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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n2p94-117 

O campo minado: recomendações ético-metodológicas para a pesquisa em etnopsicologia

 

The minefield: ethical-methodological recommendations for research in ethnopsychology

 

El campo minado: recomendaciones ético-metodológicas para la investigación en etnopsicología

 

 

Fabio Scorsolini-Comin

Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. E-mail: fabio.scorsolini@usp.br

 

 


RESUMO

A etnopsicologia é um referencial que congrega conhecimentos da Psicologia, da Antropologia e da Psicanálise, sendo largamente empregada nas investigações que possuem como cenário as comunidades religiosas de matriz africana. A pesquisa etnopsicológica, fiel às áreas que a constituem, tem sido desenvolvida dentro de uma gama multifacetada que comporta diversos métodos, formas de registros e possibilidades interpretativas combinadas. O objetivo deste estudo é apresentar e discutir alguns aspectos ético-metodológicos que permeiam as pesquisas em comunidades religiosas, sobretudo no contexto brasileiro, a partir do referencial da etnopsicologia. Em termos do percurso deste estudo teórico, foram abordados alguns procedimentos que podem orientar o trabalho nessas comunidades, iniciando pelo desenvolvimento da escuta, passando pela construção e análise do corpus analítico e, por fim, o momento da devolutiva com a comunidade de referência. O referencial etnopsicológico deve ser assumido pelo pesquisador desde a escolha do objeto de estudo que, muitas vezes, acaba sendo delimitado em função da escuta do próprio campo. A devolutiva, nesse sentido, não pode ser considerada a entrega de um resultado aos participantes, como nas perspectivas positivistas, mas como mais uma possibilidade de escuta que é potente na contínua interpretação do campo e na construção dos sujeitos-pesquisadores.

Palavras-chave: etnopsicologia; umbanda; candomblé; pesquisa de campo.


ABSTRACT

Ethnopsychology is a reference that brings together knowledge of Psychology, Anthropology and Psychoanalysis, being widely used in the investigations that have as scenery the religious communities of African matrix. Ethnopsychological research, faithful to the areas that constitute it, has been developed within a multifaceted range that includes several methods, forms of records and interpretative possibilities combined. The objective of this study is to present and discuss some ethical-methodological aspects that permeate research in religious communities, especially in the Brazilian context, based on ethnopsychology. In terms of the course of this theoretical study, some procedures were approached that can guide the work in these communities, beginning with the development of listening, passing through the construction and analysis of the analytical corpus and, finally, the moment of devolution with the reference community. The ethnopsychological reference must be assumed by the researcher since the choice of the object of study that, many times, ends up being delimited due to the listening of the field itself. The devolution, in this sense, cannot be considered as the delivery of a result, as in the positivist perspectives, but as a possibility of listening that is potent in the continuous interpretation of the field and in the construction of the subjects-researchers.

Keywords: ethnopsychology; umbanda; candomblé; field research.


RESUMEN

La etnopsicología es un referencial que congrega conocimientos de la Psicología, de la Antropología y del Psicoanálisis, siendo ampliamente empleada en las investigaciones que poseen como escenario las comunidades religiosas de matriz africana. La investigación etnopsicológica, fiel a las áreas que la constituyen, ha sido desarrollada dentro de una gama multifacética que comporta diversos métodos, Scorsolini-Comin, F. formas de registros y posibilidades interpretativas combinadas. El objetivo de este estudio es presentar y discutir algunos aspectos ético-metodológicos que permean las investigaciones en comunidades religiosas, sobre todo en el contexto brasileño, a partir del referencial de la etnopsicología. En términos del recorrido de este estudio teórico, se abordaron algunos procedimientos que pueden orientar el trabajo en esas comunidades, iniciando por el desarrollo de la escucha, pasando por la construcción y análisis del corpus analítico y, por fin, el momento de la devolución con la comunidad de referencia. El referencial etnopsicológico debe ser asumido por el investigador desde la elección del objeto de estudio que, muchas veces, termina siendo delimitado en función de la escucha del propio campo. La devolución, en ese sentido, no puede ser considerada como la entrega de un resultado, como en las perspectivas positivistas, sino como una posibilidad de escucha que es potente en la continua interpretación del campo y en la construcción de los sujetos-investigadores.

Palabras clave: etnopsicología; umbanda; candomblé; búsqueda de campo.


 

 

A etnopsicologia emerge como uma disciplina que integra e complexifica as relações entre os sujeitos e suas culturas de modo a promover um saber que tenha como referência não as influências ou marcadores externos e etnocêntricos, mas o modo como uma determinada cultura produz o seu saber e as suas inteligibilidades sobre a vida e o viver, com respeito à sua alteridade. Diversos autores estrangeiros tornaram-se expoentes desse referencial, muitos deles com estudos conduzidos no Brasil, e são frequentemente evocados nas produções que se posicionam a partir desse modo de olhar e de escutar, a exemplo de Lutz (1985), Devereux (1970), Laplantine (1994), Nathan (1986) e Bastide (1970). No Brasil encontramos importantes estudiosos que tomam por base esses expoentes, desenvolvendo pesquisas em nossas realidades locais e contribuindo para o aperfeiçoamento desse prisma teórico-metodológico (Neubern, 2013; Pagliuso & Bairrão, 2015).

