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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.2 São Paulo maio/ 2021

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p207-227 

ARTIGO

 

A experiência escrita: as potencialidades da escrita em grupo na clínica das drogadições

 

The written experience: the potentialities of group writing in the drug addiction clinic

 

La experiencia escrita: las potencialidades de la escritura grupal en la clínica de drogadicción

 

 

Gustavo Chiesa Gouveia Nascimento

Psicólogo membro da ABRAMD e dos grupos de pesquisa CLIGIAP/USP e LIPSIC (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade Psicanálise Contemporânea), atua no ambulatório PROMUD (Programa da Mulher Dependente Química) do IPq do HC SP. E-mail: gustavocgn@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre algumas possíveis contribuições da escrita, e mais especificamente da tarefa da escrita como objeto de mediação em grupo, como dispositivo para a clínica das drogadições. Para tal é problematizado inicialmente a temporalidade dos relatos autobiográficos de ex-usuários de drogas e a escrita enquanto objeto mediador e transferencial em grupo. Apresentamos alguns aportes da psicanálise das drogadições para problematizar as falhas das cadeias representacionais e a perda do sentido simbólico para o agir que se colocam em curso neste campo clínico para então refletir, a partir de uma vinheta clínica, sobre as potencialidades da tarefa de escrever em grupo como catalizadora de processos de simbolização. A tarefa de escrever em grupo demonstra-se mobilizadora e depositária de elementos psíquicos de inscrição precária, demonstrando-se resistente à agressividade das ações evacuatórias e dando apoio a um resgate da dimensão convocatória da linguagem. A leitura das múltiplas transferências grupais, da transferência com o objeto mediador e da transferência com a tarefa demonstram-se fundamentais para os manejos técnicos e para a função interpretante dos coordenadores no grupo.

Palavras-chave: Objetos mediadores; drogadição; grupos operativos.


ABSTRACT

This paper aims to reflect on some possible contributions of writing, and more specifically the task of writing as a group mediation object, as a device for the drug addiction clinic. To this end, the temporality of the autobiographical reports of former drug users and the writing as a group mediator and transference object are problematized. Some contributions of psychoanalysis of drug addictions are presented to problematize the failures of the representational chains and the loss of the symbolic meaning to act that are underway in this clinical field and then reflect, from a clinical vignette, about the potentialities of the task of group writing as a catalyst for symbolization processes. The task of group writing proves to be a mobilizer and depository of precarious inscription psychic elements, being resistant to the aggressiveness of evacuatory actions and supporting the rescue of the convocatory dimension of language. The comprehension of the multiple group transferences, the transference with the mediator object and the transference with the task prove to be of fundamental value for the technical management and the interpretative function of the coordinators.

Keywords: mediating objects; drug addiction; operative groups.


RESUMEN

Este articulo tiene como objetivo reflexionar sobre algunas posibles contribuciones de la escritura, y más específicamente la tarea de escribir como un objeto de mediación grupal, como un dispositivo para la clínica de drogadicción. Con este fin, la temporalidad de los informes autobiográficos de ex usuarios de drogas y la escritura como mediador grupal y objeto de transferencia se problematizan. Presentamos algunas contribuciones del psicoanálisis de las drogadicciones para problematizar las fallas de las cadenas de representación y la pérdida del significado simbólico para actuar que están en curso en este campo clínico y luego reflexionar, desde una viñeta clínica, sobre las potencialidades de la tarea de escritura grupal como catalizador de procesos de simbolización. La tarea de la escritura grupal demuestra ser un movilizador y depositario de elementos psíquicos de inscripción precaria, siendo resistente a la agresividad de las acciones de evacuación y apoyando un rescate de la dimensión de convocatoria del lenguaje. La lectura de las múltiples transferencias en los grupos, la transferencia con el objeto mediador y la transferencia con la tarea demuestran ser de valor fundamental para la gestión técnica y la función interpretativa de los coordinadores.

Palabras-clave: Objetos mediadores; drogadicción; grupos operativos.


 

 

Introdução

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre algumas possíveis contribuições da escrita, e mais especificamente da tarefa da escrita como objeto de mediação em um grupo, para a clínica das drogadições.

Não é raro encontrarmos em bibliotecas e jornais relatos de ex-usuários de drogas que procuram nos contar, das formas mais diversas possíveis, sobre suas experiências indizíveis com as drogas e o mundo que as circunda.

De fato, os relatos são diversos, mas parecem percorrer caminhos bastante semelhantes. Lancetti (2015), em sua ideia de conjunto-droga, chega mesmo a nos propor que a exposição midiática e o testemunho incessante e orgulhoso de ex-usuários a respeito de sua abstinência fariam todos parte de um mesmo sintoma toxicômano.

