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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.13 no.1 São Paulo jun. 2016

 

ARTIGO

 

No limite. A compreensão psicodinâmica do ofensor

 

In the limit. Route to psychodynamic understanding of offenders

 

Sin límites. Caminando para la comprensión psicodinámica de los pacientes con mandatos judiciales de suspensión de la ejecución de pena de prisión.

 

Mafalda Guedes Silva1

Ordem dos Psicólogos Portugueses e Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo.

 


RESUMO

A autora propõe-se nesta comunicação aflorar a compreensão psicodinâmica do ofensor socorrendo-se para tal dos trabalhos de Otto Kernberg; Nancy Mcwilliams; Glen Gabbard; Anthony Bateman e Peter Fonagy; de Murray Cox e Gwen Ashead. Parte de uma experiência de condução de um grupo psicoterapêutico de orientação analítica, em regime de ambulatório, destinado a utentes encaminhados pela DGRSP – Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ou diretamente pelo Tribunal para cumprimento de tratamento psiquiátrico como uma das injunções de suspensão da execução da pena de prisão.

Palavras-chave - psicoterapia analítica de grupo; ofensores; psicopatia.


ABSTRACT

The author proposes in this paper to emerge psychodynamic understanding about offenders, supported on the work of Otto Kernberg; Nancy Mcwilliams; Glen Gabbard; Anthony Bateman and Peter Fonagy; Murray Cox and Gwen Ashead. Reporting her experience as a co-therapist of a psychotherapeutic group of analytical orientation, on an outpatient basis for clients referred by DGRSP - General Directorate of Rehabilitation and Prison Services or directly by the Court to comply with psychiatric treatment as one of the suspension injunctions of imprisonment.

Keywords: group analysis; offenders; psychopathy.


RESUMEN

La autora propone en este documento abordar la comprensión psicodinámica del delincuente fundamentándose para ello en trabajos como los de Otto Kernberg; Nancy Mcwilliams; Glen Gabbard; Anthony Bateman y Fonagy Peter; Murray Cox y Gwen Ashead. Parte de una experiencia de conducción de un grupo psicoterapéutico de orientación analítica, en régimen ambulatorio, destinado a pacientes derivados por la DGRSP - Dirección General de Rehabilitación y Carcelarias Servicios o directamente por el Tribunal para el cumplimiento del tratamiento psiquiátrico como uno de los mandatos judiciales de suspensión de la pena de prisión.

Palabras clave: psicoterapia analítica de grupo; delincuentes; psicopatía


 

 

INTRODUÇÃO

O meu interesse por este tema, o trabalho psicoterapêutico com utentes que têm problemas com a justiça e recebem do Tribunal a injunção de tratamento psiquiátrico e/ou psicológico como uma das medidas a cumprir para manter um processo judicial suspenso sem execução de pena de prisão, foi despoletado pela oportunidade de participar numa experiência que decorreu num serviço de psiquiatria e saúde mental de um hospital geral onde trabalhei. Esta experiência consistiu em desenvolver uma resposta terapêutica eficaz que permitisse o tratamento de utentes que chegam aos serviços de saúde com uma obrigação de cumprir tratamento, mas não têm motivação para a mudança nem percepcionam um problema que gostassem de resolver, tem baixa adesão com faltas recorrentes e não se comprometem com o tratamento.

Face a esta realidade foi então desenhado um grupo psicoterapêutico de orientação analítica, de tipo semiaberto, em regime de ambulatório, destinado a utentes encaminhados pela DGRSP – Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ou diretamente pelo Tribunal para cumprimento de tratamento psiquiátrico/psicológico como uma das injunções de suspensão da execução da pena de prisão. Com periodicidade semanal e duração de uma hora e vinte minutos, em modalidade de coterapia onde eu fui coterapeuta juntamente com um enfermeiro de saúde mental da equipa, e, a terapeuta, outra colega com formação grupanalítica. O grupo contou com supervisão externa da responsabilidade do grupanalista Domingos Carreto Silva.

Por motivos alheios aos terapeutas e que se prenderam com reorganizações institucionais o grupo teve um fim abrupto, tendo-se realizado 61 sessões entre 6 Março 2014 e 31 Julho 2015. Este grupo já foi apresentado e discutido noutro contexto, o Seminário Eduardo Luís Cortesão2.

 

CAMINHANDO… A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO.