Segundo Pagliuso e Bairrão (2011), a etnopsicologia é uma etnociência que se debruça sobre o modo como os grupos étnicos se relacionam, elencando aspectos como as relações interpessoais, a administração de conflitos e também o modo como compreendem e vivenciam as emoções, por exemplo. Esses aspectos da vida e da cultura não atravessam apenas o modo como o sujeito é ou pode ser em termos de sua personalidade, mas como essa coletividade é e se expressa. Quando falamos em personalidade, a partir desse referencial, não nos remetemos apenas a uma dimensão psíquica do sujeito, mas como essa dimensão se expressa na coletividade e como essa cultura modela o modo como esses aspectos podem ser expressos no próprio sujeito. Embora a etnopsicologia tenha sido empregada na compreensão de diversos fenômenos, grupos, culturas e temáticas, nosso recorte no presente estudo dar-se-á em função do prisma representado pelas religiosidades e espiritualidades.

A apresentação deste estudo teórico parte da escolha do seu título. Ao destacarmos a expressão "campo minado" recorremos à tentativa de situar a proposta deste estudo diante da multiplicidade de recomendações presentes em diversas investigações da área etnopsicológica, bem como abarcar o modo como esse referencial vem sendo corporificado notadamente no contexto das pesquisas nacionais. Essas pesquisas, especificamente, têm como referência o campo da religiosidade/espiritualidade (R/E) e das religiões de matriz africana, com destaque para a umbanda e o candomblé (Camargo, Scorsolini-Comin, & Santos, 2018; Macedo, 2015; Scorsolini-Comin, 2017). O conceito integrado de religiosidade/espiritualidade (R/E) tem sido cada vez mais empregado no campo da saúde e por isso a sua reverberação atual na Psicologia como forma de incorporar tanto as referências às experiências que tomam por base o sagrado instituído como àquelas que contemplam o sujeito em sua interação e diálogo com uma dimensão considerada imaterial e não necessariamente alocada em um sistema simbólico (Cunha & Scorsolini-Comin, 2020; Koenig, 2007; Pargament, Lomax, McGee, & Fang, 2014). Ao considerarmos esse contexto de referência, trazemos à baila as considerações que tomam por base não apenas as diretrizes colocadas por esse aporte teórico, como também problematizamos o modo como esse arcabouço se abre constantemente às necessidades deflagradas no campo empírico, ou seja, as comunidades religiosas, movimento este que força mudanças e propõe inovações ao pesquisar em cenários distintos e tendo como norteador o saber etnopsicológico.

Ainda que a atividade de pesquisa seja crucial na perpetuação e reinvenção constante do referencial teórico, há que se delimitar o modo como esse fazer vai se estruturando, mantendo a identidade epistemológica ao mesmo tempo que se permite diferentes alcances observados em campo. A partir da necessidade de conferir identidade aos estudos vigentes, mas de também considerar as necessidades contemporâneas no fazer de pesquisa, entre elas as de ordem ética, é que este estudo foi sendo composto. Localizar o modo como esse referencial de origem europeia foi sendo tecido no contexto brasileiro é um marcador importante no sentido de compreender as ressonâncias nos mais diversos modos de fazer etnopsicologia no Brasil (Scorsolini-Comin, 2015).

Abarcar o cenário das políticas científicas e dos atravessamentos de ordem ética que orientam as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil também é uma necessidade premente. A atualização dessas recomendações, portanto, também toma por base a Resolução n° 510, de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, que trata das especificidades das pesquisas nos campos das ciências humanas e sociais, que permite incluir os cenários investigativos da etnopsicologia, respeitando as condições de produção e de vida de cada comunidade, bem como os saberes locais, as crenças e os modos de se compreender aspectos como sigilo, anonimato e compromisso (Scorsolini-Comin, Bairrão, & Santos, 2017), fundamentais no fazer em campo. Obviamente que essas considerações não se dão de modo neutro, pelo contrário, são propostas e problematizadas em meio a uma série de atravessamentos, muitos dos quais discutidos no presente estudo.

O campo minado ao qual fazemos referência é justamente o do campo empírico que retoma a necessidade de fidelidade epistemológica ao mesmo tempo que demanda novas possibilidades de contorno ao fenômeno investigado, abrindo possibilidades de novas escutas, de desenvolvimento de novos instrumentos e de novos modos de se fazer a pesquisa etnopsicológica. O campo minado, ao demandar determinadas recomendações, precauções ou cuidados, emerge como uma metáfora que também se aplica ao cenário complexo das religiões de matriz africana no contexto brasileiro (Scorsolini-Comin, 2018). O campo minado deste estudo, embora possa ressoar como uma advertência ao leitor, é também uma forma de convidá-lo à experiência do jogo a partir do qual nasce a pesquisa etnopsicológica, o que não pode ser tomado sem a devida reverência à relação pesquisador-pesquisado que será aqui retomada e discutida em consideração à construção de diretrizes que podem nortear a realização da pesquisa etnopsicológica desde o seu delineamento inicial, passando pelo processo de coleta, análise e posterior divulgação. Respondendo à necessidade e ao desafio de estarmos em um campo minado, não podemos nos esquivar de abordar aspectos considerados polêmicos que também fazem parte do saber e do fazer etnopsicológico.