De Esmeralda, do livro "Esmeralda: por que não dancei" (Ortiz, 2000), que nos narra as "aventuras" pelas ruas de São Paulo protagonizadas por uma menina que se autodenomina uma sobrevivente da "geração crack" dos anos 90, à mais conhecida Christiane F., vemos este tipo de relato trazendo a história de uma luta incessante contra o vício, e a narrativa muitas vezes repetitiva que testemunha a transformação da droga como objeto de fascínio, prazer revigorante, à droga como objeto de necessidade suprema, escravizadora de todos os desejos.

Sissa (1999), por outro lado, nos chama atenção para um aspecto diferente a respeito deste fenômeno, destacando a importância que o registro da temporalidade ganha nestes relatos:

A importância da temporalidade - percepção da experiência em termos de tempo que muda, consciência de um tempo próprio para o desejo que passa a determinar a vida - aparece como estrutura narrativa fundamental das autobiografias dos amantes de drogas. Contar a história de um hábito, de uma regularidade que se faz cada vez mais repetitiva, significa, em primeiro lugar, procurar os momentos de descontinuidade: quando o ritmo assume uma outra cadência, quando os dias começam a se estruturar em função de uma única preocupação, quando a alternância entre períodos com e períodos sem se torna ingovernável, quando o prazer se torna analgésico. (Sissa, 1999, p.17)

Ora, se por um lado podemos enxergar nestes textos um mero reflexo do circuito toxicômano por outro parecemos enxergar um esforço de representação de uma experiência totalizante que parece servir de suporte à formulação de uma questão.

Como nos diz Gilberto Dimenstein no prefácio do livro de Esmeralda, é com a questão "por que não dancei?" que a autora dá início a sua busca. O próprio comentador, convidado a ajudá-la em sua investigação, presencia em um misto de reportagem e terapia uma pessoa que fora "convidada a buscar a chave do mistério, a se ver através de seu passado e também pelos olhos de testemunhas que a conheceram nas ruas, instituições ou clínicas terapêuticas" (Ortiz, 2015, p.15). Reconhecendo em seu texto uma circularidade discursiva em que o saber nunca se fecha, mas na qual os sentidos podem se deslocar, Dimenstein diz "O leitor vai viajar agora não apenas por um livro. Mas por uma lição universal de vida sobre o que nos faz "dançar", quando perdemos a noção de que viver é mais do que ter, mas, em especial ser." (Ortiz, 2015, p.15).

Se por um lado o resgate da temporalidade como questão do "quando" se dança é central nestes relatos, por outro, a própria temporalidade do testemunho que se precipita no texto escrito parece bastante distinta da temporalidade do agir impulsivo que caracterizam as drogadições. Se Le Poulichet (2005) nos diz "a toxicomania precipita um saber" o texto de Esmeralda parece mais nos precipitar uma questão!

Retomando Sissa (1999):

A língua dos toxicômanos fala e diz, em sua violência, o que a experiência representa [grifo nosso], para além das compaixões. A distância em relação à escrita, frequentemente possível num período de desintoxicação, dá à palavra uma intenção retrospectiva, na qual as volúpias do início são a um tempo reconhecidas, celebradas e compreendidas em sua negatividade. Reconhecer esse gozo inaugural e compreender lhe a estrutura negativa que se revela no tempo significa identificar e nomear a parte do desejo que contribui para dar início ao hábito, antes que a necessidade ocultasse isso. Isso leva, em consequência, a uma formulação da lembrança que ultrapassa o determinismo. (p.33)

Vemos na passagem da autora uma característica retrospectiva nestas textualidades, que parecem buscar o fio de retomada do desejo, desejo que um sujeito pode ser capaz de enunciar, aonde avança o império do hábito e da repetição compulsiva subvertidas no terreno da necessidade.

Propomos desta forma que a tarefa de escrever em grupo, como função mediadora, pode servir de apoio para uma reorientação de um registro do atual para um registro histórico, servindo de suporte para o resgate de uma dimensão da temporalidade, frente à história e frente ao aqui-agora da experiência vivida, perdida em uma totalidade da intensidade toxicômana. Aproximamo-nos assim da discussão sobre o uso e o papel dos objetos mediadores em grupos terapêuticos.

 

A transferência com o objeto mediador e a transferência com a tarefa

Nos trabalhos com psicanálise de grupos da perspectiva francesa a relação com o objeto de mediação utilizado em um grupo terapêutico pode ser pensando em termos de uma experiência transferencial. Nesta perspectiva, a transferência com o objeto mediador é acrescentada aos quatro objetos transferenciais do grupo apresentados na proposta de Béjarano (1978), além de pontuar a particularidade desta nova modalidade.

