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Ciências & Cognição
versão On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.2 Rio de Janeiro jul. 2004
Artigo Científico
Um novo olhar sobre a escrita: a contribuição das ciências cognitivas e da semiótica para o desenvolvimento de uma ciência da escrita
A new sight on writing: cognitive sciences and semiotics contribution to the development of a writing science
Marcel Pauluk
Departamento de Design - Universidade Federal do Paraná
Resumo
A despeito de sua vital importância cognitiva e social, a escrita nunca alcançou, por si mesma, um lugar de destaque dentro da Academia que não fosse através de estudos literários ou relacionados a técnicas de ensino e aprendizagem. Ainda que estes estudos tenham grande valor na compreensão dos gêneros de discurso e das metodologias de ensino da escrita, aspectos fundamentais de seu funcionamento semiótico e cognitivo acabaram por ser totalmente relegados pelas limitações próprias de cada uma destas abordagens. O arcabouço teórico da Semiótica e das Ciências Cognitivas tem proporcionado o entendimento de alguns destes aspectos, colaborando para o estabelecimento de uma verdadeira Ciência da Escrita. A abrangência e o aprofundamento destes estudos ainda é limitada, porém bastante promissora. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 02: 02-10.
Palavras-chave: escrita; semiótica; ciências cognitivas.
Abstract
Despite its vital cognitive and semiotic importance, writing never achieved, by itself, a place of honor at the Academy, except by those studies related to teaching techniques and apprenticeship, or literary studies. Even if those studies are of great value to the comprehension of discourse's genres and writing's teaching methodologies, fundamental aspects of its cognitive and semiotic processes end up totally relegated by each of those approaches limitations. Cognitive Sciences and Semiotics' theoretical ground has been providing the understanding of some of these aspects, collaborating to the establishment of a true Writing Science. The broad and deepening character of these studies is still very narrow, but very promising. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 02: 02-10.
Keywords: writing; semiotics; cognitive sciences.
Introdução
"As formas sociais do tempo e do saber que hoje nos parecem ser as mais naturais e incontestáveis baseiam-se, na verdade, sobre o uso de técnicas historicamente datadas, e portanto transitórias. Compreender o lugar fundamental das tecnologias da comunicação e da inteligência na história cultural nos leva a olhar de uma nova maneira a razão, a verdade, e a história (...)." (Lévy, 1993: 38).
Vivemos num tempo onde as mudanças parecem se suceder tão rápida e desenfreadamente que a própria idéia de mudança é relativizada. Às vezes deixamos de perceber os efeitos dessas mudanças pelo fato delas transformarem o modo como se organiza nossa cultura enquanto estamos imersos nela.
As tecnologias digitais estão provocando uma revolução em diversos âmbitos da organização cultural planetária de modo muito similar à revolução provocada pelo surgimento da escrita alfabética entre os gregos. Esta revolução tem conseqüências não exatamente previsíveis, porém a alteração no uso da linguagem por ela ocasionada nos permite agora, deslocados da posição de imersão na qual nos encontrávamos anteriormente com relação aos nossos hábitos comunicacionais, lançarmos um novo olhar, mais consciente, mais distanciado, sobre estes mesmos hábitos.
As novas descobertas sobre o funcionamento da escrita nos abrem diversas portas. Elas podem modificar a nossa noção de signo, ainda muito ligada a uma ciência lingüística, a qual via a escrita como mera transcrição fonética; podem nos trazer novas definições de texto e discurso; podem promover a elaboração de novas linguagens gráficas, principalmente para o uso em suportes eletrônicos; podem, além de tudo, estabelecer uma nova maneira de se pensar, pois o esclarecimento das relações que ligam os sistemas de escrita aos modos de pensamento (e de outras relações similares) podem resultar num uso mais consciente das técnicas comunicacionais utilizadas pela humanidade.
