions performed helped the family to deal with the necessary changes in their lives and this avoided the emotional overload of the family members, as well as the somatization of the identified patient.

Keywords: Systemic therapy, Child's challenging symptoms, Marital crisis.


 

 

Introdução

O Pensamento Sistêmico pode ser utilizado para o embasamento teórico de pesquisas em Psicologia e também para a intervenção clínica com indivíduos, famílias e grupos sociais. Pensar sistemicamente implica reconhecer o sujeito em seu contexto. O terapeuta se inclui no sistema no qual intervém considerando que a realidade não é estática ou presumível. Dessa forma, pensar sistemicamente é compreender e trabalhar os fenômenos psíquicos de uma complexa rede de relações interpessoais, sem desconsiderar a existência dos fenômenos intrapsíquicos (Gomes, Bolze, Bueno & Crepaldi, 2014).

O conceito básico de toda a terapia familiar é o do sistema. As famílias possuem propriedades estruturais similares às dos demais sistemas viventes. São dotadas de fronteiras e controlam o material e a informação que entrecruzam seus limites. São organizadas hierarquicamente tanto como parte de um sistema maior quanto em seus subsistemas componentes tais como as gerações, grupos de irmãos, pares conjugais, redes de parentalidade por afinidade etc. Os sistemas são fortemente auto-reguladores e “anseiam” por manter seu equilíbrio próximo de padrões de comparação identificáveis (Bloch & Rambo, 1998). Anton (2000) esclarece que o objetivo das terapias sistêmicas consiste em “desestabilizar o sistema em foco naqueles aspectos que caracterizam disfunções e, cristalizados, impedem o crescimento, ou seja, o desenvolvimento do ciclo vital, pois as mais diversas patologias podem ser entendidas como interrupções e fixações em determinadas etapas e funções” (p. 63).

O ciclo de vida familiar é um fenômeno complexo, é uma espiral da evolução familiar na medida em que as gerações avançam no tempo em seu desenvolvimento do nascimento à morte. O genograma é um retrato gráfico da história e do padrão familiar, mostrando o funcionamento e o relacionamento das famílias (Carter & McGoldrick, 1995).

Uma das fases do ciclo de vida familiar é a transição para a paternidade, momento em que as famílias apresentam filhos pequenos. Em tal etapa é necessário que os pais assumam a responsabilidade de criar os filhos e mantenham seu relacionamento conjugal. O nascimento do primeiro filho é um acontecimento marcante na transição de uma nova etapa da família. Igualmente desafiador é o ressentimento dos filhos mais velhos com o nascimento dos irmãos. Os filhos mais velhos costumam se sentir ameaçados ou deslocados com a chegada dos irmãos. Problemas típicos dessa fase são as brigas entre os genitores sobre assumir responsabilidades, recusa ou incapacidade de comportarem-se como pais de seus filhos. Pode haver dificuldade para colocar limites e exercer autoridade e até mesmo para suportar que seus filhos se expressem na medida em que se desenvolvem. No moderno casamento com dois salários e às vezes duas carreiras, a família pode viver em conflito; os filhos podem ser negligenciados ou sexualmente abusados quando os arranjos para os cuidados são inadequados; a família pode ter seu tempo de lazer drasticamente reduzido e os genitores podem até abrir mão da vida profissional. Tais conflitos levam a queixas de disfunção sexual e depressão. Essa é a fase do clico de vida familiar que possui o índice mais elevado de divórcios (Carter & McGoldrick, 1995).

Em uma separação conjugal, todos que se envolvem diretamente – pai, mãe e filhos – levarão consigo marcas deste evento que repercutirão, de alguma maneira, em suas relações futuras. Os que a vivenciaram indiretamente – avós, tios, primos e outros parentes – vão carregar também impressões que definirão sua relação com os futuros parceiros do novo casal (Groisman, 2006a).

Mesmo sabendo que o divórcio acarreta a dissolução da família com sua consequente desorganização, que se irradia para os filhos, mais frágeis e dependentes, é fundamental que os pais mantenham suas obrigações em relação a eles. Seja nas novas famílias que surgirão – as duas famílias uniparentais ou recasadas (Groisman, 2006a).

Em um sistema familiar, o indivíduo que apresenta uma sintomatologia pode ser o elemento mais frágil (dependente), como uma criança ou um adolescente; ou no caso de um casal, o cônjuge que adoece, quem traz uma história familiar pregressa mais comprometida que a do outroe se apresenta como o bode expiatório da crise conjugal (Groisman, 2006a).

Wielewicki (2011), em um levantamento em bases de dados, caracteriza a população infantil atendida nas clínicas-escola brasileiras. Conforme a autora, manuais diagnósticos como o CID e o DSM definem problemas de comportamento infantil numa perspectiva médica ou biológica, baseados em características topográficas e na frequência em que o comportamento é apresentado. De acordo com tais manuais, comportamentos externalizantes – agressão física ou verbal, oposição, desafio, condutas antissociais, impaciência, brincadeiras com fogo, destruição de coisas pessoais ou alheias – são considerados problemáticos e frequentemente encaminhados à psicoterapia, possivelmente por trazerem prejuízos à criança e às pessoas do seu convívio. Os resultados da análise realizada pela autora apontam que a queixa mais freqüente em crianças de até 5 anos é o comportamento agressivo, enquanto que na faixa etária dos 6 aos 9 anos os comportamentos mais frequentemente relatados são comportamento agressivo, oposição e ansiedade/agitação/irritação, além de dificuldades escolares. A autora resgata que o maior índice de encaminhamentos para atendimento psicológico nas clínicas-escola do Brasil diz respeito a crianças e adolescentes, e aponta a falta de consenso teórico sobre o que define problemas de comportamento, o que traz implicações práticas como critérios de seleção de amostras para pesquisa e elaboração de programas de intervenção.

