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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro nov. 2005

 

Artigo Científico

 

O destino das palavras: a ambigüidade lexical na interpretação de texto

 

The destiny of the words: the lexical ambiguity in the text interpretation

 

 

Edina Boniatti e Jorge Bidarra

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, Paraná, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Para a presente discussão, parte-se da premissa de que a seleção lexical efetuada pelo autor ao longo da construção de um texto é de suma importância não só para ele próprio, mas também e especialmente para o leitor, quando na tentativa de interpretar a obra. Estudos realizados sobre semântica lexical não devem ser menosprezados quando se busca atribuir significação e sentido a um objeto lingüístico. A partir dessa perspectiva, discutir-se-á aqui, tomando por referência o poema Nu de Manuel Bandeira, o fenômeno da ambigüidade lexical observada no adjetivo nu e a forma como os diferentes significados que ele assume no texto interferem na compreensão do todo do poema. Além da ambigüidade clássica, tradicionalmente tratada por homonímia e polissemia, coloca-se igualmente em destaque nesse debate a metáfora como um elemento crucial no processo criativo do autor e, por conseqüência, interpretativo do leitor em relação ao poema em questão. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 02-11.

Palavras-chave: semântica lexical; ambigüidade lexical; seleção lexical; metáfora, interpretação de texto.


ABSTRACT

For the present discussion, we start from the premise that the lexical selection performed by the author when constructing a text is of great importance for himself and especially to the reader, when trying interpret the text. Studies about lexical semantic can't be slighting when searching attribute significance and meaning for a linguistic object. Starting from this perspective, taking as reference the poem Nu, by Manuel Bandeira, we will discuss the lexical ambiguity phenomenon observed in the adjective nu and the way how the different meanings that it assumes in the text interfere in the whole comprehension of the poem. Besides the classical ambiguity, traditionally worked as homonym and polysemy, we bring here too, to argue, the metaphor as a crucial element in the creative process of the author and, accordingly, reader's interpretative when referring to the poem Nu. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 02-11.

Keywords: lexical semantics; lexical ambiguity; lexical selection; metaphor; text interpretation.


 

"Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?"

(Carlos Drummond de Andrade, 1999)

 

Introdução

Na análise dos mais diferentes tipos de textos, o olhar do leitor frequentemente se volta para a composição do enunciado como um todo e para as referências externas presentes nele. A necessidade premente de se atribuir significação e sentido ao objeto lingüístico com o qual se depara pode levar o leitor a pensar que os componentes situacionais solucionam todas as possíveis dúvidas interpretativas. Sendo assim, um exame minucioso da escolha lexical feita pelo autor acaba ficando para um segundo plano. Com essa observação, não se tenciona negar a importância do contexto em que foi produzido o enunciado para a sua compreensão, mas ressaltar o quanto a observação atenta das palavras na elaboração de um texto pode contribuir para uma maior eficácia na interpretação textual subseqüente.

Dessa forma, levando-se em consideração que a seleção lexical dentro de qualquer gênero discursivo é um dos maiores contribuintes para a percepção do estilo, sentimentos e visão de mundo do autor, valorizar-se-á, nesse estudo, o aspecto semântico das palavras, principalmente a ambigüidade anunciada pelo adjetivo nu, tal como manifestada no poema Nu de Manuel Bandeira.

Adentrar nos limites semânticos das palavras pode, muitas vezes, causar a impressão de se estar frente a liames movediços. Rodolfo Ilari e João Wanderley Geraldi (1985), ao iniciarem uma discussão sobre o tema, buscam demonstrar o quanto seria redutor tomar como ponto de partida afirmações genéricas como "a semântica é a ciência que estuda a significação". John Lyons, nas obras Linguagem e Lingüística - uma introdução (1987) e Semântica - I (1977), também aponta para o mesmo problema, uma vez que, segundo ele, a palavra significado aceita várias definições. Tomando como exemplo as frases: "Qual o significado da vida?" e "A vida sem fé não tem significado", ter-se-íam conotações diferentes para a palavra significado que, consequentemente, exigiriam conceituações distintas.

