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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.18 no.1 São Paulo jan./abr. 2021
https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p37-52
ARTIGO
"É muito peso para uma pessoa só": narrativas interativas de adolescentes sobre o (des) acolhimento institucional
"Too much weight for one person": interactive narratives of teenagers about the loss of an institutional shelter
"Fue demasiado peso para una persona sola": narrativas interactivas de adolescentes sobre la pérdida del refugio institucional
Sofia Creato Bonfatti; Tania Mara Marques Granato
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo é compreender a experiência emocional de 14 adolescentes abrigados frente a possibilidade de desabrigamento considerando a usual permanência prolongada do adolescente na situação de acolhimento institucional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa psicanalítica em que adotamos uma Narrativa Interativa (NI) em duas entrevistas coletivas seguidas de uma reflexão sobre o tema investigado, além de uma entrevista individual seguida de um momento de reflexão com uma adolescente que não teve a oportunidade de participar do grupo. A análise do material narrativo resultou em campos de sentido afetivo-emocional. Destacamos o campo emblemático "É muito peso para uma pessoa só", que descortina os sucessivos desabrigamentos e o consequente desamparo vividos pelos jovens como resultados da sobreposição de vulnerabilidades que cercam a vida dos participantes.
Palavras-chave: Adolescência; Abrigos; Violência intrafamiliar; Narrativa Interativa; Psicanálise.
ABSTRACT
The aim of this study is to understand the emotional experience of 14 sheltered adolescents in the face of the possibility of helplessness considering the usual prolonged stay of the adolescent in the institutional shelter situation. This is a qualitative psychoanalytic research in which we adopted an Interactive Narrative (NI) in two group interviews and one individual interview followed by a reflection on the theme investigated, in addition to an individual interview, followed by a moment of reflection with a teenager who did not have the opportunity to participate in the group. The analysis of narrative material resulted in fields of affective-emotional meaning. We highlight the emblematic field "It's too much weight for one person", which reveals the successive homelessness episodes and the consequent helplessness experienced by the young people as a result of the overlapping vulnerabilities that surround the participants' lives.
Keywords: Adolescence; Shelters; Intrafamilial Violence; Interactive Narrative; Psychoanalysis.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es comprender la experiencia emocional de 14 adolescentes protegidos ante la posibilidad de quedarse sin hogar considerando la prolongada estadía habitual del adolescente en la situación del refugio institucional. Esta es una investigación psicoanalítica cualitativa en la que adoptamos una Narrativa Interactiva (NI) en dos entrevistas grupales y una entrevista individual seguida de una reflexión sobre el tema investigado, además de una entrevista individual seguida de un momento de reflexión con una adolescente que no tuvo la oportunidad de participar en el grupo. El análisis del material narrativo resultó en campos de significado afectivo-emocional. Destacamos el campo emblemático "Es demasiado peso para una persona sola", que revela la sucesiva falta de vivienda y la consecuente impotencia experimentada por los jóvenes como resultado de las vulnerabilidades superpuestas que rodean las vidas de los participantes.
Palabras clave: Adolescencia; Refugios; Violencia Intrafamiliar; Narrativa Interactiva; Psicoanálisis.
Introdução
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2017), a violência contra a criança e o adolescente constitui um grave problema de saúde pública, o que resulta em altas taxas de mortalidade nesta faixa etária. Apesar de atualmente existirem medidas para proteger a criança e o adolescente da violência, tal fenômeno ganhou maior visibilidade apenas em 1990 com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), que dispõe sobre a proteção integral da população infanto-juvenil. No cenário contemporâneo, o tema está no centro das preocupações dos setores de saúde, educação e políticas públicas no mundo todo, devido a suas proporções epidêmicas (Brino & Souza, 2016).
Uma das violações mais graves do direito e da saúde física e mental da criança e do adolescente é a violência intrafamiliar, definida pelo Ministério da Saúde (2002) como qualquer ação ou omissão de cuidado que comprometa o bem-estar físico ou psicológico da criança, cometido por um membro da família. Além da dinâmica de poder existente entre os familiares, sublinhamos que tal definição aponta para a relação afetiva que existe entre o agressor e a vítima, uma vez que tanto o ato violento quanto o cuidado infantil são praticados pela mesma pessoa, o que vem somar vulnerabilidades às condições concretas de vida da criança em termos de seus impactos afetivo-emocionais (Almeida, Miranda & Lourenço, 2013).