Pisar em um campo minado, mais do que um desafio, deve responder a um convite de constante reflexão sobre nosso fazer, o que é condizente com a perspectiva de formação de todo pesquisador. Reverenciando nosso contexto de referência, podemos retomar o cancioneiro popular que tão bem delimita os limites e os alcances do campo. Um ponto cantado de forte expressão na umbanda traz o seguinte verso: "Pisa na umbanda, pisa devagar". Ao destacar esse aspecto, o cancioneiro admite a necessidade de cautela, parcimônia e respeito ao adentrar no universo da umbanda. A exemplo dessa "prescrição" a quem pretende entrar nesse universo religioso, o que bem se adéqua às recomendações endereçadas a um pesquisador dessa área, admite-se a existência de um campo minado, ou seja, de um campo que requer cuidado, abrindo a ressalva de que se deve ter cautela, parcimônia e também respeito pela alteridade e pelo universo do sagrado. O campo minado da etnopsicologia faz referência a esse modelo bem retratado no ponto cantado, o que deve nos orientar em torno daquilo que podemos em campo.

A partir desse panorama, o objetivo deste estudo teórico é apresentar e discutir alguns aspectos ético-metodológicos que permeiam a pesquisa em comunidades religiosas, a partir do referencial da etnopsicologia. Em termos do percurso deste estudo teórico, serão abordados alguns procedimentos que podem orientar o trabalho nessas comunidades, iniciando pelo desenvolvimento da escuta, passando pela construção e análise do corpus analítico e, por fim, o momento da devolutiva com a comunidade de referência. A meta do presente estudo é compor um rol de conhecimentos que possam ser úteis aos pesquisadores no campo da etnopsicologia, a fim de que suas produções possam ser endereçadas a periódicos e sejam compartilhadas pela comunidade científica, dialogando com diferentes metodologias e epistemologias.

O desenvolvimento da escuta

A escuta é uma atividade que vem sendo largamente debatida pela Psicologia mesmo antes do seu reconhecimento como ciência, ao final do século XIX, ganhando ressonâncias na interface com as ciências sociais. A Psicologia, tradicionalmente associada a uma escuta considerada clínica, em torno da queixa e do sintoma, por exemplo, acaba dialogando com as ciências sociais que promovem uma escuta para além do sujeito e da dimensão que o individualiza, mas sim o torna parte de uma coletividade. Assim, essas disciplinas (Psicologia, Sociologia e Antropologia) propõem, por vezes, uma escuta que não pode ser apreendida de um único modo, tendo significados e aplicações distintas a depender dos posicionamentos epistemológicos adotados. Longe de cristalizar uma só escuta ou de resumir o conceito, optamos por um diálogo conduzido pela etnopsicologia.

No que pese a aproximação dessas áreas em torno da escuta, um dos exemplos dessa interface aparece na noção de escuta sensível (Barbier, 2002), que propõe que o pesquisador deve ter condições de sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro, a fim de ter acesso a atitudes, comportamentos, sistemas de ideias, de valores, de símbolos, de mitos, ou seja, compreender aquilo que o autor chama de existencialidade interna. Compreender essa existencialidade requer a aceitação do outro - no caso, do pesquisado, suspendendo as próprias crenças e preconcepções trazidas, na busca por um acesso privilegiado ao outro, seu mundo, suas formas de ser e de viver. Estar em campo é também dedicar-se a essa escuta, na medida em que, ao observar, deve-se suspender noções anteriormente trazidas pelo sujeito, em busca de uma percepção do outro que, de fato, possa considerá-lo em sua integralidade e, por essa razão, sua complexidade. Abordar essa integralidade não é apenas ouvir o sujeito individual, como poderiam sugerir aproximações com a ciência psicológica mais tradicional, mas como esse individual dialoga com a coletividade que o constitui e o atravessa. A escuta, nessa perspectiva, não se mostra como algo técnico, mas que considera subjetividades que se localizam tanto em quem ouve quanto em quem é ouvido.

Pensando nessa aproximação, um dos métodos mais difundidos na etnopsicologia é o da escuta participante (Bairrão, 2005). Esse método, que traz em seu bojo conhecimentos das ciências sociais na interface com a psicanálise lacaniana, compreende a escuta não como uma atividade passiva do pesquisador, mas com uma posição ativa diante dos fatos, assemelhando-se também à escuta clínica do analista desenvolvida em diversos contextos de atenção à saúde. Ouvir o campo, nessa perspectiva, seria algo semelhante à tarefa do analista, sendo importante considerar como esse campo promove ressonâncias tanto no sujeito-pesquisado como no sujeito-pesquisador, a partir das transferências e contratransferências que emergem nesse encontro, como também sugerido por Bastide (1970). A escuta participante envolve uma intensa participação de quem ouve em campo, de modo que não se trata de oferecer um retrato ou um relatório do que se ouviu em campo, como poderiam sugerir perspectivas mais positivistas, mas do que foi produzido por quem ouve e por quem fala nos momentos interativos que têm o campo como mestre.

Desenvolver a escuta em campo requer disponibilidade sensorial e material. Ouvir em campo é não apenas permitir que se registre aquilo que se diz ou o que se produz, mas também aquilo que não se diz, aquilo que permanece no ar, no não-dito, no por-dizer. Esses movimentos não podem ser ensinados ao aprendiz de pesquisador em campo ou mesmo a quem se dispõe a realizar uma pesquisa de campo. O próprio campo acaba promovendo um modo de ser escutado, de forma que o pesquisador deve estar atento a essa comunicação com o campo, fundamental em sua pesquisa. Esse processo não-linear pode e deve ser registrado em imagens, impressões e notas que posteriormente possam compor um material denso e passível de análise, passível de escuta.