Lyons, na primeira obra citada, observa que, de acordo com o que foi durante muito tempo difundido como uma teoria semântica, a palavra significado designaria "idéias ou conceitos que se podem transferir da mente do falante para a do ouvinte". (Lyons, 1987: 103). Ora, é pouco provável que se possa afirmar com convicção que uma palavra utilizada por um determinado locutor possa ter o mesmo significado para todos os ouvintes, uma vez que o conhecimento de mundo interfere na interpretação dos enunciados. Essa é uma das críticas feitas por Katz e Fodor (1977), que observam ser impossível "sistematizar todo o conhecimento do mundo que os falantes possuem" (Katz. Fodor, 1977: 92). Por isso apresentar esse modelo como norteador para os estudos semânticos não seria adequado.

Lyons, aliás, nos chama a atenção de que o olhar que ele lança sobre o assunto não se estabelece a partir da pergunta do que seja o significado, pois isto, segundo o autor, pressuporia longas e complexas análises (Lyons, 1987: 104). Seguindo o autor, também aqui se trabalha nessa mesma perspectiva. Não haverá na análise do corpus selecionado longas digressões e conceituações sobre as dificuldades interpretativas. Buscar-se-á mais exatamente definir qual o significado multifacetado do adjetivo nu nos diferentes contextos e, com base nisso, tentar descobrir como essa situação é capaz de interferir na compreensão do todo do poema por parte do leitor.

 

A ambigüidade do adjetivo nu no poema de Bandeira

À primeira vista, a proposta de análise de uma obra literária, especificamente um poema, que, além de visualizar esse objeto enquanto arte, busca apoio teórico em um estudo lingüístico, a semântica lexical, pode parecer um projeto um tanto audacioso. Isto porque tem prevalecido à idéia, que freqüentemente se faz, de que, para se chegar a total compreensão de um objeto artístico, haveria a necessidade de abordar tal objeto a partir tão somente de uma perspectiva artística. A esse respeito, Bakhtin (2000) observa que, no geral, os estudos lingüísticos e literários tendem a ser realizados de forma completamente dissociada. De acordo com a sua avaliação:

"Estudaram-se, mais do que tudo, os gêneros literários. Mas, estes, tanto na Antigüidade como na época contemporânea, sempre foram estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura), e não enquanto tipos particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais contudo têm em comum a natureza verbal (lingüística)" (Bakhtin, 2000: 280).

Nessa perspectiva, de um lado deveriam estar o léxico e a gramática e de outro a estilística, que encontra forte expressão na obra literária, haja vista que a natureza desse enunciado largamente propicia o empreendimento de um estilo individual. Todavia, o autor procura mostrar que os recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais utilizados pelo locutor ao formular seu discurso são representações estilísticas no interior do enunciado e, assim sendo, impossível tentar-se o distanciamento entre as escolhas lingüísticas e organizacionais de um texto e o estilo do autor.

Bakhtin prossegue em sua reflexão, direcionando o leitor a perceber que, ao deparar-se com um enunciado, o intérprete não deve, de forma alguma, ignorar a natureza desse enunciado e as particularidades do gênero em que se insere. É claro que essa afirmação demonstra que o tratamento dado a uma obra literária não pode estar isento de uma focalização artística. O que não deve, entretanto, ocorrer é o desvincular desse objeto de análise de sua natureza lingüística, pois, em última instância, são as palavras e a forma como estão estruturadas no enunciado que garantem a expressividade da produção artística literária. É no âmago das palavras que se encontram a força semântica e a natureza ambígua, propiciadora de novas possibilidades significativas tão exploradas pelos grandes escritores.

Ao tratar-se, no entanto, da ambigüidade lexical não é possível deixar de fazer referência às dificuldades encontradas, dentro dos estudos lingüísticos, para diferenciar duas de suas distintas e importantes manifestações: a polissemia e a homonímia. A primeira delas pode ser vista como a capacidade que uma palavra tem de assumir significados diferentes, embora mantendo entre eles uma relação semântica básica. Em uma representação homonímica, ao contrário, ter-se-íam palavras que, embora grafadas da mesma maneira, não mantêm qualquer relacionamento semântico entre si. Recorrendo a exemplos citados em Bidarra (2004), a homonímia seria facilmente percebida em frases como: "Maria sentou-se no banco da praça para ler um romance. (banco no sentido de assento); O banco só abre às 10 horas da manhã para atendimento externo (banco como uma instituição financeira)". Para representar o fenômeno da polissemia, o mesmo autor apresenta alguns dos diversos significados que podem ser atribuídos à palavra quente: irritado, radioativo, pessoa de sorte, apimentado e sensual. Mas, se o caráter polissêmico de uma palavra pode ser observado pelo fato de ela guardar em si uma relação entre os significados que assume, pareceria "razoável afirmar que haja algo de comum entre, por exemplo, os sentidos irritado e radioativo."? (Bidarra, 2004: 29). Na tentativa de solucionar problemas como esses, lingüistas e lexicógrafos têm adotado diferentes critérios e dentre os principais pode-se citar: O critério de Distinção pela Investigação Diacrônica; O critério Baseado na Relação entre os Significados de uma Palavra; O critério da Análise Componencial; Critérios de Distinção Usados, Segundo Abordagem Computacional.

