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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.15 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

https://doi.org/75d323ad165443c59fb-33b1 

ARTIGO

DOI - 75d323ad165443c59fb-33b1

 

Estudantes indígenas na Universidade: uma sessão de grupo operativo

 

Indigenous students in the university: one session with operative group

 

Estudiantes indígenas en la universidad: una sesión de grupo operativo

 

 

Domenico Uhng Hur*, I, II; Maria Luiza Bitencourt Silva Couto**, II; Joab Silva do Nascimento***, II

IUniversitat Autònoma de Barcelona
II
Universidade Federal de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é conhecer os discursos de alunos indígenas de uma Universidade pública, contemplados pela política de ações afirmativas, para discutir as experiências que vivenciam no espaço acadêmico. Realizamos a investigação a partir de uma sessão com o dispositivo de grupo operativo de Pichon-Rivière. Constatamos uma série de dificuldades para o estudante indígena na Universidade. Há a produção de um estereótipo sobre o indígena, que resulta em processos de preconceito e exclusão. As dificuldades na aprendizagem são vividas no âmbito individual e não institucional, produzindo uma situação de culpa e ansiedade. Por fim, enunciam um duplo lugar ocupado, no sonho de transmitir os conteúdos adquiridos na Universidade à sua própria comunidade.

Palavras-chave: Estudante; Índio; Grupo operativo; Psicologia Social; Universidade. Pesquisa financiada pelo CNPq e FAPEG.


ABSTRACT

The aim of this article is to know the discourses of indigenous students of a public University, contemplated by the policy of affirmative actions, to discuss their experiences within the academic space. We conducted the research from one session with the Operative Group device of Pichon-Rivière. We found many difficulties for the indigenous student in the University. There is a production of a stereotype on the indigenous, resulting in processes of prejudice and exclusion. The difficulties in learning are experienced at the individual rather than the institutional level, thus producing a situation of guilt and anxiety. Finally, they enunciate a double occupied place, in the dream of transmitting the contents acquired at the University for their own community.

Keywords: Student; Indian; Operative Group; Social Psychology; University. Support: CNPq & FAPEG.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es conocer los discursos de alumnos indígenas de una Universidad pública, contemplados por la política de acciones afirmativas, para discutir las experiencias que vivencian en el espacio académico. Realizamos la investigación a partir de una sesión del grupo operativo de Pichon-Rivière. Constatamos muchas dificultades para el estudiante indígena en la Universidad. Hay una producción de un estereotipo sobre el indígena, que resulta en procesos de prejuicio y exclusión. Las dificultades en el aprendizaje son vividas en el ámbito individual y no institucional, produciendo una situación de culpa y ansiedad. Por fin, enuncian un doble lugar ocupado, en la ilusión de transmitir los contenidos adquiridos en la Universidad para su propia comunidad.

Palabras clave: Estudiante; Indio; Grupo Operativo; Psicología Social; Universidad. Investigación financiada por el CNPq y FAPEG.


 

 

O Brasil possui mais de 230 diferentes povos indígenas que contabilizam 817.963 pessoas (IBGE, 2010) e mais de 180 línguas distintas (Paula, 2013). Estes diversos povos possuem culturas singulares e, apesar de dissonantes dos padrões da cultura dominante, sobrevivem e perpetuam suas tradições. Possuem procedimentos e hábitos próprios de transmissão cultural, "(...) elaborando sistemas de pensamentos e modos próprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepções" (BROSTOLIN, 2007, p. 108). No entanto, suas características culturais não são reconhecidas e legitimadas pela sociedade. O indígena, historicamente viveu diversas formas de extermínio físico e cultural advindos da dominação e expansão do modelo colonialista e capitalista (Ferro, 2004). Também é alvo de preconceito, em que lhe são atribuídos os estereótipos de ocioso, indolente, hostil, aculturado (Cordeiro, 2007), ou ingênuo e puro: o bom selvagem (Maher, 1998).

