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Ciências & Cognição
versão On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.17 no.2 Rio de Janeiro set. 2012
Artigo Científico
Consciência da situação em equipes transdisciplinares
Situation awareness in transdisciplinary teams
Antonio Waldimir Leopoldino da SilvaI, II; Mario Roberto Miranda LacerdaII; Neri Dos SantosII; Francisco Antonio Pereira FialhoII; Marinilse NettoII, III
IUniversidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Chapecó, Santa Catarina, Brasil;
IIPrograma de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil;
IIICentro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
Resumo
A Consciência da Situação (CS) é um elemento central na tomada de decisão individual ou coletiva. Construída a partir de uma análise pessoal e instantânea da realidade, em um processo cíclico e contínuo, traz em si fatores intrínsecos do agente, como sua visão de mundo. Objetivando verificar como a CS ocorre em equipes transdisciplinares (ou seja, compostas por cientistas e atores sociais leigos), o presente estudo teórico foi conduzido por meio de pesquisa bibliográfica sobre o "estado da arte" do tema. Constatou-se que a CS das equipes se mostra maior do que a mera soma das CSs individuais de seus integrantes, e verifica-se a ocorrência de uma fração distribuída e outra compartilhada, esta de maior importância por representar uma visão comum entre dois ou mais membros. Nas equipes transdisciplinares, as CSs são provavelmente muito diferentes entre estes dois grupos, o que pode trazer impacto negativo à qualidade ou ao resultado final do trabalho. Apresenta-se um modelo de representação da CS em composições transdisciplinares, bem como são apontadas medidas que podem aproximar a CS das pessoas em uma equipe. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 115-134.
Palavras-chave: Consciência da situação; equipe; supradisciplinaridade; transdisciplinar; transdisciplinaridade.
Abstract
The situation awareness (SA) is a central element in decision making, both individual and collective. It is constructed from a personal analysis about an instant reality, in a cyclical and continuous process, and it brings itself intrinsic factors of the agent, as her/his worldview. This theoretical study aims to verify how the SA occurs in transdisciplinary teams, that is, those formed by scientists and social actors (lay people). The study was done by means of a bibliographical research on the "state of the art" of the matter in question. It was verified that the team SA appears to be greater than the simple sum of the individual SAs of its members, and there is a fraction that is distributed and other fraction is shared, being this one most important, because it is a common vision between two or more members. In transdisciplinary teams, SAs are probably very different between these two groups, and this fact can bring negative impact to the quality or outcome of the work. It is presented a representation model of SA in transdisciplinary groups, as well as it is suggested measures that can approximate the SA of the persons in a team. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 115-134.
Keywords: Situation awareness; supradisciplinarity; team; transdisciplinarity; transdisciplinary.
Introdução
"Ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra." (Freire, 1999, p. 79).
A dinâmica realidade do mundo deve ser apreendida e aprendida em um processo ininterrupto que integra a percepção dos elementos do ambiente, sua compreensão e projeção de eventos imediatamente futuros. O ato de "ler" o mundo e dele tomar consciência, formando conhecimento a partir da construção cognitiva do real, é pessoal, individual e localizado no tempo e no espaço. Assim, para Nonaka, Toyama e Hirata (2011, p. 32), "o conhecimento não pode existir sem as subjetividades da vida humana e os contextos que envolvem os seres humanos, isso porque a 'verdade' varia de acordo com quem somos e a partir do ponto que a enxergamos". A forma como alguém enxerga o ambiente constitui a sua consciência da situação (CS), ou seja, a consciência daquele indivíduo sobre tal situação.
A CS é a base para a tomada de decisão, e sua importância compreende quase todos os campos da atuação humana (Jones, Connors & Endsley, 2011), quer em nível individual ou coletivo. Nesse sentido, Dunin-Keplicz e Verbrugge (2006) entendem que, para um trabalho em equipe1 ser exitoso, os participantes devem estabelecer uma visão comum do ambiente, construída por comunicação, raciocínio ou mediante várias formas de observação, envolvendo, por exemplo, o comportamento dos outros agentes e as mudanças no ambiente. Portanto, aprimorar a CS de uma equipe pode ajudar a consolidar decisões e estratégias mais apropriadas à situação em curso (Ma, Lu & Zhang, 2010). Há que se considerar, porém, que, se a CS individual é um constructo complexo, sujeito a vários fatores intervenientes, a CS de equipe o é ainda mais.
A influência da CS da equipe sobre o resultado do trabalho produzido é evidenciada em grupos de cunho disciplinar e multidisciplinar, mas é especialmente relevante nas equipes interdisciplinares ou transdisciplinares, onde o diálogo de saberes e a comunhão de olhares e sentidos tornam-se imprescindíveis e exigem o compartilhamento da CS. O crescente avanço da transdisciplinaridade ("um modo essencial de pensamento e ação", segundo Klein, 2004, p. 524) faz com que os domínios da ciência, política, prática e valores sociais envolvam-se interativamente na formulação do problema, na produção do conhecimento e em sua aplicação (Roux, Stirzaker, Breen, Lefroy & Creswell, 2010). Assim, ao reunir tão diversos protagonistas e mundos de pensamento, a transdisciplinaridade requer uma epistemologia que incorpore o estudo e o emprego da CS.
O presente trabalho objetiva descrever e analisar a formação e a dinâmica da CS no âmbito de equipes, com ênfase para as de caráter transdisciplinar, retratando, em maior relevo, o desafio de ampliar o grau de compartilhamento da CS entre atores de diferentes grupos e papéis no tecido social. Inicialmente, promove-se uma abordagem revisionista sobre CS e transdisciplinaridade, cuja caracterização serve como fundamento para a discussão central. A seguir, descreve-se a metodologia empregada na pesquisa. Após, procede-se o detalhamento da temática principal, situando a CS tanto em equipes de forma geral, quanto em equipes transdisciplinares, particularmente, e contextualizando a questão sob diferentes enfoques. Por último, são expostas as considerações finais e as devidas conclusões do estudo.