Tendo como referência Otto Kernberg (1984 e 2006); Anthony Bateman & Peter Fonagy (2013); Nancy Mcwilliams (2005); Glen Gabbard (2007); Murray Cox (1978) e Gwen Ashead (2005, 2011), iniciamos o caminho para uma compreensão psicodinâmica dos utentes que têm em comum problemas com o sistema de Justiça e o serem referenciados para avaliação/tratamento psiquiátrico/psicológico.

Compreensão psicodinâmica do ofensor

O primeiro passo na compreensão psicodinâmica do ofensor será um cuidadoso diagnóstico diferencial entre psicopatia, patologia antissocial e narcisista para auxiliar na tomada de decisão sobre se um paciente é tratável e sobre que condições justificam um esforço de tratamento.

É fundamental compreender dinamicamente a patologia antissocial como um continuum (ver figura 1) que apresenta graus variáveis de conduta antissocial que os pacientes podem manifestar, em que no extremo mais oposto se encontra a psicopatia - condição de paciente intratável, por não integração do superego.

É essencial distinguir entre a conduta antissocial e a psicopatia, pois a conduta de natureza antissocial pode surgir por pressão dos iguais, por conflito neurótico ou por pensamento psicótico, situações em que poderá não se verificar qualquer relação com a perturbação antissocial da personalidade.

Otto Kernberg (2006) alerta-nos que, para tratar o indivíduo importa conhecer a estrutura de personalidade em que se inserem os comportamentos manifestos, pois estes podem ter funçõesdiferentes nas diferentes estruturas. Por exemplo, o que podemos descrever como uma fobia social, tanto se pode inscrever como inibição e evitamento de uma personalidade esquizoide, como pode ser a autoproteção de um paciente altamente paranoide, o receio de exposição de uma grandiosidade narcísica ou a formação reativa de um exibicionismo histérico.

O mesmo autor propõe um diagnóstico estrutural que pressupõe a existência de três organizações estruturais: a organização de personalidade neurótica, a organização de personalidade borderline e a organização de personalidade psicótica. Em que, sumariamente, os critérios de diagnóstico são: o grau de integração da personalidade (integração da identidade); os tipos de mecanismos de defesas predominantes (operações defensivas) e a capacidade de testar a realidade (teste da realidade).

Encontramos no continuum psicopata, proposto por Kernberg (1998) ofensores com uma falha na vinculação humana e o recurso a defesas muito primitivas de tipo controlo omnipotente; identificação projetiva; defesas dissociativas e acting out. Um Superego desorganizado, não integrado e uma consequente difusão da identidade.

Nancy Mcwilliams (2005) e Glen Gabbard (2007) assinalam alguns fatores genéticos, ambientais e educacionais/ relacionais relevantes para esta compreensão dos quais salientamos que a psicopatia é mais frequente em homens e tem uma forte componente genética como comprovam diversos estudos que têm sido conduzidos com gémeos monozigóticos.

 

 

Os autores acima mencionados reforçam também a importância da relação precoce. Identificando-se, geralmente, crianças maltratadas, humilhadas e abusadas fisicamente, batidas. Com progenitores com psicopatologia e padrões comportamentais e educacionais inconsistentes. Estas crianças viveram numa amálgama de insegurança e caos, disciplina severa e excessiva indulgência, com mães percepcionadas como fracas, deprimidas ou masoquistas, e pais explosivos,inconsistentes ou sádicos. O alcoolismo e outros abusos de substâncias na família de origem são comuns, assim como os padrões de mudanças de residência, perdas e rupturas familiares.

Pensando no self do psicopata deparamo-nos com um grau de agressividade que fará com que, em quaisquer circunstâncias, seja uma criança difícil de acalmar, confortar e espelhar de forma amorosa. Esta condição de ser considerado uma criança-problema, torna difícil ao potencial psicopata encontrar a auto-estima pelo caminho normal de sentir o amor e orgulho dos cuidadores. Os objectos exteriores falham, o único objecto a investir é o self e o seu poder impulsionado de dentro. A inveja primitiva, o desejo de destruir o que a pessoa mais deseja, está fortemente presente nestas personalidades. Desvalorização e depreciação ativas de toda a esfera mais delicada da vida humana são caraterísticas dos psicopatas, independentemente do nível de severidade em que se posicionem.