Na década de 1980, mobilizações de diferentes povos e movimentos indígenas reivindicaram a reestruturação das políticas indigenistas para modelos mais inclusivos (Brostolin, 2007). Esta mobilização culminou num novo marco legal na educação indígena, concretizada na Constituição de 1988, com uma legislação que contempla uma educação diferenciada, específica, intercultural e bilíngue (BRASIL, 1998). Desde então, outros textos oficiais que reformulam a educação indígena foram promulgados. Dentre as diversas iniciativas, neste trabalho visamos discutir os efeitos das políticas de inclusão aos estudantes indígenas na Universidade pública, através do sistema das "cotas".

Há dez anos, a Universidade Federal de Goiás (UFG) criou um programa de políticas afirmativas denominado UFGInclui (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2008). Este programa visa democratizar o acesso ao ensino superior público, proporcionando vagas a estudantes de escolas públicas, negros, quilombolas e indígenas em todos os cursos de graduação que oferece. O UFGInclui também constituiu uma Coordenadoria de Ações Afirmativas (CAAF) que visa acompanhar a trajetória destes alunos na Universidade, no que se refere a possíveis dificuldades acadêmicas e de aprendizagem, devido ao déficit que muitos desses estudantes tiveram no Ensino Médio. As políticas de ações afirmativas na Universidade, além da assistência financeira com bolsas de permanência, moradia e alimentação, buscam abranger outros fatores fundamentais que contemplem uma política de permanência, tal como Mayorga e Souza (2012) apontam: a sensibilização e implicação da comunidade universitária nas políticas de diversidade; o apoio à formação com cursos de leitura, escrita, informática, idiomas e monitorias de cursos específicos e a valorização das trajetórias e identidades estudantis. Através desses fatores busca-se retomar o diálogo com a população excluída do ambiente acadêmico, tentando superar o preconceito e os processos de exclusão.

Como as dificuldades enfrentadas por esses alunos não se referem apenas ao âmbito da assimilação dos conteúdos tratados em sala de aula, mas também institucionais e afetivos, a Pró-Reitoria de Graduação da UFG nos convidou em 2014 para participar do Programa. Elaboramos um projeto de extensão universitária, intitulado "Serviço de Grupos, Instituições e Trabalho Emancipatório (GRITE1)", no qual sua finalidade é oferecer atendimentos em grupo e na modalidade de plantão psicológico aos estudantes do UFGInclui. Também elaboramos um projeto de pesquisa intitulado "Psicologia de grupos, instituições e coletivos sociais: intervenções psicossociais2", para proceder com a análise de dados das intervenções. Nossa equipe é constituída pelo professor orientador, uma psicóloga, que realiza os atendimentos, e estagiárias. Realizamos de 2015 a 2017 atendimentos individuais a dezenas de estudantes e grupos operativos com distintos públicos de alunos: estudantes negras, quilombolas e indígenas. De forma geral, as atividades desenvolvidas tinham maior adesão dos estudantes quilombolas, sendo raros os estudantes indígenas que nos buscava para algum acompanhamento psicológico. Os alunos quilombolas também eram mais extrovertidos conosco, enquanto os estudantes indígenas assumiam um comportamento mais introvertido. Outro trabalho sobre os grupos com alunos quilombolas está em processo de elaboração, assim não nos estenderemos aqui sobre os fenômenos emergentes característicos desse público.

Foi realizada apenas uma sessão grupal com estudantes indígenas da UFG, em que se pretendeu promover o debate e aproximação desses estudantes, para a formação de vínculos e possível resolução coletiva dos problemas enfrentados. Dessa forma, o objetivo desta pesquisa é conhecer os discursos dos alunos indígenas da UFG contemplados pelas ações afirmativas, através da sessão realizada com o dispositivo de grupo operativo, para discutir as experiências que vivenciam no espaço acadêmico.

Como método de investigação foi realizada uma sessão de grupo operativo com alunos indígenas da UFG, a partir da teoria e técnica do psicanalista argentino Enrique Pichon-Rivière (1982). O grupo operativo é um dispositivo grupal que possibilita a troca e elaboração de experiências no âmbito coletivo e por conseguinte, no individual. Em linhas gerais, através da expressão e escuta do grupo e da análise da dimensão afetiva e imaginária da cadeia associativa pelo coordenador, fomenta-se processos de reflexão, elaboração das ansiedades e mudança das pautas estereotipadas no coletivo. É um dispositivo que pode ser utilizado em variados espaços, como na clínica, comunidade, instituições de saúde, educação etc. Optamos por não detalhar as características do grupo operativo neste artigo, devido a sua extensa teorização e descrição, tanto por seu criador, como por diversos comentadores (cf. Berstein, 1986; Emílio, 2010; Hur, 2005; Hur, 2010; Hur, Alencar & Almeida, 2012; Castanho, 2012 etc.).