Ainda que não se saiba a priori o que ouvir e de que modo, quando o pesquisador se mostra disponível para esse aprendizado ele pode, de fato, produzir registros que se mostram relevantes para a construção de um percurso de campo que pode deflagra uma escuta. É impossível, desse ponto de vista, não apenas "ensinar" a escutar, mas sim promover modos de se abrir à escuta. Isso passa, inequivocamente, para uma abertura constante ao campo e a uma abertura dos próprios sentidos para que se transite pelo campo e também pelo próprio modo como se funciona, age, observa e reage à realidade em apreço. A escuta do campo passa, por assim dizer, pela escuta do próprio pesquisador acerca de si mesmo e do seu fazer. Essa complexidade coloca a escuta como estratégia e também como condição para a pesquisa de campo, de modo que narrar sobre o que se compreende por escuta e de que modo a escuta foi produzida em cada estudo são tarefas essenciais do pesquisador, a fim de que se possam apreender os posicionamentos e os jogos decorrentes desses lugares e que também atravessam a produção dos dados.

A construção do corpus analítico

A construção do corpus é um dos momentos mais importantes de qualquer estudo. Tendo em mente o fenômeno que se pretende apreender, é mister que sejam delineados não apenas os elementos que comporão o corpus, como também o modo como esse corpus será construído, ou seja, como serão coletados os dados que farão parte do mesmo. Em pesquisas em comunidades religiosas, frequentemente não podemos delimitar, a priori, o que poderá compor o nosso corpus. Isso porque muito do que fará parte desse registro será construído no fazer da própria pesquisa. É importante, no entanto, que essa própria abertura já esteja prevista nos procedimentos metodológicos, de modo que o pesquisador tenha flexibilidade para coletar os dados e também para delimitar, a posteriori, o que poderá ou não fazer parte do corpus em função tanto do objetivo do estudo como do recorte que se pretende impor a um determinado trabalho. Quando trabalhamos com etnografía, essa abertura apresenta-se como um dos pressupostos principais que norteiam o fazer do pesquisador (Barbosa, 2009; Mattos, 2011).

Todo trabalho etnopsicológico possui uma vasta gama de possibilidades de registros que podem vir a se tornar passíveis de análise e de compreensão de uma determinada realidade ou de determinado fenômeno. Encontramos na literatura científica estudos que analisam ou tomam por base registros de diversas naturezas e com múltiplos recortes metodológicos, como entrevistas com médiuns desincorporados (Scorsolini-Comin & Campos, 2017), entrevistas com espíritos durante as cerimônias públicas de atendimento mediúnico (Leal de Barros & Bairrão, 2010; Rotta & Bairrão, 2012), sessões de atendimentos psicoterápicos realizados nas comunidades (Scorsolini-Comin, 2017), músicas, pontos cantados (Graminha & Bairrão, 2009), relatos de sonhos (Macedo, 2015), diários de campo, entrevistas com a comunidade atendida, análises de registros históricos da comunidade de referência, registros sobre a história do terreiro, do bairro e/ou da cidade na qual se localiza a comunidade investigada (Brant Carvalho & Bairrão, 2017), bem como registros em vídeos, fotografias (Rotta, 2014) e áudios das cerimônias e de demais espaços do terreiro. Embora o referencial etnopsicológico comporte essa gama de instrumentos e corpus, o pesquisador deve saber selecionar quais os elementos que poderão compor o repertório do seu estudo. Frequentemente, o que ocorre nesses estudos é a coleta de diversas fontes de indícios, a fim de que sejam elencados ou priorizados, no momento da análise, aqueles que melhor contribuem para responder à pergunta que norteou a investigação ou para responder objetivos específicos distintos.

A atenção ao processo de coleta é fundamental, tanto em termos de como se preparar para os registros como de aprendê-los de modo a permitir uma posterior análise. Assim, os áudios captados devem ser audíveis, as fotografias devem ser bem visualizadas em termos de resolução e os registros históricos devem ser nítidos para que possam ser analisados em sua íntegra. O modo como esses registros serão obtidos também dependem de opções metodológicas dos pesquisadores. Um exemplo a ser citado é o estudo de Rotta (2014), no qual os registros fotográficos foram obtidos pelos participantes (médiuns e cambonos) que fotografavam momentos considerados importantes ou marcantes das cerimônias de atendimento ao público (giras), ou mesmo a partir do pedido para que os médiuns do terreiro trouxessem fotos dessas cerimônias e mesmo de sua vida relacionada à umbanda. Assim, o acervo que posteriormente constituiu o corpus não foi composto apenas pelos registros que traziam o olhar e a perspectiva exclusiva da pesquisadora, mas pelos olhos dos próprios pesquisados que se tornaram também uma lente analítica, o que foi considerado posteriormente no processo de interpretação dos resultados, tendo em vista a abordagem lacaniana da referida tese.