Neste sentido, podemos tentar sintetizar duas principais linhas de investigação psicodinâmica da génese da psicopatia. Uma linha assente na perspetiva de que o psicopata tem um caráter organizado em torno de fantasias omnipotentes e comportamento antissocial, em que o papel da ausência de um sentido de poder em momentos apropriados do seu desenvolvimento emocional é tido como fundamental podendo incitar o sujeito, que em criança viveu nesta situação dura de desproteção e caos, a passar o resto da vida a procurar a confirmação da sua omnipotência, e a recorrer à utilização da linguagem para manipular, em vez de a utilizar para articular sentimentos devido ao bloqueio do afecto. Outra linha que podemos ter em consideração, enquadra o carácter do psicopata como assente numa história pessoal na qual os pais ou outras figuras importantes investiram muito na demonstração do poder da criança e deixaram ao longo do seu desenvolvimento repetidas mensagens de que a vida não lhe deveria colocar limites. A título ilustrativo podemos mencionar que seriam pais que tendem a reagir com violência quando professores ou agentes de autoridade procuram estabelecer limites ao filho, identificando-se com a provocação da criança e agindo o seu próprio ódio em relação à autoridade.Quanto ao prognóstico, é um campo que ainda carece de investigação consistente mas, talvez possamos falar de um melhor prognóstico quando as principais fontes da psicopatia são a modelagem e o reforço parentais do comportamento manipulativo e de afirmação de direitos, do que quando a condição está enraizada em situações caóticas e dramaticamente abusivas. Pelo menos uma criança proveniente de pais indulgentes, subornáveis, conseguiu a identificação com alguém e não está completamente destituída de uma capacidade para se ligar ao outro.

Tratamento psicodinâmico do ofensor

Depois desta breve incursão pelo enquadramento teórico da problemática direcionamos o nosso enfoque para a intervenção. A tratabilidade do paciente será, essencialmente, determinada pela capacidade de formar algo semelhante a um vínculo emocional com os outros e de exercitar algumas funções rudimentares do superego, e só pode ser equacionada no contexto de uma boa avaliação e compreensão psicodinâmica do ofensor. Para auxiliar nesta tarefa, Mcwilliams (2005) recomenda a aplicação da técnica da entrevista estrutural de Kernberg (1984) e colaboradores e, nós acrescentamos a possibilidade de complementar com a aplicação do IPO – Inventário de Organização da Personalidade, um instrumento psicométrico de avaliação das organizações patológicas da personalidade, atualmente na versão em português ainda só aferido para a população brasileira. Na tabela 1 expomos algumas recomendações gerais que nos parecem muito pertinentes para o tratamento psicoterapêutico de orientação analítica da conduta antissocial, realçando que a possibilidade de uma abordagem psicoterapêutica introduzir crescimento e mudança dependerá sempre da extensão e incidência dos comportamentos anti-sociais e da intensidade das relações de objeto de não exploração.

 

 

Para ilustrar o trabalho psicoterapêutico apresento, em seguida, uma vinheta clínica com um excerto de uma sessão do grupo.

Este grupo psicoterapêutico enquadra-se na tipologia de pequeno grupo, semifechado. Tem periodicidade semanal, com duração de 1 hora e 20 minutos por sessão e realiza-se nas instalações do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental de um Hospital geral, em sala fixa preparada para o efeito.

O grupo é composto por quatro elementos do sexo masculino:R. 57A, processo judicial por violência doméstica; E. 70A, processo judicial por abuso sexual de menor; J. 54A, processo judicial por insultos e agressões graves; C. 61A, processo judicial por violência doméstica.

Os membros do grupo foram avisados na sessão anterior que por reorganização do Serviço, as duas psicólogas terapeutas do grupo vão ser dispensadas e o grupo vai terminar no final do próximo mês. Esta sessão realiza-se só comigo como terapeuta, por motivos de férias da terapeuta principal e do outro coterapeuta.

 

 

"E.". fala sobre a Grécia e as manifestações políticas contra o FMI.

J. começa a falar de armas e do tempo da Guerra Colonial. Conta experiências terríveis de ataques e chacinas que se recorda de ter vivido quando estava com a família na Guiné e em Moçambique. Tinha cerca de 7/8 anos. Mistura no relato as experiências na escola, conta como a professora era má e lhe batia sempre que não sabia a resposta, explica que havia divisão entre os alunos que aprendiam e os que tinha dificuldade, a professora organizava a sala por filas, a fila dos bons, dos médios e dos burros. Diz que ao longo do ano-letivo ia havendo progressão. Os burros iam passando para as outras filas e às vezes era ao contrário. Mas mesmo os bons levavam reguadas. Fala sem pausas e todos ouvem atentamente.