Buscamos analisar os distintos elementos emergentes (Pichon-Rivière, 1982) que surgiram na cadeia associativa grupal (Kaës, 1997). Nossa intervenção na sessão de grupo deu-se prioritariamente da forma interrogativa (Vecci, 1983), com o intuito de incitar mais processos associativos. A sessão de grupo foi coordenada pelo orientador da pesquisa, e registrado pela observadora, uma estudante de Psicologia, bolsista do projeto, que anotou todas as falas dos participantes no decorrer da sessão. A proposta inicial era de que fossem realizadas cinco sessões de grupo operativo. Entretanto, esta atividade teve pouca adesão dos estudantes indígenas. Poucos se mostraram interessados em participar das sessões de grupo e houve sucessivos adiamentos do início do grupo devido à ausência de estudantes que previamente haviam concordado em participar. Deste modo, foi realizada apenas uma única sessão no dia cinco de maio de 2017. Participaram do grupo operativo quatro alunos indígenas de distintas etnias e cursos. Nomeamos os participantes pelos cursos nos quais estão matriculados. Participaram: Músico, Psicólogo, Psicóloga e Geógrafo. Os dois primeiros pertencem à etnia Atikum, a terceira à Xacriabá e o quarto à etnia Xavante. Os estudantes Atikum são provenientes do espaço urbano da cidade, e os outros dois de suas aldeias.

A sessão de grupo operativo teve a duração de uma hora e quarenta minutos. O coordenador explicou brevemente a dinâmica do grupo operativo e o enquadre, expondo a tarefa do grupo, "de que os participantes falassem sobre suas trajetórias na UFG, as dificuldades vividas e as boas experiências". As falas geralmente eram curtas e houve muitas pausas e momentos de silêncio. O coordenador, em alguns momentos, teve que fazer perguntas diretamente a algum participante, para que o diálogo se mantivesse. Como foi apenas uma sessão de grupo consideramos que este encontro teve mais uma função diagnóstica, para a compreensão das vicissitudes pelas quais passam o estudante indígena na Universidade. Separamos em três categorias as falas emergentes no grupo, as quais seguiram uma ordem cronológica de surgimento na cadeia associativa grupal: os estereótipos vivenciados dentro da universidade, a dificuldade de aprendizagem e a filiação à comunidade.

 

1º emergente: estereótipo e preconceito

Após verbalizada a tarefa pelo coordenador, surgiram falas dos estudantes indígenas de como se sentem estereotipados por seus colegas de faculdade. Deste modo, o primeiro emergente grupal foi o estereótipo atribuído ao indígena. Os estudantes denunciaram certo desconforto de que o ser índio fosse somente aquele possuidor de pele morena, cabelos pretos e lisos e que utilizasse trajes característicos às festividades tribais. Como exemplo, Psicóloga disse que se incomoda com algumas falas na Universidade:

(...) Algumas pessoas já me perguntaram se eu não viria caracterizada para a faculdade. Mas como eu iria para a faculdade caracterizada? Parece que eles não entendem. Eu apenas uso este colar. Mas eu sou reservada, tento me manter reservada (Psicóloga).

O fato de Psicóloga se vestir com roupas iguais a de qualquer jovem no espaço urbano e não utilizar as vestimentas de festas, ou folclóricas, que aparecem de forma espetacularizada na mídia tradicional, fez com que seus colegas de curso questionassem as suas vestes. Isso expressa que subsiste o imaginário do indígena como ser alteritário e estereotipado, que fantasiosamente habita um lugar distinto, com vestimentas características. A partir do pensamento de Pichon-Rivière (1982, 1998) compreendemos que o estereótipo é uma modalidade de etiqueta, papel social, que gera uma rigidez sobre a representação de determinado indivíduo, ou grupo social. Mas, na medida em que Psicóloga rompe esse imaginário cristalizado pelo estereótipo, passa a receber tais questionamentos. Por isso prefere manter-se reservada, não se expondo muito aos outros.