Ainda que o diário de campo não seja uma ferramenta empregada pelo pesquisador, recomenda-se que ele desenvolva uma forma de sistematizar os registros acerca do seu fazer, possibilitando compreender possíveis dificuldades, entraves e especificidades que estiveram presentes no momento da pesquisa. Esses dados podem ser importantes na fase posterior, a análise, repercutindo movimentos que também orientam não apenas a interpretação realizada pelo pesquisador, mas também o modo como o pesquisador é interpretado em campo e pelo campo. Assim, o diário de campo tanto pode ser um instrumento a ser analisado, haja vista que também é considerado um método em ciências sociais, como um registro auxiliar no percurso da análise.

Um equívoco que frequentemente é mencionado é quando os autores referem no texto que empregaram o diário de campo, mas não exploram os dados obtidos a partir do mesmo. Sendo assim, o pesquisador deve decidir mencionar ou não o diário em função do seu real emprego ou não no estudo. Recomenda-se, no entanto, o seu emprego, haja vista as especificidades da pesquisa etnopsicológica na qual o pesquisador deve se colocar em campo, refletindo também sobre as ressonâncias desse seu fazer. O espaço do diário de campo permite que essas impressões sejam registradas e que também problematizações sejam construídas em função daquilo que se observou e que também se sentiu em campo. Muitos pesquisadores que não possuem uma formação específica ou maior intimidade com o diário de campo e as etnografias acabam utilizando esse recurso de modo inadequado, tal como se ele funcionasse como um bloco de notas ou um rascunho do que se observou no fazer da pesquisa, o que desconsidera uma gama importante de elementos que atravessam o estudo empírico e a relação do pesquisador com a comunidade e os participantes. Assim, é mister que o diário de campo seja plenamente incorporado ao protocolo da pesquisa, podendo, de fato, constituir um recurso para a compreensão da realidade com a qual se coloca em relação.

O momento da análise

A análise ou a interpretação dos resultados é o momento no qual o pesquisador, já um pouco distante do seu campo empírico e podendo pensar a respeito do mesmo de modo mais apropriado, passará a construir modos de compreender os dados que compõem o seu corpus. Embora a fase compreendida como análise de dados nem sempre possa ser completamente isolada do momento da coleta - em campo também estamos analisando, muitas vezes, em uma perspectiva etnopsicológica-, há que se tentar explorar de modo distinto esses dois pontos fundamentais de todo estudo científico. Separar o que se refere à coleta e o que se refere à análise é importante não apenas para a organização do corpus, mas também para o modo como o pesquisador poderá discutir os seus achados e pensar sobre o seu fazer na tentativa de também contribuir com o processo de construção do conhecimento em sua área. Em etnopsicologia o processo não ocorre de modo dissociado dessas recomendações, embora, muitas vezes, seja complexa a atividade de tentar separar totalmente esses dois momentos. Ao revisitar os dados para se fazer análise, não está se produzindo novos dados? Não está se operando uma nova forma de compreender aquilo que já havia sido coletado? O que vem a ser, de fato, a coleta de dados? Para além desses questionamentos que podem ser muito ricos na produção de um estudo qualitativo, deve-se primar pela correta comunicação do percurso estabelecido, a fim de que autor e leitor possam ser inteligíveis um ao outro. Ainda que a lógica de uma pesquisa qualitativa não seja a possibilidade de replicação, a exemplo de um estudo controlado, os elementos que compõem tanto o percurso de coleta como de análise devem ser claros e permitir não apenas percursos semelhantes, mas também compor disparadores para novos trabalhos e delineamentos.

Assim, é de suma importância descrever o modo como esses dados foram produzidos, os cenários retratados, as fontes de informação e de evidência, o modo como o campo foi sendo habitado e constituído no fazer da pesquisa, entre outros detalhes. Mesmo quando os processos analíticos seguem uma determinada estruturação, como nas análises de conteúdo, é fundamental registrar quais epistemologias orientaram essa análise de conteúdo e quais os possíveis ajustes no método foram realizados para que essa análise fosse possível. Essa ausência de maior detalhamento acaba sendo um argumento que muitos pesquisadores de áreas experimentais ou que desenvolvem pesquisas essencialmente alinhadas a outros paradigmas, como os positivistas, por exemplo, desenvolvem para criticar pesquisas orientadas qualitativamente ou, como no caso do presente estudo teórico, por pressupostos etnopsicológicos. Em outras palavras, assumindo que a coleta de dados também é um espaço de produção de dados e, assim, de análise, devemos tentar clarificar aos nossos leitores esse processo, mais do que concebê-los de maneira fragmentada. A atividade de coletar - assim como a de analisar -, não ocorre de modo dissociado, o que nos obriga a tecer considerações que, muitas vezes, tornam-se particulares ao universo da pesquisa qualitativa, especificamente da pesquisa etnopsicológica, como recortado no presente estudo.