No que se refere ao lexema nu, por exemplo, no dicionário Aurélio são encontrados, entre os possíveis significados assumidos pela palavra, os sentidos despido e grosseiro que, à primeira vista, não trariam qualquer similaridade semântica. Todavia, não se pretende aqui buscar solução para esse problema através do apoio teórico a partir dos critérios acima citados. Isto porque, embora o lexema nu tenha sido empregado em diferentes sentidos no poema, o que se nota realmente é que todos os significados, metaforicamente utilizados ou não, apontam para o significado despido, sugerindo, senão um caso de polissemia, pelo menos um interessante fenômeno lingüístico de ambigüidade para análise.

 

A análise semântica lexical: um suporte teórico para o processo interpretativo de textos

Viu-se anteriormente que uma teoria semântica não se resume ao estudo da significação. Viu-se ainda que o próprio lexema "significado" conduz a inúmeras possibilidades interpretativas. Talvez a comum tendência de simplificar o termo semântica esteja relacionada ao fato de que os falantes da língua não encontram nenhuma dificuldade para fazer uso das palavras e adaptá-las a uma gama bastante extensa de possibilidades. Conforme assinala Lyons (1970), esta capacidade humana, a que Chomsky chamou de criatividade, permite que as pessoas, de forma inconsciente e irrefletida, construam e entendam, a partir de um número finito de regras, um número indefinido de sentenças que não haviam sido antes ouvidas. Katz faz a seguinte constatação a esse respeito:

"O componente semântico interpreta os marcadores sintagmáticos subjacentes em termos de significado. Ele atribui interpretações semânticas a estes marcadores sintagmáticos que descrevem mensagens comunicáveis na língua. Isto é, enquanto o componente fonológico confere uma forma fonética à sentença, o componente semântico fornece-lhe uma representação dessa mensagem que enunciados reais, possuindo esta forma fonética, transmitem a falantes da língua em situações normais de fala. Podemos então considerar o desenvolvimento de um modelo do componente semântico como passando a se ocupar da explicação da capacidade de um falante de produzir e compreender uma infinidade de sentenças novas, a partir do momento em que os modelos dos componentes sintático e fonológico deixam de atuar" (Katz, 1977: 61).

Os marcadores sintagmáticos podem ser entendidos como os morfemas da língua, mas, tendo como objetivo simplificar a argumentação, Katz os considera como palavras que, segundo o próprio, representam os átomos do sistema lingüístico. Sendo assim, "as regras semânticas terão de começar com os significados desses constituintes para derivar os significados de outros constituintes composicionalmente" (Katz, 1977: 62). Esta orientação conduz ao seguinte procedimento metodológico. Em um primeiro momento, a focalização de uma interpretação semântica necessita da definição dicionarizada das palavras. No entanto, deve-se levar em consideração que embora o dicionário forneça uma lista de possibilidades que vão, sem dúvida alguma, conduzir a interpretação semântica, estas não devem ser vistas como entidades indivisíveis dos conceitos oferecidos pela relação que mantêm com outros elementos composicionais. Um outro momento estaria, então, marcado pela verificação de tais elementos. Conforme observam Katz e Fodor (1977), esses elementos não se referem somente às representações de regras gramaticais. Para exemplificar, eles comparam o desempenho de um falante fluente com o de uma máquina. Mesmo possuindo em sua memória um dicionário, do qual fará uso mecanicamente e uma lista de sentenças com suas respectivas descrições estruturais, uma máquina, apenas com essas informações, não se torna capaz de dar conta das relações semânticas na formação de uma sentença1. De acordo com o que explicitam os autores, diferentemente dos falantes fluentes, o que uma máquina não possuiria:

"são regras para a aplicação das informações do dicionário, regras que levam em conta as relações semânticas entre morfemas e a interação do sentido e da estrutura sintática, na determinação da interpretação semântica correta de qualquer das sentenças produzidas em um número infinito pela gramática. Assim, uma teoria semântica de uma língua natural, a fim de espelhar apropriadamente as interpretações, deve ter, entre os seus componentes, estas regras" (Katz e Fodor, 1977: 96).