Músico e Psicólogo também relatam o estranhamento que geram pelas suas aparências. Ambos são da etnia Atikum e têm a pele bem clara, e não morena. Atikum é uma etnia que passou por uma diáspora no território brasileiro, assim a maioria dos seus componentes não cresceu em suas aldeias, está bastante mesclada e nem fala sua língua originária. Dessa forma, Músico não se adequa às características estereotipadas que se atribui ao indígena e reclama da sensação de confusão que gera em seus colegas.

(...) mas as pessoas não conseguem entender como sou índio e branco (...). As pessoas me zoavam sobre ser índio e de olho verde, porque não me pareço fisicamente com indígena... (...) Mas eu tenho a minha identidade para provar que sou índio (Músico).

Deste modo, a personificação de um jovem que é índio e branco de olhos verdes gera um estranhamento aos colegas, que têm o estereótipo do índio moreno cristalizado em seu imaginário. Tal paradoxo identitário faz com que ele seja alvo de zoeiras e gozações, que são mecanismos de relação social com uma dupla mensagem: utiliza-se o humor e o sarcasmo para encobrir falas de exclusão e preconceito. Para se defender de tais falas e elaborar esta ambiguidade, Músico afirma que tem sua identidade para provar que é índio: o documento indígena torna-se seu mecanismo de ancoragem psíquica (Kaës, 1997) de elaboração do paradoxo identitário.

No decorrer do grupo, as falas de estranhamento gerado se intensificam dando lugar a situações de exclusão sofridas. Psicólogo nos relata o afastamento social que sofreu ao assumir publicamente sua identidade indígena:

Aconteceu quando eu entrei na Química aqui na UFG. Eu ainda não me identificava como indígena e estava enturmado. Mas, quando afirmei minha identidade indígena, as pessoas começaram a se afastar. Mas no curso de Psicologia as pessoas não me estranharam. Cheguei no curso já me assumindo e me declarando. Só senti um estranhamento aos poucos… (Psicólogo).

Psicólogo sentiu-se gradativamente excluído dos círculos sociais universitários devido a sua outra identidade étnica. Afirmou que no início do seu curso em Psicologia não houve estranhamento por parte dos seus colegas, mas posteriormente ocorreu. Teve uma experiência similar no seu curso anterior (Química). Possivelmente, o imaginário instituído pelo coletivo, fixado no estereótipo e na objetificação do ser índio a partir de seus traços fenotípicos e vestimentas, fez com que o coletivo não aceitasse diferente representação. Neste sentido, na medida em que estudante não cumpre com os traços e características atribuídos pelo grupo, um dos mecanismos defensivos adotados pelos jovens universitários é o distanciamento e exclusão da diferença. Assim a diferença não é integrada, mas negativada, excluída, pois ela sempre traz uma novidade que abala os limites de compatibilidade instituídos (Deleuze, 2006). O estudante indígena passa a ser visto como o "negativo" do estudante branco.

No decorrer da sessão, todos concordaram com a presença de situações de preconceito contra o estudante indígena na UFG. A exclusão e rechaço sentidos se intensificam com a denúncia de Psicólogo e Músico, que já escutaram pela Universidade que os índios só estavam ali para roubar a vaga de alguém, ou comentários preconceituosos de que são menos capazes que os estudantes não indígenas:

Vejo que as pessoas aqui, até na fila do Restaurante Universitário, comentam que acham que os índios são menos inteligentes… mas eles não nos conhecem. Estamos aqui provando que somos capazes (Músico).

