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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.13 no.1 Rio de Janeiro mar. 2008

 

Artigo Científico

 

A Morte da representação na filosofia e nas ciências da cognição

 

The death of the representation in the philosophy and cognitive sciences

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

Este artigo começa e termina com os fatos que mostram como as ciências da cognição e a filosofia podem ampliar seus horizontes para englobar a mente incorporada e a experiência humana vivida. A cultura científica ocidental requer, na filosofia e na ciência, que nós vejamos os corpos como estruturas físicas e estruturas experienciais ao mesmo tempo. Na filosofia e nas ciências da cognição, há uma abordagem incorporada atuacionista que surge um pouco ofuscada. O termo abarca dois pontos de vista: (1) percepção consiste em ação perceptivamente orientada e (2) as estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes que permitem à ação ser perceptivamente orientada. A hipótese é que as mentes não operam por representação. Ao invés de representar um mundo independente do agente, as mentes en-agem (enação) em um mundo como um domínio de distinções que é inseparável da estrutura incorporada pelo sistema cognitivo.

Palavras-chave: mente incorporada; enação; atuação; representação; ação.


Abstract

This paper begins and ends with the facts that show how the sciences of cognition and the philosophy can to enlarge their horizon to encompass both embodied mind and lived human experience. Western scientific culture requires, in the philosophy and in the science, that we see bodies both a physical structures and as lived experiential structures. In the philosophy and in the sciences of cognition, there is an embodied-enactive approach that appears somewhat opaque. The term consists of two points: (1) perception consists in perceptually guided action and (2) cognitive structures emerge from the recurrent sensorimotor patterns that enable action to be perceptually guided. The hypothesis is that such minds do not operate by representation. Instead of representing an independent world of agent, they enact (enaction) a world as a domain of distinctions that is inseparable from the structure embodied by the cognitive system.

Keywords: embodied mind; enaction; representation; action.


 

 

Introdução: o mal estar da representação na filosofia e nas ciências da cognição

O conceito de enação (atuação) veio romper, radicalmente, com a noção de representação nas ciências da cognição. Na filosofia, diferentes autores têm mostrado as falhas ontológicas da noção de representação mental. Rorty (1981) demonstra solidamente que a idéia de um mundo ou ambiente com características pré-determinadas e independentes do agente, recuperadas por meio de representações, não se sustenta ontologicamente. Foucault (1966/2003) demonstrou como o conceito de representação, em geral, não coube nos saberes da epistémê moderna desde o final do século XVIII, sobretudo com a emergência das ciências do homem (e do próprio homem). Michel Foucault demonstra como os saberes romperam o quadro da representação, em seus liames exteriores que não contemplam algo que se situa para além de sua imediata visibilidade: uma espécie de "mundo subjacente, mais profundo que ela (a representação) própria e mais espesso" (Foucault, 1966/2003: 329).

Merleau-Ponty (1942/2006), com sua noção da ação perceptivamente orientada mostrou que a correspondência entre o mundo e a percepção do agente não existe visto que a estrutura do agente e o corpo fenomenal determinam a percepção e não o mundo real. Segundo Pachoud (2000), a noção de intencionalidade no ato perceptivo contrapõe-se à idéia de representação. Heidegger (1927/2005) e Gadamer (1997/2004), com as noções de circunvisão e vivido, respectivamente, demonstraram a fragilidade da idéia de representação na filosofia contemporânea.

Este texto buscou resgatar algumas dessas inúmeras abordagens que, com clareza filosófica e/ou científica, jogaram por terra a idéia de que a cognição funciona pela elaboração de mapas que correspondam exatamente a um mundo exterior pré-determinado: as representações. Na filosofia, dois autores, em especial, foram escolhidos para análise: Maurice Merleau-Ponty e Michel Foucault. Ambos demonstram a fragilidade do conceito de representação em diferentes contextos: Merleau-Ponty o faz no caso da percepção, da cognição e do comportamento. Michel Foucault demonstra como o conceito de representação desabou na história entre o final do século XVIII e início do século XIX. Ambos são apontados por Francisco Varela como pensadores que fizeram severas críticas ao ponto de vista representacionista. Nas Ciências da Cognição, são vários os pesquisadores que vão contestar a idéia de representação mental, apoiando-se em sua idéia inversa: "embodied mind" ou mente incorporada, i.e. cognição incorporada.

Ou seja, o ponto de vista inverso da representação é o da cognição incorporada, presente nos trabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela (mais recentemente), tendo suas raízes em diferentes correntes filosóficas e em trabalhos de diferentes pesquisadores, como Mark Johnson (1987); M. Minsky (1986); G. Lakoff (1987); R. Jackendoff (1987); G. Edelman (1987); A. Damásio (2003/2004).

A representação mental é a noção do cognitivismo que elabora a hipótese de que a cognição é a manipulação de símbolos como a dos computadores microeletrônicos. Em outras palavras, uma representação mental equivaleria a um reflexo da natureza pela mente, como se esta espelhasse aquela. Sob o ponto de vista representacionista, a mente funciona manipulando símbolos de modo a espelhar o mundo ou representar suas características. Sob a égide da representação,

"acredita-se que a mente opera manipulando símbolos que representam características do mundo, ou representam o mundo como tendo determinada forma. De acordo com essas hipóteses cognitivistas, o estudo da cognição enquanto representação mental estabelece o domínio adequado das ciências cognitivas, um campo considerado independente da neurobiologia, num extremo, e da sociologia e antropologia, no outro." (Varela et al., 1991/2003: 24-25).

Uma das críticas mais severas à noção de representação, na filosofia, foi elaborada por Rorty (1981), argumentando que a mente não espelha a natureza de forma homogênea. A idéia de um mundo exterior previamente dado, passível de ser espelhado pela mente, é um equívoco que foi criado pela reunião de imagens, concepções e usos lingüísticos heterogêneos, segundo Richard Rorty. Entre a mente e a natureza, há algo de heterogêneo, de denso, de espesso (conforme expressões de Michel Foucault em seu denso trabalho sobre o fim da era da representação nos últimos anos do século XVIII...) que não cabe no quadro da representação - algo que em diferentes correntes filosóficas vai exercer um papel de ruptura.

Em Merleau-Ponty (1942/2006), trata-se dos conceitos de ação perceptivamente orientada, estrutura, forma e corpo fenomenal.

Em Foucault (1966/2003), são os conceitos de organização (na biologia), trabalho (na economia política) e sistema flexional (na filologia) que romperam com o quadro da representação do pensamento clássico anterior aos fins do século XVIII.

Segundo Varela (1990/2004):

"Só nos mais recentes trabalhos de alguns pensadores continentais particularmente M. Heidegger, M. Merleau-Ponty e M. Foucault se dá início à crítica explícita da representação." (Varela, 1990/2004: 73)

Em Heidegger (1927/2005), são vários os conceitos que rompem com a noção de representação, mas podemos citar, por exemplo, "pre-sença", "ser-no-mundo" e "circunvisão".

Em Maturana e Varela (1984/2001) há os conceitos de autopoiese, organização, auto-organização, acoplamento estrutural, emergência e enação.

"Organização e estrutura - Entende-se por organização as relações que devem ocorrer entre os componentes de algo, para que seja possível reconhecê-lo como membro de uma classe específica. Entende-se por estrutura de algo os componentes e relações que constituem concretamente uma unidade particular e configuram sua organização." (Maturana e Varela, 1984/2001: 54)

A organização é que dá forma ao sistema e que o faz emergir como unidade. Todo fenômeno cognitivo depende de uma dada organização do sistema nervoso.

"A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis. O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais em organização." (Maturana e Varela, 1984/2001: 55)

Convém reter na memória estas definições de organização e estrutura para quando discutirmos o trabalho de Foucault sobre a ruptura da representação pela epistémê moderna no final do século XVIII.

Em Varela e colaboradores (1991/2003), temos os conceitos de atuação/enação, auto-organização e mente incorporada. A noção de representação, segundo Varela e colaboradores (1991/2003), é ontológica e epistemologicamente insustentável nas ciências da cognição contemporâneas.

"De um lado, há a noção relativamente incontroversa de representação como construto: a cognição consiste sempre em construir ou representar o mundo de determinada forma. Do outro lado, há a noção ainda mais forte de que esse padrão de cognição deve ser explicado pela hipótese de que um sistema age com base em representações internas." (Varela et al., 1991/2003: 144)

E continuam eles explicando que há um sentido relativamente fraco, e um outro forte, incontroversos da representação:

"Esse sentido é puramente semântico: ele se refere a qualquer coisa que possa ser interpretada como sendo a respeito de alguma outra. Esse é o sentido de representação como construção, considerando-se que nada é sobre nenhuma outra coisa sem de algum modo construí-la. Um mapa - por exemplo, um mapa de alguma área geográfica - representa certas características do terreno e então constrói aquele terreno como sendo de determinada forma. (...) Esse sentido de representação é um sentido fraco, porque não necessita de qualquer compromisso epistemológico ou ontológico forte. Logo, é perfeitamente aceitável falar de um mapa que representa um terreno sem pensar de que maneira os mapas adquirem seu significado. É também perfeitamente aceitável pensar em um enunciado representando um conjunto de condições, sem pressupor que a linguagem como um todo funciona dessa forma, que de fato existem fatos no mundo independentes da linguagem que podem ser representados pelas sentenças da língua. Ou podemos até mesmo falar de representações experienciais, como a imagem que tenho de meu irmão, sem fazer pressuposições ulteriores de como essa imagem apareceu pela primeira vez. Em outras palavras, esse sentido fraco de representação é pragmático: nós o usamos o tempo todo despreocupadamente." (Varela et al., 1991/2003: 144-145)

Por outra lado, há o sentido mais forte da representação que, segundo Varela e colaboradores (1991/2003), acarreta compromissos ontológica e epistemologicamente mais "pesados".