Este artigo busca traçar, apoiado nos avanços teóricos da semiótica e das ciências cognitivas, um pequeno panorama desta revolução que se deu há aproximadamente 2700 anos: o surgimento da escrita alfabética. Nesse panorama poderemos ver que muito do que concebemos hoje a respeito de nossa escrita herdamos diretamente das primeiras críticas a seu respeito. Destes pré-conceitos ainda precisamos nos desembaraçar. Aqui também, ainda que de maneira superficial, iremos tratar das diferenças entre os tipos de escrita existentes. A crítica dessas distinções canônicas é também um passo para os novos estudos da escrita. Depois veremos quais foram as principais conseqüências advindas do estabelecimento desta nova técnica entre os gregos e, no desenrolar do tempo, em todo Ocidente. Os estudos semióticos e cognitivos das mídias e da cultura (como os do círculo de Toronto) nos alertam para um possível paralelismo com as mudanças atuais. Por último, estabeleceremos o lugar da semiótica e das ciências cognitivas nos estudos dos sistemas de escrita, com um breve panorama das primeiras abordagens e de alguns resultados alcançados.
Tudo isto deve ser visto como parte de um esforço maior: o cultivo de um campo, através de um esforço transdisciplinar, para o surgimento de uma verdadeira Ciência da Escrita.
A passagem oralidade/escrita
A oralidade ainda pode ser considerada o principal meio da comunicação humana; hoje, porém, ela já é permeada pela cultura letrada. A oralidade primária, aquela das sociedades que não conhecem a escrita ou não fazem uso dela, não pode ser considerada a mesma oralidade que a nossa. Quando falamos, fazemos referências a textos que lemos, usamos construções "literárias" e muitas vezes estudamos o discurso oral com base na sua transcrição, operações impossíveis numa cultura não-letrada.
O uso da escrita é uma invenção humana recente. O Homo sapiens, que está caminhando sobre a terra há cerca de 50 mil anos, já não mais usava as mãos na locomoção: fazia uso de uma conjugação mão-face não só para se alimentar, mas para se expressar. Esta coordenação, que se exprime no gesto como apoio à palavra, irá se repetir na escrita como transcrição dos sons da voz (Leroi-Gourhan, 1990). A arqueologia estabelece o surgimento dos primeiros indícios de utilização de um sistema linear de escrita em 3.500 a.C., na região da Mesopotâmia. Se levarmos em conta os grafismos de qualquer espécie, então os mais antigos estampam as paredes de algumas cavernas desde 35 mil a.C. (Ong, 1998). A gênese desse comportamento simbólico se dá com a abstração. A linguagem evoluiu do concreto ao abstrato, ou do menos abstrato ao mais abstrato. Os grafismos também começam não por "uma representação inocente do real, mas sim do abstrato" (Leroi-Gourhan, 1990:189). Os primeiros sinais teriam exprimido antes ritmos do que formas. A arte figurativa estaria ligada muito mais à linguagem, próxima da escrita, do que da arte que hoje enxergamos nela.
Os primeiros registros de escritas realmente sistematizadas e eficientes, diferentes dos ambíguos grafismos, traziam um diferencial fundamental: eram lineares. O simbolismo gráfico beneficia, relativamente à linguagem fonética, de uma certa independência: o seu conteúdo exprime, nas três dimensões do espaço, o que a linguagem exprime na dimensão única do tempo. Todas as escritas primitivas, salvo talvez o chinês antigo, possuem grupos de figuras coordenadas em sistemas não necessariamente lineares e sem possibilidades visíveis de uma leitura fonética contínua e passível de repetição exata. A conquista adquirida com a escrita foi precisamente a de fazer subordinar-se completamente à expressão fonética, pelo uso do dispositivo linear (Leroi-Gourhan, 1990).
A suposta linearidade da escrita não deve ser confundida com a da fala. A escrita não é unidimensional como a fala. Ela permite uma série de direções onde essa linearidade pode ser expressa. O alinhamento trata da orientação do signo escrito em relação à superfície em que é inscrito; não há correlação no caso da fala (Harris, 1994). A direção, por sua vez, seria o resultado da aplicação de um princípio de seqüencialização às possibilidades fornecidas pelo alinhamento (idem). São três as direções a se levar em conta: a seguida pelos signos, em linhas ou colunas, a seguida por essas linhas ou colunas e uma terceira, resultado da combinação das duas primeiras e que vem a ser a direção obtida ligando-se com uma linha reta o primeiro signo ao último numa superfície.