Um processo fundamental que ocorre nessa fase é delimitar, ao certo, o que será analisado: quais indícios serão tomados para a elaboração de possíveis interpretações para os fenômenos investigados? Em outras palavras, quais indícios darão suporte às considerações que pretendo tecer em relação à pesquisa desenvolvida? Um equívoco comum é o de trazer dados advindos de uma determinada fonte, por exemplo, as entrevistas com médiuns desincorporados, mas de empregar, ao mesmo tempo, dados provenientes de outras fontes de informação, como falas de espíritos incorporados durante as giras ou mesmo observações fortuitas do campo empírico. Embora essas comunicações nem sempre possam ser isoladas totalmente, é importante que o pesquisador desenvolva a capacidade de explicitar ao leitor o seu percurso analítico e quais indícios ele se refere quando toma determinadas considerações acerca do fenômeno investigado. Em outras palavras, o processo analítico deve ser conduzido de modo a retratar fielmente as fontes dos indícios, a fim de que o leitor saiba, com precisão, ao que se referem as interpretações trazidas pelo pesquisador, onde se localizam as interpretações e os materiais que oferecem subsídios para a exploração de determinadas considerações. Observe-se que optamos pela escolha do termo "indício" em contraposição a noção de evidências, com ampla repercussão no meio científico. Quando tratamos de indícios nos aproximamos mais dos pressupostos da pesquisa qualitativa (Stake, 2000), motivo pelo qual consideramos que esse aporte é mais coerente com a proposta do estudo etnopsicológico.

Muitas vezes, em estudos etnopsicológicos, os autores pressupõem que seus leitores conhecem o processo de tessitura desse tipo de investigação, estando adaptados ao seu processo de análise. Há que se considerar, no entanto, que a etnopsicologia constitui um campo bastante amplo e múltiplo de referências, de modo que o método proposto, ainda que seja alinhado à etnopsicologia, deve sempre ser descrito com rigor e precisão, a fim de que se possa apreender, de fato, como os dados foram produzidos. Recomenda-se que os autores empregados na análise também sejam claramente explicitados, a fim de que se possa apreender a quais movimentos dentro da etnopsicologia os mesmos estão alinhados.

A expressão produção de dados aqui também recupera um termo apropriado à pesquisa qualitativa, de modo a incorporar uma tessitura que considera a subjetividade do pesquisador, ou seja, o fato de que a subjetividade do pesquisador também atravessa a produção dos dados. Isso não equivale à tentativa de particularizar cada processo analítico, como se cada nova pesquisa inaugurasse um novo método. Embora todo método em etnopsicologia seja atravessado pela subjetividade do pesquisador e esta possa - e deva - ser incorporada ao processo analítico, isso não exime o pesquisador de detalhar o seu itinerário interpretativo. A não explicitação desses itinerários frequentemente opera dificuldades na compreensão do material, o que não resvala apenas no leitor final, mas também nos assessores que possuem dificuldades de avaliar os manuscritos submetidos a periódicos.

O modo como os dados serão analisados passa por diferentes descrições. Ao analisar entrevistas, por exemplo, é importante compreender que existem ao menos dois grandes processos envolvidos. O primeiro deles refere-se à organização do corpus. Por exemplo, no caso de uma entrevista, como será o processo de decodificação da linguagem verbal para a linguagem escrita? Ocorrerá uma transcrição? Essa transcrição será na íntegra? Ou apenas em relação aos trechos considerados mais significativos? Nesse segundo caso, como serão elencados os eixos considerados mais significativos? No primeiro caso, a transcrição na íntegra será literal, ou seja, preservando os marcadores de linguagem do entrevistado, ou haverá correções de ordem formal e estilística? Essas descrições são importantes para compreender o modo como esse corpus se apresentará para análise. Devemos observar que até o presente momento estamos falando apenas do primeiro nível de análise, que é o da organização para que a análise propriamente dita seja passível de implementação. Categorizar, criar temas, definir eixos, embora envolvam sim um processo analítico, dizem respeito ao modo como o corpus será organizado para ser posteriormente interpretado com base no referencial selecionado. Assim, o modo como o corpus será organizado não tem que seguir necessariamente as orientações do referencial, mas estar claramente definido e descrito para que se possa compreender como as interpretações se realizaram ou sob quais indícios se debruçaram tais considerações.

Na organização desses discursos, alguns aportes podem ser importantes e especialmente úteis, como nas análises de categorias, temáticas e de construção de eixos a partir dos conteúdos narrados nas falas. Esses eixos podem se constituir a partir daquilo que mais se repete (contabilização de frequências, denotando que quanto mais frequente, mais importante ou representativo tende a ser um conteúdo) ou daquilo que é considerado mais significativo, emblemático ou importante. Nesse segundo caso, deve haver uma clara explicitação por parte do leitor para identificar aquilo que se mostra mais significativo ou, em outras palavras, o processo de avaliação do que é significativo tem que ser descrito ao leitor, permitindo a compreensão do processo que orientou a análise. Um equívoco comum é explicitar o modo como os dados serão organizados, por exemplo a partir de determinada técnica de análise de conteúdo ou com o apoio de algum software semântico, e considerar que, com isso, descreveu-se suficientemente o processo analítico. Sistematizar as informações contidas em uma entrevista em categorias, por exemplo, é apenas uma parte do processo. Essa organização, por si só, não constitui ou não caracteriza um estudo etnopsicológico.