Quando a situação de vulnerabilidade do núcleo familiar se converte em violação ou ameaça dos direitos da criança e do adolescente, o ECA (1990) estabelece o acolhimento institucional como medida extrema para proteger a criança da violência ou do abandono por parte de seus cuidadores, retirando-a da situação de risco (Pinto Junior et al., 2015). Apesar de a lei estabelecer que o tempo máximo de permanência do acolhido não deva ultrapassar um ano e meio, Miranda (2017) adverte que a realidade das instituições brasileiras apresenta um cenário diverso, uma vez que comumente crianças e adolescentes permanecem abrigados por muito tempo sem perspectivas de reintegração ao lar de origem ou adoção (Rosa, Nascimento, Santos & Matos, 2012).
O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes (SAC) constatou que o tempo que crianças e adolescentes permanecem abrigadas tem sido superior a dois anos em 30% dos casos, enquanto outros ultrapassam seis anos de abrigamento apesar do vínculo familiar ser preservado em 58% dos casos do total de crianças e adolescentes (IPEA, 2013). Sobre esse aspecto, Moreira (2014) argumenta que o ideal de família nuclear cujo modelo é propagado socialmente cria muros que separam as "famílias estruturadas" das "famílias desestruturadas" dificultando que as entidades de acolhimento trabalhem com a alternativa de reintegrar a criança a sua família extensa.
Em contrapartida, ao refletirem sobre a permanência prolongada do acolhido no abrigo, Cavalcante, Magalhães e Silva (2010) concluíram que, apesar dos esforços profissionais da equipe técnica do abrigo para a reintegração do acolhido na família de origem, esta tarefa é altamente complexa e custosa, na medida em que implica reestruturar a família e ajudá-la a superar as vulnerabilidades materiais e familiares que motivaram a institucionalização, o que dificilmente acontece. Nota-se, portanto, um panorama de múltiplos impasses que transitam entre o provisório e o permanente no contexto do abrigamento de crianças e adolescentes.
Ao debruçar-se sobre o tema do acolhimento institucional, Moreira (2014) percebeu que apesar do ECA constituir um instrumento importante de garantia de direitos diante da epidemia de violência contra a criança e o adolescente, na esfera doméstica, há que se atentar para como a complexidade das relações humanas e familiares tem sido gerida pelo ECA e judicializada pelo poder público, o que parece levantar um paradoxo: é preciso retirar a criança do seio familiar para reintegrá-la na comunidade?
Além da falta de perspectiva de retorno familiar, a adoção não tem se constituído como solução para os adolescentes abrigados. De acordo com o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA) e do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2008, existe um descompasso entre o perfil dos acolhidos cadastrados e aquele desejado pelos pais que aguardam na fila de espera da adoção. Enquanto dois terços do total de adolescentes abrigados aptos para a adoção estão na faixa etária de 11 a 17 anos, o índice de pessoas que adotam adolescentes a partir de 11 anos é inferior a 1% (CNJ, 2012).
Sobre este contexto de vulnerabilidade e alternativas escassas que o adolescente enfrenta no cotidiano do abrigo, Moreira (2014) alerta para o contínuo esgarçamento dos vínculos familiares, na mesma medida em que o acolhimento perde a provisoriedade favorecendo o sentimento de desamparo e abandono. Apesar de o abrigo representar uma fonte de fonte de apoio social e afetivo diante do desamparo infantil (Siqueira, 2006; Siqueira, Betts & Dell'Aglio, 2006) quando oferece sustentação emocional (Moré e Sparetta, 2010), as políticas públicas são ineficientes quando se trata de promover amparo e proteção ao adolescente durante a transição para o desabrigamento (Siqueira, Zoltwski, Giordani, Otero & Dell'Aglio, 2010), quando a própria instituição falha em trabalhar os aspectos emocionais da criança ou do adolescente que está em vias de perder os contornos providos pelo abrigo.
Siqueira, Massignan e Dell'Aglio (2011) ressaltam que o fracasso na reestruturação familiar favorece processos de reinstitucionalização da criança e do adolescente no serviço de acolhimento (Paiva, Moreira & Lima, 2019) e, em termos do impacto emocional sobre o acolhido, o sentimento de ser constantemente desabrigado (Bonfatti, 2017).