Em uso atualmente, temos línguas que se escrevem em colunas verticais, de cima para baixo, da direita para esquerda (e.g. chinês) e da esquerda para direita (e.g. japonês) e escritas em linhas horizontais, de cima para baixo, da direita para a esquerda (e.g. hebreu) e da esquerda para a direita (e.g. português). Nenhuma língua em uso "corre" de baixo para cima, descreve círculos concêntricos ou altera sistematicamente a direção de suas linhas (boustrofédon).
Essas línguas citadas acima não utilizam o mesmo tipo de notação em seus sistemas. Exemplo de escrita realmente alfabética, dentre as citadas anteriormente, somente o português. Mas é o fato dessas línguas serem representadas através de sistemas lineares que impede que elas dependam de uma reconstrução do significado de seu simbolismo. No caso dos grafismos, como acontecia com os desenhos rupestres, especula-se que serviam com apoio para, por exemplo, a rememoração de um mito. Algo parecido com um livro infantil sem textos, usado por um adulto para narrar uma história. Os grafismos em si não representavam a linguagem verbal. Representavam figuras, talvez algumas vezes até idéias. Sua disposição representava alguma relação que mantinham entre si os elementos, não um desenrolar temporal de um discurso. A linearização da escrita subordinou-a à linguagem verbal, fonética e linear. O sistema de escrita deixa assim de ser um sistema paralelo em relação à expressão oral para fundir-se com ela num aparelho lingüístico único, instrumento de expressão e conservação de um pensamento, cada vez mais direcionado para o raciocínio (Leroi-Gourhan, 1990). Não há mais dualismo entre expressão verbal e gráfica. Ambas obedecem à uma mesma linguagem.
Diferenças entre o alfabeto e outros sistemas de escrita
O sistema de escrita que usamos também é portador de características muito específicas. Nem todas as formas de se escrever fazem uso de um alfabeto. Existem diversas classificações propostas para identificação dos sistemas de escrita, poucas concordantes ou convergentes. A classificação mais conhecida é a que divide as escritas entre fonológicas e não-fonológicas. Estas seriam as que fazem uso de pictogramas e ideogramas - desenhos representando coisas ou palavras - e aquelas as que fazem uso de silabários e alfabetos - códigos representando unidades sonoras da fala. Esta divisão deixa o elenco dos sistemas de escrita, no mínimo, incompleto; precisaríamos somar a estes, pelo menos, os mitogramas e logogramas.
Os sistemas não-fonológicos seriam aqueles que não fariam referência à linguagem verbal, ou seja, seriam formas de expressão independentes da expressão oral. Algo semelhante a histórias em quadrinhos "mudas". Todos os sistemas de escrita, com exceção dos de silabário e de alfabeto, seriam não-fonológicos. Isso não é exatamente correto. Alguns sistemas, como os de pictogramas, efetivamente não fazem um uso convencionado ou relacionado à linguagem fonética. Os pictogramas são desenhos reconhecíveis de alguma entidade como ela existe no mundo. É um tipo de escrita onde "ler" significa simplesmente reconhecer aquilo que está representado. Grande parte das placas de trânsito, como aquelas representando animais na pista ou homens trabalhando, podem ser consideradas pictogramas modernos. Porém não poderiam ser considerados mitogramas, já que não desenvolvem uma narrativa. O melhor exemplo de um mitograma seria aquele do livro infantil sem palavras, que pode conter tanto pictogramas como também pode incluir desenhos abstratos, desde que reconhecíveis ao enunciador do mito. Até aqui, estamos livres da indexação à linguagem fonética. Os dois próximos exemplos, ideogramas e logogramas, além de muito semelhantes, são usados para classificar algumas escritas que claramente reproduzem a parte fonológica de sua língua verbal, como a escrita cuneiforme, surgida no Ocidente-Próximo cerca de 3 mil a.C., em que alguns símbolos representavam palavras ou alguma parte do símbolo continha elementos lingüísticos. No entanto, a escrita cuneiforme é considerada ideográfica: seus símbolos ou não correspondem mais a uma aproximação pictórica com o objeto que representam ou representam conceitos abstratos. A escrita logográfica, por sua vez, é aquela onde os símbolos representam palavras. O chinês é o exemplo clássico, ainda que parcialmente incorreto: seus símbolos muitas vezes representam apenas partes de palavras. O maior problema destes sistemas é o enorme repertório de símbolos que precisa ser retido pelo usuário para um mínimo de domínio do sistema.