Em um estudo sobre heranças psíquicas e conjugalidade contemporânea, Silva, Rocha, Bobato, Becker & Lorenzetti (2015), através de revisão sistemática na literatura especializada, apontam que já não é prioridade atender a interesses econômicos e políticos que caracterizaram a busca pelo casamento durante séculos, visto que se preza pelo companheirismo e pela cumplicidade e que não há mais a obrigatoriedade da procriação. Enquanto os homens buscam nas relações amorosas principalmente confiança, aceitação, apreço, admiração, aprovação e encorajamento, as mulheres anseiam primordialmente por carinho, compreensão, respeito, devoção, validação e reafirmação. Conforme os autores, as referências psicanalítica e sistêmica aludem à transmissão psíquica pelo viés inconsciente e intersubjetivo que acaba por intervir nos pensamentos e concepções do sujeito, sendo externalizados por suas atitudes. Este processo determina suas escolhas, sem desconsiderar as relações estabelecidas com o meio enquanto fatores relevantes, facilitadores ou dificultosos do processo transgeracional, podendo, inclusive, levar o sujeito a romper o processo, dependendo da circunstância.

O presente artigo pretende articular elementos de um atendimento clínico familiar à luz do referencial sistêmico, com ênfase no referencial sistêmico-vivencial, buscando entender as influências do sistema familiar, especificamente do subsistema conjugal, para o surgimento e a perpetuação de problemas de comportamento infantil.

 

Método

O estudo caracteriza-se como qualitativo e utiliza a abordagem metodológica do estudo de caso clínico. Conforme Yin (2001) um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, sobretudo quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos, e uma vez que o fenômeno e o contexto não são sempre discerníveis. Nesse sentido, tal estudo possibilita uma investigação preservando as características holísticas e significativas dos eventos da vida real (tais como ciclos de vida individuais). O estudo de caso é comumente utilizado para descrever uma intervenção e o contexto em que ela ocorre, beneficia-se do desenvolvimento prévio de proposições teóricas para conduzir a coleta e a análise de dados.

Nesse estudo descreve-se o processo de terapia sistêmica familiar da paciente identificada Maiara, a qual estava em acompanhamento neurológico. O médico neurologista que acompanhava Maiara fez seu encaminhamento para um psicólogo da Atenção Básica do município onde a família residia, e a psicóloga da Atenção Básica, que se encontrava em formação em Terapia Familiar, encaminhou a família para o instituto de sua formação, o qual apresentava um serviço de clínica escola. Dessa forma a família foi chamada para atendimento.

Inicialmente foi feito o contrato terapêutico e a família concordou em ser atendida por duas terapeutas (coterapia) com auxílio da equipe terapêutica. Em relação às questões éticas, a família consentiu a gravação dos atendimentos em vídeo, para fins de educação e ensino, respeitando o sigilo da identidade dos participantes através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme disposições da Resolução CNS 510/16. Dessa forma, para preservar as identidades envolvidas, os nomes adotados nesse artigo são fictícios, da mesma forma que se optou por omitir informações relativas às profissões, município e instituição de realização dos atendimentos.

Os atendimentos aconteceram mensalmente. Foram oferecidos sete atendimentos, mas a família só compareceu em quatro deles, faltando ao terceiro encontro e aos dois encontros finais.

Os atendimentos foram transcritos pela equipe terapêutica, e a essas transcrições foram acrescentados relatos dos terapeutas que realizaram os atendimentos à família, com detalhes que passaram despercebidos pela equipe terapêutica e com elementos da discussão que a equipe terapêutica fazia com os terapeutas sempre que encerrava a sessão de atendimento familiar. Para a análise dos dados foi feita a seleção dos trechos mais significativos dessas transcrições, os quais foram analisados e articulados de acordo com o referencial sistêmico, com ênfase no referencial sistêmico-vivencial.

Maiara (cinco anos) vivia com os pais, Pablo (32 anos) e Paula (31 anos), a irmã mais velha, Natália (13 anos) -filha somente de Paula, fruto de seu primeiro casamento- e o irmão mais novo, Felipe (quatro anos). Pablo apresentava, no decorrer do tempo em que a família esteve em acompanhamento e conforme a descrição dos familiares, sintomas de Transtorno Depressivo, conforme o genograma a seguir. A família vivia na região oeste de Santa Catarina, em zona rural.

 

 

Relato e discussão do caso

Maiara foi acompanhada por um neurologista infantil desde o primeiro ano de vida. A menina começou a ter convulsões após o nascimento do irmão, quadro clínico controlado na ocasião do atendimento, com manutenção do tratamento medicamentoso. Apesar do controle da epilepsia, os familiares apresentavam dificuldades para manejar o comportamento da filha, que demonstrava baixa tolerância à frustração, dificuldades relacionadas ao sono, agressividade e agitação psicomotora. O neurologista que acompanhava a criança solicitou acompanhamento psicológico para redução da sintomatologia infantil e para melhora do controle ambiental.