Terapeuta (Eu) – era como na vida em geral. Não estamos sempre na mesma posição, às vezes avançamos, outras vezes recuamos, às vezes somos bons outras somos burros.

Sorriem.

E. fala também do que viveu na Guerra do Ultramar, dos combates e das emboscadas.

C. vai confirmando que foram tempos difíceis.

R. vai acenando com a cabeça, sempre calado.

Terapeuta (Eu) - Parece que estamos a falar das coisas más que foram vividas no passado das recordações más da infância. De como foram maltratados pelos adultos.

Sorriem. Breve silêncio.

J. volta a falar. Fala sobre as escolas que frequentou e das dificuldades, os professores que batiam, separação entre rapazes e raparigas. Fala das escolas que frequentou em X, quando a família regressou de África. Vai nomeando. E. entra na conversa pois conhece as escolas primárias, pergunta por alguns professores, se foram professores de J. Dialogam os dois. J. continua a falar da escola preparatória e depois dos liceus.

Terapeuta (Eu) – O C. também frequentou essa escola, não foi?

C. – foi. Sai de lá em 71.

J.e – ah! Mas essa escola era calma, só estive lá um ano, mas não se passava nada. Era só uma reunião ou outra e foi em 74/75.

Terapeuta (Eu) – O R. nessa altura já andava a trabalhar?

R. – pois!

Breve silêncio.

J. continua a falar sobre como na época conturbada do 25 de Abril pertenceu aos movimentos estudantis, diz as siglas dos movimentos e partidos da extrema esquerda em que se filiou com a ajuda do pai de uma colega que lhe assinava as autorizações pois só tinha 14/15 anos e o seu pai não queria que se envolvesse na política. Conta as manifestações em que participou, as reuniões, o treino para usarem armas de fogo, o objetivo de executarem todos os fascistas e membros de outros partidos que fossem de centro ou de direita. Fala com entusiasmo e orgulho. Os outros membros do grupo vão acompanhando com entusiasmo.

Terapeuta (Eu) – então e o seu pai? Como era a vossa relação na altura? O seu pai era sargento, pertencia ao antigo regime!

J. – o meu pai tinha medo que eu o denunciasse! Tinha medo que eu o matasse. Não queria que eu tivesse a bandeira do PC lá em casa. Mas eu fazia. Ele sabia que bastava eu denunciá-lo e também sabia que nós queríamos executar os polícias e os militares também. Ele era apoiante do Vasco Gonçalves e quando ele foi derrubado ficou com medo.

Terapeuta (Eu) – Ai virou a história. Passou a ser o seu pai a ter receio e o J. a ter o poder.

J. – eu não fiz nada por causa do meu pai. Nós queríamos era executar todos os fascistas! Eram as ordens. Fala mais um pouco sobre como decorriam as reuniões e das brigas entre os diferentes membros dos diferentes partidos e de como existia muito armamento e homens e rapazes treinados em Caldas para começarem as execuções.

Terapeuta (Eu) - Então e o E. e o R.? Como viveram os tempos depois do 25 de Abril?

R. diz que não, que teve uma vida só de trabalho. Mas que se lembra das pessoas da sua aldeia que desapareciam e se dizia que tinha sido a PIDE. Diz que sabe que o marido da sua professora, que era má como as cobras, era um bufo e que por causa dele muitos homens desapareceram e nunca mais voltaram.

E. fala sobre o Forte de Peniche. Diz que dantes muitos corpos apareciam no mar, mas não eram pescadores, eram homens que estavam presos no Forte e eram depois deitados ao mar.

R. fala das complicações que está a ter para arranjar trabalho e que os patrões agora só querem que passe recibos, mas que assim não pode ser porque senão tinha de pagar para trabalhar. Diz que o enganaram. Conta várias situações em que os patrões querem um serviço e depois as condições de trabalho e de pagamento são diferentes do que lhe disseram. Conta um episódio em que foi enganado por um patrão quando trabalhou como servente na construção civil. Nunca o deixou gozar férias a que tinha direito e mentia dizendo que os outros colegas quando não apareciam no trabalho era por estarem doentes. Só mais tarde em conversa com um amigo é que R. descobriu.

Terapeuta (Eu) - Parece que se está a falar de confiança. De quem é confiável e de quem se deve desconfiar.