As escritas fonológicas se dividem, como vimos, em silábicas e alfabéticas. Nas escritas silábicas, cada símbolo corresponde a uma sílaba. O sistema japonês katakana é um dos exemplos mais conhecidos. Por último, nosso sistema de escrita, o alfabético. Com o alfabeto há uma correspondência mais ou menos direta entre os símbolos utilizados, as letras, e os fonemas, ou unidades mínimas de som. Ao invés de milhares de logogramas ou algumas centenas de sílabas, vinte a trinta símbolos dão conta de todo o repertório lingüístico de seus usuários. Mas entre os alfabetos existem também diferenças: alguns dentre eles representam apenas consoantes, outros vogais e consoantes. Os primeiros alfabetos surgiram aproximadamente em 1700 a.C., nas regiões da Palestina e Síria. Eram alfabetos consonantais, nos quais se basearam os alfabetos fenício, hebreu e árabe. Entre 1000 e 700 a.C., o alfabeto fenício foi adaptado pelos gregos, que adicionaram ou alteraram símbolos para representarem as vogais. Pela primeira vez um discurso podia ser transcrito de forma praticamente não-ambígua.
A principal diferença entre o alfabeto grego e seus precursores, os alfabetos consonantais e os silabários, não está exatamente no uso de vogais. A escrita Linear B grega também representava as vogais (Havelock, 1996b). O grande defeito dos silabários, mesmo dos que representavam as vogais, é tentar consignar o uso de um e somente um signo para cada som. Quando escrevemos <ba> estamos usando dois signos, <b> e <a>, para representar um único som concreto "ba". Um silabário usaria somente um. Os silabários trabalham numa base empírica de transcrição de sons. Já os alfabetos consonantais trabalham com a idéia de que as consoantes, não sendo sons propriamente, funcionam como códigos que indicam como variar a vocalização, ou seja, a emissão de vogais. Eles não marcavam a vocalização em si. Seria algo próximo a um silabário que, ao invés de representar em cinco símbolos <ba>, <be>, <bi>, <bo>, <bu>, usavam apenas <b> indicando essas cinco possibilidades. O leitor, segundo o contexto, decidiria qual.
O grande trunfo dos gregos foi aliar a idéia da consoante, este "não-som" segundo os gregos, ao registro da vocalização, ou seja, às vogais. Eles passaram a analisar a unidade lingüística em dois componentes teóricos, a vibração da coluna de ar e a ação da boca sobre essa vibração (Havelock, 1996b). Supriram as deficiências dos alfabetos consonantais e evitaram os excessos dos silabários. Enquanto os sistemas anteriores visavam reproduzir as unidades reais da fala na base de um para um, os gregos produziram um sistema atômico que fragmenta as unidades em pelo menos dois, e possivelmente mais, componentes abstratos. E pela primeira vez os signos usados na escrita passaram a ter nome, não literalmente uma reprodução do seu som, como nos silabários, nem o som da própria palavra, como no caso dos logogramas, mas nomes próprios, como alfa, sigma, kappa etc. e hoje, no português, éfe, agá, jota etc. para serem decorados mecanicamente, sem que seus nomes lhes vinculassem a algum sentido específico. O alfabeto tornou a escrita uma técnica que apaga a si mesma, que esconde seu rastro (Derrida, 1999) e portanto cessa de interpor-se entre o leitor e sua recordação da língua falada. O sentido passa a "soar" no cérebro sem referência às letras utilizadas.
A escrita e a conscientização da estrutura do discurso
À medida em que o uso do alfabeto foi se popularizando e sua arte dominada, suas características próprias foram resultando num crescente e gradual aumento da consciência a respeito do discurso oral. Aquilo que era tido como um fluxo contínuo, dependente de um ser humano para o enunciar, passa a ser visto como algo independente, concreto, composto de unidades menores e discretas.