No primeiro atendimento compareceram Paula e Maiara. Como a família vivia em zona rural, sempre que era agendado atendimento familiar se deslocavam para a cidade onde acontecia o atendimento e ali permaneciam na casa da mãe de Paula.  Na ocasião do primeiro atendimento o clima havia mudado repentinamente e nem todos os membros da família puderam comparecer porque não tinham roupas apropriadas para o frio, conforme relato de Paula. Foi proposto que Maiara utilizasse personagens da família terapêutica para representar os membros familiares ausentes. A criança escolheu o personagem bebê para representar o pai, colocado ao lado de sua mãe, um boneco maior para representar o irmão de três anos, colocado mais distante da mãe e uma personagem para representar a irmã de 12 anos, colocada no colo da mãe. As terapeutas questionaram Maiara a respeito da escolha do boneco que representava o pai, por que um bebê? Ela ficou reflexiva mas não explicou. Então as terapeutas questionaram a mãe, por que a filha via o pai como um bebê? Paula relatou que ele se comportava como uma criança a mais, não ajudando e cooperando da forma como ela desejava.

Paula e Pablo constituíram uma família que estava na fase em que os filhos estão pequenos, em que, conforme Carter & McGoldrick (1995), são comuns as brigas entre os genitores sobre assumir responsabilidades, a recusa ou a incapacidade de comportarem-se como pais de seus filhos. A respeito das dificuldades conjugais para gerir as tarefas domésticas, como adverte Groisman (2006b), estabelece-se um jogo de empurra com acusações mútuas, explícitas, veladas ou através de um terceiro. Não sobra espaço para os participantes refletirem e perceberem a sua parcela de participação na dinâmica familiar. Cria-se um grau de dependência tal que não podem viver um sem o outro.

Paula contou que quando Maiara tinha seis meses ela engravidou de Felipe. Teve que desmamar Maiara, o que não foi um processo fácil, pois a bebê dormia junto dos pais, na mesma cama, e mamava durante a noite. A solução encontrada pelos pais foi retirar Maiara da cama do casal e transferi-la para outro quarto, onde passou a dormir com o pai. As mamadas noturnas passaram do peito para a mamadeira, e o pai preparava geralmente três durante a noite. Por conta do desmame de Maiara o casal passou a dormir separado, permanecendo assim até a ocasião do atendimento familiar. A partir do nascimento de Felipe, Maiara passou a ter crises de epilepsia, o que exigiu grande atenção a ela em detrimento da atenção dispensada a bebê recém-nascido. Maiara passou a fazer acompanhamento neurológico com uso de medicações controladas (ácido valpróico) e na ocasião do atendimento suas convulsões estavam controladas há um ano e dois meses. A mãe comentou que não queria ter engravidado do último filho. Paula dormia com o filho caçula num quarto e Pablo com Maiara em outro quarto.

Na visão de Groismann (2006b), quando é acrescido ao casal o papel de pai e mãe, aumenta o risco da indiferenciação e da confusão. Cada cônjuge tem que lidar, ao mesmo tempo, com os personagens de marido, pai e homem, e esposa, mãe e mulher. Do equilíbrio destes personagens resulta uma maior ou menor integração do casal e deste com os filhos. É natural que haja inversão de papéis em que um possa viver temporariamente o papel do outro, como também há um movimento na formação das duplas, em que os sexos opostos se aproximam. O perigo é a cristalização dos papéis e das duplas, o que confere uma rigidez ao sistema, impedindo o relacionamento e a troca e comprometendo o crescimento da família. Lembrando que existe uma dupla original, o casal, que precisa procurar se preservar e renovar, sob pena de se diluírem e virarem uma família indiferenciada. O casal da família em atendimento parecia estar nessa confusão indiferenciada, com cristalização dos papéis e das duplas.

Durante a primeira sessão Maiara sorriu e caminhou pela sala até que a mãe começou a falar dos hábitos alimentares da filha, quando esta ficou mais participativa. Paula comentou que Maiara comia mal, só comia aquilo que desejava, era muito seletiva com os alimentos e gostava muito de chocolate, por vezes se agitando e “enlouquecendo” a mãe, que se sentia vencida e entregava a guloseima para a filha. As terapeutas questionaram a criança se em vez de chocolate a mãe poderia oferecer um carinho, ela respondeu que não, que a mãe não brincava com ela, preferindo fazer outras coisas. Paula contrapôs que tinha muitos afazeres e que os filhos requeriam muitos cuidados, mas que procurava ter um momento de proximidade com eles, porém sem apoio do marido para dar limites.

As terapeutas questionaram Paula se ela sentia falta da atenção do marido, de ter um momento de intimidade com ele, questão à qual ela não titubeou, dizendo que não sentia a falta dele e que só não se separava devido aos filhos pequenos. Ao mesmo tempo sentia que Maiara só iria mudar quando ela e o marido se separassem. Criou Natália sozinha, pois logo que a primogênita nasceu ela e o primeiro marido se separaram, e como foi a maior responsável pela criação da filha, nunca teve problemas para educá-la. Já no segundo casamento, quando supostamente poderia dividir a responsabilidade pelo cuidado dos filhos com o marido, Maiara teimava e tornava a vida de todos impossível.

