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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v18n1p134-144 

ARTIGO

 

Vivências e significados do complexo de édipo nas famílias contemporâneas

 

Experiences and meanings of the oedipal complex in contemporary families

 

Bivencias y significados del complejo de edipo en las familias contemporáneas

 

 

Caroline Trevisan Mendes de Almeida; Mary Yoko Okamoto

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP (Câmpus de Assis), SP, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender o exercício da parentalidade e da subjetivação nas famílias contemporâneas sob a perspectiva da experiência do Complexo de Édipo, a partir da teoria da psicanálise vincular. Foi realizado um estudo de caso com realização de entrevistas semiestruturadas com dois casais, um de avós que exerce as funções principais de cuidados com suas netas e o outro composto pela mãe biológica e o padrasto das meninas, que também participa do cotidiano familiar das crianças. Como resultado, verificou-se que o exercício da parentalidade é dividido e exercido pelos quatro participantes da entrevista, configurando uma vivência familiar atual em que os papéis parentais não estão delimitados de forma clara. No entanto, para todos os membros da família a avó representa a figura principal que exerce as funções parentais diante das netas, com estabelecimento de alianças inconscientes e aspectos intergeracionais específicos presentes na dinâmica familiar. Nesse contexto, para que ocorra uma elaboração edípica é necessária que seja exercida uma função diferenciadora, não limitada ao gênero ou filiação biológica, que permita o registro das diferenças nas relações intersubjetivas.

Palavras-chave: Psicanálise vincular; Complexo de Édipo; Famílias contemporâneas.


ABSTRACT

The aim was to understand the exercise of parenting and subjectivation in contemporary families regarding to the Oedipus Complex experience, from Linkage Psychoanalysis Theory. A case study has been carried out by semi - structured interviews with two couples, represented by the grandparents who fulfil the main nurture functions with their granddaughters, and the couple formed by the biological mother and the girls' stepfather, who also takes part in the family everyday life of the children. It was found that the exercise of parenting is shared and held by the four interviewees, constituting a new family experience in which the parental roles are not limited in a clear way. Even so, however for all family members, the grandmother represents the main figure who performs parental functions in front of granddaughters, setting up unconscious alliances and intergenerational aspects which have configured the family dynamics. It was observed that for an oedipal construction it's necessary to be performed a distinctive role not limited to gender or biological paternity, which allows the record of the differences and the inter-subjective relations' division.

Keywords: Link Psychoanalysis; Oedipal Complex; Contemporary Families.


RESUMEN

Se buscó comprender el ejercicio de la parentalidad y subjetivación en las familias contemporáneas en lo tocante a la experiencia del Complejo de Edipo, a partir de la teoría del psicoanálisis vincular. Se realizó un estudio de caso, con realización de entrevistas semiestructuradas con dos parejas, siendo la pareja de abuelos la que ejerce las funciones principales de cuidados de sus nietas y el matrimonio compuesto por la madre biológica y el padrastro de las niñas, que también participa del cotidiano familiar de los niños. Se verificó que el ejercicio de la parentalidad es dividido y ejercido por los cuatro participantes de la entrevista, configurando una vivencia familiar actual en que los papeles parentales no están delimitados de forma clara. Aun así, para todos los miembros de la familia, la abuela representa la principal figura que ejerce las funciones parentales frente a las nietas, con establecimiento de alianzas inconscientes y aspectos intergeneracionales específicos que configuraron la dinámica familiar. Se verificó que para que ocurra una elaboración edípica es necesario que se ejerza una función diferenciadora, no limitada al género o filiación biológica, que permita el registro de las diferencias y separación en las relaciones intersubjetivas.

Palabras clave: Psicoanálisis vincular; Complejo de Edipo; Familias contemporáneas.


 

 

Introdução

Este artigo busca compreender o exercício da parentalidade nas famílias contemporâneas sob a perspectiva da experiência do Complexo de Édipo. Foi realizado um estudo de caso de uma família em que os avós exercem as principais funções relacionadas à educação das duas netas, de 6 e 7 anos, enquanto a mãe biológica e o padrasto exercem papéis importantes, mas secundários, no cotidiano das crianças. A análise teve como foco a transmissão intergeracional/intersubjetiva dos papéis individuais dentro da família.