O discurso, sendo transcrito em sinais gráficos eficientes, separa-se daquele que o pronunciou. O conteúdo das declarações feitas torna-se também independente, objetivado como pensamento, idéia, noções que têm existência própria. A comunicação escrita elimina a mediação humana contextual (quando alguém enunciava um mito, este mito vinha sempre "recontado", sempre o mesmo mas sempre diferente). Disso resultou uma incessante prática de interpretação de textos. Quanto mais ambíguas as escritas em que se punham os discursos, maior a necessidade da interpretação. A Torá judaica é um bom exemplo disso, já que escrita em sistema alfabético consonantal, dando margem a muitas ambigüidades no texto, criou para si uma vasta tradição de exegetas. O hipertexto digital pode ser usado como metáfora para essas interpretações: ramificações semânticas dos textos originais, por vezes já muito distanciadas da época, do contexto e das intenções do texto (Lévy, 1993). A escrita criou a primeira rede de informações externa à memória humana (porém ainda analógica).
Essa objetivação, essa concretização do discurso sobre um suporte é também responsável pela busca de uma universalidade, pela busca de autonomia com relação às tradições e da ascensão do gênero teórico. O discurso, se não prescinde da tradição, pode ao menos sempre confrontar-se com ela, já que pode estabelecer seus próprios parâmetros interpretativos, sendo visto como uma idéia, e a tradição sendo vista igualmente como outra. E por ser visto abstraído de seu autor, pode-se pensar na existência de idéias por si mesmas, como fez Platão, à parte sua crítica à escrita. Essas idéias podem concretamente viajar pelo mundo afora, encontrando novas interpretações e desdobramentos, fundando "escolas" e se acumulando em bibliotecas. O pensamento humano abstraiu-se a si mesmo, separou-se do homem e transformou-se em objeto. Inclusive em objeto do próprio conhecimento humano.
Transferindo a manutenção das idéias da cabeça para um suporte concreto, o homem tirou de suas costas um peso psíquico (Havelock, 1996). Uma parte da atenção previamente concentrada na recitação de uma parte de um poema, por exemplo, vem a dirigir-se para a contemplação do conjunto, o que antes era impossível, pois a enunciação oral não se presta a uma análise mais demorada. Uma espécie de "energia" que antes não se achava disponível foi liberada: aquela utilizada para rememorar. As conseqüências disso se manifestaram em muitas esferas da atividade humana, além da comunicação em si. A liberação dessa "energia" mudou definitivamente nossos hábitos intelectuais (ibidem). Agora o discurso poderia ser efetivamente "visto" como um ser dotado de cabeça, corpo e membros, como apregoou a retórica clássica. Elementos gráficos como espaçamento entre as palavras (algo inexistente na oralidade), sinais de pontuação, títulos e sistemas de arquivamento e ordenação possibilitaram a visualização concreta de um exercício pragmático antes inconsciente. O aparecimento da imprensa vai abrir ainda mais possibilidades neste sentido, sem contar a vulgarização em massa de toda literatura. Mas quando isso vem a acontecer, seus principais efeitos o alfabeto já havia causado.
A escrita alfabética em seu surgimento
Porém, assim como a revolução eletrônica de hoje suscita críticas ferrenhas e louvores entusiastas, a escrita alfabética, em seu surgimento, encontrou repúdio e acolhimento por parte dos gregos. Platão foi provavelmente o primeiro a refletir demoradamente, e ao longo de toda sua obra, em questões que hoje julgamos pertinentes à linguagem, aos signos, à escrita. Mas Platão, como nós mesmos hoje, encontrava-se imerso numa cultura ainda muito devedora de seus parâmetros anteriores, ou seja, de sua tradição; e no seu caso, a força exercida por aquela tradição era maior ainda.