Consciência situacional
Qualquer indivíduo, em um determinado momento e espaço, e frente a uma situação, está cercado por dados e informações, de maior ou menor relevância, que compõem o quadro em questão. Nesse cenário, uma possível tomada de decisão e sua correspondente ação devem ser precedidas de uma "leitura" e análise da realidade, recolhendo, agrupando e dando sentido às informações corretas e significativas, a fim de formar uma representação (imagem) o mais próximo possível da condição real. O produto desse processo é descrito como consciência da situação (CS). São várias as definições de CS retratadas na literatura (Quadro 1), mas destaque deve ser atribuído à concepção de Endsley (1995), a mais referida pela comunidade científica.
"Extração contínua de informações do ambiente, integração desta informação com conhecimentos anteriores para formar uma imagem mental coerente, e o uso dessa imagem dirigindo à percepção adicional e antecipando eventos futuros." (Dominguez, 1994, p. 11). "A percepção dos elementos em um ambiente dentro de um volume de tempo e espaço, a compreensão de seus significados e a projeção de seus estados em um futuro próximo." (Endsley, 1995, p. 36). "A soma da percepção do operador e compreensão do processo de informação e a habilidade para fazer projeções do estado do sistema com base nisso." (Kaber & Endsley, 1998, p. 43). "Um estado de conhecimento sobre um ambiente dinâmico. Isso é diferente dos processos usados para alcançar aquele conhecimento." (Endsley, 2000, p. 18, grifos no original). "Conhecimento criado através da interação entre uma pessoa e seu ambiente." (Shu & Furuta, 2005, p. 273). "Percepção precisa dos fatores e condições que afetam a execução da tarefa durante um período determinado de tempo, permitindo ou proporcionando ao seu decisor estar ciente do que se passa ao seu redor e assim ter condições de focar o pensamento à frente do objetivo. É a perfeita sintonia entre a situação percebida e a situação real." (Brasil, 2007, p. 64). "Saber o que está (e vem) ocorrendo, estando ciente do que está acontecendo ao seu redor no ambiente e tendo um entendimento compartilhado da informação." (Kulyk, Van Ver Veer & Van Dijk, 2008). "Representação mental dinâmica e compreensão de todas as informações do ambiente, tais como objetos, eventos, pessoas e assim por diante." (Nonose, Kanno & Furuta, 2010). "Um modelo mental internalizado do estado atual do ambiente do operador - as muitas correntes de dados de entrada, as circunstâncias externas, e outros assuntos devem ser reunidos em um todo integrado." (Endsley, 2001, p. 3; Jones et al., 2011, p. 227). |
Quadro 1 - Definições de "consciência da situação" apresentadas por diferentes autores.
Assim, a CS constitui um elemento essencial para uma efetiva e adequada tomada de decisão (Endsley, 1995; Endsley & Connors, 2008; Mackintosh, Berridge & Freeth, 2009; Nonose et al., 2010; Jones et al., 2011) e para que as pessoas realizem suas tarefas de forma eficaz (Endsley, 2000). Ainda que essa constatação seja válida para todas as ações humanas do cotidiano, inclusive as mais simples, a importância da CS tem sido ressaltada em atividades laborais e/ou ambientes complexos, que mudam constantemente e geram uma grande quantidade de novos dados (Kulik et al., 2008), onde o processamento das informações deve ocorrer rapidamente e cujas decisões, se mal embasadas, podem levar a graves consequências. É o caso, por exemplo, de domínios como pilotagem de aeronaves, controle de tráfego aéreo, operações espaciais, medicina de urgência e emergência, refinarias, plantas de energia nuclear, tecnologia de automação, sistemas táticos e estratégicos (militar, polícia e bombeiros), previsão do tempo, direção em tráfego intenso, operação de maquinaria pesada, entre outros (Endsley, 1995; Artman & Garbis, 1998; Shu & Furuta, 2005; Patrick, James, Ahmed & Halliday, 2006; Endsley & Connors, 2008; Ma & Zhang, 2008; Bolstad & Cuevas, 2010; Ma et al., 2010).
A CS é descrita por Endsley (1995, 2000, 2001) como integrada por três níveis ou fases hierárquicas. O primeiro nível envolve a percepção dos elementos do ambiente, em seu estado, atributos e dinâmica. Constitui-se em um ativo processo pelo qual o agente extrai os dados significativos da situação vivenciada, direcionando sua atenção seletivamente para os aspectos relevantes e desprezando os demais (Kulyk et al., 2008; Bolstad & Cuevas, 2010). Endsley (2000) destaca que, sem a percepção da informação realmente importante, a probabilidade de formar uma imagem incorreta aumenta drasticamente, sendo esta uma das maiores causas de erros humanos. É uma fase, portanto, que depende estritamente do pleno emprego dos sentidos, mediados pela capacidade individual de atenção e concentração.
O segundo nível da CS é a compreensão da situação corrente, por meio da síntese dos elementos captados na etapa anterior. Envolve, portanto, mais do que apenas estar consciente dos elementos presentes, mas também a capacidade de combinar, interpretar, armazenar e reter as informações colhidas no nível anterior, integrando-as em uma imagem holística do ambiente e determinando sua importância frente ao(s) objetivo(s) do agente (Endsley, 1995, 2000). Para a autora, a diferença entre esta e a fase precedente pode ser dimensionada comparando um alto nível de compreensão de leitura (interpretação de texto) com o ato de simplesmente ler palavras, respectivamente.
A terceira fase da CS envolve a projeção do estado futuro do ambiente, pelo menos em curto prazo. Nesse nível mais alto de CS, é possível prever, projetar ou antecipar eventos futuros e sua dinâmica, permitindo uma tomada de decisão que incorpore maior possibilidade de acerto. Tal condição é alcançada a partir do conhecimento formado nos dois estágios anteriores, extrapolando-o temporalmente à frente (Bolstad & Cuevas, 2010). Kulyk et al. (2008) afirmam que, nesse nível, o indivíduo combina seu saber sobre a situação corrente com seu modelo mental a respeito de eventos similares - formado a partir de sua experiência prévia - preparando-se para os acontecimentos seguintes. "O conhecimento nasce a partir da experiência, que é um processo subjetivo de percepção, e da apreensão da essência na interpretação do mundo", dizem Nonaka et al. (2011, p.34). Para Endsley (2000), esta é a marca de um especialista qualificado.