Após considerar os modos com que esses discursos das entrevistas serão organizados, por exemplo, é que se pode passar à parte de análise, ou seja, de interpretação teórica a partir de um determinado referencial. Como o referencial do presente estudo é o da etnopsicologia, o arcabouço que orientará a análise a partir dos dados organizados é o etnopsicológico. No entanto, outros aportes podem ser empregados em diálogo com a etnopsicologia, haja vista a existência de pontos de encontro entre os diferentes referenciais e o fato de a etnopsicologia ser uma etnociência (Lutz, 1985). Um exemplo desse diálogo é o estudo de Scorsolini-Comin e Campos (2017), que empregou o referencial etnopsicológico de modo associado ao modelo bioecológico do desenvolvimento. Quaisquer que sejam as opções metodológicas adotadas, as mesmas devem ser devidamente explicitadas e, mais do que isso, justificadas, a fim de que possam ser compreendidas de modo coerente e fluido, não apenas como uma justaposição de referenciais que atendem a diferentes objetivos. Cada estudo deve, portanto, explicitar e detalhar o processo de organização dos dados, em um primeiro momento, partindo para a descrição do modo como esse banco de dados será analisado, interpretado, compreendido e problematizado.

Outra recomendação importante é clarificar os autores de referência nesse processo, a fim de que o leitor possa se apropriar de termos, expressões e modos de interpretação que podem ser característicos de um ou mais autores alocados sob um mesmo referencial, no caso o da etnopsicologia. Diferentes autores, ainda que sejam associados à etnopsicologia, podem ter posicionamentos distintos dentro desse referencial e isso deve estar claro primeiramente ao pesquisador e também para o leitor em um segundo momento.

Basilar nesse processo é assumir o referencial etnopsicológico não apenas no momento da análise. O que constitui um estudo etnopsicológico começa pelo modo como a questão de pesquisa é apresentado, o modo como o fenômeno pretende ser apreendido, o modo como o campo é realizado e corporificado pelo pesquisador em seu fazer. Embora a análise possa ser colocada em diálogo com outros referenciais ou estudos que se baseiem em diversas epistemologias, há que se orientar pela primazia do estudo de caráter etnopsicológico. Assim, os pontos de discussão com outros referenciais podem ser considerados úteis e didaticamente importantes para criar contraposições e comparações, por exemplo, mas não podem substituir o desenho etnopsicológico adotado desde o início. Em um estudo que se anuncia como etnopsicológico, a coerência não se observa apenas em relação aos autores selecionados para a discussão, mas também e, sobretudo, em relação ao modo como o referencial norteia todo o processo de construção e interpretação. Estar em campo assumindo a perspectiva etnopsicológica orientará determinados olhares e promoverá determinadas escutas e recortes. Esse processo deve ser amadurecido pelo pesquisador, sobretudo em campo, a fim de que ele possa manter a coerência em todo o fazer da pesquisa, gerando, de fato, um estudo que possa ser enquadrado como etnopsicológico.

A devolutiva com a comunidade de referência

O processo de devolutiva dos dados é um aspecto ético que orienta as pesquisas envolvendo seres humanos (Scorsolini-Comin et al., 2017). O modo como esses dados serão disponibilizados para as comunidades de referências deve ser pensado pelo pesquisador como forma não apenas de democratizar tal acesso, mas de permitir, talvez ainda no processo analítico, que as considerações dos participantes possam compor um repertório analítico do próprio pesquisador. Na prática, isso equivale a promover uma devolutiva que esteja articulada com a escuta discutida no início deste artigo. A devolutiva também é uma escuta, o que se contrapõe a epistemologias mais positivistas que apregoam que o pesquisador ocupa uma posição diferenciada em relação ao pesquisado, o que promove uma assimetria. Nessa perspectiva, a devolutiva é um modo de o pesquisador revelar ao pesquisado quem este é, ou seja, quem diz ao pesquisado quem ele é é o pesquisador, e não o próprio saber do pesquisado.

As devolutivas mais tradicionais assumem um ponto de vista mais positivista, delegando ao pesquisador o poder de revelar ao sujeito quem ele é. Obviamente que se trata de um processo até certo ponto simples, pois envolve apenas uma redação ao pesquisado daquilo que já se produziu a partir da sua colaboração. Nos casos de estudos que envolvem a defesa de um mestrado ou doutorado, por exemplo, as devolutivas podem ser feitas com os participantes basicamente apresentando a eles os mesmos dados que forma compartilhados durante a defesa. Nesse posicionamento, o pesquisado é apenas informado do que se passou a partir da sua colaboração e de como a sua contribuição, as suas narrativas ou as suas informações foram usadas e interpretadas para produzir um determinado saber que agora se tornará público. Trata-se de compartilhar com o pesquisado uma possível interpretação do pesquisador, interpretação este que muitas vezes é trazida sem abrir brechas para outras interpretações possíveis.

Embora nem sempre os estudos relatem as devolutivas, haja vista que muitas delas são realizadas após a divulgação dos resultados em artigos, teses, dissertações e capítulos, um exemplo de devolutiva com a comunidade foi descrito no estudo de Macedo (2015) sobre a interpretação na umbanda. Neste estudo de cunho etnográfico, a autora compartilhou com a comunidade alguns dos resultados dos seus estudos a partir de pôsteres apresentados em congressos científicos. Esses pôsteres, exibidos nas paredes do terreiro em que os dados foram coletados, constituíam formas de legitimar para os próprios participantes que suas contribuições saíam daquele espaço e serviam como norteadores para muitos outros pesquisadores da mesma temática. Quando um membro perguntava sobre o trabalho exposto, a pesquisadora explicava o que havia sido feito e como que aquela realidade podia ser interessante, no caso, para o desenvolvimento da ciência psicológica.