Breve silêncio.

R. – pois não se pode confiar em ninguém!

Terapeuta (Eu) - Eu e a Dra. Celeste e o Enfermeiro Nuno também vos criámos a expectativa de que o grupo iria funcionado durante muito tempo e afinal o grupo agora vai terminar. O que estão a sentir?

E. – pois achávamos que ia durar, mas eu também não sei quando o grupo começou.

C. – pois agora acaba, não estava à espera.

J. – vai mesmo acabar? E como fica a vossa situação? Ficam sem trabalho? O que vos disseram?

Terapeuta (Eu) – a informação que temos, é que a nossa prestação de serviço neste Hospital termina este mês, eu e a Dra. Celeste recebemos uma carta.

J. – Mas não é justo! O que vocês vão fazer? Vão-se embora? Ficam sem trabalho?

Terapeuta (Eu) – Sim, eu e a Dra. Celeste teremos de encontrar trabalho noutro hospital.

Todos dizem que não pode ser. Falam uns por cima dos outros. Dizem que não se pode confiar nos governantes!

Terapeuta (Eu) - Aqui no grupo investiram na confiança uns nos outros e agora vai terminar. O que sentem?

R. – pois é! Uma pessoa fala da vida, das coisas.

C. – falamos e ouvimos, ficamos a conhecer.

E. – vimos aqui, estamos com os colegas e depois vai cada um para seu lado.

Terapeuta (Eu) – o grupo termina e é importante que no futuro continuem a guardar segredo do que aqui é falado. Para podermos poder continuar a confiar. Não se encontrarem lá fora nos próximos meses e não falarem sobre as histórias dos outros.

Todos concordam que fica em segredo e que não vão divulgara a informação.

R. começa a falar sobre a riqueza da empresária Isabel dos Santos que comprou muitas empresas.

C. – isso já o pai dela é riquíssimo! Diamantes, armas… (suspira)

J. e E. entram na conversa dos grandes impérios económicos. Aparece também o tema dos chineses.

Terapeuta (Eu) - Então acham que se os chineses tomassem conta do ministério da saúde conseguíamos manter o grupo? Acham que têm de vir os chineses salvar-nos?!

Riem. Dizem que é uma solução, alguém com dinheiro que obrigue o Hospital a contratar-nos.

R. - O hospital está fechado? Nunca se vê aqui ninguém! É um edifício bom, a construção é boa, paredes de pedra, não cai, não é como estas porcarias novas.

Terapeuta (Eu) - Parece que estamos a falar de poder. Quem tem poder e quem não tem.

J. – pois! Nós não podemos nada! Estes ministros e presidentes que não sabem o que se faz estão a destruir tudo.

Terapeuta (Eu) - Eu e a Dra. Celeste também parece que estamos sem poder para fazer o grupo continuar.

J. – pois! Não conseguem que vos contratem? Já reclamaram? Já escreveram? O que é que já fizeram?

Terapeuta (Eu) explico que é uma decisão já tomada."

A temática dominante da sessão foi a violência, a agressão, motivada pelo fim do grupo, em que o conteúdo latente foi o inquirir qual o interesse dos terapeutas pelos membros do grupo.

Psicoterapia Analítica de Grupo com Ofensores

Chegados a este ponto, é tempo de nos focarmos na psicoterapia analítica de grupo. Podemos remontar a Foulkes, (1948) a aplicação da psicoterapia analítica de grupo com ofensores quando este sugeriu que a grupanálise poderia ser terapêutica para pessoas antissociais. Murray Cox (1978) e Gwen Adshead (2005) são dois ilustres representantes ingleses da aplicação da psicoterapia analítica de grupo ao trabalho com ofensores internados em hospitais prisionais de alta segurança. Dos seus trabalhos evidenciamos aqui o foco nos níveis de comunicação em grupo; no timing certo para as intervenções do terapeuta; na constatação de que a vergonha, angústia e constrangimento podem impedir os ofensores de falar sobre os seus crimes, tanto como o orgulho, a duplicidade e a ante sociabilidade; no encorajar o pensar no futuro e trabalhar o aqui e agora; identificar o potencial de reparação dos défices em mentalização e empatia.

Indo ao encontro do que é defendido, também, por Anthony Bateman & Peter Fonagy no manual Mentalization based treatment for antisocial personality disorder (2013).