Tais regras, as quais Katz e Fodor chamam de regras de projeção, atuam sobre as informações gramaticais e do dicionário como elementos norteadores que permitem ao falante selecionar as palavras adequadas, formular enunciados semanticamente bem estruturados e resolver problemas como de sentenças semanticamente anômalas ou de ambigüidade lexical. Dessa forma, uma teoria semântica deveria partir do significado que revelam as palavras, observar a forma como essas palavras estão sintaticamente estruturadas nas sentenças e explicitar o quanto o sentido da sentença seria resultado dos significados das partes e das relações estabelecidas intra e inter sentenças. São essas relações que revelariam, para os autores, a função das regras de projeção.

Dentro dos estudos voltados mais especificamente para a construção poética, as análises realizadas por Norma Goldstein em Versos, Sons e Ritmos (1986) e Análise do Poema (1988) parecem guardar alguma similaridade com o tipo de análise semântica desenvolvidas por Katz e Fodor. A autora, em seus estudos, faz uma criteriosa avaliação dos aspectos que compõem a construção poética. A sua proposta de análise sugere que o leitor, na tentativa de entender as significações escondidas no poema, deve manter-se atento a estes aspectos - reveladores da minuciosa elaboração que há no interior de cada verso - dentre os quais estariam envolvidos: o rítmico do poema; versos, estrofes e rimas; recursos sonoros; o lexical; o aspecto sintático e o nível semântico. Desde que alguns desses aspectos fogem completamente aos propósitos deste trabalho, somente os elementos lexical, sintático e semântico farão parte da presente discussão.

Nessa perspectiva, vê-se claramente que o aspecto lexical terá muito a dizer sobre as intenções do autor ao elaborar o seu texto. Com efeito, ao longo da história da poesia tem-se evidenciado o quanto o vocabulário se mostra um elemento revelador. Um rápido retrocesso histórico nos permite ver que os poetas, em diferentes épocas, debruçaram-se de forma distinta sobre os vocábulos. Já foram freqüentes os neologismos, os arcaísmos, as palavras pertencentes à norma culta e coloquial, as românticas, as funestas, entre outras. Uma prova desse fato é dada, por exemplo, pela indignação que demonstra Manuel Bandeira quando na construção de seu metapoema Poética declara o seu descontentamento diante do que vinha sendo valorizado até então na elaboração poética, demonstrando que a sua relação com as palavras não será mais a mesma a partir de então: "Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo do vocábulo" (Bandeira, 2002: 52). Ainda que houvesse a necessidade de uma análise mais demorada sobre a obra citada, é fácil perceber, apenas com base nesse fragmento, que as palavras serão as primeiras a denotar a transformação de um período literário para outro. De modo que, mesmo que não se tivesse conhecimento de que Manuel Bandeira é um escritor modernista, isto seria facilmente percebido através do léxico por ele utilizado.

Após esta primeira sondagem no âmbito lexical, o passo seguinte para a devida compreensão do texto deve seguir no sentido de procurar a quais categorias gramaticais as palavras, presentes no poema, pertencem; se há predominância de alguma delas e de que forma são empregadas2. Se por um lado os verbos, em particular, podem denominar dinamismo ou estaticidade, a ausência deles pode ser significativa, eliminando do texto qualquer mobilidade. Os modos e tempos verbais devem ser cuidadosamente analisados, pois neles podem estar escondidas realidades e hipóteses, proximidades e distanciamentos, ações prolongadas, repetidas ou uma única vez realizadas. Os substantivos, os adjetivos, as locuções e as orações adjetivas são igualmente importantes para a análise da poesia, pois se revelam prenhes de significado. Embora muitas vezes negligenciadas, as palavras pertencentes a classes gramaticais fechadas, entre elas as conjunções e preposições, também tendem a se mostrar, dependendo da forma que são utilizadas, fundamentais para a interpretação semântica das sentenças.