Freud inicia suas reflexões sobre o conceito de Complexo de Édipo partindo do mito de Édipo, transformado em tragédia grega por Sófocles (1990), na peça Édipo rei, e ao longo de sua vida elabora o conceito e faz reformulações. No artigo O Ego e o Id, Freud (1923) considera o Complexo de Édipo um processo de identificação duplo, chamado de positivo e negativo, pois percebe que tanto o menino quanto a menina se identificarão com ambos os genitores antes de estabelecer a identificação definitiva. Complementa que além de serem fontes de identificações, os pais precisam estabelecer o interdito, ou seja, os filhos precisam também se identificar com as proibições parentais que impedem a realização de desejos incestuosos, surgindo então o ideal de ego/superego (termos que Freud ainda não havia definido com precisão nessa obra). Afirma que o ideal do ego se constitui como o herdeiro do complexo de Édipo, uma vez que o ego pode dominar o complexo de Édipo.

Zimerman (2001) aponta que a importância do conceito na atualidade mostra-se em muitos aspectos necessários para a convivência social e em grupo, dentre eles, a possibilidade de triangulação nas relações, formação de identificações e ingresso em uma genitalidade adulta.

Julien (2000) considera que a família é a responsável pela transmissão dos interditos, base da ordem social e que é por meio dela que se estabelece uma estrutura em que o sistema de parentesco define lugares simbólicos e promove um discurso que organiza esses lugares.

Ceccarelli (2007) enfatiza as novas organizações familiares, ou novos arranjos familiares, na atualidade nas quais a ligação afetiva entre os sujeitos pode existir sob a forma de um exercício de parentalidade que se distancia dos padrões tradicionais, como são os casos de famílias monoparentais, homoparentais, adotivas, recompostas, de produção independente etc. O autor (2007) ressalta que independentemente do arranjo familiar, não é o aspecto biológico e consanguíneo que determina a filiação, uma vez que as subjetivações derivam do lugar ocupado pelo bebê no imaginário daquele que o recebe.

No contexto atual de mudanças sociais e familiares também nos deparamos com uma constituição familiar em que os avós assumem as principais funções de cuidados com os netos. Mainetti e Wanderbroocke (2013) apontam que cada vez mais se percebe avós que cuidam integralmente dos netos, por razões diversas: filhos adolescentes despreparados, desempregados, usuários de drogas, falecidos, separados, recasados sem que o novo cônjuge aceite a criança, abuso infantil, e abandono dos progenitores seja por motivos como conflito com a lei, deficiências físicas e transtornos mentais. Também colaboram com esses dados Cavalcanti et al. (2015), que apontam como causas principais a separação dos filhos, recasamento, crise financeira e gravidez na adolescência. Cardoso e Brito (2014) afirmam que para algumas avós, a possibilidade de cuidar dos netos tem como significado uma maneira de se sentirem úteis e/ou preencher o vazio que sentem.

Partindo da psicanálise vincular para a compreensão do conceito de complexo de Édipo na contemporaneidade, algumas conceituações tornam-se importantes para compreensão da dinâmica familiar. Kaës (2011) afirma que para a formação e manutenção do vínculo no relacionamento com o outro e o grupo social são necessárias a formação de alianças inconscientes e conscientes que cumpram com a função de preservar este vínculo, determinar como será seu funcionamento, suas normas e concessões referentes a este grupo. É fundamental um objetivo e comprometimento em comum entre duas ou mais pessoas para que exista um processo de ligação que constitui as alianças.

Falcke e Wagner (2014) apontam que a família tem uma importante força para a perpetuação mediante a transmissão de legados de uma geração à outra, denominada transmissão psíquica intergeracional, a qual confere identidade à família a partir de uma perspectiva histórica, além de atribuir significado às transações e idiossincrasias do movimento familiar da geração atual. Os autores (2014) apontam que desde a infância, de forma precoce, são atribuídos aos membros da família "mandatos" relacionados às identificações e modelos familiares. Caso o mandato tenha um significado considerável para a família e um dos seus membros não consiga realizar a expectativa desejada e a ele imposta, a família sente-se frustrada desencadeando sentimentos de abandono e solidão.