"Esse sentido forte aparece quando generalizamos a noção mais fraca com vistas a construir uma teoria consolidada sobre como a percepção, a linguagem ou a cognição em geral funcionam. Os compromissos ontológicos e epistemológicos são basicamente duplos: assumimos que o mundo é predeterminado, que suas características podem ser especificadas antes de qualquer atividade cognitiva. (...) Temos então uma teoria consolidada que diz: (1) o mundo é predeterminado; (2) nossa cognição é sobre esse mundo - mesmo se apenas parcialmente, e (3) o modo pelo qual conhecemos esse mundo predeterminado é representando suas características e então agindo com base nessas representações." (Varela et al., 1991/2003: 145)

A crítica da mente incorporada incide, precisamente, sobre a noção de um mundo, (ou ambiente) dotado de características extrínsecas a quem o vivencia e o percebe (agente), características essas que são predeterminadas e as quais podem ser recuperadas por meio de um processo de representação.

Sob o ponto de vista da mente incorporada, a consciência e os fenômenos cognitivos emergem da atuação do agente, ou seja, de sua incorporação em um mundo biológico, social e cultural. Há uma ausência de unidade na consciência visto que os modos de "estar consciente" existem em função das modalidades de experiência.

Sob essa abordagem, a mente e o mundo se relacionam através da mútua especificação ou co-origem dependente. Não há, portanto, um mundo predeterminado, do lado de fora da mente, que seja plenamente recuperado inteiramente em uma representação.

Entre a mente e o mundo há a organização (Maturana e Varela, 1984/2001); há a forma, a estrutura, o corpo fenomenal (Merleau-Ponty, 1945/1999); há a circunvisão (Heidegger, 1927/2005). Um estímulo é modificado pela atuação do agente e sua organização interna determina tal modificação. Logo, entre o mundo e a mente não há a correspondência e a homogeneidade da representação, mas sim a ruptura e a heterogeneidade da experiência do agente, promotora da enação, da atuação associada a seu modo particular de organização interna da mente. O estudo das cores, em Varela, Thompson e Rosch (1991/2003) ilustra precisamente isso.

"Nossa análise tem mostrado que não conseguiremos explicar a cor se buscarmos localizá-la em um mundo independente de nossas capacidades perceptivas. Em vez disso, devemos localizar as cores no mundo percebido ou experencial, que é produto de nossa história ou acoplamento estrutural. De fato, esse ponto tornar-se-á ainda mais claro quando considerarmos a cor como uma categoria experiencial." (Varela et al., 1991/2003: 169)

Este mundo percebido ou experencial é o mundo no qual se banha o corpo fenomenal. Observe-se, ainda, que nas palavras dos autores anteriores destacam-se os termos atuação - estrutura - ação - atuacionista (enação) - percepção. Segundo a mente incorporada, as estruturas cognitivas emergem da dinâmica de padrões sensório-motores recorrentes (como os "image-schemata" (Johnson, 1987; Rohrer, 2005)) que viabilizam a "ação perceptivamente orientada" (Merleau-Ponty, 1942/2006). Os sujeitos que percebem, numa dada situação, numa dada atividade, constroem um "mundo comum" (Rabardel e Pastré, 2005) que os permite se comunicarem e estabelecerem consenso na linguagem.

 

Ontologia do cogito incorporado (embodied mind) x Representação mental

A instrumentação para a ação vai além do domínio dos símbolos e da linguagem isoladas da atuação do agente. Ela situa-se, também, no domínio do pensamento não-proposicional, das elaborações mentais ou estratégias que "não se baseiam na idéia de representação"; Situa-se no domínio dos "embodied-schemata" (Johnson, 1987); no domínio da "representação sem representação" (Peschl, 1997). É uma instrumentação lingüística e comunicacional, porém em um nível distinto da interação explicitada por Habermas em sua teoria do agir comunicacional : Se aí a ação coletiva apóia-se sobre o consenso na linguagem, aqui é a ação, permeada por esquemas incoporados e promovida pela mente incorporada no contexto das situações específicas da atividade que viabiliza a linguagem, a comunicação e a intercompreensão nos diferentes contextos.

Na atividade, emergem significados, dotados de conteúdos de racionalidade e abstração cuja natureza é, de fato, incorporada e não proposicional. A natureza da significação nos fenômenos do cotidiano remete à noção de "image schematic structures" (Johnson, 1987) que explicam coerentemente a ligação entre as "representações" e o papel do corpo que age na construção de algo que pouco tem de similar a uma representação. O corpo age na elaboração de significações e nas capacidades mais abstrativas. São estruturas não-proposicionais, baseadas na experiência física espacial, as quais vão possibilitar as funções cognitivas superiores abstratas e as proposições de natureza não-física, não-espacial.

A representação, na verdade, consiste em espécies de metáforas que estão armazenadas no corpo como os "embodied schemas" e, portanto, representar algo ou compreender algo ou mesmo atribuir significação a algo, a um evento, é perceber pelo corpo, pelo movimento, pela sensação aquilo que por seu intermédio foi adquirido como habilidade encarnada de ação. "Representar" é perceber o próprio corpo em ação, é resgatar a experiência física, concreta, material, visceral, carnal... que, de fato e efetivamente, conferem significação à atividade e geram toda a atividade de abstração ("e simbólica") do agente (Peschl, 1997).

A experiência corporal é um manancial de significação para os agentes ainda que baseada em padrões não-proposicionais. Há, portanto, essas significações que partem da experiência corporal (Berthoz, 1997) e espécies de processos figurativos não representacionais, os quais não envolvem um tratamento objetivista da linguagem, da compreensão, da interpretação e do raciocínio mobilizados na ação na vida cotidiana. Particularmente, há um funcionamento de significados pré-conceituais e incorporados que estão na estrutura da experiência, como padrões esquemáticos incorporados pelos quais a significação é gerada pela própria experiência: Estruturas não proposicionais (Johnson, 1987) que tornam possíveis a significação, a compreensão e a "representação" dos fatos e eventos da vida do dia-a-dia.

O ponto de vista objetivista-representacionista compreende a cognição e a geração de significados pelo agente como produto de relações entre símbolos e da relação entre uma representação simbólica e uma realidade objetiva independente da mente.

O significado, a razão são, sob o ponto de vista objetivista, analisados sem qualquer referência às estruturas não-proposicionais como os padrões esquemáticos de ação e projeções metafóricas oriundas da experiência física (Johnson, 1987), componentes essenciais para a compreensão e a interpretação dos eventos por parte dos agentes. Há estruturas que aí ocupam uma função essencial e que merecem uma análise mais aprofundada. Essas estruturas são não-proposicionais porque fogem dos princípios proposicionais do pensamento representacionaista como, por exemplo, o princípio de que uma representação utiliza tão somente predicados de natureza simbólica, e um determinado número de símbolos como argumentos; esses símbolos-argumentos referem-se a entidades e os símbolos-predicados representam propriedades e relações entre entidades; a representação tem um caráter "finito", limitado ao uso de elementos e links relacionais entre estes elementos; por exemplo, sob este ponto de vista, uma imagem pode ser proposicionalmente representada; uma proposição existe como algo contínuo, sendo um correlato exato da experiência exterior, com uma estrutura interna que permita inferências. Eis o ideário representacionista.

Os "image-schemata" diferem radicalmente de algo como um processamento cognitivo de informações. Os "image-schemata" são estruturas básicas, compostas por elementos estruturantes da ação, distinguindo-se drasticamente de uma representação mental. Eles são abstratos e não se limitam a imagens construídas por propriedades visuais, mas sim por experiências corporais, calcadas no corpo que move-se e age numa atividade.

Portanto, a atividade cognitiva envolvida no agir cotidiano abarca esquemas do tipo "image-schematic" que se distinguem de imagens mentais ou representações objetivistas. Um "esquema-imagem", então, não é do tipo de imagem que traduz, de forma plena, o que ocorre no mundo da vida como se fosse uma representação deste mundo. Não é representação proposicional e não pode ser representado de uma forma proposicional. Ou seja, não podem ser convertidas em conjuntos arbitrários de símbolos, pontos, superfícies, etc. A realidade cognitiva dessas imagens esquemáticas não envolve o raciocínio simbólico e proposicional, embora possam ser descritas proposicionalmente ou como imagens. Na visão de Lakoff (1987), "image-schematic transformations", em contraste com as representações proposicionais, são operações recorrentes naturais, de caráter não proposicional, constituindo-se num nível de generalidade e abstração que envolve padrões resultantes de um considerável número de experiências no domínio incorporado da ação, bastante estruturadas na experiência física e espacial, nas percepções, no manuseio de instrumentos e objetos.

Ou seja, os "image schemata" operam num nível de organização mental que se situa entre os extremos de uma representação proposicional abstrata, por um lado, e uma compreensão incorporada, concreta, de outro. As estruturas formais de ação (nas suas coordenadas cognitivas) possuem sua importância e não se trata de negá-la. Há toda uma gama de possibilidades de construir as explicações num domínio de estruturas formais, sistemas formais e/ou operações lógicas ou encadeamentos de símbolos numa representação instaurada no mundo do objetivismo. No entanto, isso constitui uma alternativa que possui seus limites e que encontra dificuldades em explicar problemas reais verificados nos fenômenos cognitivos. Muitas dessas propriedades e relações lógicas, já consolidadas epistemologicamente são, na verdade, formalizações de padrões experiencias que, de fato, são elementos ontogenéticos que organizam e conferem significado e compreensão aos agentes sobre os eventos do mundo da vida.

O que existe de encadeamento lógico e representacionista na ação possui uma base incorporada e experiencial. Em particular, essa base se aloja na forma de "image-schemata" que contêm inferências e conferem racionalidade / inteligibilidade à ação. Ou seja, há uma estrutura interna atuante no mundo da vida que pode ser traduzida em algo mais formal mas que, na realidade, não deixa de ser uma estrutura incorporada de ação que possibilita toda atividade de abstração necessária ao agir cotidiano, à cognição, inclusive o entendimento das próprias relações formais sobre conceitos e proposições.