Destacamos dentre estas particularidades a ausência do caráter metafórico nesta modalidade de transferência e a dimensão da sensorialidade na relação com o objeto mediador proposta por Anne Brun (2013). Para Brun (2013), "A função de atração do meio consiste em atrair a sensorialidade dos pacientes e mobilizar assim uma parte de suas constelações transferenciais"1 (p. 179).

Nos diz Brun (2013):

No enquadre específico de um grupo de mediação (...) os pacientes irão projetar seus elementos fragmentados de seu mundo interno não apenas nos terapeutas e nos outros sujeitos do grupo, segundo o processo de difração da transferência no dispositivo grupal conceitualizado por R. Kaes (1976), mas também nos elementos sensoriais do enquadre terapêutico, que representa um aspecto importante da grupalidade da transferência.2 (p. 170)

Nesta perspectiva, os elementos sensoriais do enquadre, entre eles o objeto mediador, surgem no grupo também como depositários de constelações transferenciais que servem de apoio à figuração/simbolização de elementos psíquicos primitivos que remontam às experiências objetais primárias. Assim, as características do objeto mediador utilizado devem ser muito bem problematizadas de clínica à clínica pensando-se na especificidade dos elementos sensório-motores mobilizados e atraídos por cada objeto.

Ao falar especificamente sobre a escrita como objeto mediador em grupos terapêuticos a autora nos traz:

A escrita terapêutica em grupo, reativa e permite a metaforização de experiências corporais e tensões previamente infiguráveis, é uma forma original de tratar a problemática do corpo e do ato, que é central nas patologias narcísicas-identitárias. O trabalho de escrever, dentro de um dispositivo de grupo, reativa experiências sensório-perceptivas-motoras não simbolizadas e as convoca de modo a figurar, apoiadas na fantasmática inconsciente grupal, de acordo com peculiaridades específicas para cada patologia3(Brun, 2013, p.301)

Vemos dessa forma que a escrita, segundo a autora, serviria de suporte fundamentalmente ao trabalho de metaforização dos registros do corpo e do ato, a partir da mobilização, mediada pelas transferências grupais, de experiências sensório-motoras-perceptivas não simbolizadas, guardando-se a especificidade de cada contexto clínico.

Pablo Castanho (2018), ao comentar as noções de transferência por depósito de Vacheret e de transferência pelo retorno pulsional no outro de Roussilon, apresenta mais outra característica da transferência com os objetos mediadores, a ausência de seu caráter metafórico.

Nos traz Castanho (2018):

A ausência da capacidade de metaforizar pode ser pensada em termos de transferência de elementos que não estão no registro de representação de palavra. Se pensarmos em termos de atividade representacional (Piera Aulagnier) ou de processo de simbolização (Roussillon), trata-se da transferência de elementos primitivos, pouco simbolizados, próximos ao pictograma, ou com registro psíquico precário (...). (p. 199)

Concordamos e nos apoiamos nestas proposições, contudo, em nossa perspectiva, e em valorização aos referenciais fundantes da psicanálise de grupos latino-americana, consideramos de extrema valia ainda a proposição de uma outra dimensão transferencial, a transferência com a tarefa, retomada por Castanho (2018) a partir de sua leitura própria da noção de tarefa de Pichon Riviére, inaugurando uma possibilidade de leitura e manejo clínico bastante próximo de nossos contextos e dispositivos institucionais.

Em sua perspectiva, a tarefa pichoniana, enquanto objeto de conhecimento dos grupos operativos, surge como um ponto de mediação entre a realidade material e a realidade psíquica dos integrantes, podendo ser tomado psiquicamente pelo grupo, mas existindo como elemento da realidade material independente dele. Castanho (2018) propõe então que certas experiências psíquicas em espera de elaboração, do grupo como um todo e de cada membro ou subgrupo do mesmo, podem ficar depositados neste ponto de mediação. Diz o autor:

De fato, em sua acepção sócio-histórica, parece-nos proveitoso aproximar o objeto de conhecimento do grupo operativo do conceito de instituições. E, se o grupo operativo procede a uma análise da transferência com o objeto de conhecimento, parece-nos que poderíamos dizer que neles operamos análises daquilo que de nossas relações com as instituições permanece em espera e sofrimento. (Castanho, 2018, p. 241)

Mais adiante continua:

Nossa hipótese é que a proposição de um tema para discussão (tarefa em um grupo operativo de aprendizagem) ou qualquer tarefa que um grupo se dê sobre condições suficientes para o desdobramento do processo associativo grupal promova a exteriorização dos elementos pouco ou não apropriados psiquicamente na relação dos sujeitos com este tema ou atividade. (Castanho, 2018, p. 247)

Vemos nestas passagens que, assim como o objeto mediador, a própria tarefa dada a um grupo pode servir como depositária de elementos psíquicos, atraindo para a dramatização no aqui-agora do grupo elementos pouco apropriados psiquicamente e que relacionem-se com a tarefa, trazendo ao analista a atenção para outro campo de vivências em espera de elaboração "em uma combinação entre deixar-se levar pela experiência e pensar-se neste processo" (Castanho, 2018, p.249).

Entendemos que a convocação para a escrita em grupo pode ser mobilizadora tanto dos elementos sensório-motores ligados a experiência de tradução de pensamento em escrita, quanto dos elementos psíquicos ligados à própria tarefa de escrever e à relação com a linguagem enquanto instituição cultural. Pensemos aqui por exemplo na vergonha frente ao fracasso escolar e ao semianalfabetismo, ou em oposição no prestígio e "licença poética" ligada aos escritores.

De uma forma ou de outra, Castanho (2008) apresenta algumas características generalizáveis do trabalho com grupos de mediação.

• A indicação aos grupos de mediação para os "[...] pacientes para quem a regra da associação livre não leva a uma tomada da fala, em virtude da pobreza de seu pré- consciente e da falha de sua capacidade associativa" (Vacheret, 2002, p. 150); • A importância e as especificidades dos processos grupais; • O caráter sensorial do objeto mediador e sua potência de despertar as "memórias do corpo"; • A questão da violência originária e a utilidade do grupo de mediação nesse contexto; • Especificidades em relação à transferência; • Abstinência da interpretação. (Castanho, 2008, p.197)

Passamos a seguir a pensar nas possíveis particularidades que o contexto de trabalho com a problemática das drogadições podem nos suscitar em termos de experiências psíquicas à espera de elaboração.

 

A língua do agir e a clínica do irrepresentável.

A experiência enquanto representação e o avanço do irrepresentável na ação parecem ser temas de relevância quando pensamos sobre as formas de sofrimento presentes no campo das drogadições.

Baseamo-nos aqui na reflexão de Décio Gurfinkel (2001; 2011), que coloca a problemática das adicções justamente nesta passagem do registro do desejo para o registro da necessidade. Nesta passagem, defende o autor, o objeto, assim como o sujeito tornam-se coisa, perdendo progressivamente seu sentido simbólico através de uma dupla distorção do funcionamento pulsional, por um lado fixando-o exacerbadamente a um objeto específico por outro subvertendo o desejo enquanto necessidade. Prevaleceria nesta modalidade de relações um fator da atualidade, distante das criações ligadas ao fio do desenvolvimento psicossexual, remetendo às problemáticas das neuroses atuais em Freud.

Mayer (2000) traz um sentido para o termo de adicto como a (não) dicto (dizer), destacando a impossibilidade de dizer de seus conflitos e a falha progressiva das cadeias representacionais em curso nos sujeitos em que se avança uma modalidade de relação aditiva.

Nos diz Mayer (2000):

Na verdade, o que é percebido ao lidar com adictos é sua enorme capacidade de agir, questionar, mentir, mas uma incapacidade dramática de falar sobre suas situações conflitantes. Muitas vezes nem mesmo as registram como tais, mas como uma compulsão ingovernável que os empurra para qualquer tipo de descarga: motora, alucinatória ou ambas, mas não verbal. Para eles, as palavras são desvalorizadas, não servem para se comunicar e, muito menos, para aliviar a dor, mas como instrumento de ocultação, manipulação ou justificativa. Isso pode ser atribuído ao fato de que eles não desenvolveram um mundo representacional que lhes permita qualificar seus estados afetivos ou internalizar uma estrutura na qual essas representações possam ser registradas e conectadas como capítulos de sua história. (p.152)4

Desta forma, para ao autor os sujeitos adictos padeceriam de uma ausência de mundo representacional interno que lhes permitiria qualificar seus estados afetivos, dificultando a inscrição que as experiências poderiam encontrar nos aspectos biográficos do sujeito, transbordando as barreiras psíquicas e evacuando as tensões pela via motora e alucinatória.

A hipótese do autor para o fenômeno estaria ligada com as falhas vinculares das relações objetais primárias que permitiriam a constituição de uma função de apoio que seria posteriormente internalizada como uma das funções do superego enquanto apoio psíquico, o que nomeia de suporte interior (Mayer, 2000).