Segundo Campos e Figueiró (2013), a aproximação da saída do abrigo mobiliza ansiedades em decorrência do sentimento de não pertencimento a um lugar - o abrigo ou o lar de origem - e o consequente sentimento de desamparo, uma vez que a futura saída do abrigo acena como nova ruptura na vida do acolhido. Quando essa transição não é vivida de modo processual, e o jovem fica a mercê de suas angústias, há o risco do adolescente tomar o caminho do tráfico de drogas, da violência e das ruas (Campos & Figueiró, 2013), sobretudo quando o motivo do desabrigamento é a maioridade, quando é convocado a lidar com a complexidade do mundo adulto (Silva, 2010).
Neste panorama em que o transitório e o permanente se entrelaçam produzindo uma sobreposição de vulnerabilidades ao adolescente e sua família, somando-se a escassez de políticas públicas direcionadas à juventude, apresentamos os resultados de uma pesquisa de mestrado acadêmico, por meio de um campo de sentidos afetivo-emocionais que se mostrou emblemático dos afetos mobilizados em adolescentes institucionalizados diante da possibilidade de saída do abrigo.
Método
A opção pela abordagem qualitativa se afina com a nossa intenção, enquanto psicólogos, de focalizar a singularidade da experiência emocional vivida pelos participantes deste estudo, de um modo naturalístico (Stake, 2010), isto é, considerando o contexto no qual o fenômeno investigado usualmente se produz. Neste encontro singular e intersubjetivo, o pesquisador qualitativo busca compreender os sentidos atribuídos pelos participantes para as experiências vividas (Fulgêncio, 2013) em seu cotidiano, reconstituindo a sua história de modo implicado e pessoal (Flick, 2014).
No contexto da pesquisa qualitativa, elegemos dentre as três dimensões da Psicanálise (Laplanche & Pontalis, 2001) - teórica, terapêutica e investigação - sua vertente investigativa de acordo com a premissa de Aiello-Fernandes, Ambrósio e Aiello-Vaisberg (2012) sobre a potencialidade heurística do método psicanalítico como via de acesso privilegiado dos sentidos emocionais que subjazem as condutas humanas (Bleger, 1963/1989). Esta opção metodológica se apoia na teorização de Hermann (2001) retomada por Aiello-Vaisberg & Machado (2005) sobre o uso do método psicanalítico para a compreensão de qualquer acontecer humano, o que amplia seu uso para a pesquisa.
Deste modo, esta pesquisa foi posta em marcha pelo uso do método psicanalítico, guiando a escuta associativa e interpretativa (Granato, Corbett & Aiello-Vaisberg, 2011) da pesquisadora na aproximação do drama vivido pelos participantes, na elaboração de uma Narrativa Interativa (NI) como recurso mediador do encontro e, posteriormente, na análise do material narrativo produzido.
Instrumento
Alinhadas à concepção de que o narrar permite a exploração do drama vivido em seus múltiplos sentidos (Benjamin, 1996/1936; Bruner, 2004), utilizamos uma NI (Granato & Aiello-Vaisberg, 2013; 2016) como recurso investigativo de acesso à experiência emocional dos participantes. Trata-se de uma breve história fictícia cujo enredo delineia a temática da investigação, interrompendo-se para que os participantes a completem, seja por escrito ou oralmente, conferindo-lhe um desfecho pessoal. Finda essa primeira etapa, propomos um Grupo de Reflexão sobre o tema do estudo - em nosso caso, a saída do abrigo, de modo a ampliar a produção associativa de sentidos pelos participantes.
Ressaltamos que a natureza ficcional da NI favorece a identificação dos participantes com os personagens da história, ao mesmo tempo em que os protege de angústias que poderiam ser mobilizadas, e evita as consequentes defesas, caso fossem tratadas de modo direto e não transicional (Winnicott, 1971/1975) podendo se constituir como oportunidade para a (re)elaboração do vivido. A seguir apresentamos a NI elaborada para este estudo sobre a experiência emocional de adolescentes institucionalizados diante da futura saída do abrigo.
Marcela encontrou Daniel na Oficina de Teatro, onde ensaiavam para uma apresentação da escola. Durante o aquecimento para entrar em cena, Daniel observou que Marcela parecia nervosa e perguntou:
O que foi, Marcela? Aconteceu alguma coisa?
Marcela disse que em breve sairia do abrigo onde mora, mas não sabia exatamente o que iria acontecer. Daniel ficou chocado porque não sabia de nada e também porque perderia a amiga. Ele queria saber mais sobre a nova situação de Marcela, mas o professor fez sinal para que interrompessem a conversa e se concentrassem no ensaio.