Ao final do terceiro estágio, estando formada a consciência acerca daquela situação específica, o agente realiza a tomada de decisão, a qual é sucedida por uma ação. Tal ação, por sua vez, provoca uma nova disposição dos elementos do ambiente, tornando necessária uma nova leitura desse quadro, ou seja, um novo processo de aquisição de CS. Portanto, trata-se de uma sequência cíclica, como demonstra a Figura 1. Nas palavras de Endsley (2000, p. 5), "decisões são formadas por CS e CS é formada por decisões".
"(...) CS ocorre como consequência de uma interação do conhecimento e expectativas pré-existentes no indivíduo; a informação disponível do ambiente; e habilidades de processamento cognitivo, que incluem alocação de atenção, percepção, extração de dados, compreensão, e projeção. Isso resulta em um aumento no conhecimento do indivíduo, uma mudança nas expectativas, e um outro ciclo de extração de informações." (Salas, Prince, Baker & Shrestha, 1995, p. 125)
Ainda que a CS assemelhe-se a um processo formado por três etapas consecutivas, Endsley (1995, p. 36) enfatiza que a CS é, em verdade, um produto, como um "estado de conhecimento". O correspondente processo, por sua vez, é referido como "avaliação da situação" - ou processo de alcançar, adquirir ou manter a CS. Gorman, Cooke e Winner (2006), no entanto, consideram que a CS deve ser vista como um processo percepção-ação. Constata-se, pois, a dupla face da CS, como processo e como produto. Para Dominguez (1994), o produto CS pode ser bom ou mau, dependendo do êxito ou não do processo que o gera.
"Portanto, alcançar CS significa que uma pessoa ou equipe tem o conhecimento necessário e suficiente para realizar suas atividades de trabalho em qualquer situação. Este conhecimento precisa ser distinguido dos processos de informação, incluindo atenção, percepção, compreensão, etc., que são responsáveis por gerá-lo, o que Pew (1994) e Endsley (1995) rotulam avaliação da situação (situacional). Quando é dito que uma pessoa tem má CS, isso deve ser interpretado como uma abreviação para dizer que a pessoa falhou ao executar a tarefa de alcançar CS satisfatoriamente, isto é, falta a necessária consciência ou conhecimento." (Patrick et al., 2006, p. 395)
Figura 1 - Representação esquemática do processo cíclico de consciência da situação, tomada de decisão e ação. Baseado em Endsley e Connors (2008).
O processo de construção da CS recebe influência de inúmeros fatores, os quais, portanto, repercutem diretamente sobre a qualidade da CS. Os objetivos do agente e suas preconcepções ou expectativas sobre os eventos futuros (provocadas por modelos mentais, instruções ou comunicações anteriores) funcionam como um filtro e interferem sobre a capacidade de percepção, pois existe uma tendência de as pessoas verem e ouvirem apenas ou principalmente aquilo que esperam ou desejam (Endsley, 1995, 2000), ou seja, aquilo que lhes é familiar ou de interesse emergente.
A expertise do indivíduo - adquirida naquela situação ou em outra similar - também constitui um aspecto de grande impacto sobre a CS (Endsley, 2001). Nesse sentido, o novato, ou seja, uma pessoa inexperiente no sistema em questão e nas situações envolvidas no respectivo domínio, tende a sobrecarregar suas estruturas cognitivas com um volume muito grande de informações, não raro desprovidas de significado e importância para aquele caso em particular. Assim, não obstante possam apresentar a mesma capacidade de percepção (primeiro nível) em relação a agentes experientes, normalmente não alcançam o desempenho destes no tocante à compreensão e inter-relação dos objetos e ocorrências por eles percebidos (Endsley, 1995, 2001). Embora a familiaridade com uma situação possa causar algum efeito negativo sobre a CS (pelo maior nível de expectativas ou pela fadiga oriunda da repetição de eventos), sua ação positiva é bem mais evidente, ao permitir a construção de uma imagem mais fidedigna ao mundo real.
Deve ser verificado, ainda, o papel de outras pessoas no processo de desenvolvimento de CS de um indivíduo. Endsley (2000) considera que a comunicação verbal e não verbal com colegas é uma importante fonte de informação para a CS. Tal observação permite concluir que a CS de um indivíduo que esteja em um coletivo (uma equipe de trabalho, por exemplo) é qualitativamente mais completa do que a formada pelo mesmo indivíduo em isolamento.
Transdisciplinaridade e projetos transdisciplinares
A especialização disciplinar, com consequente fragmentação do saber e baixa interação entre as diversas áreas de conhecimento, são características marcantes do paradigma científico dominante nos últimos dois séculos. Para retratar tal concepção, ainda vigorosa no meio acadêmico, Brewer (1999, p. 328) afirma que "o mundo tem problemas, mas universidades têm departamentos", fazendo menção a um dos maiores ícones do isolamento disciplinar - a departamentalização das universidades.
Visando superar as reconhecidas deficiências e limitações desse modelo, abordagens supradisciplinares propõem a colaboração e a integração entre disciplinas, na busca de um efetivo diálogo entre os diferentes saberes. No entanto, ainda que a multidisciplinaridade (MD), interdisciplinaridade (ID) ou transdisciplinaridade (TD) apresentem crescente importância na produção de conhecimento científico, suas delimitações teóricas e conceituais permanecem difusas e desprovidas de consenso entre os especialistas. A visão clássica sobre supradisciplinaridade costuma particularizar e conceituar MD, ID e TD apenas com base no nível de integração - crescente, nesta ordem - entre as disciplinas envolvidas. É o que se verifica nos trabalhos de Coimbra (2000), Mitchell (2005), Gray (2008) e Pombo (2008). No entanto, nem mesmo essa corrente tradicional é consensual, pois, para François (2006), a MD situa-se um passo além da ID, enquanto para Schmidt (2008) e Huutoniemi, Klein, Bruun & Hukkinen (2010), a TD é apenas uma dimensão ou tipo de ID.