Dessa forma o aluno indígena não sofre apenas as suas dificuldades para a integração num novo espaço, como também é depositário (Pichon-Rivière, 1998) de um olhar de desconhecimento, rechaço e certa depreciação pelo estudante não indígena. Até mesmo o coordenador do grupo contratransferencialmente reproduziu uma dicotomia ao perguntar se os alunos viviam na cidade ou na aldeia, como dois ambientes bastante díspares. Psicóloga respondeu: "Na aldeia... mas lá já está muito civilizado, né? Parece uma vilinha". Portanto o imaginário estereotipado da aldeia como um conjunto de habitações no meio da floresta há muito não corresponde com a realidade vivida. As aldeias fazem parte do espaço urbano, sendo outro bairro, ou uma vila, tal como Psicóloga respondeu. Inferimos assim a existência de um desconhecimento de parcela da sociedade acerca da situação do indígena, o qual causa distanciamento e exclusão.

 

2º emergente: dificuldades na aprendizagem

Após a questão do preconceito ser debatida, surgiu um segundo emergente grupal que teve intensidade: as dificuldades no processo de aprendizagem, tema bastante discutido pelos participantes. Consideram que esta dificuldade advém de diversos fatores, como por exemplo a diferença de língua:

Vou contar a minha história. Os professores da minha tribo sempre falam minha língua. Então é difícil me adaptar aqui, falar o português. Na faculdade é difícil de forma geral (…). Tenho dificuldade com o português. Mas muitos têm dificuldade mesmo (...). Quando passam muitos textos é muito difícil mesmo de ler. Mas tem que ler mesmo (Geógrafo).

A primeira língua de Geógrafo é a xavante, assim enfrenta uma dificuldade com a língua portuguesa na Universidade. Deste modo, além de ter que aprender os conteúdos ministrados em seu curso, também tem que compreender os significantes em que são escritos os textos. Ao se expressar verbalmente, percebe-se que é como se fosse um estrangeiro em seu próprio país. Talvez por isso tenha se mantido bastante quieto em boa parte da sessão de grupo operativo. Outra dificuldade na aprendizagem que foi enunciada refere-se aos diferentes conteúdos que se teve no Educação Básica:

A educação na minha etnia é muito diferenciada. Disciplinas de História, Geografia, e outras, são muito focadas no contexto que a gente vive. São muito direcionadas para nosso cotidiano. Quando cheguei aqui em Goiânia foi difícil me adaptar por conta disso (Psicóloga).

Por um lado, a formação focada no contexto da aldeia é contributiva para a compreensão e análise do contexto em que vive. Mas por outro, gera certa lacuna em determinados conteúdos trabalhados na Universidade, que contribui para eventuais dificuldades na aprendizagem. Psicóloga também adiciona outro elemento que se refere à discrepância de formação: as diferenças de classe social:

(...) o curso de Psicologia ainda é muito elitista, todo mundo parece ter vindo de escola particular… Eu fiz outro curso antes, Ciências Contábeis, mas ainda assim tenho dificuldades em questões como Estatística. Meus colegas parecem estar muito mais habituados a estudar (Psicóloga).

Nesta fala, considera que os alunos provenientes de escolas particulares estão mais acostumados a estudar em relação aos que vieram de escolas públicas. Pois mesmo ela, que anteriormente cursou uma carreira na área de Exatas, avalia que apresenta mais dificuldades na disciplina de Estatística do que seus colegas. Psicólogo também atribui algumas dificuldades relacionadas às diferenças na formação, afirmando que não consegue compreender alguns termos e conceitos:

Eu e meu primo não crescemos na aldeia, então não temos tanta dificuldade com a língua portuguesa. Mas temos dificuldade com termos. Quando pego um texto muito difícil, cheio de termos… posso ler dez, quinze, vezes que não entendo nada (Psicólogo).

Os estudantes relatam ter passado por uma educação básica formal precarizada. Assim, ao se depararem com o alto nível de demandas acadêmicas na Universidade, sentem um hiato entre o que aprenderam na educação formal e o que têm que cumprir no ensino superior, passando a ter dificuldades na assimilação dos conteúdos transmitidos. Mas o que nos chama a atenção, é que as críticas à formação não são direcionadas aos professores, ou à Instituição, conforme se constata em outras pesquisas com estudantes universitários (Hur, Mendonça & Viana, 2016). Não se elege um bode-expiatório (Pichon-Rivière, 1982), o mal estar não é depositado no exterior:

Sofro sim. Tendo sempre a enxergar que a dificuldade parte de mim, e não da Universidade, ou dos professores. Então, me culpo muito por isso. Tenho deixado de pegar várias disciplinas com a minha turma por isso. Me sinto mal de não conseguir acompanhar o pessoal (Psicólogo).