Esta construção em muito se aproxima da construção kaesiana a respeito das fraturas vinculares intergeracionais, em curso na sociedade moderna, que têm levado a um crescimento de patologias provocadas pela falta nos processos de apoio, e perturbações da continuidade e das fronteiras de si mesmo. Os sofrimentos contemporâneos denunciam a falha das funções intermediárias e mediadoras que dificultam a integração das pulsões no espaço psíquico e social tendo como resultado o vínculo de violência, que orienta a carga pulsional em direção ao acting-out, resguardando um estado de não pensamento (Kaës, 2003). Estas perturbações atacariam especialmente as atividades pré-conscientes, os processos sublimatórios e o trabalho de simbolização primária, implicando na confusão entre o dizer e o fazer, entre ação e representação, podendo ser mais bem compreendidas e tratadas, segundo o autor, na mobilização pré-consciente do outro favorecida pelos dispositivos grupais.

Vemos assim que o agir no campo das drogadições também estaria marcada por esse avanço do irrepresentável e pela perda do simbolismo característico do gesto humano, restando no lugar uma compulsão automatizada que denota uma falência completa das instâncias mediadoras (Mayer, 2001). O agir que a solução adictiva propõem é um agir de pura descarga, em que predomina a cena atual em detrimento das cenas infantis recalcadas (Gurfinkel, 2011).

Mayer (2001) esforça-se em marcar uma diferenciação entre o agir do acting out e o agir da passage à l'acte. Na atuação do acting out estaria ainda preservada um mecanismo de convocação, ainda que a partir de um enredo inconsciente, dirigido a um outro significativo, preservando-se um sentido dramático. Na passagem ao ato, por sua vez estaríamos diante de um mecanismo extremo de evacuação:

Nesta perspectiva, a passagem ao ato propriamente dita costuma manifestar-se quando os actings reiteradamente fracassam em sua dimensão de convocação. Naquela o sujeito se precipita numa ação extrema que pressupõe uma ruptura e uma alienação radicais, com desmoronamento de toda a mediação simbólica. (Mayer, 2001, p.93)

Ora, o que se pressupõe nesta articulação é que a perda de um sentido convocatório para o agir, e podemos dizer também para o falar, está acompanhado por uma perda da esperança em ser escutado, ou seja, de que alguém ou algo da malha de suportes vinculares do sujeito seja capaz de lhe restituir algum sentido sobre o qual possa vir a encontrar apoio.

Será que a experiência de articulações de sentidos por meio da tarefa de escrever em um contexto grupal pode restituir algo dessa dimensão convocatória da linguagem? Trago a seguir uma cena retirada de minha própria prática clínica.

 

Relato de uma oficina de jornal

Tratava-se de uma oficina de jornal com encontros semanais de duas horas realizados em um CAPS AD de São Paulo e coordenado por dois terapeutas, uma residente de Terapia Ocupacional e eu, um residente de Psicologia, que fora convidado a compor a oficina logo em minha chegada ao serviço.

Pensávamos o dispositivo como um grupo de entrada contínua com a tarefa explícita de produção de um jornal bimensal, tendo nos encontros um espaço livre de compartilhamento, leitura e discussão das temáticas do jornal e dos textos produzidos.

Para a inserção de novos pacientes no grupo discutíamos anteriormente a indicação com o profissional de referência e propúnhamos o período de um mês para o acolhimento na oficina. Neste período separávamos um espaço ao final de cada encontro para conversar sobre as primeiras experiências com o grupo e para ajudar a pensar sobre os interesses que poderiam ser trabalhados ali.

A pergunta mobilizadora deste processo de acolhimento era "Qual a marca que você quer deixar nesse jornal?", o que permitia a mobilização de demandas que poderiam ser endereçadas ao grupo e que posteriormente seriam trabalhadas em sua inserção na oficina.

Para alguns participantes surgia o interesse em algumas temáticas específicas, para outros o estilo dos textos era o que mais mobilizava. Alguns deles traziam o desejo de realizar uma sequência de reportagens, utilizando-se do jornal para realizar uma investigação a respeito de algum aspecto de interesse, ou então de buscar outras inserções no território e a experimentação de um outro lugar, como entrevistador. Outros pareciam apenas querer exercitar um momento de pausa em que colocavam no papel o esboço de um ou outro verso.