Continuando a aprender com experiências dos outros…

Diversos grupanalistas portugueses já desenvolveram trabalho clínico com pacientes com problemas com a Justiça. A experiência clínica que adquiriram representa um enriquecimento para esta reflexão. Neste trilho para uma melhor compreensão psicodinâmica do ofensor, o ponto de paragem seguinte será realizar entrevistas a alguns destes grupanalistas e procurar compilar o conhecimento que advém da sua prática. Mas esse é tema para outro trabalho que já está a ser forjado.

 

REFLEXÕES FINAIS

Depois desta breve viagem de reconhecimento pelo complexo mundo da compreensão psicodinâmica dos ofensores podemos resumir, em jeito de conclusão, que o terapeuta deverá fazer um bom diagnóstico estrutural da personalidade do utente e adaptar a técnica grupanalítica na condução de um grupo com ofensores, assim como assumir um papel mais interventivo e focado no aqui e agora e no desenvolvimento da capacidade de mentalização. Concluímos ainda que os ofensores não constituem um grupo homogéneo em termos de caraterísticas psicológicas, nem mesmo, se considerarmos subgrupos de acordo com a tipologia do crime cometido e, serão melhor entendidos no continuum da conduta antissocial e psicopata proposto por O. Kernberg (1998).

Uma avaliação e compreensão psicodinâmica da estrutura da personalidade são fulcrais para o desenho de programas terapêuticos mais adequados e para otimizar a seleção dos ofensores a integrar no tratamento. No que concerne ao protocolo de avaliação, defendemos uma avaliação psicodinâmica em sintonia com o referencial teórico adotado que não implique grande dispêndio de tempo no processo de avaliação (aplicação, cotação e interpretação) e permita obter resultados facilmente comparáveis do ponto de vista qualitativo e quantitativo, sendo tidas aqui como possibilidades, o recurso à Entrevista diagnóstica estrutural de Kernberg e ao IPO - Inventário de Organização da Personalidade de Kernberg, (1984) com as devidas ressalvas e limitações por este instrumento não estar ainda aferido para a população portuguesa.

 

REFERÊNCIAS

ADSHEAD, G. a The Life Sentence: Using a Narrative Approach in Group Psychotherapy with Offenders. In Group Analysis vol. 44(2): 175-195, 2011        [ Links ]

ADSHEAD, G.; Charles, S.; Pyszora N. Moving On: A Group for Patients Leaving a High Security Hospital. In Group Analysis vol. 38(3): 380-394, 2005        [ Links ]

ADSHEAD, G. b . Keynote Lecture: Killing time: a day in the life of a group therapist in a high secure hospital. 2011. Disponível em http://groupanalyticsociety.co.uk/ video acedido em 11/02/2015.         [ Links ]

BATEMAN, A.; Fonagy P. Mentalization based treatment for antisocial personality disorder. 2013. Disponível em http://www.ucl.ac.uk/ acedido em 11/02/2015.         [ Links ]

COX, M. There's Danger in Numbers: is a delusion of safety necessary for defense disruption in group psychotherapy conducted with patients whose histories include fatal assaults? In Report of the Scientific Meeting of the Group-Analytic Society, 23th January 1978.         [ Links ]

FOULKES, S. H. Introduction to Group- Analytic Psychotherapy. London: Maresfield Reprints, 1948.         [ Links ]

GABBARD, G. Psiquiatria Dinâmica na Prática Clínica. 4ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2007.         [ Links ]

KERNBERG, O. Severe Personality Disorders: Psychotherapeutic Strategies. New Haven, CT, Yale University Press, 1984.         [ Links ]

KERNBERG, O. Disorders of narcissism: Diagnostic, Clinical and Empirical Implications. Washington DC: American Pshychiatric Press. 1998.         [ Links ]

KERNBERG, O. Agressividade, narcisismo e auto-destrutividade na relação psicoterapêutica. Lisboa: Climepsi Editores, 2006.         [ Links ]

MCWILLIAMS, N. Diagnóstico Psicanalítico. Compreender a estrutura da personalidade no processo clínico. Lisboa: Climepsi Editores, 2005.         [ Links ]

 

 

1 Mafalda Guedes Silva. Psicóloga clínica, Membro Efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses e Membro Candidato da Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo. Contato Mafalda.guedes.silva@gmail.com
2 Para aprofundar este tema consultar artigo publicado no site da Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo, com o título No Limite. Um relato do início de um grupo psicoterapêutico destinado a pacientes com injunções de suspensão da execução da pena de prisão.

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