 

Crítica da representação em Merleau-Ponty

Em M.M-Ponty (1945/1999), há entre a representação e a mente uma espessura, uma obscuridade profunda conhecida pelas noções de forma (organização e estrutura) e de corpo fenomenal. O corpo fenomenal é "uma certa montagem geral pela qual sou adaptado ao mundo... amplitude variável de meu ser no mundo" (Merleau-Ponty, 1945/1999: 283). Também, em sua filosofia, é recorrente a noção de organização. Um mundo predeterminado, passível de uma correspondência na mente, não existe. O mundo percebido não corresponde ao mundo exterior. O mundo percebido depende da estrutura do agente. Aquilo que se dá na experiência é resultado do que M.M-Ponty (1945/1999) chama de "enformação", como se uma forma ou molde situadas no funcionamento do agente, em corpo e mente (indissociáveis), remodelasse os estímulos do mundo exterior, singularizando-os: trata-se do corpo fenomenal, dotado de uma organização e de uma estrutura que lhe são peculiares. O caso da percepção (por exemplo, a percepção de cores) e da ação perceptivamente orientada (Merleau-Ponty, 1942/2006) são demonstrações dessa inexistência de uma representação na mente que corresponda, tal e qual, ao mundo exterior ao agente.

Maurice Merleau-Ponty, na filosofia utilizada por pesquisadores da ciência da cognição (Berthoz, 1997; Varela e colaboradores, 1991/2003), vai revelar que, no presente, o corpo está ligado ao "para si" de Heidegger (1927/2005) e, por isso, "a existência efetiva do corpo é indispensável à existência da consciência". É a experiência do "corpo na experiência do mundo...", singular, um "para-si" singular, que demonstram, assim, a "pre-sença" no mundo. Mundo e ser (com seu corpo) são indissociáveis mas não correspondentes por representação objetivista. O corpo integra a mente, mas não apenas o corpo objetivo e sim, principalmente, o corpo fenomenal, nas palavras de Merleau-Ponty:

"Em outros termos, como nós o mostramos alhures, o corpo objetivo não é a verdade do corpo fenomenal, quer dizer, a verdade do corpo tal como nós o vivemos, ele só é uma imagem empobrecida do corpo fenomenal, e o problema das relações entre a alma e o corpo não concerne ao corpo objetivo, que só tem uma existência conceitual, mas ao corpo fenomenal. O que é verdadeiro é apenas que nossa existência aberta e pessoal repousa sobre uma primeira base de existência adquirida e imóvel." (Merleau-Ponty, 1945/1999: 578)

Não pode, esse corpo fenomenal, ser um "objeto de análise positiva" visto que: Primeiro, ele age; segundo, ele consiste ontologicamente num "corpo fenomenal" (Merleau-Ponty, 1945/1999) responsável por enquadrar os estímulos, os dar forma e significação enquanto etapa que antecede, no cérebro, o estágio cortical. Este corpo fenomenal que ultrapassa o corpo físico, em outras palavras, é esta etapa anterior ao estágio cortical nos processos de percepção, bastante distinto de uma representação. Ele é que remodela os estímulos, fazendo do mundo uma categoria inteligível ao agente.

Esse corpo irredutível a um sistema biológico articula-se com o real, como espaço das coisas e objetos do mundo físico que perpassem o seu campo de atuação (campo da enação).

"O "real" é este meio em que cada coisa é não apenas inseparável das outras, mas de alguma maneira sinônimo das outras, em que os "aspectos" se significam uns aos outros em uma equivalência absoluta; ele é a plenitude intransponível (...). A coisa é este gênero de ser no qual a definição completa de um atributo exige a definição do sujeito inteiro e em que, por conseguinte, o sentido não se distingue da aparência total." (Merleau-Ponty, 1945/1999: 433)

É pela mediação de uma re-criação instrumental que um artefato passa de seu uso prescrito a seu uso efetivo, a um campo estendido, nessa relação íntima com o corpo fenomenal e a mente incorporada. Extrapolando os atos do corpo objetivo há o corpo fenomenal que está dado apenas enquanto há o exercício dinâmico de atuar nas situações concretas. É o corpo que confere consistência ao mundo da atividade, e a própria percepção da temporalidade dos atos na ação depende do corpo. As qualidades percebidas não estão livres das influências do corpo, como numa representação abstrata. O espaço corporal envolve um saber que com ele coexiste, um saber situado no corpo fenomenal e que se efetiva em sua ação no campo de atuação. Saber que se origina na relação vivida pelo corpo como entidade natural, biológica, e atinge o domínio do corpo fenomenal, diferente do mundo objetivo ao qual o observador tem acesso e no qual repousa o idealismo da representação.

Portanto, em atividade e na experiência do mundo da vida, a ação é executada, de fato, pelo corpo fenomenal, embora o observador a veja como um encadeamento de movimentos do corpo objetivo. É o corpo fenomenal que se atira em direção aos objetos do mundo objetivo.

Os objetos do mundo objetivo surgem ao agente não como elementos representáveis, mas como pontos para os quais converge a ação. O corpo fenomenal, aí, funciona como um mediador entre o sujeito e o mundo objetivo, numa ligação na qual a ação extrai dele os atos necessários à sua realização. Uma modalidade de atração que é produzida pela própria situação que demanda, do corpo, os atos adequados.

Na situação, o sujeito está no corpo e este se converte numa potência de atuação em um certo mundo no qual se acopla o corpo fenomenal. É o movimento do corpo em direção ao mundo concreto da ação, com suas propriedades de intencionalidade e seu caráter ativo, que conferem sentido a cada situação, e gera as condições de possibilidade das percepções.

Ou seja, pelo agir, o agente cria seu campo, seu mundo, seu espaço de atuação no qual age o "corpo fenomenal", quer dizer,

"manter em torno de si um sistema de significações cujas correspondências, relações e participações não precisem ser explicitadas (representadas) para ser utilizadas. (...) Esses mundos adquiridos, que dão à minha experiência o seu sentido segundo, são eles mesmos recortados em um mundo primordial, que funda seu sentido primeiro. Da mesma maneira, há um "mundo dos pensamentos", ou seja, uma sedimentação de nossas operações mentais, que nos permite contar com nossos conceitos e com nossos juízos adquiridos como coisas que estão ali, e se dão globalmente sem que precisemos, a todo momento, refazer sua síntese. É assim que pode haver para nós uma espécie de panorama mental, com suas regiões demarcadas e suas regiões confusas, (...) este saber contraído não é uma massa inerte no fundo de nossa consciência", mas é um saber que brota como "uma multidão de fios intencionais que parte do corpo em direção..." ao mundo (Merleau-Ponty, 1942/2006: 182)

Por isso, habituar-se a um instrumento de ação, manuseá-lo com habilidade, é colocar-se nele, fazê-lo integrar o campo de atuação, fazê-lo participar do espaço de ação desenhado pelo corpo fenomenal. O ato habilidoso é fruto de uma expansão do ser em seu mundo de ação, expansão de seu campo pelo uso de instrumentos e criação de novos usos e/ou novos instrumentos. O corpo fenomenal é o obstáculo da idéia de representação na filosofia moderna, representação como uma designação objetiva, conforme nos afirma Maurice Merleau-Ponty:

"O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos. (...) Se o hábito não é nem um conhecimento nem um automatismo, o que é então? Trata-se de um saber que está nas mãos, que só se entrega no esforço corporal e que não se pode traduzir por uma designação objetiva." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 199)

A idéia de um mundo exterior em si não se sustenta, assim como a idéia correlata de um corpo como receptor, transmissor e emissor de mensagens. O mundo sensível não é simploriamente apreendido com os sentidos, uma vez que isso não se resume a mecanismos instrumentais que converteriam o aparelho sensorial a uma espécie de aparelho condutor, pois até em sua periferia os dados fisiológicos se dão atrelados a relações centrais, mais complexas, do fenômeno de percepção. Faz-se necessário retornar à própria experiência do agente para se definir o que lá ocorre. Neste retorno, ocorre, pelo conhecimento do fenômeno, um natural abandono da idéia de representação do mundo, pouco clara e apoiada no pensamento orientado aos objetos exteriores; pensamento ansioso por uma objetivação do organismo humano como um sistema físico imerso em estímulos passíveis de descrições em propriedades físico-químicas. Em seu lugar surge uma ciência objetiva da própria subjetividade.

Situações e acontecimentos implicam numa retomada e projeção, na demanda do momento presente, da bagagem que o passado acumulou em si, ao contrário da tese de uma interpretação metódica calcada em símbolos e regras para posterior elaboração de representações favoráveis à ação eficaz. Ação é um momento que desdobra uma vida em fração quase instantânea de tempo. Ação não se faz com base em representação e o mundo objetivo que poderia se dar na representação não existe.

É o plano intencional que efetua a importante união entre sensibilidade e motricidade que intensamente afeta as percepções na ação cotidiana. A análise que busca ultrapassar as clássicas alternativas dadas, por um lado, pelo empirismo, e por outro, pelo intelectualismo, ou entre a explicação e a reflexão, é aquela que parte para a existência concreta do agente em situação de ação e seu campo de atuação. Essa forma de análise não enxerga a consciência como soma de fatos psíquicos e muito menos como uma função de representação. Ela não pode ser tomada como uma potência de extrair significados de símbolos. A consciência é, antes, uma maneira de situar-se diante do objeto, de pôr objetos diante de si. A consciência não se desprende das funções de um agente incorporado ao seu mundo de atuação. Só há consciência de algo quando há um corpo que atua e que traz, em si, as marcas de um passado que se arrasta consigo. A consciência efetua-se num mundo físico e tem um corpo, e sua condição de existência é o seu passado pessoal; são as significações passadas, seu passado de aculturações à atividade que no momento as solicita e, também, seu passado natural.

Pode-se, assim, notar que a motricidade é uma intencionalidade original. A consciência deixa de ter a forma do "eu penso" para assumir a forma do "eu posso". O estar consciente é fruto do exercício de ser, do movimento da existência.

O espaço corporal não é pensado ou representado. Um movimento está em um meio que o coordena e encontra-se num fundo por ele próprio gerado. O espaço em que a atividade se desenrola está intimamente relacionado aos movimentos do agente - movimento e seu espaço são momentos de um todo único. Um gesto do agente não indica existir uma representação antecedente, mas uma intenção, uma tendência natural de agir num campo há muito freqüentado, num mundo há muito habitado. Não há consciência sem intermédio do corpo, enquanto que a representação é supérflua para a ação consciente. Por exemplo, alguém só aprende um movimento quando o corpo o aprendeu primeiro. O comportamento é a causa primeira de todas as estimulações. Aliás, aprender algo é, antes de tudo, incorporá-lo. Aprender um gesto, um procedimento, é deixá-lo invadir seu mundo e tornar-se presente em seu campo de atuação (acoplamento estrutural).