A escrita alfabética deve ter aparecido entre os gregos em torno do século VIII a.C. (Havelock, 1996b). Não devemos, contudo, acreditar que essa data representa também um período em que a cultura grega era já letrada. Existe, entre a descoberta de uma nova técnica, sua dispersão e finalmente seu domínio, tempos de evolução, estagnação e, inclusive, retrocesso. Podemos descrever alguns destes estágios como pré-letrados, perito-letrado, semiletrado, de recitação letrada, de cultura letrada escritural, de cultura letrada tipográfica (ibidem) e, agora, de cultura letrada digital (sem falarmos sobre ou relacionarmos à cultura iconográfica). A Grécia antiga, como qualquer estado moderno, não poderia alfabetizar sua população de uma hora para outra. Acredita-se que a alfabetização começou a se tornar comum no séc. V a.C.
A Grécia deve ter sido, a princípio, perito-letrada, ou seja, apenas algumas pessoas especializadas mantinham o domínio da técnica da escrita. Mas essas pessoas não formaram nenhuma elite (ao contrário do que aconteceu durante a idade média); na verdade, os primeiros perito-letrados foram os artífices gregos, e o domínio da escrita era tido como nenhuma elevação intelectual, mas sim como um artifício técnico qualquer. O escriba grego tinha, a princípio, tanta (talvez menos) importância quanto um carpinteiro. A escrita em si mesma não era valorizada, pois "prejudicava a memória" e "estava três vezes distante da verdade", segundo nos legam os textos platônicos.
É importante, para Platão, saber como se conhece e através de que se conhece. Sua época é de mudanças: a tragédia e a poesia começam a ser deixadas de lado como sistemas únicos de transmissão de cultura, substituídas progressivamente pela escrita. A palavra grammatikós entrou em uso, designando uma pessoa capaz de ler, somente no séc. IV a.C (Havelock, 1996b). O modo de pensamento começa a tornar-se filosófico e analítico, não mais mítico, nem paratático. Platão vai negar aspectos fundamentais da cultura oral na República, condenando a poesia, e vai condenar igualmente a escrita no diálogo Fedro. Ele defende o pensamento analítico, mas não o percebe como fruto da técnica da escrita. Ele defende a memória como sinônimo de inteligência, sem perceber que ela era mantida viva às custas dos expedientes da poesia. Toda essa concepção platônica a respeito de linguagem continuou vigente, de certa forma, até hoje. Mesmo grande parte das releituras que negaram as "teorias" platônicas sobre a linguagem mantiveram vivos, sem perceber, conceitos fundamentais deste logocentrismo (Derrida, 1999).
Esta metafísica da escrita fonética, ou logocentrismo, é a crença de que a origem da verdade encontra-se na presença do lógos e de que - como na escrita é onde o lógos não está - a ciência deve expressar-se através de sistemas de notação não-fonéticos (Derrida, 1999). Para isso toda filosofia e ciência, toda história e literatura, devem apagar de suas consciências o uso da escrita; elas fazem um uso recalcado da escrita fonética. Foi por isso que vimos, durante 2500 anos, erguerem-se religiões e filosofias e histórias e lingüísticas e etc. que acreditaram numa verdade enunciada e numa escrita morta. Por isso o único espaço científico que acolheu a escrita foi a mesa de dissecações da filologia. E dali para o mausoléu dos dicionários (mas a ordem pode ser invertida).
O que não pôde surgir até hoje foi uma verdadeira Ciência da Escrita. A partir desse novo ponto de vista proporcionado pelo surgimento das novas técnicas comunicacionais, talvez seja possível agora a configuração e o estabelecimento desta ciência. Avanços foram feitos. Muitos campos do saber colaboram, porém todo esse esforço ainda não é conjugado, muito menos comum, ou sequer coordenado. Por mais transdisciplinar que venha a ser uma ciência da escrita, ela precisa ser coesa, ter seu lugar e ganhar a ordem do dia.
Duas ciências emergentes nestes estudos têm sido a semiótica e as ciências cognitivas. Um pouco atrasadas em relação às outras no que diz respeito ao estudo dos sistemas de escrita, estas ciências tiveram o trabalho de se desvencilhar de uma série de paradigmas ultrapassados e obsoletos que obscureciam seu desenvolvimento. Mas hoje, ao se olhar o trabalho erigido dentro destas disciplinas - um trabalho metódico e longe das luzes ofuscantes dos assuntos do momento - pode-se ver que os passos dados estão levando mais longe que todos os outros avanços alcançados, graças mesmo às férteis discussões e esforços para superação dos entraves comuns neste âmbito.