O comportamento impositivo de Maiara denotava uma inversão de papéis. Ela controlava os pais com seu choro e sua agressividade, fazendo prevalecer seus princípios. Para Groisman (2006a), quando essa inversão acontece, os filhos não têm incentivo para se desenvolverem, saírem daquela família, e virem a criar suas próprias regras para os seus filhos quando se tornarem pais.

Maiara explorou os bonecos da família terapêutica. Tirou a roupa deles. As terapeutas questionaram por que os bonecos estavam sem roupa, Maiara contou que gostava de dormir sem roupa, que fazia xixi na cama e tirava a roupa. A mãe interferiu nesse momento, dizendo que quando Maiara fazia xixi na cama sempre entregava calcinhas limpas para o pai colocar na filha. Maiara comentou que quando isso ocorria não dormia mais, que gostava de ficar acordada. As terapeutas questionaram Paula sobre o sono de Maiara. A mãe comentou que a criança tinha o sono agitado, que escutava a filha “se bater” a noite toda. Maiara disse que a mãe achava que ela era ruim, em seguida colocou todos os bonecos sem roupa no sofá. Disse que estava dando banho neles porque estavam sujos.

As terapeutas sugeriram que Maiara escolhesse mais dois bonecos, um para representá-la e outro para representar a mãe. Ela escolheu a personagem da vovó para se representar, em seguida olhou embaixo do vestido. Paula comentou que a menina tomava banho com o irmão e começou a questionar as diferenças entre seus corpos. O casal resolveu que os filhos tomariam banho separadamente, Maiara passou a tomar banho com a irmã. As terapeutas questionaram Paula sobre Maiara tirar as roupas dos bonecos, na visão da mãe podia ser só curiosidade. Comentou que a filha teve dificuldade em aceitar que o irmão podia fazer xixi em pé e tinha “pinto” e ela não. Maiara tirou a roupa de todos os personagens escolhidos, com exceção da mãe. Paula comentou que Natália gostava de escutar funk e que Maiara passou a gostar também.

Andolfi (2011), em artigo sobre a restituição da competência da criança por meio da terapia familiar, traz a percepção de que os distúrbios infantis (psicossomáticos, cognitivos ou relacionais) falam através do corpo ou do comportamento da criança e são o caminho para se chegar aos nós relacionais da família. A moldura é sempre a família, a criança o interior do quadro. Na visão do autor, o tratamento adequado deve buscar recursos na história do desenvolvimento da família, já que são os eventos da vida que nos falam como a família se organiza ou se desorganiza sobre o plano afetivo no tempo. Andolfi aponta que a psicopatologia pode ser usada como um recurso a mais, na medida em que se reconhece e se utiliza de forma construtiva os problemas infantis, que são oportunidades relacionais, habilidades especiais que outras crianças não possuem. Convocar as crianças à terapia e dar-lhes voz e competência requer inverter a conversação terapêutica; transferir-se ao planeta infância junto com os adultos da família e descobrir outro mundo. É preciso ouvir as crianças como parte de conflitos e de distorções familiares, ao invés de proteger as crianças em dificuldade.

A mãe anunciou sua expectativa de auxílio psicológico para poder lidar com a filha, a qual deixava todos na família agitados. Já havia experimentado estratégias como conversar e punir, sem obter sucesso no controle da agitação e da teimosia da filha. Paula falou ainda da perda do amor pelo marido, a sensação de confusão, de não saber por que havia casado. Nesse momento se emocionou, disse que queria se separar, que não conseguia se separar devido aos filhos, sobretudo Maiara, que era muito apegada a pai. Disse que não queria brigar na justiça nem perder os filhos. Contou que já havia feito tentativa de se separar quando Maiara tinha dois anos, mas a menina só pedia pelo pai, então ela voltou atrás em sua decisão.

No fechamento da sessão as terapeutas se colocaram, de forma empática, no lugar da mãe, dizendo que percebiam seu sofrimento, que entendiam que seu casamento estava passando por uma fase ruim, encorajando-a a continuar em busca de ajuda para a filha. Ao mesmo tempo reforçaram a importância de todos virem para o próximo atendimento familiar.

Desde esse primeiro atendimento a equipe de atendimento levantou a hipótese de abuso sexual na família, considerando a curiosidade exacerbada de Maiara em relação à sexualidade, revelada em seu brincar desnudando os bonecos, observações atreladas a relatos da mãe de que a menina não dormia à noite e gostava de permanecer acordada. A dificuldade sexual do casal também foi considerada, pois Paula anunciou não sentir mais desejo pelo marido e o casal dormia em quartos separados há quatro anos. Werner (2009) propõe, ao invés da terminologia abuso, em que fica implícita a ideia de uso, a expressão “ofensa sexual”. Para a autora, sempre que ocorre uma denúncia de ofensa sexual, ocorre necessariamente outra forma de violência contra crianças e adolescentes: a negligência. A figura do negligente não é capaz de impedir a ofensa sexual, quer porque não suspeita, quer porque não previne o ofendido, quer porque não acredita nos indícios que seus sentidos captam. De fato, admitir que o homem que se escolheu para companheiro prefere praticar atos sexuais com seus próprios filhos, sobrinhos ou netos é uma constatação extremamente dura e devastadora para qualquer pessoa. A equipe observou a família em outros momentos, chegando a abordar com a mãe a hipótese de abuso sexual, como será elucidado mais adiante.