O movimento do corpo implica em antecipar-se e projetar-se às coisas pela mediação do próprio corpo. É situar-se numa transparência que faz correr o fluxo da ação entre o corpo e a situação que o solicita. Essa transparência não envolve qualquer representação. A motricidade não é um objeto passivo usado pela consciência que leva o corpo, como um fantoche, aonde bem quer por meio de representações. O movimento é que gera a consciência e a consciência de um objeto (evento, desvio da normalidade, disfuncionamento, incidente...) somente ocorre quando o objeto se situa no campo do sujeito atuante.

Ir em direção ao objeto exige que o objeto exista para o sujeito. Deve, assim, haver uma interseção entre campo de atuação e objeto. O corpo deixa seu espaço do "em si" para atuar no mundo circundante e ampliar seu campo acessível aos objetos de percepção. O corpo tem seu mundo e os objetos, ou mesmo o conhecimento, não existem, para o sujeito, se não estiverem neste mundo de atuação. O corpo habita o espaço e o tempo pela atuação do agente.

"Mas, do mesmo modo como todas as estimulações que o organismo recebe foram possíveis apenas por seus movimentos precedentes, que acabaram por expor o órgão receptor às influências externas, poderíamos dizer também que o comportamento é a causa primeira de todas as estimulações. Assim, a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira peculiar de se oferecer às ações do exterior. Sem dúvida, para poder subsistir, ele deve encontrar em torno de si um certo número de agentes físicos e químicos. Mas é ele, segundo a natureza própria de seus receptores, segundo os patamares de seus centros nervosos, segundo os movimentos dos órgãos, que escolhe no mundo físico os estímulos aos quais será sensível. O meio se recorta no mundo segundo o ser do organismo - dado que um organismo pode ser apenas se encontra no mundo um meio adequado." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 14-15)

Agir eficazmente é orientar-se na situação, adentrando na experiência, tomando os movimentos mais significativos para fazer uma "representação" que se constrói pelo próprio corpo. O corpo, em atividade, funciona como uma potência de possibilidades de ação; ações principalmente familiares, as quais permitem ao sujeito se inserir no mundo circundante, sem que ele tenha de distinguir o próprio corpo ou o meio que o circunda como objetos isolados.

É o corpo que confere consistência ao mundo da atividade, e a própria percepção da temporalidade dos atos no ação do dia-a-dia depende do corpo. As qualidades percebidas não estão livres das influências do corpo. O espaço corporal envolve um saber que com ele coexiste, um saber situado no corpo fenomenal e que se efetiva em sua ação no campo de atuação. Saber que se origina na relação vivida pelo corpo como entidade natural, biológica, e atinge o domínio do corpo fenomenal, longe do mundo objetivo ao qual o observador tem acesso.

Um sujeito, dotado de seus esquemas incorporados, não precisa representar suas mãos no uso ou "representar" os objetos. Para o sujeito atuante, mãos e ferramentas não são objetos isolados em um mundo objetivo. Constituem potências latentes de ação que disparam um saber que os liga e viabiliza o fluir dos atos do agir cotidiano, em harmonia com as coordenadas da situação. A percepção surge no interior deste fluxo, nesta ligação do corpo com os instrumentos noato, no cerne desses "fios intencionais" que conduzem a ação. Portanto, em uma atividade, a ação é executada, de fato, pelo corpo fenomenal, embora o observador a veja como um encadeamento de movimentos do corpo objetivo. É o corpo fenomenal que se atira em direção aos objetos do mundo objetivo para percebê-los.

Os objetos do mundo objetivo surgem ao agente não como elementos representáveis, mas como pontos para os quais converge a ação, a definir uma situação. O corpo, aí, funciona como um mediador entre o sujeito e o mundo objetivo, numa ligação na qual a ação extrai dele os atos necessários à sua realização. Uma modalidade de atração que é produzida pela própria situação que demanda, do corpo, os atos adequados.

Na situação, o sujeito está no corpo e este se converte numa potência de atuação em um certo mundo. É o movimento do corpo em direção ao mundo concreto do dia-a-dia, com suas propriedades de intencionalidade e seu caráter ativo, que conferem sentido a cada situação vivenciada, e gera as condições de possibilidade das percepções necessárias.

Uma "existência espacial" no cotidiano é uma condição indispensável à percepção, sobretudo a percepção dos eventos. Motricidade e pensamento caminham juntos no agir da vida cotidiana e, quanto ao corpo, enquanto uma "potência motora" acoplada ao mundo da vida, comporta uma apreensão de um resultado futuro necessário ao trato com o "imprevisto". Pode-se, então, falar de uma "intencionalidade motora" (Pachoud, 2000) que configura um verdadeiro projeto da ação, ao invés de uma representação.

Todo movimento, na atividade, é indissoluvelmente movimento e consciência e, conforme já discutido, cada movimento possui um fundo, integrado ao próprio movimento: movimento e fundo formam, então, partes indissociáveis de uma totalidade única.

"O fundo do movimento não é uma representação associada ou ligada exteriormente ao próprio movimento; ele é imanente ao movimento, ele o anima e o mantém a cada momento; a iniciação cinética é para o sujeito uma maneira original de referir-se a um objeto, assim como a percepção. Através disso se esclarece a distinção entre movimento abstrato e movimento concreto: O fundo do movimento concreto é o mundo dado; o fundo do movimento abstrato, ao contrário, é construído." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 159)

Na ação eficiente, o corpo se transforma num corpo produtivo e a consciência numa consciência capaz da reflexão necessária ao trato com eventos, visto que corpo e consciência estão imbricados um no outro. Toda atividade abstrata e simbólica tem uma base material incorporada ao mundo de atuação do agente.

A "função simbólica" ou a "função de representação" ligam-se aos movimentos concretos, e quando se trata de analisar essa função abstrata,

"ela não é um termo último, ela repousa, por seu lado, em um certo solo, e o erro do intelectualismo é fazê-la repousar sobre si mesma, destacá-la dos materiais nos quais ela se realiza e reconhecer, em nós, a título originário, uma presença ao mundo sem distância, pois a partir dessa consciência sem opacidade, dessa intencionalidade que não comporta o mais e o menos, tudo o que nos separa do mundo verdadeiro - o erro, a doença, a loucura e, em suma, a encarnação - é reduzido à condição de simples aparência." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 175)

Compreender uma situação é "experimentar o acordo entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação - e o corpo é nosso ancoradouro em um mundo". Compreender o que ocorre numa dada situação é integrar o espaço dos atos ao espaço corporal (campo, corpo fenomenal). Ou seja, o hábito não se aloja nem no pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo fenomenal que media a relação com o mundo. As reações na atividade são mediadas por uma apreensão global do instrumento. O instrumento é avaliado com o corpo; suas dimensões e direções são incorporadas e o operador instala-se no instrumento para agir. O corpo e o instrumento são apenas o lugar de passagem de uma relação que culmina nos atos e na ação no cerne da atividade. Não se trata de memorização, de recordação, de representação objetiva das coordenadas do instrumento e do ato no espaço objetivo: Não é no espaço objetivo que o sistema corpo-mente age. É no mundo paralelo criado no acoplamento do agente; é em seu corpo fenomenal e no seu campo (de atuação).

"As principais regiões de meu corpo são consagradas a ações, elas participam de seu valor, e trata-se do mesmo problema saber porque o senso comum coloca o lugar do pensamento na cabeça e como o organista distribui as significações musicais no espaço do órgão. Mas nosso corpo não é apenas o corpo constituído. Ele é a origem de todos os outros; o próprio movimento de expressão, aquilo que projeta as significações no exterior dando-lhes um lugar, aquilo que faz com que elas comecem a existir como coisas, sob nossas mãos, sob nossos olhos." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 202)

O corpo estende os atos da ação em "disposições estáveis". Conforme afirma Merleau-Ponty (op cit.), "o corpo é nosso meio geral de ter um mundo". É ele que confere significação ao mundo, constrói um instrumento e até mesmo "projeta em torno de si um mundo cultural".

"O hábito é apenas um modo desse poder fundamental. Diz-se que o corpo compreendeu e o hábito está adquirido quando ele se deixou penetrar por uma significação nova, quando assimilou a si um novo núcleo significativo. O que descobrimos pelo estudo da motricidade é, em suma, um novo sentido da palavra sentido." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 203)

Ou seja, não é possível aprofundar-se por completo no objeto, e não há uma antecipação ou "representação" sensorial que o contemple por inteiro. Um agente não abstrai inteiramente ação, e esta permanece como um background no qual ele adentra por meio de "habilidades específicas" recortadas pela especificidade da situação. Uma familiaridade que permeia "partes do ser" atuante na atividade.

"Toda sensação pertence a um certo campo. Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por posição, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, e que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom da natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer, portanto, que a visão é pré-pessoal; e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é um pensamento sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 292, grifo nosso)

Um sentido é, portanto, a consciência operando, ou seja, atuando no mundo: A consciência em exercício numa dada situação. Toda experiência na situação de ação é experiência de um mundo, e a experiência sensorial na atividade é uma "superfície de contato com o ser", uma estrutura de consciência. Por isso, Ponty afirma que cada sentido constitui um pequeno mundo necessário ao todo. Em outras palavras, os "dados dos diferentes sentidos dependem de tantos mundos separados, cada um deles, em sua essência particular, sendo uma maneira de modular a coisa, e todos eles se comunicam através de seu núcleo significativo".