Castro (2010) retoma Kaës ao definir (1) a transmissão intersubjetiva como um conceito que inclui as formações subjetivas primárias (em especial as relativas ao grupo familiar) e que fornecem condições para o estabelecimento dos vínculos intersubjetivos; (2) o espaço e o vínculo que constituem a realidade psíquica do conjunto intersubjetivo, em que se formam os objetos e laços de identificação; e (3) o complexo de Édipo que direciona as relações de desejo e interdito nas relações entre os sujeitos.

Weber, Selig, Bernardi e Salvador (2006), ao estudarem o processo de transmissão de comportamentos de mães em relação a seus filhos, afirmam que existe uma correlação entre os valores que são experimentados e vividos e os que são repassados a futuras gerações. Os indivíduos internalizam modelos de relacionamentos por meio de suas experiências com pessoas significantes, modelos que após serem instituídos tornam-se resistentes a mudanças. Ao buscarem relacionamentos fora do contexto familiar provavelmente escolhem parceiros que correspondam aos seus modelos internos de relacionamento que serão reproduzidos de forma similar com os seus filhos ao tornarem-se pais.

Outro aspecto importante para a dinâmica familiar refere-se à conjugalidade, que Magalhães (2010) define como um entrelaçamento de dois "eus", duas subjetividades que caminham em direção à constituição de um terceiro eu, uma identidade compartilhada. Unem-se duas subjetividades diferentes, levando à formação de um terceiro espaço, intersubjetivo, com a construção de ideais de relacionamento conjugal e projetos sobre o futuro da família. Passos (2005) afirma que as funções da conjugalidade incluem a construção de um espaço de investimento afetivo e amoroso mútuo entre os parceiros, compartilhando desejos íntimos e a construção imaginária da criança, que começa a existir no imaginário dos pais antes de sua existência física. Além disso, a conjugalidade é considerada o espaço de contenção dos aspectos pulsionais em excesso que poderiam prejudicar a transmissão psíquica entre os conteúdos familiares dos parceiros para os filhos.

Existe outro aspecto que envolve a parentalidade, apontado por Throrstensen (2011), e que se refere a duas formas de incestualidade: uma "incestualidade necessária" e uma "incestualidade aprisionadora". A definição de incestualidade abrange uma dimensão primitiva da sexualidade que está sustentada pela ilusão de completude. A incestualidade necessária é aquela que contempla as trocas incestuais primordiais entre o bebê e a mãe, importantes para a constituição subjetiva da criança, tais como o toque e o amamentar. Conforme vai ocorrendo o desenvolvimento da criança é preciso que ocorra uma interferência do pai na relação do bebê com a mãe de como ele apareça como instância interditora na relação quanto ao seu aspecto sexual, deixando a criança que agora já está com seu psiquismo constituído, livre para que também redirecione a sua energia em escolhas exogâmicas, para objetos fora do seio familiar.

Além disso, existe o conceito de incestualidade aprisionadora (THORSTENSEN, 2011), no qual o interdito não acontece e a mãe procura a completude no relacionamento com o filho. Diante disso, não ocorre o redirecionamento de sua libido para outro objeto, como o pai, motivo pelo qual a criança não consegue se desvincular e redirecionar sua própria libido para outros objetos. Constitui-se então uma incestualidade aprisionadora, pois o direcionamento da energia libidinal da mãe, que busca uma completude no filho, não permite que o desenvolvimento da criança seja deficiente na busca de outros objetos externos à família. A autora ainda aponta que podem existir aspectos transgeracionais, referentes aos relacionamentos destes pais com seus próprios pais, interferindo neste processo.

Fiorini (2016) referindo-se ao exercício parental no estabelecimento de interditos em uma perspectiva contemporânea aponta que uma terceira função, simbólica e autônoma de quem a exerça, é necessária e que poderia ser exercida inclusive pela mãe, desde que ela conseguisse a separação do filho enquanto desejo próprio. León (2016) ressalta o papel de uma função diferenciadora que permitiria o registro das diferenças e separação nas relações intersubjetivas. Assim, entende a importância de um equilíbrio no exercício das funções parentais, de modo que tanto o pai quanto a mãe possam exercer funções de continência, narcisização e proibições.

 

Metodologia

Esta pesquisa utilizou a metodologia qualitativa que, segundo Turato (2003), possui como características principais os dados descritivos, a preocupação com as etapas do processo, a importância da significação e da análise naturalística e indutiva. O enfoque é nos sentidos e significações dos fenômenos, buscando apreendê-los através da escuta e observação dos sujeitos, procurando maneiras de interpretá-los.