No segundo atendimento novamente comparecem somente Paula e Maiara. A mãe comentou que após o primeiro atendimento a filha “deu uma boa melhorada”. Relatou que se sentia sobrecarregada, pois quando precisava levar os filhos ao hospital era sempre ela quem se encarregava. Nessa sessão Maiara veio com o rosto machucado, havia se machucado na escola e precisou ir ao hospital, quando foi acompanhada pela mãe. O pai, segundo visão da mãe, não se envolvia, era acomodado.

Visando auxiliar no entendimento de alguns fenômenos das intrincadas relações familiares, afirma Groisman (2006b, p. 105): “Se o pai fica escondido atrás da mãe, e ela consente, o filho não poderá vê-lo, comprometendo também a função da mãe, que fica hipertrofiada, não podendo ser mulher e esposa”. Talvez essa ausência do pai explique porque, no primeiro atendimento, Maiara escolheu um bebê para representá-lo e por que Paula não sentia desejo por ele.

Maiara começou a brincar com a família terapêutica e novamente tirou a roupa dos bonecos. Paula continuou falando do marido, contando que no início do casamento tratava-o muito bem, fazendo todas as tarefas domésticas, não cobrando ajuda. Reflete que se tivesse cobrado participação dele antes, hoje as coisas seriam diferentes.  Relatou que após a primeira sessão, ao retornarem para casa, propôs separar Maiara do pai na hora de dormir, mas que estava muito difícil, pois a filha era “grudada” nele. Paula solicitou colaboração de toda a família, o pai concordou em ajudar, propondo-se a dormir em outro quarto, sozinho. As terapeutas questionaram por que Paula ainda estava dormindo com Felipe, ela respondeu que precisava comprar outra cama, assim cada filho dormiria em seu quarto. As terapeutas questionaram onde Pablo iria dormir quando essas mudanças ocorressem. Paula respondeu que teria que dormir com ela, sorrindo contrariada. Em seguida acrescentou que não o amava, apenas o respeitava como pai de seus filhos.  Abordou novamente o tema da separação, disse que não se separa devido aos filhos, chorou.

Maiara deixou de brincar, olhando para a mãe. Paula contou que o marido nunca agrediu-a fisicamente, mas quando estava grávida de Maiara era estúpido. Maiara disse que gostava de brincar com o pai. Paula relatou que após o nascimento dos filhos a vida sexual do casal mudou, deixaram de ter intimidade. Por vezes ela estava em seu quarto e Pablo passava pela porta só de cueca. Questionada sobre o que tal atitude evidenciava, Paula demonstrou vergonha mas verbalizou que achava que nessas horas ele gostaria de ter relação sexual, mas que ela não iria ceder pois não sentia desejo (fez expressão de repulsa). As terapeutas convidaram Paula a pensar como Pablo satisfazia suas necessidades sexuais. Ela disse que não sabia, mas tinha certeza que ele não tinha outras mulheres pois passavam o dia juntos, trabalhavam e saíam juntos. Sentia muito por estar num relacionamento sem desejo, sentia culpa por ver sua vida passar e viver somente a vida dos filhos, chorou novamente. Compartilha-se com Groisman (2006a) a idéia de que os pais não devem sacrificar sua felicidade em nome dos filhos ou da família, já que assim mutilam uma parte importante de suas vidas, a de homem e/ou mulher, dando um mau exemplo para a vida futura dos filhos.

As terapeutas questionaram Paula sobre a separação do primeiro marido, Ela contou que se separou porque ele bebia demais. A filha mais velha via o pai a cada 15 dias, além de passar parte das férias com ele. Desde bebê Natália teve contato com seu pai, e logo depois com uma madrasta, que por diversas vezes foi grosseira, situação que exigiu intervenções de Paula. Como a família vivia em zona rural, as terapeutas questionaram se Natália tinha contato com as amigas, colegas de escola, uma vez que estava entrando na adolescência. Paula disse que não, que como moravam no interior era mais difícil para Natália encontrar as amigas. Pablo cuidava muito para que Natália não se envolvesse com namoro, prevenia Natália dos riscos de namorar. Paula dizia para Pablo que ele não podia impedir a adolescente de gostar de outras pessoas, pois na idade dela era isso era normal. Paula voltou a falar de Pablo, refletiu que não teria problema de dizer, em uma sessão de atendimento familiar, que não gostava mais dele, pois já havia dito outras vezes. Achava que ele não vinha à terapia porque tinha receio, embora ela não entendesse tal receio.