Reforça-se, novamente, o papel do corpo, em sua intencionalidade, como síntese da fenomenologia perceptiva. Tal síntese não é resultante de representações de um "sujeito epistemológico", e sim do corpo, ao abandonar sua "dispersão" e se orientar para os movimentos demandados pela atividade. A percepção está, então, no campo, no "corpo fenomenal" e, conforme sintetiza brilhantemente Ponty:

"Nós só retiramos a síntese do corpo objetivo para atribuí-la ao corpo fenomenal, quer dizer, ao corpo enquanto ele projeta em torno de si um certo "meio", enquanto suas "partes" se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõem de maneira a tornar possível, por sua sinergia, a percepção do objeto. Ao dizer que essa intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que meu corpo tem de si mesmo." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 312)

Aparentemente, a síntese faz-se no objeto ou no mundo, embora de fato ela se efetue no sujeito atuante na atividade. O movimento (não o objetivo, mas o "virtual") é o que funda a unidade dos sentidos na atividade. "Os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de um intérprete; compreendem-se uns aos outros sem precisar passar pela idéia". É no esquema corporal que ocorre a unidade dos sentidos e a do objeto. O corpo funciona, na ação do dia-a-dia, como a "textura comum de todos os objetos" e, no mundo percebido, no seu "toque", que ocorre a significação, a compreensão das particularidades de cada situação. É ele que confere sentido aos objetos naturais e até mesmo aos objetos culturais como a linguagem e as palavras. A palavra "frio" depende, em sua significação plena, em sua aquisição de sentido no mundo, de uma experiência incorporada, e não de uma representação das propriedades físicas objetivas do "frio".

 

Crítica da representação em Michel Foucault

A representação é rompida pela nova configuração dos saberes no final do século XVIII. A representação abrigava as comparações, impressões e a imaginação do pensamento clássico. Registrava a semelhança das coisas, sua decomposição em elementos idênticos e diferentes, sua ordem pelas semelhanças e similitudes.

A representação, nessa fase de ruptura dos saberes, perdeu seu poder de criar por si mesma, em seu desdobramento e no seu jogo que a reduplica sobre si, aqueles liames que uniam seus diversos elementos. Dantes, pelas composições, decomposições, análises de identidades e diferenças elaboravam-se os liames da representação no pensamento clássico, as ordenações dos saberes enciclopédicos. Agora, na virada do século XVIII para o século XIX, a ordem, o quadro no qual se espacializa a representação, as vizinhanças por ela estipuladas e as sucessões em sua superfície perderam o poder de ligar os elementos de uma representação. Logo, a representação dissolveu-se.

O conceito de organização em Foucault (1966/2003), assim como nos autores das ciências da cognição que se filiam ao ponto de vista da mente incorporada, mostra uma ruptura radical com a noção de representação:

"o espaço geral do saber não é mais o das identidades e das diferenças, o das ordens não-quantitativas, o de uma caracterização universal, de uma taxinomia geral, de uma máthêsis do não-mensurável, mas um espaço feito de organizações, isto é, de relações internas entre elementos, cujo conjunto assegura uma função; mostrará que essas organizações são descontínuas, que não formam, pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas." (Foucault, 1966/2003: 298-299)

Neste momento crucial da história dos saberes, ou seja, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, Foucault, o genealogista, vai encontrar um acontecimento raro a envolver os três grandes ramos do saber: saberes da história dos seres vivos, saberes sobre a gramática geral e saberes sobre a história das riquezas. Trata-se da ruptura na epistémê clássica, com a dissolução da representação, e a emergência de elementos irredutíveis a uma representação em cada um deles. O elemento irredutível na história dos seres vivos foi o conceito de organização (relação interior a um dado ser e não passível de representação). O elemento irredutível a uma representação, na gramática geral, foi o sistema flexional. E, na nova economia política (dantes história das riquezas) foi o conceito de trabalho.

No caso da gramática geral, o que permite definir uma língua não é mais a maneira como ela pode ser representada, mas certa "arquitetura interna", análoga à organização nos seres vivos: o sistema flexional.

Observe-se que em cada caso, trata-se da emergência de um elemento irredutível à representação, não dado em sua exterioridade. Um elemento interno ao saber, que o estrutura, que o faz funcionar de determinada maneira. Na economia política, o trabalho. Nos seres vivos, a organização. Na gramática geral, o sistema flexional. Num momento de ruptura da epistémê clássica, que estava edificada sobre as representações em que figuravam apenas os elementos visíveis e exteriores, surgem, nos saberes, elementos invisíveis, interiores, que organizam a nova forma de pensar os elementos de um dado saber: Organização - trabalho - sistema flexional. Logo, não mais é possível representar algo que, por ser "denso, profundo, espesso, invisível" segundo palavras do pensador, ou algo ainda que funcione como uma "organização interna, uma arquitetura implícita, um sistema de relações entre elementos que justifica a forma de funcionamento do todo" - não se dá facilmente à representação.

Verificamos que nas ciências da cognição ocorre o mesmo. A mente não é o espelho do mundo exterior predeterminado porque existe nela uma "arquitetura interna, uma organização, um sistema de relações" que modifica o mundo e o torna diferente para o agente que percebe e que nele se acopla. Conforme atesta toda a filosofia de M. Merleau-Ponty, "não é o mundo real que faz o mundo percebido" (Merleau-Ponty, 1945/1999). Ou seja, não pode o mundo real ser representado na mente. Maurice Merleau-Ponty vai demonstrar isso, no caso da cognição e da percepção, em suas páginas, densas páginas, por meio de conceitos similares aos descobertos por Michel Foucault na história: organização - estrutura - forma - função.

Um outro aspecto de ruptura tratada por Michel Foucault é a emergência do homem e das ciências do homem, evento correlato ao fim da representação. É importante conhecê-lo para compreender melhor o funcionamento do pensamento clássico das representações e como ele impedia a "noção de homem" de existir, embora tratasse de uma natureza humana representada nas enciclopédias. A emergência do homem, entre o final do século XVIII e início do século XIX, na nova epistémê moderna, está correlacionada à morte da representação no pensamento clássico, conforme explicado por Michel Foucault e sintetizado a seguir.

A emergência do homem entre o final do século XVIII e começo do século XIX

O homem emergiu no pensamento ocidental moderno quando do grande abalo da epistémê ocidental representacionista no final do século XVIII. Quatro foram as condições que permitiram a emergência do homem e uma definição de seu modo de ser: 1 - Confronto com a finitude; 2 - Reduplicação do empírico no transcendental; 3 - Relação do cogito com o impensado; 4 - Recuo e impossibilidade de alcance da origem.

O homem é a dispersão em um poder que o aprisiona, ao mesmo tempo em que o remete para longe de sua própria origem, poder de seu ser próprio.

"O tempo - mas esse tempo que é ele próprio - tanto o aparta da manhã donde ele emergiu quanto daquela que lhe é anunciada." (Foucault, 1966/2003: 462)

O tempo fundamental, que permite ser dado à experiência o tempo do vivido, é diferente do tempo da filosofia da representação. Este tempo do vivido a impõe uma forma de sucessão linear e descortina o homem como ser finito em que as coisas vêm se apresentar com um tempo próprio a elas, a impossibilitar sua coexistência com a representação da era clássica.

"Antes do fim do século XVIII, o homem não existia". O homem é uma figura recente talhado no tecido da epistémê moderna pela sua linguagem, seu trabalho e sua biologia (vida) que romperam com a epistémê clássica da representação. A consciência epistemológica do homem surge aí também, nessas empiricidades que segundo linhas específicas isolam um grande domínio epistemológico específico do homem. Por que não antes? Porque nenhuma época debruçou-se com tamanha fecundidade sobre a noção de natureza humana. Na idade clássica, o conceito de natureza humana e o seu modo de funcionamento calcado na representação excluíam as possibilidades de funcionamento de uma ciência clássica do homem.

Nas culturas dos séculos XVI, XVII, XVIII, verifica-se que o homem não possuía qualquer espaço. Tais culturas estavam voltadas para Deus, para o mundo, para as semelhanças entre as coisas e suas representações, para as leis do espaço, corpos, paixões, imaginação, signos... O homem era uma figura ausente.

Foi pelo arranjo de determinadas peças e reconfigurações de certas práticas sociais que se tornou possível a emergência do homem. Este não surgiu de uma fonte moral ou pelo desejo de um conhecimento científico. Ao contrário, quando se colocou o ser humano na posição de objeto de um saber possível que, então, se seguiu o desenvolvimento dos temas morais do humanismo contemporâneo.

Como foi possível ao homem se constituir, no final do século XVIII, como um objeto de saber Como, por ele, foi possível traçar um certo tipo de discurso Ao final do século XVIII, ele surge como um objeto novo de saber. E, com ele, foi possível a constituição das ciências humanas. Surge dotado de um valor filosófico e epistemológico inquestionável: o homem emerge como um objeto de ciência possível. Daí se pôde falar das ciências do homem, pelas quais todo o conhecimento ao redor do tema "homem" se tornou possível. O homem aparece, então, no campo dos conhecimentos como objeto possível e, por outro lado, é posto, de modo radical, como sujeito, ao ponto de origem de todo o conhecimento possível.

O homem emerge com seu aspecto duplo, ou suas duplicidades: a) sujeito-objeto; b) empírico-transcendental. Sujeito de um tipo de saber e objeto de um saber possível.

Este homem-duplo não existia no interior do saber clássico da representação. O que o impedia de surgir A representação. O discurso das semelhanças. A ordem das coisas e seu espelhamento numa linguagem em continuidade com os aspectos visíveis da natureza. Na época clássica, para estudar a gramática ou o sistema de riquezas não havia necessidade de passar por uma ciência do homem, mas sim passar pelo discurso. Todas as noções que são fundamentais para nossa concepção de homem, como aquelas da vida, do trabalho e da linguagem, não possuíam qualquer importância na idade clássica. Essas noções eram ofuscadas pelas representações ordenadas em um discurso. Este discurso irá perder seu poder organizador que havia no saber clássico. Não haverá mais a transparência entre a ordem das coisas e aquela das representações. Assim, emergem as linguagens com sua história, a vida com sua organização e sua autonomia e o trabalho com sua própria capacidade de produção.

Na lacuna deixada pelo discurso, o homem é constituído como aquele que vive, fala, trabalha e que pode ser conhecido enquanto vive, fala e trabalha. A organização do vivente, o sistema flexional da linguagem e o trabalho (ontológico) são, ao mesmo tempo, elementos de ruptura do quadro da representação e irredutíveis à representação.

Ele emerge e, com ele, vêm, como que fragmentos de seu ser amarrados em seu corpo, o trabalho, a vida, a linguagem. Estes o definem. Positividades, então, nascem estritamente ligadas à noção de homem. Elas escancaram sua finitude (em substituição à metafísica do infinito), a qual tem suas estruturas (empíricas e "transcendentais") calcadas justamente na vida, no trabalho e na linguagem.