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com dois casais, os avós maternos, que exercem as principais funções de cuidado com as duas netas, de 6 e 7 anos, e a mãe biológica e o padrasto das meninas, que moram no fundo da casa dos avós e também participam das relações cotidianas da família. A interpretação e a discussão dos dados foram realizadas utilizando-se a teoria psicanalítica como referencial teórico, recorrendo a autores que tratam do tema com um enfoque na psicanálise vincular.

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras de Assis (CAAE 78743417.4.0000.5401). Foram seguidos todos os preceitos éticos para realização desta pesquisa.

 

Análise dos resultados

Inicialmente será apresentado um histórico da família, com utilização de nomes fictícios para preservação do sigilo e anonimato.

A avó Chica tem 55 anos e é casada com João Carlos, de 57 anos. Ambos vinham de relacionamentos anteriores, sendo que Chica já tinha dois filhos do primeiro casamento e juntos tiveram a terceira filha, Maria Clara. Os dois primeiros filhos possuem uma relação distante com os pais, de forma que Maria Clara é a filha mais próxima, morando no fundo da casa dos pais.

Maria Clara teve duas filhas, Maria Elena, de sete anos, e Elisa, de seis anos, com um homem casado, que após a gravidez registrou as meninas, porém é ausente emocionalmente. Quando Maria Elena nasceu, Chica assumiu todos os cuidados desde o início, pois Maria Clara precisava trabalhar para o sustento da família, o que também ocorreu após o nascimento de Elisa. Maria Clara acabou não exercendo a função materna, que foi delegada à avó Chica. Separada do pai biológico das meninas, há cerca de dois anos constituiu novo relacionamento com Edu. Casaram-se, tiveram um filho Daniel, de cinco meses. Atualmente Maria Clara exerce a função materna de forma mais ativa com ele.

A análise das entrevistas ocorreu a partir da repetição e relevância dos temas contidos nas respostas às perguntas, de forma a mesclar a perspectiva dos avós e dos pais em relação às suas experiências familiares.

Expectativas, nascimento das crianças e como os avós assumiram a criação das netas

A neta Maria Elena foi "gestada simbolicamente" por Chica desde a gravidez de Maria Clara através de "diálogos com a barriga", o que estabeleceu um vínculo inicial com a neta. Em relação ao pai biológico, casado e com filhos, quando soube da gravidez, passou todos os seus bens para a filha mais velha, simbolizando o quanto Maria Elena não teria espaço significativo na vida dele. Maria Clara, que tinha dezessete anos, não se sentia preparada para a maternidade e ainda se deparou com a ausência do parceiro nos aspectos afetivo e financeiro. Por isso necessitava de um emprego que garantisse a manutenção das despesas o que a manteve distante da educação de sua filha mais velha. Enquanto isso a avó estabeleceu uma relação afetiva muito intensa com a neta, com um investimento libidinal significativo, tornando-a seu novo sentido de vida após ter passado por diversos períodos de enfermidade.

Cerca de oito meses após o nascimento de Maria Elena, Maria Clara engravidou de Elisa, momento em que havia decidido separar-se definitivamente do pai biológico das crianças, o que o levou a duvidar da paternidade da segunda filha. O tempo de proximidade entre as gestações gerou um impacto na família, uma vez que a avó Chica estava tão envolvida com a neta Maria Elena que não dedicou o mesmo tempo e atenção para Elisa.

O contexto da gestação de Daniel foi completamente diferente, uma vez que ocorreu a partir da constituição de uma conjugalidade entre Maria Clara e Edu, e com o desejo de ambos exercerem as funções parentais na vida do filho. Assim, Daniel ocupa lugar de destaque no psiquismo do casal, pois ambos desejaram exercer a parentalidade com o filho.

Durante a gestação de Maria Clara, Chica submetia-se a um tratamento médico em outra cidade e foi acompanhada pela filha. Os primeiros filhos já estavam vivendo de forma mais independente, por isso, diante da ausência dos filhos e de um início de infarto que havia sofrido, Chica se encontrava em um estado depressivo em razão de uma ausência de sentido da vida. Com o nascimento de Maria Elena, ela relata que sua vida passou a ter novamente um sentido, ou seja, passou por um processo de reorganização de sua atividade libidinal direcionada para o cuidado da neta.