Uma perspectiva mais recente da supradisciplinaridade, entretanto, não restringe a distinção das abordagens apenas à intensidade ou amplitude de relação entre as áreas disciplinares que as constituem, mas enfatiza também o tipo de colaboração presente. Nessa linha, considera-se que, enquanto a MD e a ID envolvem apenas o meio acadêmico/científico, a TD é definida como uma integração entre cientistas e público comum, ou seja, entre o conhecimento científico e o conhecimento dito tradicional, não acadêmico, leigo ou cidadão (Balsinger, 2004; Klein, 2004; Tress, Tress & Fry, 2004; Hirsch-Hadorn, Bradley, Pohl, Rist & Wiesmann, 2006; Hirsch-Hadorn, Biber-Klemm, Grossenbacher-Mansuy, Hoffmann-Riem, Joye, Pohl, Wiesmann & Zemp, 2008; Maasen, Lengwiler & Guggenheim, 2006; Scholz, Lang, Wiek, Walter & Stauffacher, 2006; Steiner & Posch, 2006; Wickson, Carew & Russel, 2006; Uiterkamp & Vlek, 2007; Walter, Helgenberger, Wiek & Scholz, 2007; Pohl, 2008; Pohl & Hirsch-Hadorn, 2008; Hage, Leroy & Petersen, 2010; Martens, Roorda & Cörvers, 2010; Mobjörk, 2010; Roux et al., 2010; Frodeman, 2011). Assim, a TD combina ID com uma abordagem participativa (Tress et al., 2004), vencendo as fronteiras entre as comunidades científica e não científica (Uiterkamp & Vlek, 2007), e fazendo com que o conhecimento oriundo da prática e os valores externos ao domínio da ciência sejam integrados ao processo de pesquisa (Walter et al., 2007). A TD consiste, portanto, em um processo de coprodução de conhecimento a partir da interação de diferentes culturas (Pohl, 2008).
A inclusão de membros leigos2 é o grande diferencial qualitativo do trabalho transdisciplinar. Steiner e Posch (2006) e Walter et al. (2007) frisam que a integração entre cientistas e praticantes leva à produção de um conhecimento "socialmente mais robusto". Por outro lado, a cooperação entre pessoas com conhecimentos, experiências, atitudes e paradigmas diferentes promove uma condição de aprendizagem mútua, destacada por vários autores (Hirsch-Hadorn et al., 2006, 2008; Scholz et al., 2006; Steiner & Posch, 2006; Walter et al., 2007; Pohl & Hirsch-Hadorn, 2008; Hage et al., 2010; Mobjörk, 2010). Para isso, porém, é imprescindível que a expertise acadêmica seja vista ao mesmo nível da experiência prática e dos valores dos não cientistas (Steiner & Posch, 2006).
"A ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar", ressalta Morin (2009, p.52). Nessa perspectiva, a TD tem sido referida como a abordagem adequada para tratar temas complexos e multidimensionais, que, além de clamar pela integração do conhecimento da ciência e da sociedade, (i) envolvem problemas do mundo real e socialmente relevantes; (ii) emergem do contexto de sua aplicação; (iii) integram disciplinas das ciências naturais, humanas e sociais; (iv) incorporam processos, metodologias, conhecimentos e metas de participantes da ciência, setores produtivos e política; (v) buscam a superação das dicotomias entre ciência básica e aplicada, teoria e prática; e/ou (vi) organizam processos de aprendizagem mútua entre ciência e sociedade (Balsinger, 2004; Klein, 2004; Hirsch-Hadorn et al., 2006; Scholz et al., 2006; Walter et al., 2007; Pohl & Hirsch-Hadorn, 2008; Mobjörk, 2010). Klein (2004) destaca que a TD é indicada nas áreas em que se verifica interação entre homem e sistemas naturais ou de grande desenvolvimento técnico, bem como onde o progresso social, técnico e econômico interage com elementos de valor e cultura.
"Fenômenos complexos são melhor analisados através do desenvolvimento de múltiplas perspectivas sobre ele. Nenhuma das perspectivas pode criar uma imagem completa do fenômeno, mas todas as perspectivas juntas podem prover uma razoável representação da imagem completa." (Karstens, Bots & Slinger, 2007, p. 387).
Construir equipes transdisciplinares é uma tarefa difícil (Roux et al., 2010). Mieg (2006) salienta a existência de dois tipos de participantes não cientistas: os especialistas "no sistema", que apresentam profundo conhecimento do sistema humano-ambiental em que vivem, com uma experiência baseada no conhecimento local, e os especialistas "em tomada de decisão", que agem como agentes políticos, e podem ficar responsáveis, por exemplo, pela mediação de conflitos que ocorrerem ao longo do trabalho. Neste sentido, um aspecto relevante diz respeito ao grau de abrangência da ação dos membros leigos no projeto. "Os atores sociais estão incluídos especificamente como consultores, com um mandato para responder e reagir à pesquisa (definição do problema, escolha de abordagens, etc.), ou eles estão incluídos como ativos participantes no processo de produção de conhecimento?", questiona Mobjörk (2010, p. 870). A partir dessas perspectivas, o autor reconhece duas classes de TD - a consultiva e a participatória. Os diferentes graus de envolvimento com o trabalho em um e outro modelo repercutem diretamente sobre fatores como o nível de relacionamento interpessoal e de confiança mútua entre os membros. Em vista disso, Elzinga (2008, p. 357) considera que
"Primeiramente, é importante distinguir entre participação efetiva e participação simbólica ou parcial. A primeira leva ao empoderamento enquanto a última envolve pretensos participantes que atravessam os movimentos de serem consultados sem realmente terem qualquer relação com a definição do problema, análise ou implementação final dos resultados. (...) Em segundo lugar, há a questão de quem é convidado para participar e quem simplesmente é omitido. Que critérios são usados para definir e apontar grupos de usuários como participantes relevantes, e quem faz a definição e escolha? Quem se torna empoderado pela pesquisa transdisciplinar e, no outro lado da mesma moeda, quem fica marginalizado?"
É possível perceber, portanto, que dentro de um mesmo conceito, TD, existem diferentes concepções, efetivadas pelos graus ou nuances de participação do público leigo no processo, e, por consequência, de sua influência na decisão final.