Os textos eram escritos pelos usuários durante a semana e o encontro era um espaço para leitura e discussão deles e das temáticas emergentes. Na condução dos encontros nos dividíamos como coterapeutas. Minha colega T.O. entrava mais diretamente na tarefa do grupo ajudando a pensar no tamanho dos textos e na forma de organização das ideias, e eu ficava mais atento aos elementos psíquicos emergentes dos processos grupais.

Iniciávamos o encontro com a leitura dos textos escritos na semana. Após a leitura de cada texto separávamos um espaço para que pudessem emergir as ressonâncias psíquicas do material no grupo disparados pela pergunta "Como este texto ressoa em vocês?". Os participantes falavam então livremente a respeito do texto.

Nesse momento procurávamos ajudar no aprofundamento de aspectos referentes ao texto, bem como de suas reverberações individuais e grupais, destacando as organizações e ansiedades do grupo em relação à tarefa. A partir dos emergentes desse processo ajudávamos o grupo a pensar nos próximos textos.

A cada dois meses os textos eram digitados e impressos, incialmente pelos coordenadores, e alguns exemplares eram expostos em murais da instituição, sendo lidos e comentados pelos diferentes usuários nos corredores do serviço. Posteriormente surgiu o interesse dos participantes de que o jornal pudesse ganhar leitores externos à instituição o que deu início a um projeto de economia solidária, em paralelo aos encontros da oficina e de participação voluntária, em que passaram a cuidar da edição do jornal, e das estratégias de venda e financiamento do mesmo.

A gestão do jornal surgia então como novo objeto de investimento.

As discussões deste segundo espaço, no entanto, não raro retornavam enquanto novos mobilizadores para a oficina.

Marcos diz:

"Qual o sentido de vendermos a este preço!? O nosso leitor é o povo da rua!"

João responde:

"O jornal tem que ser colorido, eu quero entregar uma cópia nas mãos do prefeito!"

Indignado Marcos retoma:

"Se não for deste jeito eu saio! Já vou avisando que eu saio!"

Ao que um terapeuta intervém.

"Puxa pessoal. Parece que o sonho de vocês vira um pesadelo..."

Deste tom frenético às vezes nos encontrávamos com um silêncio. A temporalidade do encontro parecia se transformar.

"Sonho? Eu tenho o medo de que meu sonho se esvazie de repente... Me dá uma vontade danada de usar. Eu fico ali com uma sensação esquisita. É difícil de descrever. É como estar num espaço sem nada, sozinho. Só com a companhia da bebida."

Um outro paciente continua...

"Semana passada eu sonhei com meu pai. Eu já falei pra vocês do meu pai? Acho que pra semana que vem vou escrever algo sobre meu pai."

Procurávamos nos manter flexíveis em relação aos enquadres dando um espaço de abertura possível que permitisse a invenção de novos usos do jornal, procurando, por outro lado, apontar para os limites deste processo.

Nem tudo era possível ser feito e às vezes os desejos corriam mais rápido do que nossa capacidade de organização dava conta. Era preciso então intervir.

"Parece que vocês estão com medo de que o jornal se esvazie também. Precisam ficar criando um jornal novo a cada semana para afastarem o medo de que esta seja mais uma história da vida de vocês que se esvazia e morre."

Marcos não aceitou bem a intervenção e ficou com raiva. Praguejou o jornal e disse que aquela havia sido a pior escolha de sua vida, pedindo para que tirássemos o nome de todas as edições anteriores. Sumiu da oficina por dois meses e depois voltou com um texto.

Uma recaída virava uma história que precisava ser contada.

Contemos então a história de Walter.

Walter era usuário do CAPS há mais de dois anos quando sua técnica de referência nos procurou para que ele passasse a integrar a oficina de jornal. Dizia-nos que ele estava muito deprimido e que apesar de ter um bom vínculo com o serviço, não parecíamos estar promovendo qualquer mudança significativa em sua vida.

Tinha 59 anos, estava em situação de rua e com vaga fixa em um albergue para idosos, o que lhe garantia uma situação social razoavelmente estável. Havia conseguido interromper seu uso de cocaína, mas seguia com um uso intenso de álcool, o que lhe acarretava quedas frequentes e traziam lesões que, com a idade, ficavam cada vez mais perigosas.

Sua técnica de referência se preocupava com o embotamento de Walter. Não tinha mais familiares nem nenhum vínculo afetivo, e contava-lhe apenas de um antigo amigo que havia falecido há mais de dez anos, quando então foi perdendo as últimas coisas que tinha em sua vida em função do uso de drogas.

Dos corredores do serviço víamos Walter sempre a dormir nos sofás da convivência. Com suas unhas grandes e um odor forte de uma auto higiene pouco cuidada, Walter cochilava apoiado em sua bengala e raramente conversava com outros usuários.