Aspectos intergeracionais

Observamos que Chica estabeleceu com seus pais modelos de relacionamento e de identificação que foram transmitidos intergeracionalmente, reproduzidos na relação com os filhos e as netas. Era muito vinculada à mãe, de maneira simbiótica, enquanto o pai era uma figura ausente, não existindo entre elas uma figura diferenciadora.

Chica ocupa um lugar central no cenário das decisões familiares, estabelece os mesmos vínculos indiscriminados e indiferenciados com seus filhos e netas, enquanto João Carlos não consegue estabelecer uma função terceira nesses vínculos. Analisando os aspectos intergeracionais da história de vida de João Carlos, observa-se que o modelo de relacionamento estabelecido com o seu tio e a sua mãe, responsáveis pela sua criação, era repleto de normas rígidas, sem a permissão de questionamentos e colocando-se de maneira submissa frente aos familiares. Verificou-se a mesma situação no relacionamento do casal, uma vez que João Carlos não desempenha uma função diferenciadora delegando à Chica todas as decisões do âmbito familiar. Por sua vez, Chica tende a estabelecer vínculos com pouca diferenciação, muitas vezes sendo invasiva com os filhos e as netas.

Foi possível notar que João Carlos assumiu os filhos do primeiro relacionamento de Chica, porém, devido ao tipo de vinculação parental estabelecido, verificamos que ambos romperam com a família mesmo que de maneira diversa. Após o casamento, o filho mais velho afastou-se da família, e em seu discurso, Chica responsabiliza a nora por tal postura. O segundo filho rejeitou esse padrão familiar seguindo o modelo oposto, afastando-se completamente dos pais. Como resultado, tais afastamentos geraram nos pais sensações de abandono e solidão, uma vez que não atenderam ao mandato familiar, transmitido através das gerações, de uma vinculação intensa com os pais o que não permitiria o exercício pleno da autonomia dos filhos.

Maria Clara é a única filha biológica do casal, e somente ela continua próxima dos pais. Afirma que quando começou a perceber que os irmãos não forneciam a Chica o amor que ela "precisava", começou a sentir que deveria cumprir o papel de acolhê-la, estando sempre próxima e evitando magoá-la, criando uma aliança inconsciente com os pais. Quando a mãe apresentou problemas cardíacos e precisou realizar o tratamento médico em outra cidade, Maria Clara a acompanhou, permitindo que os avós fossem responsáveis pelas netas o que os manteve ativos no exercício de um papel parental.

Percebe-se uma espécie de aprisionamento de Maria Clara aos conteúdos transmitidos pelo tecido familiar, com reflexos na geração atual devido à forte ligação da neta, Maria Elena, que cuida da avó e sente-se responsável por ela, abrindo mão de atividades para fazer companhia à avó.

Conjugalidade e o impacto na parentalidade

O relacionamento estabelecido entre Maria Clara e o pai biológico de suas filhas não caminhou para a formação de uma identidade compartilhada. O pai tem outra família com filhos e não se separou para constituir uma vida amorosa com Maria Clara e suas filhas, a qual não possuía de fato um desejo pelo parceiro, relacionando-se com ele mais pelo incentivo da mãe e pelo desamparo enfrentado na vida na nova cidade quando se mudou para que Chica fizesse o tratamento médico. -

O nascimento das filhas exigiria uma nova constituição do casal parental, porém, ambos não conseguiram manter nem o relacionamento conjugal nem exercer a parentalidade com as filhas. No estudo em questão observou-se que a parentalidade foi prejudicada pela ausência de uma conjugalidade satisfatória, pois o pai é ausente, procurando manter sua primeira família, e a mãe, ao sentir-se sozinha e despreparada, acaba deixando as filhas sob os cuidados de sua mãe para trabalhar e suprir a necessidade financeira da família.