Paula contou para Pablo como foi a sessão anterior. Após aquele dia Maiara já não tomou banho com Felipe, somente com Natália. Paula relatou que em casa as bonecas de Maiara também ficavam sem roupa, mas nunca havia dado importância a isso. As terapeutas questionaram o que Maiara estaria evidenciando com os bonecos nus, e diante de tal questionamento a mãe enfatizou que sempre cuidou das filhas, sobretudo em relação a Pablo, especialmente Natália que não era filha biológica dele. Na região onde a família residia já houve caso de abuso, Paula achava tal situação muito grave. Após a primeira sessão falou para Pablo que Maiara devia dormir sozinha, pois o fato de dormirem juntos poderia ser mal visto pelos outros. Só no final dessa sessão é que Maiara começou a colocar as roupas nos bonecos. Paula comentou que se pudesse escolher naquele momento, não teria filhos.

Nessa sessão a mãe foi confrontada sobre o brincar de Maiara, que escancarava para as terapeutas uma necessidade de tirar as roupas dos bonecos. Paula cogitou a hipótese de abuso, mas já trouxe tal conteúdo para o atendimento como uma hipótese não factível, dizendo estar vigilante em relação ao parceiro. Fez modificações na rotina de cuidados, estimulando a criança a dormir sozinha, o que evidenciou uma preocupação da genitora com a integridade da filha. As atitudes de Paula parecem ser adequadas ao que preconiza Groisman (2006a), que haja cuidado e vigilância se houver a desconfiança de que está havendo um excesso de carícias em relação ao filho. O autor orienta que também se considere qualquer comentário que o filho possa fazer sobre algum comportamento estranho do genitor, de avós, irmãos, primos, parentes ou empregados. Diante dessas confrontações descartou-se a hipótese de abuso, passando-se a considerar que a criança estava numa fase de perceber a diferença entre os sexos e, além disso, convivia com a irmã adolescente, a qual escutava músicas e assistia vídeos que estimulavam uma erotização precoce.

As terapeutas orientaram Paula que conversasse com o marido sobre o futuro e encerraram a sessão evidenciando o sofrimento do casal, pois nenhum dos cônjuges estava realizado na relação. Novamente solicitou-se que viessem todos para o próximo atendimento. Paula comentou que achava difícil a tarefa recebida, as terapeutas insistiram para que ela tentasse.

No atendimento seguinte a família não compareceu. Justificaram que tiveram problemas no trabalho e foram reagendados. No terceiro atendimento compareceram novamente Paula e Maiara.

A mãe relatou que estava no fundo do poço – se mostrou abatida - disse que quase não veio. Maiara anunciou que a mãe estava assim porque “as crias incomodavam”. Paula contou que o marido tentou suicídio, tomou medicação em excesso, dormiu e não acordou. Ela precisou chamar o SAMU e após esse episódio Pablo foi hospitalizado. O médico orientou-a a não deixá-lo sozinho e a administrar a medicação dele.

Paula estava decidida, iria se separar assim que ele melhorasse. Ele não sabia o que queria, às vezes falava em se separar, depois em tentar novamente. Ela tinha planos de sair de casa assim que as aulas da filha encerrassem. O marido estava agressivo e irritado. Ela chegou a gravar áudios em que discutiam, mas ele acabou encontrando as gravações e apagou-as.

Maiara escutava a mãe e manuseava os bonecos da família terapêutica. A terapeuta solicitou que ela posicionasse os bonecos de acordo com a separação que estava para acontecer, mostrando como eles ficariam. Maiara respondeu que não sabia e não demonstrou interesse em materializar essa cena. A terapeuta solicitou então que a mãe executasse a tarefa, ela posicionou o pai de um lado e a mãe e os filhos de outro, comentando: “vai ficar assim, o pai longe e nós aqui” [sic]. Maiara então trouxe o boneco que representava o pai para junto dos bonecos que representavam os filhos, e afastou a boneca que representava a mãe. Depois trouxe de volta a boneca que representava a mãe. A criança se agitou. Paula expressou o desejo de que o marido estivesse morto, sentia que ele estava apenas provocando. Ela já estava com sua mala pronta para ir embora. Maiara encenou uma briga entre dois bonecos.

As terapeutas questionaram como seria o cuidado das crianças com a separação dos pais. Relembraram que na outra tentativa de separação Paula voltou por causa das crianças. Paula disse ter consciência de que os filhos iriam sentir falta do pai, mas teria que encontrar um jeito para lidar com isso, porque não ficaria casada pelos filhos. Maiara desafiou a mãe: “tu não vai se separar nada!”.

Maiara expressa uma reação de não aceitação à separação dos pais, reação natural por parte dos filhos, como afirma Groisman (2006a) afinal nasceram dentro de uma família e para eles não há razão, mesmo que haja conflito entre os pais, para que a família termine. Ao mesmo tempo, os pais, ainda que não se entendam e não se amem mais, não se conformam com o fato de não terem conseguido manter a unidade familiar, já que se casaram para construir uma família.

Maiara se comportou impositivamente, parecia querer decidir pela mãe sobre o rumo de seu casamento. As terapeutas questionaram a criança sobre os responsáveis pelas decisões familiares, Maiara respondeu que ela é quem mandava na família. Paula comentou que a filha pensava que mandava em tudo. As terapeutas orientaram a necessidade de que a mãe assumisse o comando, emocionada disse que não sabia o que fazer, que aquela não era a vida que queria. Expressou o medo de não conseguir sustentar seus filhos sozinha. Disse que não era feliz, que não tinha prazer em viver. Tinha apoio apenas da filha mais velha.