Quando chegou na oficina de jornal não era diferente. Conversamos com ele a respeito de nosso período de acolhimento e ele nos escutou semiacordado.

Neste primeiro mês tivemos pouca fé que a participação de Walter traria qualquer impacto em sua vida. Passava os encontros a dormir e, quando acordado nos interpelava para ir ao banheiro ou para ir fumar constantemente.

Uma ou outra vez o interrogávamos mais diretamente para saber o que achava de algum texto que havia sido lido. Nessas ocasiões era como que acordado de supetão, respondendo com apenas uma palavra e sem entusiasmo: "Bom."

Nada parecia nele ressoar.

Passado o primeiro mês reunimo-nos então novamente com Walter para falar a respeito de sua experiência no grupo. Dissemos a ele que havíamos ficado com a impressão de que o grupo não lhe havia feito muito sentido ao que monossilabicamente discorda dizendo que o grupo era bom e que estava gostando de ficar ali. Dizia que às vezes sentia muito sono, mas gostava de ouvir os textos. Dizia que gostaria de ficar, mas que se quiséssemos ele poderia ir embora também.

Concordamos que Walter ficasse e aos poucos fomos procurando incentivá-lo para que trouxesse algo de si para o grupo já que essa era uma das poucas condições que colocávamos para fazer parte da oficina. Era necessário escrever algo!

Passados mais dois meses após esta primeira conversa a inserção de Walter não havia tido transformações. Refizemos nossa contratação e colocamos novamente a condição de que trouxesse algum texto para permanecer na oficina.

Walter acordou e na semana seguinte trouxe uma pequena poesia de quatro versos ABAB, bastante singela e um tanto infantil. Lemos a poesia que fora recebida com certo entusiasmo pelos participantes, que pareciam querer estimulá-lo.

"Muito bonito, achei o texto muito bonito", "Você escreve muito bem seu Walter!" diziam os pacientes para ele, que os agradecia de seu estado semi sonolento.

Passou a trazer pequenas poesias semanalmente. Às vezes chegava com mais de uma e pouco a pouco os textos ressoavam mais nos colegas e no próprio Walter. Era a memória de um pôr-do-sol num dia especial com uma pessoa amada, era o sentimento de estar apaixonado, era a sensação de aperto que a saudade dá.

Uma semana Walter pediu então para escrever na sessão "Minha história". Tratava-se de uma sessão fixa do jornal que circulava entre os integrantes para que trouxessem relatos autobiográficos.

Contou-nos então, em um texto em prosa de cinco páginas, com começo meio e fim e carregado de sentimentos, histórias que pouco imaginávamos.

Falou-nos de sua homossexualidade, até então desconhecida, e dos preconceitos que havia vivenciado. Contou-nos da rejeição imperdoável e dolorosa de sua família e do encontro com um grande amor. Falou, com detalhes, das delícias do ato sexual e da frustração com as traições. Contou a nós da chegada do HIV em seu parceiro, e da alegria e da dor de ter velado seu companheiro até a morte, e do vazio que ficou depois.

"Como este texto ressoa em vocês?"

Antigos amores, memórias de rejeição, adoecimento e perda de sentido no viver ocuparam o relato de nossos pacientes nesse dia que se demonstraram bastante mobilizados pelo relato de Walter, que posteriormente veio a mobilizar também os profissionais do CAPS.

Sua inserção no serviço mudou significativamente a partir de então, sendo possível trabalhar com novos territórios afetivos despertados por seu texto autobiográfico.

 

Conclusão

Parecemos testemunhar nessas cenas, a partir do movimento de produção de textos e da relação intersubjetiva mediada pela tarefa, a retomada de um sentido convocatório para a linguagem e de uma forma de sociabilidade que parece fazer resistência aos mecanismos evacuatórios e à destrutividade do agir impulsivo.

Escrever de sua história na oficina é escrever para os colegas do grupo, mas é também escrever para alguém que o jornal enquanto dispositivo deixa em suspenso e que cada paciente preenche à sua maneira. Uma carta a um pai que já morreu, mas que pode estar encarnado em um leitor transeunte, uma reportagem investigativa dirigida ao prefeito, ou mesmo, como vimos, um relato autobiográfico dirigido à instituição que visa romper com o emudecimento e a invisibilidade cronificada.

Percebe-se que na condução do trabalho a escuta e compreensão dos terapeutas tanto das ansiedades transferidas na relação com a tarefa, quanto da sensorialidade despertada e transferida na relação com o próprio objeto mediador, surgem como elementos fundamentais para o manejo da técnica e intervenção no grupo.