Ao contrário, o relacionamento de Maria Clara com Edu trouxe reflexos e transformações em toda a família, sendo bem aceito por todos, especialmente por Chica e as crianças. Ambos buscaram construir uma identidade compartilhada; a história pregressa de ambos contribuiu para isso além da formação de alianças que mantém o vínculo do casal. Maria Clara não pode exercer a parentalidade com as filhas e Edu também não conseguiu exercê-la com seu filho, fruto do primeiro relacionamento, já que a mãe, após a separação, levou-o consigo para uma cidade há cerca de três mil quilômetros de distância do pai. Pode-se notar que ambos vieram de relacionamentos amorosos e experiências parentais frustrados e desejavam ter mais filhos para viver a experiência da maternidade e paternidade de forma ativa.

Exercício das funções parentais e função diferenciadora

As funções parentais são exercidas de maneiras diferentes de acordo com cada membro familiar, realizando ou não a transmissão dos interditos. A avó assumiu papeis relacionados às funções maternas e paternas na vida das netas. Ela possui uma filiação com as netas, que supriram a ausência afetiva que seus filhos deixaram.

No caso de Maria Elena, que foi a primeira neta após o processo de autonomia dos filhos mais velhos, Chica estabeleceu um investimento narcísico intenso. Desde a gravidez promoveu a gestação simbólica da neta, após o nascimento tomou-a para si na maternidade assumindo as principais funções de cuidado. Apresentava uma visão idealizada da neta, como se não tivesse problemas ou dificuldades. Sentia-se feliz quando a criança deixava de ir a algum lugar para não a deixar sozinha. Por outro lado, João Carlos exerceu funções maternas e paternas na vida das netas, no sentido de cumprir uma função diferenciadora, uma tentativa de se oferecer como um objeto que demonstre uma diferenciação e separação da célula narcísica estabelecida entre a esposa e as netas, sobretudo com Maria Elena. Além disso, saía de casa para vender os doces fabricados por Chica, enquanto ela permanecia no lar cuidando das netas e dos afazeres domésticos. Nesse sentido, percebe-se que a função de cuidado é exercida principalmente pela avó, enquanto o avô é aquele que sai para trazer a contribuição financeira para casa.

Maria Clara não conseguiu exercer as funções maternas e de investimento libidinal na vida de Maria Elena, ao passo que exerceu algumas funções paternas, tais como imposição de regras, separação e diferenciação da criança e a avó, além de cuidar do aspecto financeiro da família.

Apesar desse esforço, muitas vezes Maria Elena recorre à proteção da avó que, por sua vez, não a frustra o que faz com que Maria Clara não conseguia ocupar uma função diferenciadora na família, em especial na relação entre Maria Elena e Chica, restando-lhe, principalmente, a função de provedora financeira das filhas.

No cotidiano das duas filhas, ela divide algumas funções com Chica, tais como a alimentação e a rotina, mas com Maria Elena a relação é distante emocionalmente. No caso de Elisa, Maria Clara consegue ser mais próxima afetivamente, declarando que a própria filha demonstra mais consideração e afeto ao obedecer às suas solicitações e muitas vezes é proativa, ao contrário de Maria Elena.

Edu também exerce funções parentais na vida das meninas. A ele é permitido colocar regras e cobrá-las das crianças. Conseguiu o seu respeito e foi visto como uma espécie de "salvador" por todos, dando novo significado de vida à Maria Clara mostrando que poderia ocupar uma função diferenciadora na família, já que demonstrava ter autoridade perante as meninas ao ponto de Chica permitir que o padrasto participe do cotidiano das netas. Inclusive, Maria Elena se identifica com a mãe e copia as atitudes de Edu, começando a demonstrar uma faceta edípica frente ao casal.

 

Discussão dos resultados

Em relação aos sentimentos dos avós ao assumirem a criação de netos, Cardoso e Brito (2014) afirmam em um estudo com avós que cuidavam de forma constante dos netos, que o exercício dessas funções de cuidado tinha como significado uma maneira de eles se sentireme úteis ou preencherem o vazio que sentem. No caso de Chica, o vazio com o crescimento e afastamento dos filhos pode ser preenchido com a chegada das netas, em especial, Maria Elena.

Quanto às razões para que os avós assumissem a criação dos netos, a separação de Maria Clara do pai biológico das crianças, além da gravidez na adolescência em um período em que a mãe não se sentia preparada para exercer essa função, teve grande relevância nos eventos posteriores, já que o pai não contribuía com as despesas e a responsabilidade financeira recaiu sobre a mãe. Perceberam-se também aspectos intergeracionais como sendo determinantes neste processo. Estudos anteriores como os de Mainetti e Wanderbroocke (2013) e Cavalcanti et al. (2015) já apontaram a separação dos pais e a gravidez na adolescência como razões muito frequentes para que os avós assumissem os netos.