Ao assumirmos a etnopsicologia como referencial que conduz todos os passos de um trabalho, a devolutiva deve ser pensada como um momento também de análise e de produção de dados e de saberes. Ao retornar para a comunidade o que foi desenvolvido com eles e partir das contribuições dessa coletividade, abre-se espaço para que diferentes interpretações emerjam. Embora o olhar do pesquisador seja atravessado por determinadas lógicas, é importante que possa também empregar as lentes daquela comunidade, ou seja, que possa abrir-se a um processo analítico e interpretativo mediado por essas vozes e esses corpos, agora em um outro momento, o da devolutiva. A devolutiva não envolve apenas o fato de "devolver" em um sentido de "doar" ou "dar" algo a alguém, mas também a possibilidade de ser mais um momento de produção de saberes com aquela coletividade. Isso equivale a considerar a possibilidade de também registrar esse momento e criar formas específicas de analisar essa interação nessa etapa do percurso do pesquisador.

O planejamento da devolutiva também pode ser desenvolvido e pensado junto com a comunidade de referência, de modo que todos possam explicitar o modo como gostariam de saber os "resultados" encontrados pelo pesquisador e também de que modo essa fala possa ser útil a quem, de fato, se interessa pelo que se produziu. Em que medida esses saberes podem afetar aquela comunidade? Em que medida aqueles saberes podem ser úteis àquela comunidade? Esses saberes impactam a comunidade? Esses saberes acrescentam algo à comunidade? Esse diálogo deve ser estabelecido tendo como ponto de partida ou de referência os saberes produzidos ao longo da pesquisa. Assim, os resultados produzidos não precisam ser entendidos como um fim, mas sim como parte de um processo que pode almejar algo mais amplo do que responder a uma pergunta de pesquisa muitas vezes formulada fora do campo e que não faz sentido no campo e para o campo. Assim, a devolutiva pode ser uma parte importante que responda a algo que a pesquisa, em seu fazer até ali, não possa ter captado.

A defesa de uma dissertação, de uma tese ou a publicação de um livro ou artigo não representa a parte final da pesquisa na perspectiva etnopsicológica, mas sim um dos momentos que atravessam o fazer de uma pesquisa. Desse ponto de vista, a devolutiva não é o momento final ou o marco final da pesquisa e sim um dos marcos que dizem sobre essa pesquisa e seu fazer. A devolutiva pode e deve ser compreendida como esse lugar que não comporta respostas finais e absolutas, mas sim novas perguntas e aberturas para outras incursões, dinamizando o itinerário do pesquisador e tirando-lhe um suporto lugar de saber e de poder em relação ao pesquisado e também ao campo construído por e com a comunidade de referência.

Considerações finais

Ao final desse percurso, cumpre-nos a tarefa de sumarizar os principais pontos discutidos no fazer da pesquisa etnopsicológica. O desenho do estudo, desde o seu início, deve ser fiel aos pressupostos desse referencial. Isso significa que o referencial não deve ser empregado apenas no momento da análise, o que também envolve dizer que a análise não se faz exclusivamente quando o pesquisador está diante de seus dados, em um processo posterior à coleta. A interpretação é um processo que atravessa todo o fazer de um estudo etnopsicológico, por isso a recomendação de que haja registros em todo o fazer da pesquisa, o que pode compor um diário de campo - que deve ser analisado em toda a sua profundidade - ou apenas notas de campo que podem ser revisitadas a todo momento, em um processo contínuo de refinamento analítico. Descrever todo o processo de construção do estudo, mais do que um cuidado, deve ser um operador importante no sentido de conferir ritmo e coerência à narrativa da pesquisa. A pesquisa etnopsicológica deve ser narrada com rigor, justificando as opções metodológicas adotadas no fazer do estudo e abarcando as diversidades que podem e devem compor os repertórios do fazer do pesquisador. A etnopsicologia é um referencial que se abre continuamente a esse processo, de modo que o mesmo deve ser apresentado de modo rigorosos e atento, a fim de que as opções não sejam questionadas, mas possam ser apreciadas diante de demandas colocadas o tempo todo durante uma pesquisa.

Longe de cristalizarmos um modo único de se fazer pesquisa em etnopsicologia, optamos pelas descrições de determinadas recomendações que podem nortear o fazer do pesquisador nesse campo. Essas recomendações também não podem ser lidas de modo unívoco ou centralizadas em apenas uma forma de se pesquisar. Pelo contrário, as descrições aqui contidas visam constituir disparadores para que os estudos em etnopsicologia possam ser realizados com rigor e com potencial de discussão face a diferentes epistemologias. O campo minado descrito no início do estudo faz referência também à multiplicidade de vozes que podem ser evocadas ao descrevermos como pode ser ou se estruturar um estudo etnopsicológico. Favorecendo uma audiência polifônica e polissêmica, optamos por recomendações básicas e que com frequência acabam sendo negligenciadas pelos autores da área. Em um cenário expansão desse referencial, notadamente no Brasil, é mister que tais aspectos continuem sendo problematizados. Finalizamos com o convite para que as pesquisas em etnopsicologia, mais do que produzir conteúdos para que estudos epistemológicos possam ser desenvolvidos, também possam refletir constantemente sobre o seu fazer. Ainda que os percursos de pesquisas possam ser considerados específicos e que retratem as subjetividades dos pesquisadores em tela, é fundamental que tais aspectos sejam divulgados e possam compor um repertório a ser constantemente apreciado.

 

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