A partir da leitura dos textos, no momento das trocas entre os participantes, parecemos enxergar a construção de um espaço de ressonância de imagens que restitui uma função intermediária do pré-consciente em pane nas dinâmicas adictivas, e permitindo um espaço de jogo de imaginários em inter-relação e intergestação.

Sobre este jogo, nos diz Vacheret (2008):

De outra parte, o espaço do jogo assim definido se estrutura entre o processo primário (o pensamento em imagens) e o processo secundário (o pensamento em ideias). As condições do jogo residem no hiato assim determinado, constituindo em si uma verdadeira área de jogo. (...) Essa área de jogo, intermediária entre o processo primário e o processo secundário, favorece os processos de ligação de um a outro dos dois registros assim especificados, assegurando a dupla articulação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo. (p. 185)

A tarefa de escrever impõe um tempo de pausa frente à intensidade do afeto, tornando necessário inscrever para escrever, sendo o texto enquanto resultado um objeto com o qual o grupo pode brincar, e que sobrevive à violência do ato, como vemos no caso de Marcos, que mesmo após sua saída brusca pôde retornar ao grupo e ver que sua palavra não fora perdida.

Desta forma, para muito além da tarefa explícita do grupo, a produção de textos, o que vemos é a retomada de um espaço de elaboração simbólica das ações evacuatórias que encontram no uso de drogas um lugar privilegiado para seus avanços.

Retomando Brun (2013):

O desafio do trabalho terapêutico será uma elaboração do agir, através de uma resistência à destrutividade, um sentido das passagens ao ato dentro do grupo e pela ativação de uma capacidade de empatia com o outro, na dinâmica transferencial do grupo5. (p.302)

Por fim, dialogando com Sissa (1999), a respeito dos relatos autobiográficos de ex-usuários de drogas, mais do que uma intenção retrospectiva que permite retomar a parte do desejo que estava viva antes do hábito, o que vemos nestas vinhetas é a possibilidade de retomada de um sujeito para fora dos espaços de uso, que dirige sua fala a um alguém que espera poder escutá-lo, e encontra no grupo as reverberações que sua palavra produz.

 

Notas

1 "La fonction d'attraction du médium consiste à attirer la sensorialité des patients et à mobiliser ainsi une part de leur constellation transférentielle." (Brun, 2013, p.179, tradução livre)

2 "Dans le cadre spécifique d'un groupe à médiation (...) les patients vont projeter les éléments morcelés de leur monde interne non seulement sur les thérapeutes et sur les autres sujets du groupe, selon le processus de diffraction du transfert dans un dispositif groupal conceptualisé par R. Kaës (1976), mais aussi sur les éléments sensoriels du cadre thérapeutique, qui représentent un aspect important de la groupalité du transfert." (Brun, 2013 p. 170, tradução livre)

3 "L'écriture thérapeutique en groupe, qui réactive et permet de métaphoriser des vécus corporels et des tensions jusque-là infigurables, constitue en une modalité originale de traitement de la problématique du corps et de l'acte, centrale dans les pathologies narcissiques-identitaires. Le travail d'écriture, au sein d'un dispositif groupal, réactive en effet des vécus sensori-perceptivo-moteurs non symbolisés et les appelle en quelque sorte à la figuration, à l'appui de la fantasmatique groupale inconsciente, selon des particularités spécifiques à chaque pathologie.". (Brun, 2013, p.301, tradução livre).

4 "En efecto, lo que se percebe cuando se trata con adictos es su enorme facilidade para actuar, para cuestionar, para mentir... pero una dramática incapacidade para hablar de sus situacioanes conflictivas. Muchas veces ni siquiersa las registran como tales, sino como una compulsión ingovernable que los empuja a una descarga de cualquier tipo: motriz, alucinatória, o ambas, pero no verbal. Para ellos, las palavras están desvalorizadas, no sirven para comunicar y, mucho menos, para aliviar un dolor, aunque sí como instrumento de encubrimiento, manipulación o justificación. Eso puede atribuirse a que no han desarrollado un mundo representacional que les permita cualificar sus estados afectivos ni interiorizar un marco en que essas representaciones puedan inscribirse y enlazarse como capítulos de su história". (Mayer, 2000, p.152, tradução livre)

5 "L'enjeu du travail thérapeutique visera une élaboration de l'agir, par une résistance à la destructivité, par une mise en sens des passages par l'acte au sein du groupe et par l'activation d'une capacité d'empathie avec l'autre, dans la dynamique transférentielle du groupe". (Brun, 2013 p. 302, tradução livre).

 

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