Assim que o professor os liberou, Daniel e Marcela procuraram uma sala vazia para conversar. Marcela se certificou de que ninguém os escutava, mas, antes que pudesse falar, começou a chorar. Soluçava tanto que Daniel precisou controlar a ansiedade e esperar que ela se acalmasse. Depois de cinco minutos de aflição, Marcela começa o seu relato:
Dani, senta aqui, vou te contar tudo, desde o começo...
Participantes
Participaram voluntariamente deste estudo 14 adolescentes acolhidos em uma mesma entidade de acolhimento institucional, sendo 11 meninas e 3 meninos, cuja idade variou dos 12 aos 17 anos, independente do tempo ou do motivo de seu abrigamento. A realização desta pesquisa foi autorizada pela instituição colaboradora e pela Prefeitura do município onde se desenvolveu esta pesquisa. Além disso, o estudo atendeu aos critérios éticos exigidos pela Resolução 466/2017 do Conselho Nacional de Saúde sobre os cuidados para a pesquisa cientifica envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob parecer nº 1.913.314.
Procedimento
A primeira etapa deste estudo consistiu em quatro dias de ambientação na instituição colaboradora, com o objetivo de travar conhecimento com os participantes e compreender seu cotidiano, evitando uma aproximação intrusiva. Em uma segunda etapa, foi feito o convite para participação voluntária na pesquisa. Em seguida, foi agendada uma entrevista coletiva com um grupo de 10 meninas e outra com um grupo de três meninos além de uma entrevista individual com uma adolescente que não pôde participar do grupo apesar de seu interesse.
O encontro com os dois grupos de participantes se deu em uma sala reservada na própria instituição em horário conveniente para todos os envolvidos, iniciando-se pela leitura da NI como convite para que os adolescentes completassem a história de modo livre e associativo para, na segunda etapa, como já dissemos, abrir um Grupo de Reflexão sobre o tema da saída do abrigo. O mesmo procedimento de apresentação da NI seguido de um momento de reflexão com a pesquisadora foi adotado com a adolescente que não pode participar do encontro coletivo, assim configurando um enquadre individual.
Como registro do encontro, uma de nós confeccionou uma Narrativa Transferencial (NT) atendendo à sugestão de Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron e Beaune (2009) para que o pesquisador psicanalista se deixe impressionar pela comunicação afetivo-emocional dos participantes incluindo suas impressões pessoais no registro dos encontros.
O corpus da pesquisa, composto pela reunião das NI e NT foi tomado para análise interpretativa preliminar, visando a compreensão dos sentidos afetivo-emocionais veiculados pelos adolescentes. Posteriormente, procedemos a nova análise do material narrativo, desta vez foram compartilhando-o com os demais pesquisadores do grupo, atendendo ao critério de triangulação de pesquisadores (Flick, 2014; Stake, 2011) no intuito de refinar as interpretações preliminares, chegar a um consenso e, desse modo, agregar rigor à pesquisa qualitativa.
Resultados e Discussão
A análise interpretativa do material narrativo resultou em campos de sentido afetivo-emocionais que se organizam em torno dos sentidos comunicados pelos participantes desde o seu imaginário (Granato, Russo & Aiello-Vaisberg, 2009), e cujas expressões na cultura podem se dar de modo individual ou coletivo (Hermann, 2004). Neste trabalho, apresentamos o campo "Era muito peso para uma pessoa só", pelo seu caráter emblemático da experiência emocional cotidiana desse grupo de adolescentes quando convidados a refletir sobre o tema da saída do abrigo.
A consulta aos prontuários institucionais, realizada com o objetivo de caracterizar o grupo de participantes nos permitiu vislumbrar histórias de violência intrafamiliar, privação e institucionalizações que esses jovens compartilham. Como motivo para a institucionalização encontramos abuso físico e psicólogo, negligência, abandono dos pais ou responsáveis, ou seu afastamento por privação de liberdade. Alguns jovens apresentavam histórico de abrigamentos anteriores e o tempo de permanência no acolhimento variou de sete meses a sete anos, sendo que alguns participantes tinham irmãos abrigados na mesma instituição.