Em relação ao nível sintático, Goldstein (1988) observa que toda a análise textual feita pelo leitor deve levar em conta não apenas a estrutura das sentenças, mas também a forma como a pontuação foi empregada. Como se sabe, esse elemento é, muitas vezes, determinante da leitura que se fará. Assim, ao se ler um poema, deve-se manter a atenção voltada tanto para o sentido das palavras quanto para o modo como os versos estão organizados. Para atender a essa finalidade, é importante que sejam levantadas questões do tipo: "têm-se sintagmas, frases, orações ou períodos?" "Quais foram os sinais de pontuação utilizados?" Um outro ponto de observação diz respeito aos paralelismos sintáticos, ou seja, versos que apresentam a mesma construção, sofrendo somente alteração no uso de determinadas palavras.

As demais estratégias utilizadas estão, muitas vezes, marcadas por recursos como: gradação de palavras; inversão, feita por meio do deslocamento de uma palavra dentro da oração, com o objetivo de colocá-la em evidência; enumeração e encadeamento, também conhecido por enjambement3. É a partir do encadeamento que o escritor, por exemplo, consegue criar tensão e suspense revelados nas ocorrências das ambigüidades lexicais tão comuns aos poemas.

Embora seja evidente que, no enfoque dado aos aspectos lexicais e sintáticos presentes na composição textual, o nível semântico sempre está presente, via de regra é comum à grande maioria dos estudiosos de textos literários apresentá-lo separadamente, especialmente se os seus objetivos têm caráter didático-pedagógico. Assim, para fins desse trabalho, tal separação visa como propósito, no contexto ou dentro da própria semântica, colocar em destaque que a interpretação semântica pode ser determinada pela presença de algumas figuras; dentre elas: símile, metáfora, alegoria, sinestesia, metonímia e antítese.

Não há dúvidas de que todas as figuras de linguagem, descritas pela Teoria Literária, trazem em si aspectos particulares que enriquecem a significação poética, no entanto dar-se-á especial atenção à metáfora. Antonio Candido, em O Estudo Analítico do Poema (2004), dedica dois capítulos do seu livro para o estudo do que chama de "o destino das palavras no poema". Nessa obra, ele explica que, no interior da poesia, as palavras, em consonância com o tratamento que o poeta lhes confere, sentir-se-ão mais livres para adquirir os mais variados significados. Candido demonstra preocupação em diferenciar o uso da linguagem direta do da linguagem figurada ou metafórica, com a finalidade de mostrar que ambas atuam de forma, embora diferente, importante para a compreensão e beleza poética. Ele observa que foi Vico (1730, apud Candido, 2004) o precursor da ousada e brilhante teoria que traz à tona o fato de que a linguagem figurada era primitiva, mas que foi a partir dela que os homens passaram para a linguagem racional. Com essa observação, o autor pretende ressaltar que "ambas não são duas realidades distintas, mas intimamente vinculadas; e que portanto as imagens não eram meros 'enfeites' do discurso, como pensavam os retores, mas elementos viscerais da expressão, que por meio delas se efetuava" (Candido, 2004: 112). É certo que no uso metafórico das palavras ocorrerá uma transferência de atributos pertencentes a determinados objetos a outros; efetuar-se-á, pois, uma transposição de sentido. No entanto, percebe-se que a partir do momento em que o poeta se utiliza de uma palavra, atribuindo a ela um sentido que causa estranhamento, ao encontrá-la novamente no interior do poema, mesmo que agora utilizada na linguagem direta, o leitor não mais a perceberá da mesma maneira. Com isso quer-se dizer que, com a evolução da leitura e dos conhecimentos adquiridos, deu-se por parte do leitor a ampliação do sentido dessa palavra que, na verdade, já trazia em si uma relação com o novo sentido que lhe foi atribuído. Note-se que o poeta torna-se, portanto, aquele que consegue identificar essa nova possibilidade significativa que apenas estava latente na palavra. Esse interessante fenômeno, aliás, pode ser percebido no poema de Manuel Bandeira, do qual se falará a seguir.