O professor dizia para que eu me virasse, para que eu estudasse mais. Mas nunca tive muito ritmo de estudo (...). Tenho dificuldade em Português, por exemplo. Não consigo escrever muito bem em ABNT… mas tenho que correr atrás (Músico).

Constata-se que as dificuldades na aprendizagem são vividas como uma situação com alto grau de ansiedade e que produz sofrimento ao estudante. Psicólogo, devido à matrícula num menor número de disciplinas, está atrasado no curso em relação à sua turma. Assim tem que cursar disciplinas com turmas mais novas, podendo ficar ainda mais isolado do seu círculo social. A falha na formação é internalizada, assume-se uma auto culpabilização de origem individual. Neste sentido, a dificuldade na aprendizagem não se origina de uma lacuna da Instituição de Ensino Superior em lidar com a singularidade e diferença dos estudantes indígenas. O problema não é visto como institucional, mas é vivido como individual. O aluno internaliza a falha, criando uma relação de dívida e culpa, em que se sente responsável pelas dificuldades na aprendizagem. Ao constatar este processo de internalização da culpa, o coordenador realiza uma intervenção diretiva e reafirma que o problema de aprendizagem tem origem institucional e não individual, mas o grupo o refuta e reafirma seu próprio discurso:

Tenho dificuldade com leitura. Quando professores passam os textos… eu não aprendi ainda. Mas não tem o que falar mal da Universidade. (longa pausa) Tem que estudar. Quando um professor passa alguma coisa, temos que nos empenhar. Mas muitos professores nos ajudam. Alguns brancos falam que somos atrasados… mas estamos aqui para estudar mesmo… batalhar a liberdade… (Geógrafo).

A Universidade é defendida e positivada no discurso dos alunos. A crítica da dificuldade na formação não recai nela, ou nos docentes, senão sobre o próprio indivíduo. Geógrafo, por exemplo, em nenhum momento utiliza sua dificuldade com a língua como justificativa para não estudar. Sempre mantém um discurso da necessidade de um esforço pessoal para a aprendizagem. Então, mesmo que os outros possam estereotipar o aluno indígena como "atrasado", não sofre um processo de colagem imaginária (Kaës, 1997) a estas expectativas atribuídas, no sentido de sofrer uma paralisia no processo de aprendizagem. Não se prende a um fatalismo (Martín-Baró, 1998), ao papel de vítima, mas de ator social que tem que estudar, formar-se, o que é sinônimo de sua emancipação, isto é, "batalhar sua liberdade". Por outro lado essa postura ativa resulta numa auto cobrança excessiva em relação a si que pode se tornar opressora, no sentido que nada estará bom, em que o estudante sempre está em débito com suas atividades:

Quando me vejo executando uma música, por exemplo, penso sempre que não está bom. Quando entrego textos de estágio, peço para meus colegas lerem, mas ainda quando eles gostam, não confio… me sinto inseguro… (Músico).

Constata-se que há uma auto representação assumida de que o papel que cumpre sempre é insuficiente, incompleto, lacunar. Sempre se está em dívida, em débito, com as tarefas existentes. É como se o estudante indígena atualizasse o papel do sujeito da dívida (Lazzarato, 2013). Constata-se que há um desgaste pela auto cobrança excessiva, tanto pela tentativa de aquisição dos conhecimentos, como pela superação do estereótipo atribuído pelos colegas não indígenas. Evidentemente esta auto cobrança cria uma situação de instabilidade afetiva que pode prejudicar o processo de aprendizagem.

A auto culpabilização e individualização das falhas na formação também são expressos por sintomas físicos, os quais os estudantes não associaram com o problema da aprendizagem. Tal como uma quebra na cadeia associativa, dois integrantes perguntaram ao coordenador, colocando-o no papel de coordenador-oráculo (Fernández, 1989), sobre sintomas físicos que sofriam naquele momento.

Posso fazer uma pergunta? Como faço para resolver problemas com lapsos de memória? (Músico).