Em relação à rede de apoio do casal na separação. Paula contava com sua família, achava que a família de Pablo iria auxiliá-lo, embora sentisse que a família dele mais atrapalhava que ajudava. A madrasta dele é quem estava ajudando mais, ele não tinha contato com a mãe há 5 anos. As terapeutas apontaram que os filhos certamente se preocupavam com o pai nesse momento. Paula não queria mais se preocupar, caso contrário não iria se separar nunca. Achava que ele tinha que se virar.

Ao final da sessão as terapeutas apontaram que os filhos não eram só da mãe, eram tanto dela como do pai, e que deveriam estar assustados com a postura que ela assumiu, “retirando” o pai de cena. Seria importante que a figura do pai fosse preservada para os filhos, afinal o pai era tão importante para eles quanto a mãe. As terapeutas fizeram expressão corporal de batalha, evidenciando como estavam vendo a separação do casal, os pais brigando pelos filhos. Paula insistiu que os filhos eram dela, que não iria deixá-los com o pai, que ela passou muita dificuldade sozinha. As terapeutas confrontam Paula de que os filhos não eram somente dela, ela estava se separando do seu marido mas os filhos não estavam se separando do pai.

Dessa forma, as terapeutas procuraram apontar para a mãe a importância de que seus filhos mantivessem contato com o pai, pois, como bem fundamenta Groisman (2006a), é importante que na formação da personalidade do filho ele receba tanto a influência do pai quanto da mãe. Logo, é necessário que ele mantenha contato regular com ambos, e que as decisões sejam tomadas de comum acordo, desde que os pais possam cooperar entre si. Paula, porém não se mostrava disposta a aceitar as intervenções realizadas, e ao final da sessão repetiu “mas os filhos são meus”.

No quarto atendimento compareceram Paula, Maiara e Natália. Natália contou que a mãe havia se separado, que as crianças estavam mais calmas e a mãe mais feliz. Descreveu o padrasto como uma pessoa muito agressiva. A família se mudou para a casa da avó materna, Paula estava dormindo com Maiara e com Felipe, pois a rotina ainda estava bastante improvisada.

Paula relatou que o ex-marido abusava do uso de remédios, que andava como um “drogado”. Ainda assim disse não desejar que os filhos perdessem o contato com o pai. A guarda das crianças ficou com ela e Pablo tinha o direito de pegá-los a cada 15 dias. Estava convencida da importância do pai para seus filhos, disse que tinha mudado sua visão sobre esse ponto.

As terapeutas fizeram um resgate da história de Paula, relembrando que ela havia separado do primeiro marido logo após o nascimento de Natália, e que no segundo casamento começou a se afastar do marido logo após o nascimento dos filhos. Por que essas situações se repetiram? Paula justificou que a separação do primeiro marido ocorreu em função do alcoolismo.

As terapeutas perguntaram como era o relacionamento dos pais de Paula quando ela era pequena. A paciente relembrou que praticamente não teve pai, que ele só a registrou quando ela tinha 14 anos. Sempre foi muito próxima da mãe, o pai tinha outra esposa, e vinha somente de vez em quando visitá-las. A mãe sempre contou a verdade para Paula, nunca escondeu que o pai tinha outra esposa e outros filhos, mas a esposa do pai não sabia da existência de Paula, até o dia em que ligou para a casa do pai e se apresentou para a madrasta. A partir daí passou a ter contato com a outra família do pai, construindo uma boa relação com a madrasta.

As terapeutas questionaram como era ver seu pai e sua mãe juntos, como homem e mulher. Paula disse não recordar de ver os pais como homem e mulher. Nunca os viu se abraçando ou se beijando, ele vinha visitá-las mas nunca namorava a mãe na frente dela, apenas quando saíam de casa. As terapeutas perguntaram para Natália se ela lembrava de ver a mãe trocando carinhos com Pablo. Natália respondeu que não, que somente no início do relacionamento essas trocas aconteciam, mas não lembra de um beijo ou de um abraço deles. Maiara também não via a mãe e o pai como namorados. As terapeutas apontaram a repetição. Tal fenômeno pode ser entendido com as contribuições de Zimerman (2004), quem considera que todo indivíduo é um grupo, que carrega em si personagens parentais e demais familiares internalizados, buscados concomitantemente na vida exterior. O indivíduo reproduz, assim, em suas relações atuais, um script que já estava previamente programado.

Também resgatam-se as contribuições teóricas de Bowen (1998), quem aborda a diferenciação do indivíduo no sistema familiar. Tal diferenciação está relacionada com o grau de diferenciação emocional, um processo lento, complicado e incompleto. Muitos fatores influenciam em tal processo, incluindo o grau de diferenciação da mãe de seus próprios pais.

Paula apontou que Maiara estava mais tranquila, Natália concordou. Paula explicou para os filhos que agora eles têm duas casas, a casa da mãe e a casa do pai. As terapeutas perguntaram para Maiara se sentia falta do pai, mas a menina não respondeu. Paula voltou a falar sobre a agressividade de Pablo, que vinha piorando com o passar do tempo. Ele era agressivo também com a filha mais velha, e a distância dele faria bem para Natália também. As terapeutas finalizaram parabenizando a mãe por ter conseguido se separar e por se esforçar para que os filhos tivessem contato com o pai.