Falcke e Wagner (2014) afirmam que os padrões e valores são transmitidos de geração em geração, fazendo parte da vida dos sujeitos sem que eles percebam o que acaba por influenciar atitudes e escolhas como se fossem vozes vindas de seu interior. O que faz a diferença entre um integrante da família e outro é a diferença no "volume" dessas vozes para cada sujeito, sua quantidade, intensidade e compreensão. No caso de Maria Clara, esta voz soou mais alta cumprindo a função de não deixar os pais sozinhos e sujeitar-se às suas escolhas e posicionamentos. O fato de ter sido a filha mais nova, e percebendo os efeitos do afastamento dos irmãos e de ser a única filha consanguínea do casal, contribuiu para que assumisse esse papel, permitindo o estabelecimento de uma aliança inconsciente que, segundo Kaës (2011), tem a função de formar e preservar a manutenção do vínculo no grupo social.

A conjugalidade demonstrou-se forte influenciadora do exercício da parentalidade nesta pesquisa. Conforme aponta Magalhães (2010), a conjugalidade promove a constituição de um terceiro "eu", com o compartilhamento de uma identidade que mescla aspectos da subjetividade de cada um dos parceiros. Passos (2005) aponta que a primeira inscrição simbólica da criança no mundo ocorre a partir da conjugalidade, manifestada na criação imaginária da criança desde antes de sua concepção, contendo os aspectos pulsionais, fornecendo a transmissão psíquica para os filhos e oferecendo o espaço de investimento afetivo.

Considerando tais funções podemos notar que o investimento afetivo existente para as meninas, cujo pai não estabeleceu nenhum vínculo parental com as filhas nem conjugal com Maria Clara, difere do investimento em Daniel. Na história desse filho, houve uma constituição conjugal e parental envolvendo os pais. A função de contenção dos aspectos pulsionais também está relacionada à vivência edípica, através de uma triangulação das relações, e é verificada no caso das meninas. O relacionamento de Maria Clara com Edu propiciou que ele começasse a exercer uma função diferenciadora na relação entre as netas e a avó impossibilitado anteriormente pois nenhum componente da família conseguia se libertar dos aspectos intergeracionais que envolviam a família.

Fiorini (2016) refere-se à importância do exercício de uma função simbólica, uma função terceira, não vinculada necessariamente ao gênero. Léon (2016) também aponta a importância de uma função diferenciadora, que permita o registro das diferenças e separação nas relações intersubjetivas, por meio de um equilíbrio entre o exercício das funções parentais, construídos através da dinâmica de cada família.

No exercício das funções parentais se destaca o relacionamento da avó com as netas. Os investimentos libidinais realizados por Chica com Maria Elena foram necessários, frutos de uma "incestualidade necessária" para constituição do seu psiquismo, conforme aponta Throstensen (2011). No entanto, necessitam de uma instância interditória que permita que a energia libidinal de Chica seja redirecionada e que Maria Elena possa investir libidinalmente em objetos fora do seio da família.

Como o tipo de investimento narcísico de Chica não colabora para esse redirecionamento de energia libidinal, inclusive pelos aspectos intergeracionais (já que teve a ausência de seu pai durante boa parte da infância e um relacionamento fortemente investido com a mãe, de maneira simbiótica), o desenvolvimento de Maria Elena pode ser prejudicado, pois não consegue se desvincular da avó e redirecionar sua libido para outros objetos. Assume a posição de cumprir a ilusão de completude, e também se soma a isto a forte aliança inconsciente estabelecida e transmitida desde a gravidez de Maria Clara. Ou seja, é muito difícil que fique a encargo da criança realizar esse afastamento, fazendo-se necessária a presença de uma instância interditória que lhe auxilie. Ao que tudo indica, esse papel poderá ser exercido pelo padrasto porque Chica permite que ele exerça a função que nem João Carlos e Maria Clara conseguiram exercer, apesar das tentativas.