O papel das ciências cognitivas e da semiótica na configuração de uma ciência da escrita
As primeiras abordagens da escrita que se utilizaram da moderna teoria dos signos, ou seja, daquela fundada principalmente na semiótica de Charles S. Peirce e na semiologia estruturalista desenvolvida a partir da proposta de Saussure, começaram a aparecer desde o último quartel do século XX.
Os escritos de Peirce (1839-1914) propunham uma definição e uma classificação muito mais rigorosa dos signos, baseadas em sua visão pansemiótica (Nöth, 1998) do mundo e condizentes com sua filosofia, batizada pragmatista. A absorção, muitas vezes de maneira lenta e indireta, destas novas idéias pela intelectualidade mundial resultaram no rompimento com velhos preconceitos e no surgimento de novas perspectivas em praticamente todos os âmbitos científicos, efeitos estes que são sentidos até hoje (Ketner, 1995). A influência de Peirce nas primeiras abordagens semióticas da escrita ainda aparece de modo difuso, como por exemplo na crítica ao fonocentrismo (Derrida, 1997), mas começa a tornar-se mais óbvia e direta com o desenrolar do tempo, e.g. Watt (1989, 1998), Harris (1994), Röhr (1994).
A influência da semiologia nota-se ainda mais, já que seus laços com a lingüística são mais evidentes e um certo conhecimento desta disciplina parecia indispensável para quem ousasse lançar-se sobre a escrita. Uma concepção pioneira da escrita como sistema semiótico autônomo foi proposta por Uldall (1944, citado por Nöth, no prelo), baseado na glossemática de Hjelmslev, que era por sua vez um desenvolvimento rigoroso das teorias de Saussure. Muitas outras propostas também apareceram, porém suas evidentes influências semiológicas muitas vezes estavam implícitas em seus métodos, quase inconscientemente aplicadas. Como exemplos de exceções temos Ruiz (1992), Mulder (1994).
Um outro tipo de estudo, que interessava-se pelas conexões entre a escrita e o pensamento, ou seja, pelos aspectos cognitivos da escrita, começou a aparecer mais ou menos na mesma época e chamou-se psicologia cognitiva. Existem numerosos estudos nesta área, tendo suas bases em Vygotsky e Piaget, que se propuseram a explicar o funcionamento da escrita e da leitura e seus processos de aquisição, principalmente através da observação de crianças. A psicologia cognitiva pode ser considerada parte das chamadas ciências cognitivas, um agregado transdisciplinar que, de diferentes pontos de vista (mas visando a formação de uma metodologia única), estuda a cognição. As ciências cognitivas desenvolveram-se bastante nas últimas décadas do século passado, e um de seus motes foram as representações mentais. Valendo-se dos resultados de pesquisas antropológicas e lingüísticas e dos avanços nas neurociências, também foram estudadas as representações mentais e os padrões perceptivos relacionados com diferentes sistemas de escrita, e.g. Kerckhove e Lumsden (1988), Watt (1994) e Olson (1996).
As aproximações entre os estudos de cunho semiótico e os cognitivos são relativamente recentes. Todavia os paradigmas semiótico e cognitivo não são de maneira alguma incompatíveis (Nöth, 1998); pelo contrário, a semiótica, como uma Grundlagenwissenschaft (Walter, 1984 citado em Sebeok, s/d), ou seja, uma ciência fundadora, de base, deve ser tomada como pressuposto teórico das ciências cognitivas.
É dentro deste novo quadro teórico híbrido que está se desenhando uma das grandes facetas desta nova Ciência da Escrita, responsável por desvendar o funcionamento sistêmico da escrita em seus níveis sígnicos e cognitivos. A produção dos estudiosos desta área em desenvolvimento ainda não é vultuosa nem mesmo possui um paradigma unificado, porém é notoriamente promissora e de grande interesse científico.
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Notas
M. Pauluk
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