Significa, a transformação verificada do século XVIII ao XIX, a passagem da ordem e da representação à história e a transformação de positividades até então vigentes: Fim da análise das representações, gramática geral e história natural. Delas, surgem a economia política, a filologia e a biologia, graças a uma ruptura profunda. Antes, predominava o jogo das representações, que comportava análise, decomposição, recomposição para fazer ver um sistema de identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem, as similitudes. Agora, prevalece o homem e os saberes que dele emanam, irredutíveis à representação.

O trabalho rasgando o quadro da representação

No quadro da representação, a quantidade de trabalho inserida no preço das coisas não passava de uma medida homogênea. As equivalências são medidas pela necessidade. O valor de uso ocupa o espaço de referência absoluta aos valores de troca.

"As riquezas são sempre elementos representativos que funcionam: mas o que representam, finalmente, não é mais o objeto do desejo, é o trabalho." (Foucault, 19662003: 305)

As riquezas são os objetos de necessidade, objetos de representação que se representam a si próprias nas trocas. O trabalho permanece como parcela irredutível ao quadro da representação, algo heterogêneo, fecundo, pautado por condições exteriores à sua própria representação.

Com Adam Smith, o pensamento moderno sobre as riquezas rompe o quadro da representação do pensamento clássico. O trabalho emerge como essa entidade espessa que não cabe na homogeneidade do que era representado no quadro. Traz consigo uma antropologia que revela a finitude do homem e sua temporalidade em atividade. Não mais o objeto da economia política era a troca de riquezas, mas sim a produção real com seu trabalho humanamente situado no terreno do possível e da finitude e com as suas relações com o capital.

O trabalho traz a antropologia e revela um homem em relação de estranhamento com o seu trabalho; traz, ainda, uma "economia que fala de mecanismos exteriores à consciência humana" e um tempo diferente daquele dos ciclos de empobrecimentos e enriquecimentos, mas

"será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones - o tempo do capital e do regime de produção." (Foucault, 1966/2003)

A noção de organização extrapolando o pensamento clássico da representação

Se na economia o elemento espesso e heterogêneo que não cabia no quadro da representação era o trabalho, na biologia emerge a noção de organização como elemento fugidio, não imediatamente dado às empiricidades, mas com o poder de explicar a vida e seu funcionamento de modo incompatível com a idéia de representação.

A relação entre "estrutura visível" e "critérios de identidade" é modificada:

"assim como foram modificadas por Adam Smith as relações da necessidade ou do preço. (...) A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d'Azyr o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível - um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização." (Foucault, 1966/2003)

Se no pensamento clássico o caráter era representado pela estrutura visível, no pensamento moderno da virada entre os séculos XVIII e XIX o caráter será dado pela presença de funções vitais para o ser vivo e, também, pelas relações de subordinação funcional daí decorrentes. Os caracteres ligam-se diretamente às funções.

Se um elemento é fundamental na classificação de um ser não é porque ele pode ser visto como uma representação de algo, mas sim porque desempenha um papel essencial dentro de uma dada função de crucial importância para um ser vivo.

"O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de determinação. Não é por ser freqüente nas estruturas observadas que um caráter é importante; é por ser funcionalmente importante que o encontramos com freqüência." (Foucault, 1966/2003: 313)

A relação entre os órgãos do corpo (como p. ex., órgãos superficiais e órgãos mais interiores) fez com que a noção da vida conduzisse a ordenação dos seres naturais. Classificar não será mais representar.

"Classificar, portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de seus elementos de representar os outros; será, num movimento que faz revolver a análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois de alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que são dados à superfície dos corpos." (Foucault, 1966/2003: 315)

A "profundidade" ou a "secreta arquitetura" são termos que jamais foram conhecidos pelo pensamento representacionista. A organização é este elemento arquitetônico que monta um conjunto coerente e funcional a articular e reger tanto o visível quanto o invisível jamais conhecido pelo pensamento clássico.

Organização: Um conceito de ruptura

A noção de organização não se dá imediatamente à representação. Seja no caso dos organismos, na biologia, ou mesmo no caso do sistema nervoso e os fenômenos cognitivos, a organização é o elemento espesso e profundo que veio romper o quadro da representação no pensamento clássico:

"Não basta mais só para designar uma categoria de seres entre outros; não indica mais apenas um corte no espaço taxinômico; define para certos seres a lei interior, que permite a uma de suas estruturas assumir o valor de caráter. A organização se insere entre as estruturas que articulam e os caracteres que designam - introduzindo entre eles um espaço profundo, interior, essencial." (Foucault, 1966/2003:318)

O conceito de organização é aquele que não se harmoniza com o quadro da representação. Um acontecimento atinge, a um só tempo, a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas no final do século XVIII. Os signos que compunham as representações, bem como a análise das identidades e das diferenças e o quadro de continuidades, ordens e articulações entre as similitudes "não podem mais fundar apenas na reduplicação da representação em relação a ela mesma" (Foucault, 1966/2003:326). Há um elemento irredutível à representação em cada segmento, conforme mostra a Tabela 1.

 

Pensamento clássico da representação

Elemento irredutível à representação

Ciência moderna

Gramática geral

Sistema flexional

Filologia

História natural

Organização

Biologia

Análise das riquezas

Trabalho

Economia Política

Tabela 1 - Transição da representação para a epistémê moderna

 

A caracterização de um ser natural deixa de ser feita pelos elementos que podem ser analisados por representações e passa a ser feita por uma relação interior a esse ser irredutível à representação: A organização.

No caso da gramática geral,

"o que permite definir uma língua não é a maneira como ela representa as representações, mas certa arquitetura interna, certa maneira de modificar as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em relação às outras: é seu sistema flexional. Em todos os casos, a relação da representação consigo mesma e as relações de ordem que ela permite determinar fora de toda medida quantitativa passam agora por condições exteriores à própria representação na sua atualidade." (Foucault, 1966/2003: 326)

Logo, nas línguas o elemento espesso, obscuro, irredutível ao representacionismo é o sistema flexional, elemento análogo à organização nos seres vivos, na biologia. Nos seres vivos, tem-se um caráter definido ligado a uma estrutura cuja explicação repousa sobre leis biológicas que organizam as relações entre funções e órgãos; têm:

"uma estrutura que é como o reverso sombrio, volumoso e interior de sua visibilidade: é na superfície clara e discursiva dessa massa secreta mas soberana que os caracteres emergem; espécie de depósito exterior à periferia de organismos agora enrolados sobre si mesmos." (Foucault, 1966/2003: 327)

Observa-se na passagem do século XVIII para o século XIX, este acontecimento "um pouco enigmático, subterrâneo" que atingiu três domínios - história natural; gramática geral; análise das riquezas - fazendo-os sofrer uma mesma ruptura que abalou toda a epistémê clássica: ruptura da relação da representação para com o que nela é dado; "a representação perdeu o poder de criar, a partir de si mesma, no seu desdobramento próprio e pelo jogo que a reduplica sobre si, os liames que podem unir seus diversos elementos" (Foucault, 1966/2003).

É esse algo além do mundo visível e imediatamente acessível que será objeto do pensamento pós-ruptura da epistémê. Algo além da imediata visibilidade; algo que faz emergir a vida, a riqueza, a linguagem; algo que possui um modo de funcionamento interno, uma estrutura peculiar, uma organização específica. Pois este algo é que jamais fora acessível à representação, pois situa-se:

"para além de sua imediata visibilidade, numa espécie de mundo-subjacente mais profundo que ela própria e mais espesso. Para atingir esse ponto em que se vinculam as formas visíveis dos seres - a estrutura dos vivos, o valor das riquezas, a sintaxe das palavras - é preciso dirigir-se para esse cume, para essa extremidade necessária mas jamais acessível que se entranha fora do nosso olhar, no coração mesmo das coisas." (Foucault, 1966/2003: 329)

A representação possui seu espaço de quadro moldado pelas semelhanças e diferenças; pela interpretação do mundo e sua correspondência na mente. Pois a representação não pode comportar esse elemento heterogêneo, que escapa dos limites do quadro: a organização.

"Retiradas em direção à sua essência própria, habitando enfim na força que as anima, na organização que as mantém, na gênese que não cessou de produzi-las, as coisas escapam, na sua verdade fundamental, ao espaço do quadro; em vez de serem unicamente a constância que distribui segundo as mesmas formas as suas representações, elas se enrolam sobre si mesmas, dão-se um volume próprio, definem para si um espaço interno que, para nossa representação, está no exterior." (Foucault, 1966/2003: 329)

Pois é essa arquitetura espessa, escondida, que explica o trabalho, a vida, a linguagem, a mente nas ciências da cognição; o homem que vive, trabalha e pensa. Arquitetura deveras incorporada, situada, vivida. Cogito incorporado, situado, atuante no mundo concreto. A representação, linear, homogênea, não tinha como abarcar uma arquitetura, uma estrutura, uma organização heterogênea, descontínua, fenomenal e incorporada.

"É a partir da arquitetura que escondem, da coesão que mantém seu reino soberano e secreto sobre cada uma de suas partes, é do fundo dessa força que as faz nascer e nelas permanece como que imóvel mas ainda vibrante, que as coisas, por fragmentos, perfis, pedaços, retalhos, vêm oferecer-se bem parcialmente à representação. Desta sua inacessível reserva ela só destaca, peça por peça, tênues elementos cuja unidade permanece travada sempre aquém." (Foucault, 1966/2003: 329)

Pois essas coisas que não se podem representar vão viver num espaço diferente do espaço da representação, que fora rompido na passagem do século XVIII para o século XIX. Essas coisas possuem sua própria organização, suas "secretas nervuras, o espaço que as articula, o tempo que as produz", pois:

"A representação está em via de não mais poder definir o modo de ser comum às coisas e ao conhecimento. O ser mesmo do que é representado vai agora cair fora da própria representação." (Foucault, 1966/2003: 330)

Nos últimos anos do século XVIII, a dissolução do campo homogêneo das representações fez aparecer um pensamento no qual o sujeito é finito e no qual emergem:

"esses objetos jamais objetiváveis, essas representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis, essas realidades que estão em recuo na medida mesma em que são fundadoras daquilo que se oferece e se adianta até nós: a potência do trabalho, a força da vida, o poder de falar." (Foucault, 1966/2003: 335)

A ruptura verificada nos últimos anos do século XVIII dividiu a epistémê do mundo ocidental e delineou o começo da era moderna para as empiricidades. Significou a dissolução da representação frente às novas empiricidades; a abertura do campo transcendental da subjetividade e a constituição dos "quase-transcendentais": a vida, o trabalho, a linguagem. Todavia,

"nem o trabalho, nem o sistema gramatical, nem a organização viva podiam ser definidos ou assegurados pelo simples jogo da representação se decompondo, se analisando, se recompondo e assim representando-se a si mesma numa pura reduplicação; o espaço da análise não podia, pois, deixar de perder sua autonomia." (Foucault, 1966/2006: 344)

O quadro (das ordens, distribuições, regularidades), quadro deveras representativo, perde sua importância no saber da nova epistémê moderna.