O campo "É muito peso para uma pessoa só" traduz uma constelação de sentidos. Embora o tema da saída do abrigo aluda a um tempo futuro para adolescentes institucionalizados, mobilizando seus projetos futuros, no caso de nossos participantes teve o poder de também evocar vivências passadas, reeditando abandonos anteriores e o correspondente sentimento de desamparo. Dessa forma, o tema da saída do abrigo se associou retrospectivamente até alcançar o primeiro desabrigamento, aquele que motivou a sua institucionalização: a saída do lar de origem.
Compreendemos o resgate narrativo de experiências anteriores de violência intrafamiliar e privação vividas na infância como um movimento próprio dos participantes no sentido da integração de experiências invasivas (Winnicott, 1963/1994) como um modo de organizarem-se emocionalmente antes de enfrentarem um futuro incerto e ameaçador. Também nos foi comunicado que o desabrigamento transcende o desalojamento, figurando como ameaça de novo desamparo e abandono e não como oportunidade de retomada da vida ou início de uma nova vida.
De acordo com Franco e Tinoco (2011), o processo de institucionalização se equipara ao trabalho de luto, uma vez que demanda uma dupla tarefa emocional para o acolhido: elaborar o afastamento da família, da comunidade e de seu cotidiano ao mesmo tempo em que é convocado a adaptar-se a nova rotina institucional. Notamos que este luto é revivido e reeditado quando o desabrigamento surge no horizonte do adolescente, sobretudo quando a maioridade se aproxima, conforme narrou Esmeralda de 13 anos. Apesar da distancia de seus 18 anos, a participante já manifesta angústia e despreparo para enfrentar a vida adulta em sua NI: "é que eu não sei para onde eu vou".
Se de um lado a criança abrigada é protegida da violência sofrida no lar, de outro, os laços familiares são esgarçados e a experiência de ser retirado do lar de origem e inserido em uma rotina institucional pode ser vivida de forma ambivalente, dificultando sua integração na historia de vida do adolescente. Entretanto, os participantes do estudo esclarecem que a negligência de suas necessidades básicas começou a se instalar já no lar de origem, conforme Branca de Neve, 12 anos: "Era muito peso para uma pessoa só. Imagina, a minha tia tinha cinco meninos e duas meninas morando com ela e eu cuidava deles... eu não aguentava mais tudo aquilo", denotando que o ambiente familiar torna-se lócus de experiências que interrompem a continuidade de ser (Winnicott, 1958/2000) e geram reações a invasões da realidade que comprometem o amadurecimento emocional infantil (Winnicott, 1965/1994).
Aurora, 14 anos, completou sua NI contando sua história de institucionalizações que começou quando tinha apenas 2 anos, sublinhando o desamparo emocional vivido na infância pelo abandono da mãe e posterior morte da tia, o que foi seguido por abuso sexual cometido pelo tio biológico: "Quando eu nasci meu pai morreu e MINHA MÃE FALAVA QUE A CULPA ERA MINHA. Passaram 2 anos e minha mãe me deixou na casa de uma amiga [...]e meu pai [tio biológico que estava com a sua guarda] tinha me estuprado, batido, e me vendia, então o juiz pediu a minha guarda, ai eu estou no abrigo de novo, essa é a minha vida.
De acordo com Winnicott (1983/2007), o desenvolvimento saudável da criança ocorre por meio da ilusão que é seguida de desilusão gradual do ambiente, permitindo que a criança desenvolva os recursos emocionais necessários para sua adaptação à realidade. Quadro bem diverso é aquele em que um episódio suficientemente traumático supera a capacidade infantil de processar e compensar a falha ambiental, conforme observamos na sucessão de invasões da realidade vividas por Aurora. Winnicott (1983/2007) alerta para o fato de que o excesso de falhas de cuidado pode abalar a confiabilidade do ambiente, condição para que a criança tenha uma relação autentica com o outro.
Nunes e Sales (2015) concordam que os prejuízos da violência vivida no seio familiar se estendem a todos os aspectos da vida da criança e do adolescente, pois ficam registrados como experiência traumática em qualquer idade em que ocorram. Oliveira et al., (2016) argumentam que o trauma psicológico finca suas raízes já nos primeiros episódios de violência, quando a criança lança mão de recursos como negação e repressão como defesa contra a realidade invasiva. Embora algumas crianças não se recordem dos episódios de violência sofridos na infância, Oliveira et al. (2016) acreditam que essas experiências continuem exercendo uma influência negativa na personalidade e na saúde mental dessas crianças. Cinderela, de 14 anos, que foi abusada sexualmente pelo padrasto, nos leva a concluir pelos efeitos perniciosos da violência intrafamiliar: "Sei que um dia vou ser feliz... Quem sabe um dia!!! Porque por enquanto serei um pouco sozinha! Mas se Deus quiser, um dia vou ser feliz".