Metodologia
Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa classifica-se como básica, exploratória, não experimental, qualitativa e bibliográfica (Moreira & Caleffe, 2008; Gil, 2010).
O trabalho envolveu a avaliação detalhada da bibliografia existente acerca do tema, e a correspondente seleção das publicações mais afetas à abordagem tencionada, sua leitura e análise aprofundada. Para avaliar o estado da arte em termos de disponibilidade de trabalhos científicos publicados, realizou busca na Base Scopus no dia 06/junho/2011. Para tal, utilizou-se um primeiro grupo de constructos, formado pelas expressões awareness of situation, situation awareness, situational awareness, situated awareness, consciousness of situation e situation consciousness, que foram buscadas isoladamente ou mediante cruzamento, uma a uma, com as expressões do segundo grupo de constructos, composto por multidisciplinary, multidisciplinarity, interdisciplinary, interdisciplinarity, transdisciplinary, transdisciplinarity e team. A busca focou a presença dos constructos em "Article Title, Abstract, Keywords" e não houve qualquer limite ou restrição de data, tipo de documento ou área. Os resultados, em termos de número de trabalhos, são apresentados no Quadro 2.
Em razão da absoluta inexistência de trabalhos ligando os constructos do primeiro grupo com os constructos transdisciplinary e transdisciplinarity, que apresentam máxima afinidade com o tema em estudo, ampliou-se a pesquisa, buscando estes dois indexadores no nível "All Fields". A busca continuou registrando ausência completa de trabalhos.
Além dos trabalhos selecionados na Base Scopus, realizou-se várias buscas e coleta de artigos científicos no Google Web e no Google Acadêmico, em diversas datas e empregando diferentes constructos de entrada.
Constructos | [Awareness] | [Consciousness] | ||||
[ ] of situation | Situation [ ] | Situa- | Situated [ ] | [ ] of situation | Situation [ ] | |
... | 18 | 2.059 | 2.476 | 2 | 1 | 3 |
Multidisciplinary | 0 | 10 | 10 | 0 | 0 | 0 |
Multidisciplinarity | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Interdisciplinary | 0 | 11 | 12 | 0 | 0 | 0 |
Interdisciplinarity | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Transdisciplinary | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Transdisciplinarity | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Team | 3 | 255 | 234 | 0 | 0 | 0 |
Quadro 2 - Número de trabalhos científicos registrados na Base Scopus, em busca realizada no dia 06/junho/2011, através do cruzamento entre vários constructos indexados. Busca em "Article Title, Abstract, Keywords", sem restrição de data, tipo de documento ou área.
Consciência da situação em equipes transdisciplinares
A CS é um produto cognitivo verificado tanto em nível pessoal, interno e restrito a cada indivíduo, como também no âmbito coletivo, em equipes (Endsley, 1995). A CS da equipe (CSE) é reconhecida como um dos fatores mais importantes para um efetivo trabalho em grupo (Nonose et al., 2010). Para Dunin-Keplicz e Verbrugge (2006), a cooperação e a coordenação exitosas em um sistema multiagente exige que os participantes estabeleçam uma acurada CS da situação corrente, de tal forma que, frente aos complexos processos que compõem o trabalho em equipe, a consciência da pessoa sobre os outros e sobre o ambiente é um ingrediente vital. O Quadro 3 apresenta algumas definições de CSE reportadas pela literatura.
Shu e Furuta (2005) entendem que a CSE é uma extensão da CS individual, estando relacionada não somente à consciência sobre o estado do ambiente, mas também sobre os demais membros da equipe. Já Mackintosh et al. (2009) consideram que a CSE, além do ambiente circunjacente e da equipe, envolve também a tarefa em execução.
"Grau em que cada membro da equipe possui a CS necessária para suas responsabilidades." (Endsley, 1995, p. 39). "Pelo menos em parte, a compreensão compartilhada de uma situação entre os membros da equipe, em um momento de tempo." (Salas et al., 1995, p. 131). "Construção ativa de um modelo de situação, parcialmente compartilhada e parcialmente distribuída entre dois ou mais agentes, a partir do qual alguém pode antecipar importantes estados futuros em um futuro próximo." (Artman & Garbis, 1998). "Construção ativa de um modelo de situação, parcialmente compartilhada e parcialmente distribuída entre dois ou mais agentes, a partir do qual alguém pode antecipar importantes estados futuros em um futuro próximo." (Artman & Garbis, 1998). "Dois ou mais indivíduos compartilham o ambiente em comum, compreensão momentânea da situação do ambiente, e a interação de outra pessoa com a tarefa cooperativa." (Shu & Furuta, 2005, p. 274). "Conhecimento - orientado pela tarefa e pela equipe - detido por todos na equipe, e a compreensão coletiva da situação em desdobramento." (Parush, Kramer, Foster-Hunt, Momtahan, Hunter & Sohmer, 2011, p. 477). |
Quadro 3 - Definições de "consciência da situação de equipe" apresentadas por diferentes autores/trabalhos.
A CSE pode ser caracterizada quantitativamente pela soma ou média das CSs individuais, pelo maior ou menor valor entre estas, ou pela intersecção existente entre as CSs dos vários integrantes (Gorman et al., 2006; Sulistyawati & Chui, 2006). A CSE, no entanto, é bem mais do que a simples soma ou combinação das CSs individuais (Salas et al., 1995; Parush et al., 2011). Endsley (1995) descreve que, se dois membros da equipe precisam conhecer uma certa informação, não é suficiente que apenas um a domine, ainda que de forma exemplar, porquanto cada um dos membros deve ter a CS exigida para a sua função naquele grupo. Se a CSE fosse constituída pelo somatório das CSs individuais, o fato de apenas uma pessoa ter a CS especificamente exigida para a circunstância em questão já significaria que a equipe possuiria tal CS, isto é, que ela estaria inclusa na CSE. Contudo, sendo essa CS individual necessária a vários agentes para o efetivo e adequado trabalho em conjunto, sua limitação a apenas um agente caracteriza que o grupo, como um todo, não a possui. Assim, cabe questionar se, para constituir a CSE, a CS individual pode estar em apenas uma pessoa, ou se deve estar em mais de uma ou em cada uma.