 

A palavra nu e os diferentes sentidos assumidos no poema homônimo: um estudo de caso

Adorno (1980) observa que o poeta lírico, por estar descontente com os valores que lhe rodeiam, reflui para dentro de si em busca de conteúdos que lhe pareçam mais substanciais e verdadeiros. Depois se volta novamente para o mundo objetivo e revela a forma da sua subjetividade: o poema. Essa afirmação do autor demonstra o quanto as palavras que compõem um poema trazem em si uma gama de significações e representações imagéticas que obrigam o leitor a adentrar no mais fundo das possibilidades interpretativas dessas palavras, para extrair delas a significação de uma realidade reinventada, transformada. É assim que o deparar-se com o lexema nu, no poema de Bandeira, desperta surpresa. Para começar, observem-se, primeiramente, os significados que essa palavra poderia assumir em contexto de acordo com o dicionário Aurélio (Ferreira, 1995):

"Nu. Adj. 1. Privado de vestuário; despido, desnudo. 2. Sem cobertura; exposto, descoberto. 3. Descalço: pés nus. 4. Sem folhas. 5. Sem vegetação; escalvado. 6. Desguarnecido, desornado, desataviado. 7. Sem nada; vazio. 8. Destituído, carecente. 9. Sem afetação; simples, sincero, franco. 10. Não disfarçado; patente, evidente. 11. Tosco, grosseiro. 12. Desembainhado (a espada). [Fem.: nua.S.m. 13. Aquele que não tem o que vestir. 14. Nudez (1). 15. Art. Plást. V. nu artístico."

No título do poema encontra-se tão somente a palavra nu. Essa palavra, que, conforme verificou-se no verbete acima, já revela a ambigüidade em sua essência, remeterá o leitor a uma série de possibilidades temáticas. Talvez esse leitor, logo no primeiro momento, seja conduzido a pensar no erotismo que tal palavra propõe e, certamente, não se surpreenderá ao ver-se frente à nudez de um corpo feminino que aos poucos se revela4. O que, todavia, pode causar-lhe admiração é a comparação entre essa nudez com outra inesperada: a do Cosmos. São estas as três primeiras estrofes do poema5:

(1) Quando estás vestida,

Ninguém imagina

Os mundos que escondes

Sob as tuas roupas.

(2) Assim, quando é dia,

Não temos noção

Dos astros que luzem

No profundo céu.

(3) Mas a noite é nua,

E, nua na noite,

Palpitam teus mundos

E os mundos da noite6.

As estrofes (1) e (2) prefiguram a nudez que se desvendará em (3). Não há movimentação nesses versos; ao contrário, o uso de verbos de ligação fixam a atenção do leitor em dois elementos: uma mulher e o dia. O enjambement encontra-se presente, fazendo com que todos os versos das duas primeiras estrofes estejam de algum modo relacionados. Um necessita do outro para significar e essa imbricação entre os versos desvendará outra: o da relação existente entre o mundo aparente e outros mundos. Assim, a mulher quando vestida oculta mistérios que só serão revelados através da sua nudez, como também os astros que luzem no céu somente à noite tornar-se-ão visíveis. Isso mostra quanta elaboração há nos versos: "Os mundos que escondes / sob as suas roupas". Observe-se que o elemento em que se centra essa elaboração é o substantivo mundo; palavra esta que traz entre suas significações: o universo, a terra e os astros; a humanidade, a sociedade e os homens.

O corpo vestido esconde, portanto, uma infinidade de mistérios, assim como se sabe serem inumeráveis os mistérios acerca do universo. Na estrofe (3) surgirá a possibilidade da revelação desses mistérios. O adjetivo nu aparecerá sendo utilizado como predicativo do sujeito noite: "Mas a noite é nua". E no verso seguinte: "E, nua na noite". Vê-se que, agora, o substantivo que está sendo predicado não aparece de forma explícita no texto. É claro que essa estratégia do autor garante harmonia rítmica ao poema, porém ela também coloca lado a lado, em um único verso, as palavras nua e noite. A noite revela a imensidão do universo e é, na noite, que a mulher se despe das roupas, representação de uma conduta social, e revela seu corpo e sua essência. Os demais versos do poema apontam para esses dois elementos.

(4) Brilham teus joelhos,

Brilha o teu umbigo,

Brilha toda a tua

Lira abdominal.