Após essa sessão houve mais duas tentativas de atendimento, porém a família já não compareceu.

 

Considerações finais

O caso clínico apresentado evidencia que a paciente identificada, a criança Maiara, através de suas crises convulsivas e de suas atitudes desafiadoras, expressa uma dificuldade do grupo familiar, mais especificamente uma crise conjugal que vinha se agravando após a chegada dos filhos. Através dos atendimentos familiares vai se evidenciando a crise conjugal de Paula e Pablo e o desejo de Paula em se divorciar. Paralelamente, Maiara vai se acalmando e vai escasseando a queixa da mãe de que não consegue dar limites à filha.

A dificuldade de separação de Paula parece estar relacionada à sua história de vida. Quando faz a primeira tentativa de se separar não consegue sustentar sua decisão, alega que não suporta o sofrimento da filha Maiara, quem sente exacerbadamente a falta do pai. Possivelmente Paula está revivendo através da filha seu próprio sofrimento por ter estado separada do pai durante toda a sua infância, pois o pai tinha outra família.

Outra repetição transgeracional que se percebe na história da família de Maiara é o modelo de casal sem trocas afetivas. Os pais de Paula nunca se abraçavam ou se beijavam diante da filha, da mesma forma que Natália não via os pais se amando e que Natália, Maiara e Felipe não viam Paula e Pablo namorando. Paula não via os pais dormirem juntos, tampouco demonstrarem desejo sexual um pelo outro. Pelo fato de seu pai ter outra família, ele vinha para a casa de Paula como um visitante, possivelmente um pai com quem desenvolveu pouca intimidade. Quando Paula se torna mulher, não consegue se manter casada e ter uma relação sexual satisfatória com seus parceiros. Tampouco consegue dormir (compartilhar a cama e a intimidade) com seus maridos, do primeiro logo se separa, do segundo mantém distância física.

A equipe terapêutica auxilia no fortalecimento de Paula para a manutenção de sua decisão de divórcio, bem como para se diferenciar dos filhos e perceber que suas necessidades não são as mesmas. Paula entende que os filhos necessitam manter um contato regular com o pai e ao final do processo terapêutico consegue garantir esse contato (ao pai ficou judicialmente garantido o direito de ver os filhos quinzenalmente, levando-os nos finais de semana), evitando a alienação parental.

Considera-se que as sessões realizadas e o embasamento dos terapeutas no enfoque sistêmico-vivencial auxiliaram a família nas mudanças que necessitava realizar, evitando a sobrecarga emocional de seus membros, bem como a somatização e o adoecimento da paciente identificada.

Em relação à ausência do pai nas sessões de atendimento familiar, é provável que devido ao fato de o casal já estar em crise conjugal e cogitando o divórcio, não tenha priorizado o espaço do atendimento psicológico para pensar nas questões familiares, pois a família estava em iminente ameaça de dissolução. Paula manifesta pouca preocupação com o parceiro, parece não ter mais desejo de investir na relação. Utiliza, assim, o espaço terapêutico para pensar nos seus sentimentos, e se fortalece emocionalmente para enfrentar a separação. Ao mesmo tempo, conforme os relatos da mãe, o pai sempre havia sido negligente com os tratamentos da filha, e possivelmente negligencia também a terapia familiar.

Assim que Paula consegue se divorciar, as sessões de atendimento familiar já não são prioridade para ela, apesar do local de atendimento ter ficado mais próximo da nova residência. Isso faz pensar que como o divórcio e a melhora do comportamento de Maiara estão associados, as principais angústias da mãe foram resolvidas.

O atendimento prestado à família e vivenciado pelos terapeutas foi muito enriquecedor para a formação dos profissionais envolvidos. A possibilidade de conjugar teoria e prática e de experimentar a complexidade de trabalhar com o grupo familiar são desafiadoras. Como limitação do estudo destaca-se a ausência do pai, uma parte tão importante da família quanto a mãe, e que no atendimento relatado não foi vista nem escutada.

 

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Endereço para correspondência
Cristina dos Santos Padilha
E-mail: padilha.psico@gmail.com

Joseana Garcez da Luz Seidler
E-mail: joseanapsi@gmail.com

Danielle Doss Damo Martins da Silva
E-mail: danielle.ddms@gmail.com

Enviado em: 03/01/2019
1ª revisão em: 14/07/2019
2ª revisão em: 30/08/2019
Aceito em: 22/11/2019

 

 

1 Psicóloga e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Aluna do curso de Especialização em Terapia de Casal e Família.
2 Psicóloga pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Terapeuta de Casal e Família pelo Centro de Estudos e Atendimento de Terapia Familiar e de Casal - ELO. Especialista em Filosofia e Psicanálise pela UNOCHAPECÓ. Especialista em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas pela Universidade do Contestado (UNC). Membro titular da ABRATEF. Orientadora e diretora do Ciclos Instituto de Formação em Terapia de Casal e Família.
3 Psicóloga. Terapeuta de Casal e Família. Especialista em Psicossomática. Especialista em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Membro titular da ABRATEF. Orientadora e diretora do Ciclos Instituto de Formação em Terapia de Casal e Família.

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