Também tenho problemas de participar das aulas. Sinto muito sono, e durmo muito pouco, e minha aula é de manhã. (...) Não consigo dormir cedo. Costumo ficar muito agitado à noite, na hora de dormir. Às duas da manhã ainda estou acordado. Meu problema é o sono mesmo. Fico pensando as coisas que eu devo fazer no dia seguinte (Geógrafo).

Os sintomas físicos cumprem uma função fórica (Kaës, 1997), são porta-voz (Pichon-Rivière, 1982), um emergente dos dilemas vividos pelos estudantes na Instituição. Então o mal estar com a dificuldade na formação pode aumentar o grau de ansiedade e ser condensado em sintomas como apagões de memória e insônia. Estes sintomas são emergentes individualizados das dificuldades de aprendizagem expressos no âmbito do corpo. Tal situação é tão ansiógena que pode até ser enlouquecedora, tal como a associação realizada logo em seguida por um dos integrantes:

"Minha mãe tem esquizofrenia. Por isso fico me perguntando…" (Músico).

A auto cobrança, a insegurança e o duplo lugar ocupado na Universidade podem ser muito adoecedores ao estudante.

 

3º emergente: o duplo lugar e a filiação à comunidade

Em toda a sessão, a questão do duplo lugar ocupado pelos estudantes indígenas foi discutida. Mas ela teve maior intensidade no bloco final da sessão. Por mais que seu sofrimento na Universidade seja vivido individualmente, o estudante mantém uma lógica bastante coletivista com sua própria comunidade, reafirmando sua filiação:

Na minha aldeia não tem professores formados. Não tem professor de matemática, por exemplo. E como a gente aprenderia sem professor? Então, eu quero ser geógrafo. Porque isso tem que mudar. Eu sou índio e vou retornar à minha aldeia e ser professor de geografia. (...) Precisamos manter nossa cultura mesmo. Voltar para lá e ajudar. Estou aqui na Geografia, mas preciso voltar… porque ainda sou índio, né? Meu lugar é lá (Geógrafo).

Eu vejo aqui essas diferentes etnias, e acho muito importante. Precisamos estudar e levar isso para a nossa aldeia. É importante levar isso para lá. E precisamos levar o conhecimento e aplicá-lo na nossa tribo (Músico).

Quando fui falar com o cacique e pedir autorização para fazer faculdade, ele me autorizou tranquilamente (…). É importante que nós voltemos para nossa aldeia depois de formados. Temos poucos professores indígenas realmente formados. Por isso é importante estar aqui na UFG. Não tem psicólogo na aldeia, né. É importante estarmos aqui, e levar o conhecimento de volta… para manter a nossa cultura mesmo. Atualmente está muito misturado. (...) Acho que precisamos levar o que a gente sabe para a aldeia… Mas acaba misturando, né… (Psicóloga).

Nessas três falas, mesmo sendo de etnias distintas, xavante, atikum e xacriabá, há o denominador comum de aquisição da aprendizagem, da formação profissional, para retornar e investir o saber adquirido à sua comunidade de origem. A implicação com a formação não se dá por uma finalidade individual, ou egoísta, mas sim coletiva. Reafirma-se sua filiação, num estreito vínculo, no qual não se vêm independentes de sua aldeia, tal como ocorre nos alunos não indígenas. Esta filiação comunitária do indígena também é expressa na literatura (cf. Amaral & Baibich-Faria, 2012). É como se o momento de trajetória na Universidade fosse uma espécie de "missão", pois compreende-se que o ganho não é apenas individual, mas principalmente da comunidade.

Consideramos que as vicissitudes enfrentadas no espaço institucional fazem com que o estudante indígena reafirme sua filiação à sua cultura de origem como forma de continência e elaboração identitária. Assim, há um esforço em manutenção da cultura indígena, de se permanecer com suas características de origem, com a idealização da futura potencialização da comunidade pelos saberes universitários. Por mais que trafegue em outros territórios, mantém-se filiado ao que considera como seu lugar de pertencimento. Vale ressaltar que as falas da necessidade de retorno às próprias comunidades foram enunciadas na parte final da sessão do grupo.