"(...) membros da equipe podem perceber diferentes aspectos da situação, e eles precisam integrar essa percepção para obter a visão global da situação da equipe. Se algum dos membros não tem boa CS, a CSE global pode ser prejudicada, independentemente de quão perfeita for a consciência de outro membro." (Sulistyaawati & Chui, 2006, p. 2835)
Shu e Furuta (2005) e Sulistyawati e Chui (2006) tomam de empréstimo o conceito de Artman e Garbis (1998, ver Quadro 3), e afirmam que a CSE é formada por uma fração compartilhada e por uma fração distribuída entre os membros da equipe. Isso significa que, em adição às suas CSs individuais, as pessoas precisam desenvolver e manter uma CS intragrupo, isto é, uma CS compartilhada (CS-c) entre os membros do grupo, que vai permitir analisar e sintetizar informações de forma colaborativa e orquestrar ou sincronizar as ações dentro da equipe (Sonnenwald & Pierce, 2000). Assim, a CS-c, fruto da interdependência existente entre membros de um grupo (Jones et al., 2011), reflete "o quão similarmente os membros da equipe veem uma dada situação" (Bolstad, Cuevas, Gonzalez & Schneider, 2005), isto é, o grau de intersecção entre a CS individual de dois ou mais participantes. A CS distribuída (CS-d), por outro lado, é o conjunto das CSs individuais que não encontram similaridade nas CSs dos demais agentes.
Ainda que a CS-d permita alargar o "horizonte de visão" da equipe, a importância da CS-c é indiscutível. Bolstad e Cuevas (2010) enfatizam que o sucesso no desempenho da equipe é influenciado pelo grau com que seus integrantes compartilham um entendimento comum do que está acontecendo. Embora nem toda a informação precise ser universalizada, lacunas na CS-c podem trazer significativos problemas para a equipe (Kaber & Endsley, 1998; Jones et al., 2011). Bolstad et al. (2005) explicam que membros de equipes de alta CS-c percebem, compreendem e interpretam os requisitos de informação situacional de uma maneira similar e que isso é um claro indicador do funcionamento global do grupo. Há que se considerar, todavia, que o grau de importância da CS-c depende da natureza da tarefa e da forma de trabalho. Quando a equipe opera de maneira multidisciplinar, em um sistema de tarefas divididas entre integrantes que atuam de modo independente, a CS-d adquire alta relevância. No entanto, em projetos ID ou TD, onde se evidencia maior inter-relação entre as áreas e atores, o papel da CS-c é substancialmente destacado.
A formação da CSE ocorre mediante um processo contínuo e retroalimentado. Durante a execução de uma tarefa, cada membro da equipe percebe partes do estado do sistema (Sulistyawati & Chui, 2006). Portanto, em um "momento zero" qualquer (Figura 2A), cada indivíduo apresenta sua CS específica - denotando uma imagem sob o seu ponto de vista - e há um certo grau de intersecção entre as várias CSs individuais dos membros do grupo. À medida que o tempo transcorre e sucedem-se modificações no ambiente (incluindo, neste, o contexto, a equipe e a tarefa), as CSs individuais são ampliadas (Figura 2B) e transformadas por novas informações, que, em maior ou menor grau, circulam entre as pessoas e que se tornam um conhecimento comum entre elas. Em decorrência dessa ampliação das CSs individuais, dois aspectos são observados. Primeiro, há um aumento na "área da CS global", ou seja, a equipe passa a apresentar uma maior e mais diversificada capacidade de entendimento e resposta aos fatores do meio, ainda que esse efeito ocorra de forma distribuída. Paralelamente, verifica-se que a interação entre os integrantes do grupo leva também a um crescimento da CS-c, comum a todos os participantes.
"Desenvolver a CS de uma equipe é um processo evolutivo. Primeiro, os membros da equipe geram a CS individual com base em modelos mentais pessoais (isto é, conhecimento relevante e experiência) e modelos de situação individuais (ou seja, a percepções do ambiente externo). Membros da equipe, então, compartilham as suas CSs individuais na equipe através de comunicação e cooperação. A seguir, a equipe forma uma consciência comum - neste trabalho tratada como CS da equipe - sobre a situação. Finalmente, a CS da equipe então é aplicada às reações ao ambiente externo para verificá-las e modificá-las. Este é um curso repetitivo em um ambiente dinâmico complexo." (Ma & Zhang, 2008, p. 626)
Figura 2 - Consciência da situação de equipes, em um momento qualquer do trabalho conjunto (A) e em um momento posterior (B). Representação (A) baseada em Endsley (1995).
Gorman et al. (2006) trazem à luz uma importante questão, ao apontar que propriedades em nível de equipe não são diretamente determinadas pelas propriedades de seus membros, e que os processos de interação próprios da equipe são uma importante fonte de variação nesse sentido. Em vista disso, os autores sustentam que a simples agregação das propriedades individuais dos membros pode ser insuficiente para medir o fenômeno ao nível de equipe. É notório que as equipes, por sua natureza tipicamente heterogênea (Nonose et al., 2010), apresentam um grau de complexidade bem mais elevado do que o observado em cada um dos membros que a compõem. Capra (2006, p. 40) faz referência às "propriedades emergentes", que emergem a partir de um nível específico de organização e complexidade, sem que existam em níveis inferiores. Com isso, a equipe pode, no seu coletivo, desfrutar de certas propriedades que não aparecem no indivíduo, isoladamente, confirmando o pressuposto sistêmico de que "o todo é maior do que a soma das partes".
Ao aplicar esses princípios ao estudo da CS, evidencia-se que a CSE é, de fato, maior do que a soma das CSs individuais de seus membros e ultrapassa os limites destas, como é visto na Figura 2-B. Segundo tal concepção, em nível coletivo, a união das CSs individuais recebe o acréscimo de propriedade(s) emergente(s) típicas de equipes, como a "consciência mútua" - aquela que as pessoas de um grupo cooperativo têm sobre as atividades, crenças e intenções dos demais membros (Shu & Furuta, 2005) - e a "confiança mútua", ou seja, a cognição individual do agente, sua confiança na cognição de outro membro e sua confiança na confiança deste (Nonose et al., 2010).