O espaço do saber ocidental vai, então, obedecer a uma "verticalidade obscura", em que os objetos a conhecer serão "as grandes forças ocultas desenvolvidas a partir de seu núcleo primitivo e inacessível", em sua "espessura recolhida em si" (Foucault, 1966/2003: 345). Mudança deveras radical visto que o saber transforma-se em sua natureza, em sua forma e em sua positividade.

Os limites da representação

No final do século XVIII, ocorre uma ruptura na camada das continuidades, desfazendo o quadro das identidades e mudando radicalmente as disposições epistemológicas da gramática geral, da história natural e da análise das riquezas. As configurações próprias a cada positividade se modificaram radicalmente; alteram-se os seres empíricos que povoam as positividades.

O saber deixou de ser pautado por identidades e diferenças, por uma caracterização universal, uma taxinomia geral: uma máthêsis do não-mensurável, para fazer emergir um espaço das organizações - relações internas entre elementos as quais configuram uma função. Este novo saber revela a descontinuidade dessas organizações, distanciadas do quadro das simultaneidades sem rupturas.

Entre as organizações, pilares do novo saber, não mais vigora a identidade de um ou vários elementos, e sim a relação (sem visibilidade) entre os elementos e a função que abrigam.

A representação, com seu espaço de redobramento e identidade, ruiu para fazer emergir dos escombros das interpretações de signos e similitudes, um novo espaço do saber. Espaço não mais das significações e ordenação das identidades e positividades fundadas sobre séries empíricas (história natural, teoria da riqueza e gramática geral). Espaço agora, em finais do século XVIII, de surgimento do homem, este que não existia e não podia existir no espaço clássico da representação.

Ainda que a natureza humana fosse possível na idade clássica (como representação), o homem não. Não em seu ser próprio. Mas eis que emerge, da ruptura da representação (como equivalência), o homem como objeto de conhecimento e sujeito que pode conhecer algo que lhe é espesso, obscuro e funcional a um só tempo. O homem se tornou possível na forma do saber moderno. Um saber que não permite o representativo e comporta o que é não-representável, aquilo que não se pode representar: algo de obscuro, de profundo; um modo de funcionamento (função), uma organização que faz emergir os aspectos acessíveis às empiricidades e que não se revelam como semelhanças ou regularidades para uma representação.

É neste quadro que emergem: biologia, economia política, filologia. E, no interior de cada uma delas, respectivamente, encontrar-se-ão: as funções e organizações (espessas, obscuras...) que fazem emergir a vida; o trabalho (denso, profundo) que gera a troca e o lucro; a extensa história das línguas que cria o discurso e a gramática. Funções/organizações, trabalho e história são elementos profícuos em gerar seus frutos, por meio de articulações e relações cujo acesso não se dá facilmente pelas vias do visível: resguardam algo de espesso, obscuro, denso, profundo (como, por exemplo, a organização dos seres vivos) que não coadunava com o pensamento da representação. Conteúdos heterogêneos, de ruptura, que convidam a uma nova modulação das empiricidades, muito distinta das semelhanças e homogeneidades da representação.

Foi preciso, para que surgissem o trabalho, a organização e a história das línguas, que os seres vivos, as riquezas e as palavras abandonassem a representação. Emerge, então, a profundidade específica da vida; o caráter dinâmico das forças de produção; a contingência histórica das línguas. Logo, da história natural surge a biologia; da teoria da moeda, tem-se a economia política; da gramática geral surge a filologia.

Não há mais a "soberania" do idêntico e da similitude como antes na representação. O homem deve ser compreendido, como finito, pela sua linguagem, pelo seu trabalho, pela sua biologia.

As ciências do homem não se poderiam constituir quando o homem era representado como "natureza humana" em suas identidades e similitudes. Elas emergem quando as "coisas" puderam ser vistas em sua historicidade, separadas do homem e de sua representação. As ciências do homem somente surgem quando se inserem no mesmo quadro do saber ocupado pela biologia, economia política e filologia, assumindo as mesmas estruturas aí presentes.

O lugar do homem na nova epistémê

Ele não figurava no jogo clássico das representações enquanto elemento ao mesmo tempo representado e ausente da representação. Ao mesmo tempo objeto e sujeito numa representação de uma ausência essencial...

"Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperava na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido." (Foucault, 1966/2003: 425)

O que, então, está ausente no quadro "Las Meninas" de Velázquez, interpretado por Foucault, ou seja, no próprio quadro das representações da idade clássica, é o ato de representar a própria representação. No pensamento clássico, o homem não está na natureza por meio de seu nascimento como os demais seres vivos, visto que na epistémê clássica a natureza humana era plenamente visível e representável:

"E o homem, como realidade espessa e primeira, como objeto difícil e sujeito soberano de todo conhecimento possível, não tem aí nenhum lugar. Os temas modernos de um indivíduo que vive, fala e trabalha segundo as leis de uma economia, de uma filologia e de uma biologia, mas que, por uma espécie de torção interna e de superposição, teria recebido, pelo jogo dessas próprias leis, o direito de conhecê-las e de colocá-las inteiramente à luz, todos esses temas, para nós familiares e ligados à existência das ciências humanas são excluídos pelo pensamento clássico: não era possível naquele tempo que se erguesse, no limite do mundo, essa estatura estranha de um ser cuja natureza (a que o determina, o detém e o atravessa desde o fundo dos tempos) consistisse em conhecer a natureza e, por conseguinte, a si mesmo como ser natural." (Foucault, 1966/2003: 427-428)

O homem se tornou possível pelo confronto com a finitude; pela reduplicação do empírico no transcendental; pela relação do cogito com o impensado e pelo retorno da origem.

Confronto com a finitude

Pela consciência da finitude, o homem aparece com uma posição ambígua de objeto de um saber e sujeito que conhece o mundo sem ser pela forma da representação. "ela é, do lado desse indivíduo empírico que é o homem, o fenômeno - menos ainda talvez, a aparência - de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior" (Foucault, 1966/2003:431). Ou seja, algo de espesso, obscuro, que se abriga nas coisas e que explica sua estrutura visível, mas que não pode obter um correspondente idêntico na mente do homem (representação).

O homem, não mais representável, é um ser determinado pelo trabalho, pela sua biologia e por sua linguagem, que não são inteiramente suas, mas remontam a uma origem inapreensível. Este homem que vive, fala e trabalha é finito e irrepresentável. Ele é já um ser vivo que a vida perpassa, um instrumento de produção animado pelo trabalho e um veículo de uma linguagem que a história lhe faz penetrar. Esses conteúdos o ultrapassam:

"como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história. A finitude do homem se anuncia - e de uma forma imperiosa - na positividade do saber; sabe-se que o homem é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos de produção ou o sistema da conjugação indo-européia." (Foucault, 1966/2003: 432)

A possibilidade dos conteúdos adquirirem sua positividade na finitude do homem vem principalmente do corpo, visto que o homem tem suas experiências por intermédio de um corpo que é finito (e que faz parte de sua mente, longe do dualismo da representação...), corpo como fragmento de um espaço, cuja espacialidade, segundo Merleau-Ponty (1945/1999) é de situação e não de posição. Cada uma destas positividades tem a ensinar ao homem que ele é finito, e cada uma delas somente é apreensível nesta finitude do homem.

"O modo de ser da vida e aquilo mesmo que faz com que a vida não exista sem me prescrever suas formas me são dados, fundamentalmente, por meu corpo; o modo de ser da produção, o peso de suas determinações sobre minha existência me são dados pelo meu desejo; e o modo de ser da linguagem, todo o rastro da história que as palavras fazem luzir no instante em que são pronunciadas (...). Só me são dados ao longo da tênue cadeia de meu pensamento falante. No fundamento de todas as positividades empíricas e do que se pode indicar como limitações concretas à existência do homem, descobre-se uma finitude - que em certo sentido é a meLsma: ela é marcada pela espacialidade do corpo, pela abertura do desejo e pelo tempo da linguagem." (Foucault, 1966/2003: 433-434)

O homem emerge como finito e, justamente por ser finito, pode ser conhecido em suas positividades da finitude: a linguagem, o trabalho e a vida. É este ser, em sua finitude, que se apresenta na espacialidade de seu corpo, pela abertura de seu desejo e pelo tempo de sua linguagem. O lugar ou espaço onde vão ser buscados os dados desse ser não são mais o universo, os sistemas vivos e sua semelhança, etc, mas é o mundo da vida, o espaço fundamental onde o positivo vai incidir para produzir novas positividades.

No caso da mente, as ciências cognitivas contemporâneas conhecem o seu modo de funcionamento nas tarefas mais cotidianas que o homem se põe a fazer: É nesse espaço em que o positivo encontra o fundamental que dar-se-ão as positividades do homem em sua finitude, inclusive nas ciências da cognição. Não há conhecimento absoluto como uma representação, mas saberes finitos distanciados da metafísica do infinito do pensamento clássico.

"Mas, quando os conteúdos empíricos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de sua existência, então a metafísica do infinito tornou-se inútil (...). Então, todo o campo do pensamento ocidental foi invertido." (Foucault, 1966/2003: 434)

Mas a metafísica da representação cedeu espaço à metafísica da vida quando da constituição da analítica da finitude.