(5) Teus exíguos seios

- Como na rijeza

Do tronco robusto

Dois frutos pequenos -

 

(6) Brilham. Ah, teus seios?

Teus duros mamilos!

Teu dorso! Teus flancos!

Ah, tuas espáduas!

(7) Se nua, teus olhos

Ficam nus também:

Teu olhar, mais longe,

Mais lento, mais líquido.

(8) Então, dentro deles,

Bóio, nado, salto

Baixo num mergulho

Perpendicular.

(9) Baixo até o mais fundo

De teu ser, lá onde

Me sorri tu'alma

Nua, nua, nua... (Bandeira, 2002: 102 -103)

Nas estrofes (4), (5) e (6) têm-se a descrição física do corpo nu. Utilizando-se do verbo brilhar em (4), para construir um paralelismo, o autor enumera as partes do corpo. Para captar o tom empregado nessa estrofe e o sentimento do eu-lírico, ao descrever esse corpo, é muito importante manter-se atento às possíveis significações do verbo brilhar: reluzir, resplandecer, fulgurar, salientar-se, manifestar-se, transparecer, transluzir, revelar-se. Esta enumeração de sentidos reforça a idéia de que mais do que percorrer pelas partes daquele corpo feminino, o eu-lírico comunica-se com elas, sente toda a sua energia. Note-se que o enjambement faz-se presente nos versos que ligam a estrofe (5) a (6): "Dois frutos pequenos / - Brilham. Ah, teus seios?". É como se o sujeito oculto nas palavras do poema parasse para suspirar extasiado frente àqueles seios. Nesse momento acontece o clímax da descoberta da nudez física; algo evidenciado através da interrogação e exclamações utilizadas na estrofe (6).

Na estrofe (7), o autor novamente aproveita-se da ambigüidade do adjetivo nu para trazer à tona novas significações. Após percorrer por todas as partes daquele corpo feminino, o sujeito lírico vê-se diante dos olhos, agora, nus também. Sugere-se nesse momento o encontro sexual, o encontro físico entre os corpos, mas frente ao olhar, no mais fundo desse olhar o eu-lírico percebe mais; é esse um instante em que se revela para ele algo de metafísico. Na estrofe (8) tem-se, então, de forma metafórica, a descrição do próprio ato sexual. Agora aparecem verbos que indicam ação, movimento e não mais estaticidade: bóio, nado, salto, mergulho. E, na última estrofe, concretiza-se um outro encontro, agora, não mais físico: "Baixo até o mais fundo / De teu ser, lá onde / Me sorri tu' alma / Nua, nua, nua...". Nesse momento, torna-se mais significativo o sentido das palavras que o autor utiliza no início do seu poema e revelam-se, para o leitor, a quais mundos o autor se referia. Essa descoberta é de tal forma complexa que vai exigir do leitor não apenas um processamento lingüístico, mas também mental, bastante intenso e muito elaborado. Trata-se, pois, dos mundos da alma, que agora se mostra nua, transparente e revela seus segredos, sonhos, temores, desejos.

Note-se que é justamente todo esse processamento exigido, quer para o autor ou para o leitor, que torna o poema em questão uma obra especialmente interessante; pois a partir dele permite-se trazer para o debate os caminhos que ambos os indivíduos, autor e leitor, precisarão percorrer ao longo dos seus processos de produção e compreensão, respectivamente.

Por fim, vale mencionar que nesse seu poema, Manuel Bandeira conferiu um novo destino às palavras, ou seja, buscou na essência da semântica lexical a possibilidade de atribuir-lhes sentidos inesperados que, à primeira vista, podem provocar estranhamento, mas, ao mesmo tempo, despertar a sensibilidade do leitor, com cuja realidade lingüística ele, o leitor, terá de lidar, necessariamente. O erotismo presente no poema torna-se, pois, de um lirismo que sai da esfera carnal e alça vôos mais altos, revelando-se envolto por uma atmosfera que tende ao sublime. É assim que a descrição do ato sexual reveste-se de uma tonalidade especial que, por fim, garantir-lhe-á uma beleza incomum. Tudo isso propiciado pelo jogo das palavras e sentidos por elas assumidos no texto que, para o leitor em sua tentativa de o compreender, serão cruciais.