Em grupos com perfil transdisciplinar, a CSE adquire ainda maior complexidade, face à variedade tipológica dos agentes envolvidos. A TD reúne personagens díspares, seja porque os cientistas provêm de campos disciplinares distintos, seja porque os atores sociais têm formação diversa à dos cientistas. Não obstante a primeira segregação (entre cientistas) ser francamente observada, a segunda é em geral mais drástica. Acadêmicos e leigos pensam, falam e agem diferentemente, pois pertencem a diferentes coletivos de pensamento e mundos sociais, apresentando culturas e paradigmas próprios (Pohl & Hirsch-Hadorn, 2008), bem como diferentes visões de mundo (Roux et al., 2010), e metas e interesses (Walter et al., 2007). Pohl e Hirsch-Hadorn (2008) ainda destacam que esses dois públicos percebem um mesmo problema de modo específico, constituindo, juntos, "uma diversidade de percepções e perspectivas" (p. 114). A dicotomia entre cientistas e não cientistas é também reconhecida por Karstens et al. (2007):
"Os atores políticos (fazedores de política e interessados) querem proteger seus próprios interesses e realizar suas ambições políticas pessoais e portanto têm a chamada racionalidade política. Cientistas visam conduzir pesquisa que é cientificamente válida e de seu interesse e têm uma racionalidade científica." (p. 391, grifos no original).
"Dentro do arquétipo "ator político", atores com interesses conflitantes podem ter preferências completamente diferentes (...). Dentro do arquétipo "cientista", atores podem ter diferentes perspectivas baseadas nas diferentes disciplinas que eles representam. Contudo, atores pertencendo a uma mesma categoria, tendo o mesmo tipo de racionalidade, presume-se que sigam a mesma linha geral de raciocínio em seus argumentos." (p. 392)
Como já destacado, a CS é um processo/produto cognitivo que recebe forte influência das características intrínsecas e pessoais do agente, tais como seu conhecimento anterior e expertise, seus objetivos e expectativas sobre eventos futuros (afetadas, em seu turno, por modelos mentais, instruções ou comunicações anteriores). Roux et al. (2010) ressaltam que grupos de diferentes áreas ou comunidades de conhecimento tendem a usar esquemas interpretativos diferentes ou até divergentes para atribuir sentido a uma mesma informação. Kolkman, Van der Veen e Geurts (2007) descrevem o "quadro da percepção", mostrando que, em situações complexas, o conhecimento que o participante utiliza para resolver um determinado problema está localizado em seu modelo mental, que atua como um filtro a selecionar informações do "mundo real". A seguir, essas informações são julgadas e sintetizadas na forma de resposta ou solução baseada na perspectiva do indivíduo, gerando, pois, um conhecimento que pode guiar a ação subsequente. Os autores destacam que a perspectiva é baseada no conjunto de valores e crenças pessoais, determinando o que o agente "enxerga" como seus interesses. Cientistas e atores sociais têm não somente modelos mentais diferentes, como também perspectivas que lhes são peculiares.
Assim, ao mesmo tempo em que "equipes com membros que têm percepção da situação compatível seriam capazes de trabalhar em sincronia e em tempo hábil, já que menos tempo seria necessário para resolver as suas percepções conflitantes" (Sulistyawati & Chui, 2006, p. 2832), é igualmente verdade que "membros de cada cultura podem olhar a mesma situação e chegar a conclusões opostas do que é, e do que deve ser feito", ou seja, "baseados em suas normas culturais, conhecimentos, práticas e discursos, eles focam os vários elementos da situação e os inter-relacionam e interpretam diferentemente" (Pohl, 2008, p. 47). A cognição situada demonstra que "a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam" (Boff, 2009, p. 15), isto é, "a consciência e o mental pertencem ao domínio do acoplamento social, e é nele que ocorre a sua dinâmica" (Maturana & Varela, 2007, p. 256).
Em síntese, é possível afirmar que, diante do mesmo tempo e espaço, as CSs individuais de cientistas e de leigos provavelmente serão bastante diferentes entre si, refletindo a variação existente entre os mundos vividos por esses públicos. Conforme foi referido, em uma equipe, membros novatos e experientes podem apresentar semelhante percepção (primeira fase da CS), mas se distinguirão nas duas fases seguintes, compreensão e projeção. No caso da CS de cientistas e leigos, todo o processo de avaliação da situação deverá ser diferente, mostrando especificidade inclusive na forma de perceber o estado e os fatores do ambiente.
Buscando efetivar uma representação das CSs individuais que compõem a CSE, Endsley (1995) optou por colocá-las em um único plano geométrico, como é retratado na Figura 2-A. Porém, as substanciais diferenças nas bases fundadoras das CSs de cientistas e não cientistas levam à sua representação gráfica em planos geométricos próprios (Figura 3A). No contato entre os dois planos, ocorre a intersecção das CSs dos membros de cada comunidade, representando a CS-c entre os agentes dos dois grupos. Abordando a questão de modo lacaniano3, verifica-se que, se os dois planos mantiverem entre si um ângulo do 90º, haverá uma área "X" de intersecção entre eles. Quando o ângulo cai para 45º, a área passa a ser 41% maior, e dobra no caso de um ângulo de 30º (Figura 3B). Deste modo, comprova-se matematicamente que a aproximação dos planos - significando um relacionamento mais efetivo entre os dois grupos - aumenta o compartilhamento das CSs individuais de cientistas e leigos, com efeitos positivos sobre o resultado do trabalho em equipe.
A "aproximação dos planos", isto é, a busca por maior identificação e correspondência entre as CSs dos cientistas e dos atores sociais, é tão necessária quanto desejável, pois a TD só poderá ser considerada exitosa quando integrar diferentes visões, perspectivas e interesses (Mobjörk, 2010). Todavia, a possibilidade e o grau de tal aproximação dependem de uma série de fatores que decorrem da constituição, organização e modus operandi da equipe. Um desses fatores é o nível de integração e afinidade existente entre os membros. As CSs poderão ser melhor compartilhados em grupos formados por pessoas que apresentem contato e convivência anterior, de forma a facilitar o relacionamento interpessoal e o diálogo, e/ou por indivíduos cujos modelos mentais são de alguma forma próximos (por exemplo, quando os integrantes leigos têm grande afinidade com o universo científico). Ao formar um coletivo mais homogêneo, no entanto, pode haver significativa perda na diversidade epistemológica e cognitiva - possivelmente a maior riqueza das equipes transdisciplinares.