O acontecimento de ruptura com a representação clássica, acontecimento deveras notável na história da ciência, foi a emergência do homem: o homem, com suas positividades, agora não mais puramente representáveis, mas sim explicáveis pela natureza de seu corpo e de seu cogito; de sua história e história remota de sua linguagem cuja origem não se apreende facilmente. Conforme nas belas palavras de Michel Foucault:

"Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra." (Foucault, 1966/2003:438)

Logo, o que há de transcendental no próprio homem situa-se na sua incorporação. Em seu corpo atuante e situado no mundo da vida, em seu cogito incorporado e intimamente atrelado a sua corporeidade (conforme nas ciências da cognição contemporâneas). Homem moderno, "determinável em sua existência corporal, laboriosa e falante" como figura da finitude.

Reduplicação do empírico no transcendental

No homem, o transcendental vem das empiricidades que sobre ele se debruçam.

"Agora que o lugar da análise não é mais a representação, mas o homem em sua finitude, trata-se de trazer à luz as condições do conhecimento a partir dos conteúdos empíricos que nele são dados." (Foucault, 1966/2003: 439)

A modernidade não começa quando se começam aplicar métodos objetivos no estudo do homem, mas sim quando se constitui um duplo empírico-transcendental chamado homem. O conhecimento tornou-se então incorporado, com suas condições históricas, sociais, econômicas dependentes do ser do homem. O transcendental torna-se uma extensão do agir incorporado do homem. A mente que pensa é aquela que possui um corpo que trabalha, fala e vive no mundo da vida. Na filosofia, corpo e mente unificam-se no ser do homem, assim como hoje nas ciências da cognição.

A verdade, por mais transcendental que possa parecer, é da ordem do objeto, manifesta através do corpo, da ação e da percepção. A verdade empírica se dá no entrelaçamento da natureza biológica com a história. A mente é um misto de natureza e história manifestos no corpo que age e atua no mundo.

Relação do cogito com o impensado

O homem surge, também, como um lugar do desconhecido. Aquilo que não pensa é aquilo que lhe escapa.

"Como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de movimento rijo, essa figura dele mesmo que lhe apresenta sob a forma de uma exterioridade obstinada Como pode o homem ser essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é imediatamente dada Como pode ele ser esse trabalho cujas exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho Como pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se formou sem ele..." (Foucault, 1966/2003: 445-446)

As empiricidades vão então se deparar com a questão do cogito moderno, que traz atrelado a si aquilo que do pensamento remete ao "não-pensado". O cogito é sempre a interrogação de como ao pensamento pode ser dado as espécies do "não-pensante". E mesmo o pensamento só existe graças a sedimentações que ele não consegue apreender inteiramente. O homem é o trabalho visível mas também algo do trabalho que não pode ser sequer pensado; ele é a parte mais obscura da vida ao pensamento; ele é a linguagem cuja história longa contém uma certa espessura que não se pode pensar, representar, conhecer.

O surgimento do homem colocou, pois, em voga o seu relacionamento com o impensado. Como pode ele ser aquilo que não pensa

"O cogito não conduz a uma afirmação de ser, mas abre justamente para toda uma série de interrogações em que o ser está em questão: que é preciso eu ser, eu que penso e que sou meu pensamento, para que eu seja o que não penso, para que meu pensamento seja o que não sou Que é, pois, esse ser que cintila e, por assim dizer, tremeluz na abertura do cogito, mas não é dado soberanamente nele e por ele Qual é pois a relação e a difícil interdependência entre o ser e o pensamento" (Foucault, 1966/2003: 450)

Segundo a arqueologia das Ciências Humanas de Foucault, o homem e o impensado são contemporâneos. O homem pode surgir porque junto dele emergiu também algo que jamais poderia ser dado à sua reflexão e tampouco à sua consciência, esse algo com uma espessura em que o próprio pensamento se encontra imbricado.

Recuo e impossibilidade de alcance da origem

No pensamento clássico, era fácil reencontrar uma origem para a natureza humana pelas vias da reduplicação da representação: a economia era pensada pela troca, visto que as representações, entre as propriedades das mercadorias, elaboradas por aqueles que trocavam, eram a mesma.

A ordem da natureza era encarada como um quadro no qual os seres estavam em ordem de modo a formar uma identidade e permitir a visibilidade das semelhanças.

A origem da linguagem era pensada como uma transparência entre a representação do som e a da coisa. A origem do conhecimento era buscada numa seqüência de representações.

No pensamento moderno, aquela "origem" do pensamento clássico não é concebível:

"viu-se como o trabalho, a vida, a linguagem adquiriram sua historicidade própria, na qual estavam entranhadas: não podiam, portanto, jamais enunciar verdadeiramente sua origem, ainda que toda a sua história esteja interiormente como que apontada em direção a ela. Não é mais a origem que dá lugar à historicidade; é a historicidade que, na sua própria trama, deixa perfilar-se a necessidade de uma origem que lhe seria ao mesmo tempo interna e estranha." (Foucault, 1966/2003: 455)

Foram as historicidades que constituíram o homem, mas historicidades já feitas, em que o começo se dá numa vida que iniciara-se bem antes do homem. Sempre que recua no passado para encontrar uma origem, o homem somente encontra algo já iniciado sobre o qual ele se instaurou com sua linguagem e com seu trabalho, sempre já começados.

"O originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina. (...) Paradoxalmente, o originário no homem não anuncia o tempo de seu nascimento, nem o núcleo mais antigo de sua experiência: liga-o ao que não tem o mesmo tempo que ele; e nele libera tudo o que não lhe é contemporâneo; indica sem cessar e numa proliferação sempre renovada, que as coisas começaram bem antes dele e que, por essa mesma razão, ninguém lhe poderia assinalar uma origem, a ele cuja experiência é inteiramente constituída e limitada por essas coisas." (Foucault, 1966/2003: 457-458)

A origem das coisas está sempre "em recuo", remontando a uma data na qual não existia o homem. O homem, portanto, está sempre originando-se. Foi o pensamento moderno que instaurou uma relação com a origem, que está sempre voltando, a repetição, o retorno de algo já sempre começado.

O pensamento moderno tem como grande preocupação o retorno, o recomeço. Atribui-se, a si mesmo, o dever de restituir o domínio do originário, o recuo da origem, propondo-se a seguir em direção a esse recuo.

O tempo, no pensamento moderno em busca de sua origem no perpétuo recuo, é bem diferente do tempo homogêneo e dispersivo do pensamento representacionista. O homem, agora,

"está preso no interior de um poder que o dispersa, o afasta para longe de sua própria origem, e todavia lha promete numa iminência que será talvez sempre furtada; (...) esse poder é aquele de seu ser próprio. O tempo - mas esse tempo que é ele próprio - tanto o aparta da manhã donde ele emergiu quanto daquela que lhe é anunciada. Vê-se quanto esse tempo fundamental - esse tempo a partir do qual o tempo pode ser dado à experiência - é diferente daquele que vigorava na filosofia da representação: o tempo então dispersava a representação pois que lhe impunha a forma de uma sucessão linear; mas competia à representação restituir-se a si mesma na imaginação, reduplicar-se assim perfeitamente e dominar o tempo; (...). Na experiência moderna, ao contrário, o distanciamento da origem é mais fundamental do que toda experiência, porquanto é nela que a experiência cintila e manifesta sua positividade; é porque o homem não é contemporâneo de seu ser que as coisas vêm se dar com um tempo que lhes é próprio." (Foucault, 1966/2003: 462-463)

 

Considerações finais

Como bem afirmado por pesquisadores das ciências da cognição, há, no atual estágio epistemológico destas, a necessidade de uma complementaridade entre pesquisa científica e filosófica (Petitot et al, 2000). Nas ciências da cognição, várias lacunas que não podem ser preenchidas pela via empírica da realidade podem ser elucidadas pela pesquisa filosófica e vice-versa.

Sob este ponto de vista, o presente texto buscou mostrar como, principalmente na filosofia, os trabalhos de alguns dos grandes pensadores modernos têm afirmado algo que os estudos de grandes pesquisadores das ciências da cognição (p. ex., Damásio (2003/2004), Edelman (1987), Varela (1990/2004), Varela e colaboradores (1991/2003), Rohrer (2005), Johnson (1987), Lakoff (1987)...) vêm encontrando em suas investigações empíricas: A mente não funciona por representação; não há um dualismo entre corpo e mente; os fenômenos cognitivos resultam de padrões recorrentes provenientes da ação corporal.

É muito forte, tanto na filosofia, quanto nas ciências da cognição, o ponto de vista da enação. Os conceitos de organização, auto-organização e de estrutura, fundamentais para o pensamento atuacionista-enativo são empregados em distintos contextos filosóficos, e são, ainda, os mesmos utilizados pela ciência cognitiva, ou seja, conceitos de ruptura com a idéia de representação. Isso parece estar evidente nos trabalhos principalmente de Michel Foucault e de Merleau-Ponty ora descritos neste texto.

A visão abstrata da representação mental perde espaço para o ponto de vista da mente incorporada, tanto na filosofia quanto nas ciências da cognição. Se o cognitivismo postula uma representação simbólica, abstrata, puramente mental, a abordagem da mente incorporada, na ciência cognitiva atual, postula, filosófica e empiricamente, que a cognição é ação incorporada e resulta de padrões de experiência corporal do agente, como padrões sensório-motores (Rohrer, 2005; Johnson, 1987). Estes são a base de toda a atividade abstrata.

Na filosofia de Maurice Merleau-Ponty, isso fica claro com os conceitos de ação perceptivamente orientada, corpo fenomenal, organização, forma e estrutura. Em Michel Foucault, a morte da representação está correlacionada à emergência (surgimento) do homem "incorporado" no mundo do trabalho, da linguagem, da vida. Homem finito que pensa (com o corpo), fala, vive e trabalha. Homem que é corpo de origem remota; homem que é finito em seu ser mesmo; homem que incorporado ao mundo pode pensar até o impensado. É na finitude deste ser incorporado que se dá, ontologicamente, toda a possibilidade de um cogito, retratado na filosofia e na ciência.

 

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Notas

G.C.Bouyer
E-mail para correspondência: gilbertcb@uol.com.br