 

Conclusão

Partiu-se do pressuposto que o estudo semântico das palavras é um componente norteador para a análise de um objeto lingüístico, pertença ele a qualquer gênero discursivo. Afirmação que, certamente, reforça-se ao longo da discussão teórica e análises realizadas, uma vez que se verificou só ser possível aproximar-se do significado que o autor tencionou dar a determinadas sentenças a partir da descrição do significado das palavras que compõem essas sentenças.

É, sem dúvida, essa significação que levará o leitor à essência da palavra e a refletir sobre novas possibilidades interpretativas. Todavia, a problemática que motivou a elaboração deste trabalho foi o fato de que as teorias, cuja semântica lexical é objeto de estudo, parecem apresentar distanciamento de análises de textos cuja perspectiva seja artística, da mesma forma que o viés artístico poucas vezes aproxima-se de um prisma lingüístico. Essa constatação confirma que a crítica feita por Bakhtin, no texto Os gêneros do discurso, há mais de cinqüenta anos (1952), possível data do texto original ainda não revisto pelo autor, é até hoje pertinente. Neste estudo, objetivou-se minimizar esse distanciamento, mostrando o quanto as palavras são expressivas e absolutamente necessárias para processamento lingüístico e mental, mesmo para um universo aparentemente pouco interessado em discussões teóricas dessa natureza. Expressividade que existe no âmago das palavras, mas intensifica-se quando os falantes, em situações reais, com uma determinada intenção discursiva, atribuem a elas a sua individualidade.

Por fim, cabe lembrar que esse trabalho buscou apresentar tão somente uma reflexão num estágio ainda bastante incipiente. Entretanto, há fortes razões para se investir nessa discussão, inclusive com a colocação do seu foco em gêneses cognitivas, a partir da compreensão dos fenômenos lingüísticos aí constituídos.

 

Referências Bibliográficas

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Endereços para Correspondência
E. Boniatti é aluna bolsista da Pós-graduação stricto sensu em Letras - área de concentração em Linguagem e Sociedade da UNIOESTE, campus de Cascavel. E-mail para correspondência: edinaboniatti@hotmail.com
J. Bidarra é Professor e Doutor nas Áreas de Inteligência Artificial, Lingüística Computacional e Processamento da Linguagem Natural. Atua no curso de graduação em informática e no mestrado de letras (Linha: Mecanismos da Linguagem Natural) na UNIOESTE, sendo pesquisador do Grupo de Inteligência Aplicada (GIA - CNPq). E-mail para contato: jbidarra@unioeste.br.

 

 

Notas

(1) Vale observar que, atualmente, há uma quantidade significativa de trabalhos desenvolvidos, especialmente na área de PLN (Processamento da Linguagem Natural), que implementam soluções nesse sentido, cujos resultados têm sido bastante satisfatórios [e.g.: Pollard e Sag (1987), Pustejovsky e Boguraev (1996)]
(2) Nota-se, mais uma vez, que em PLN esses seriam elementos bases freqüentemente usados nos processos de extração de informação textual, uma das subáreas da Inteligência Artificial que, hoje, se encontra em franca expansão. [Sobre o assunto, ver, p.ex., Rilloff (1996), Huffman (1996)]
(3) Encadeamento ou enjambement é um recurso literário bastante usado pelos escritores que possibilita a um verso ligar-se ao seguinte com a finalidade de completar o seu sentido ou o seu som no interior do poema. Refere-se, pois, a um procedimento estético que engloba tanto as figuras de construção (elipse, zeugma, polissíndeto, assíndeto, inversão, silepse, anacoluto, pleonasma e anáfora) quanto as figuras de som (assonância, aliteração e paronomásia). [Uma boa discussão sobre o tema pode ser encontrada em Chociay (1974) e também em Tomachevski (1973)]
(4) Vale lembrar que muitas palavras, mesmo que isoladas, trazem em si mesmas sentidos muito marcados; dir-se-á, inclusive, terem um valor interpretativo preferencial. Seria, por exemplo, o caso da palavra nu que nos remete, independentemente do contexto, ao seu significado básico (não metafórico) relacionado a despido.
(5) Os números à frente de cada estrofe servirão de base para as nossas referências.
(6) Todas as citações do poema Nu referem-se a: Bandeira, M. (2002). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro. p. 102.