Dessa maneira, as funções exercidas pelo avô e Maria Clara, restringem-se à responsabilidade pelos proventos financeiros, uma vez que nenhum deles conseguiu exercer a função diferenciadora com o intuito de separação e diferenciação de Chica e Maria Elena.

Zanetti e Gomes (2011) apontam as consequências para o desenvolvimento infantil quando o exercício de funções parentais não estabelece interditos, o que acarreta uma projeção do narcisismo dos pais nos filhos. Isso termina por não possibilitar aos filhos o controle pulsional, levando a uma angústia e falta de referência de pais fortes e protetores para acolhê-los.

Quanto à relação de Chica com Elisa, percebe-se que a avó não promoveu o mesmo investimento libidinal como no caso de Maria Elena. Forneceu os cuidados e afetos necessários, mas não chegou a uma incestualidade aprisionadora porque sua energia psíquica estava voltada para a primeira neta. Isto permitiu que Elisa tivesse mais liberdade para os investimentos libidinais voltados para outros objetos fora do seio familiar, adaptando-se facilmente a novos ambientes e sendo muito sociável e comunicativa. Também se verificou a presença de um superego, sendo a neta que mais obedece às ordens familiares, demonstrando que a avó parece ter tido mais facilidade em possibilitar o exercício de uma função diferenciadora, tanto que Maria Clara e Elisa são mais próximas emocionalmente sem a interferência intensa de Chica. Conforme aponta Freud (1923), o ideal de ego/superego é herdeiro do complexo de Édipo. O superego não expõe somente o que deve ser feito, mas também inclui a proibição do que não deve ser feito, aspecto observado em Elisa, o que indica uma experiência edípica mais elaborada.

 

Considerações Finais

Nas famílias contemporâneas as funções parentais são exercidas em conjunto por todos os seus membros, que apresentam funções maternas e paternas nas relações com as crianças independentemente de gênero, e cada participante pode executar mais de uma função perante os filhos e netos.

Na família analisada nesta pesquisa, verificou-se tal divisão de funções parentais pois os avós assumiram as principais funções de cuidados com as netas, embora a mãe biológica e seu novo parceiro também participassem do cotidiano das famílias. A avó foi considerada por todos como principal figura parental frente às netas, porém, verifica-se a necessidade de uma função diferenciadora que pode ser ocupada pelo casal de pais, em especial devido à presença do padrasto que modificou a dinâmica familiar desde a sua chegada.

Os aspectos geracionais foram percebidos como influenciadores de forma direta na vivência edípica da família, principalmente para Chica que viveu as experiências de separação e autonomia como um abandono, fruto de uma relação pouco diferenciada com sua mãe, o que prejudicou sua elaboração edípica e influenciou nas relações com seus filhos e netos.

Os processos psíquicos herdados refletiram-se na conduta dos filhos frente à mãe, ora tentando afastar-se de maneira radical, como no caso dos filhos, ora assumindo para si esse mandato transmitido, como no caso de Maria Clara, que desejava preencher o vazio de sua mãe. Esses processos foram transmitidos ainda para a neta Maria Elena, que viveu uma relação intensa e aprisionadora com a avó, interferindo em uma elaboração edípica satisfatória. Elisa não recebe o mesmo investimento afetivo da avó, e com isso fica também mais livre, redirecionando sua energia psíquica para outros contextos, com facilidades de socialização e criatividade e com isso consegue vivenciar o complexo de Édipo de forma mais elaborada, percebendo-se a presença e estruturação de um superego em sua organização psíquica.

A presença de uma função diferenciadora própria ao momento da vivência do complexo do Édipo torna-se fundamental, independente da configuração familiar, de gênero ou filiação de quem a exerça, pois a sua ausência pode prejudicar o desenvolvimento emocional, a formação de identidade e a autonomia dos sujeitos, implicando em novos mandatos transmitidos a cada nova geração que passa a ser fortemente influenciada pelas dificuldades da geração anterior.

 

Referências Bibliográficas

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Caroline Trevisan Mendes de Almeida: Mestre em Psicologia e Sociedade pela Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP / Câmpus de Assis.
Contato: carol_psicotrevisan@yahoo.com.br
Telefone: (14) 99612-2838
Mary Yoko Okamoto: Departamento de Psicologia Clínica. Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP / Câmpus de Assis.
Contato: mary.okamoto@unesp.br
Telefone: (18) 3302-5800.

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