A sessão se finalizou com essa discussão e o grupo não esboçou interesse em marcar novo encontro. Mesmo assim o coordenador reiterou a existência do serviço psicológico, caso houvesse demanda por parte dos estudantes. Uma hipótese acerca do não interesse é de que como os estudantes indígenas se representam como elementos transitórios na Universidade, com um pertencimento temporário, preferem manter-se "reservados" na Instituição, participando menos de atividades que expusessem sua intimidade. Talvez por isso que não conseguimos marcar mais sessões de grupo com eles, diferente do ocorrido com os estudantes quilombolas, tal como supracitado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo analisamos a sessão de grupo operativo realizada com estudantes indígenas contemplados por políticas afirmativas numa Universidade pública. Discutimos três emergentes da cadeia associativa grupal: o processo de estereotipia sofrido a partir do imaginário sobre o indígena; as dificuldades de aprendizagem, tomadas como individuais, e não institucionais; e o duplo lugar ocupado, no qual se reafirma a filiação com a comunidade de origem.

Compreendemos que o processo de atribuição de estereótipos e as dificuldades na aprendizagem são elementos despotencializadores aos estudantes indígenas. O problema da formação é tomado como individual, e não institucional, assim os estudantes se autoculpabilizam e criam um regime maior de cobrança sobre si próprios. Inclusive o mal estar institucional se atualiza como porta-sintoma (Kaës, 1997) em episódios de lapsos de memória e insônia.

Consideramos que ao passarem pela formação universitária, atravessam uma fronteira, sofrendo um processo de desterritorialização (Deleuze & Guattari, 1992), ou desenraizamento (Bosi, 1994). Vivenciam uma situação de crise, na qual deixam de ser somente indígenas, para se tornarem estudantes de uma das maiores Universidades da Região Centro-oeste do país. Tornam-se um outro que ocupa dois lugares: a aldeia de origem e a Universidade "civilizada". Transformam-se no elemento intermediário (Kaës, 2005) que faz a ligação entre dois espaços heterogêneos, duas culturas. Viajante nômade, estrangeiro, que trafega em territórios distintos, heterotópicos. Por mais que haja dificuldades, a Universidade é vista como um lugar positivo, pela possibilidade de formação e crescimento. Não obstante, o estudante indígena prefere reafirmar sua filiação ao seu lugar de origem. Ele é um ser de fronteira que busca se manter territorializado em suas raízes. Ressalta a necessidade de retorno e transmissão do conhecimento obtido na faculdade ao desenvolvimento de suas comunidades. Portanto, compreendemos que o estudante indígena é portador de um paradoxo ineliminável, na relação de tensão e choque entre duas culturas distintas. É o elemento intermediário que porta o sonho de transformação, não apenas de si próprio, mas de seu coletivo social. Ele não deixa de ser indígena por cursar uma faculdade, mas quando voltar à sua aldeia, seguramente retornará Outro, portando uma alteridade e ambiguidade em si próprio, que podem potencialmente contribuir com a ampliação dos horizontes de sua comunidade, bem como vem contribuindo com a da Universidade.

 

REFERÊNCIAS

AMARAL, R. W; BAIBICH-FARIA, T. M. A presença dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: trajetórias e pertencimentos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. v. 93, n. 235, p. 818-835, 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbeped/v93n235/14.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2018.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Domenico Uhng Hur
Faculdade de Educação da UFG. R. 235, s/nº.
Setor Leste Universitário, Goiânia/GO.
74605-050.
E-mail: domenicohur@pq.cnpq.br

 

 

* Professor de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFG. Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pela USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona e pós-doutorado na Universidad de Santiago de Compostela. Bolsista PQ-2 do CNPq (Processo: 305132/2017-2).
** Maria Luiza Bitencourt Silva Couto, Estudante de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Bolsista PIBIC/FAPEG – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Goiás.
*** Estudante de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Bolsista PIBIC/CNPq – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
1 O projeto de extensão universitária está cadastrado no Sistema da UFG com o número FE-182.
2 O presente projeto está aprovado no Comitê de Ética da UFG, registrado com o nº CAEE 39300714.7.0000.5083.

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