Apesar das narrativas de violência e privação, a maior parte dos participantes finalizou suas narrativas suplicando pelo retorno ao lar, especialmente para os braços maternos, conforme ilustrou Alice, de 12 anos: "EU VOLTEI PARA CASA E COMECEI a brincar bastante!. Eu vi meus pais, minha mãe, e eu fiquei muito feliz por reencontrar minha família! Comecei a chorar, chorar, chorar e chorar de felicidade por ter reencontrado meus pais!". Anastasia de 15 anos também reconheceu que "é difícil ficar no abrigo longe da minha família" apesar de ter sido abandonada pela mãe e sofrido maus tratos físicos do pai, que chegou a quebrar o seu braço, mobilizando um vizinho a realizar uma denúncia ao Conselho Tutelar.
A história contada por Rapunzel, 16 anos, ilustra o uso de poderosos mecanismos de repressão e negação diante do abuso daquele que deveria cuidar e proteger a criança e o adolescente (Gabatz et al, 2013): "o que eu vou fazer longe do meu pai por um motivo que não existe, só de pensar nisso já sinto saudades" ao concluir que seu abrigamento foi motivado por uma denúncia falsa ao Conselho Tutelar contra seu pai. Os demais participantes juntam suas vozes à de Rapunzel quando recorrem à fantasia de uma família idealizada para se contrapor à realidade da família concreta.
Dada a valorização social dos laços biológicos que compõem uma família podemos supor que tomar contato com a falha parental mobilizaria ansiedades intoleráveis nos participantes (Winnicott 1963/1994), o que levanta um questionamento sobre como as experiências de violência intrafamiliar vem sendo processadas emocionalmente por esses jovens. Também supomos que essa idealização das figuras parentais sinalize a naturalização da violência nos lares, o que pode dificultar que o jovem a compreenda como o motivo da própria institucionalização. Observamos, ainda, que os participantes compartilham o imaginário de que a figura materna seja fonte de amor incondicional e de uma capacidade natural para o cuidado (Aching, Biffi & Granato, 2016). Deste modo, compreendemos que os jovens nutrem expectativas de que as figuras parentais convertam-se em pais suficientemente bons que atendam as suas necessidades físicas emocionais. Afinal, a outra opção seria enfrentar a agonia do desamparo e da negligência.
Em contrapartida, essa imagem idealizada da família é confrontada por estudos como o de Hildebrand et al. (2015), que indicam a figura materna como sendo responsável por 42,9% dos casos de violência intrafamiliar, seguida da figura paterna (33,3%). A literatura esclarece que a configuração familiar que mais sofre com a violência intrafamiliar é majoritariamente monoparental, constituídas pela mãe e seus filhos, o que confirma a prevalência da mãe como agressora (Gabatz, et al., 2013; Nunes & Sales, 2015; Pinto Junior et al., 2015). Sobre esse aspecto, Gabatz et al. (2013) ressaltam a ambiguidade que a figura materna assume no contexto da família monoparental, quando o cuidado e os maus tratos se mesclam gerando um cenário conflituoso na fantasia infantil.
Neste cenário em que desamparo e esperança se entrelaçam, observamos que ao serem convocados a refletir sobre a futura saída do abrigo descortinou-se uma sobreposição de vulnerabilidades do adolescente abrigado e de sua família, cuja ênfase recai sobre as repetidas vivências traumáticas de violência e privação que fornecerão as nuances emocionais para a futura saída do abrigo. Concluímos que o movimento desses jovens para compartilhar experiências tão dolorosas com a pesquisadora sugere a necessidade de elaboração psíquica das experiências de violência intrafamiliar sucedidas pelo acolhimento institucional, o que será possível se o ambiente institucional puder ofertar uma escuta acolhedora e sensível.
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Sofia Creato Bonfatti: Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Doutoranda em Psicologia pela mesma instituição. http://orcid.org/0000-0001-9228-4335.
E-mail: sofia_bonfatti@yahoo.com.br
Tania Mara Marques Granato: Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre e Doutorada em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. http://orcid.org/0000-0002-2912-0693.
E-mail: granatotania@gmail.com