Durante o processo de atividade do grupo, a troca de informações entre os membros é um componente importante da dinâmica da CSE, possibilitando o aprimoramento das CSs individuais e o aumento da CS-c. Sendo assim, a efetiva comunicação entre os agentes é um elemento de grande, talvez máxima, repercussão sobre o desenvolvimento e a manutenção da CSE (Salas et al., 1995; Ma et al., 2010; Parush et al., 2011). Kaber e Endsley (1998) salientam que a comunicação deficiente pode ser resultado da cultura da equipe, devendo-se procurar uma linguagem comum entre os membros e entre as retóricas científica e cotidiana (Klein, 2004; Mobjörk, 2010). O fluxo de informações também pode ser severamente prejudicado pela ocorrência de distância física entre os agentes (Kaber & Endsley, 1998). Bolstad et al. (2005) verificaram que esse fator chega a responder por mais da metade da variação da CS-c. No tocante à comunicação, há que ser considerado, sobretudo, o tipo de atuação dos membros leigos na equipe - participatória ou consultiva. No primeiro caso, o maior contato destes agentes com os cientistas deverá aproximar e ampliar a correspondência entre as respectivas CSs, com reflexos positivos sobre a CS-c.
Figura 3 - Representação hipotética da relação entre as consciências da situação de cientistas e leigos, integrantes de uma mesma equipe transdisciplinar (A), e demonstração da área de intersecção entre dois planos, de acordo com o ângulo de inclinação entre eles (B).
Outro elemento de grande efeito sobre a CSE é a coordenação ou liderança da equipe (Kaber & Endsley, 1998; Patrick et al., 2006), a quem cabe integrar os modelos situacionais presentes (Mackintosh et al., 2009). Para Roux et al. (2010), na TD os líderes devem transpor diferentes contextos, trilhando entre a diversidade de conhecimento e o entendimento compartilhado. Ademais, os autores consideram que "para tratar com sucesso os valores das diversas partes interessadas, uma solução aceitável não pode ser na forma de 'a resposta certa', mas sim na forma de uma solução negociada" (p. 734), indicando que o líder, no papel de mediador e negociador, deve tratar igualitariamente as percepções, análises, opiniões e projeções de cientistas e leigos, reconhecendo suas crenças e seus interesses. A CSE também pode ser aprimorada pelo treinamento dos agentes (Salas et al., 1995; Kaber & Endsley, 1998; Patrick et al., 2006), e pela adequada utilização de artefatos e ferramentas tecnológicas de apoio (Bolstad et al., 2005; Kulik et al., 2008; Jones et al., 2011; Parush et al., 2011). O emprego de práticas de gestão do conhecimento, tais como redes sociais, brainstorming, brainwriting e storytelling (Wark & Lambert, 2007), entre outras, também pode contribuir para fortalecer laços entre os membros, resultando em incremento na CS-c, e, portanto, na CSE.
Cabe ressaltar, por fim, que uma equipe transdisciplinar pode realizar um trabalho ou projeto efetivamente transdisciplinar, ou pode conduzi-lo apenas de forma interdisciplinar (com real integração entre os cientistas, mas só destes) ou multidisciplinar (ausência de integração inclusive entre os cientistas). Ou seja, o perfil da equipe não garante o perfil do trabalho por ela produzido. O que vai proporcionar um caráter realmente transdisciplinar ao objeto em execução é a integração entre cientistas e leigos, que inclui, como fator decisivo, a conexão e o compartilhamento de suas respectivas consciências da situação.
Considerações finais
É plenamente reconhecido o papel e a importância da CS no processo de tomada de decisão, quer de base individual ou coletiva. Construída a partir da percepção acerca do estado do ambiente, de sua compreensão e da projeção deste cenário em um futuro próximo, a CS apresenta um caráter cíclico e retroalimentado. Em uma equipe, a CS apresenta-se como fundamental para o sucesso do trabalho conjunto, em especial quando se espera ou exige uma efetiva integração entre os membros na busca de um resultado harmônico, consensual e/ou negociado. Acentua-se, neste contexto, o valor da CS-c, que consiste da fração da CS que é compartilhada ou comum a dois ou mais membros da equipe. A CS-c encaminha para uma visão uniforme do conjunto de atores, o que pode conferir consistência às decisões.
A CSE é muito mais do que a simples soma das CSs individuais dos membros que a compõem. Comprovando que em sistemas complexos "o todo é maior do que a soma das partes", a CSE incorpora algumas propriedades emergentes que surgem em nível de equipe, como a consciência mútua e a confiança mútua. Assim, a CSE espelha não só a "quantidade" e extensão das CSs individuais, mas fundamentalmente a qualidade destas e de sua interação.
A ação supradisciplinar é uma tendência do final do século passado e início do presente. Entre suas modalidades, merece particular destaque a TD, que representa a sólida e real integração não só entre cientistas de diferentes áreas de conhecimento ou disciplinas, mas também destes com atores sociais, não cientistas, interessados e afetos à matéria em questão. Essa participação do meio não acadêmico é, ao mesmo tempo, o grande diferencial e o maior desafio da TD. A singularidade do perfil pessoal de cientistas e leigos, seja em termos de experiências, visões de mundo, valores ou interesses, reproduz-se em suas CSs individuais, que, portanto, guardam marcantes distinções entre si. A aproximação dessas CSs, buscando a construção de uma CSE, torna-se um elemento preponderante para o sucesso da atividade. Contudo, pela sua natureza, trabalhos transdisciplinares são normalmente realizados a médio e longo prazos, fazendo com que a CS "instantânea" tenha pouca importância e permitindo que, mediante medidas adequadas, uma CS coletiva possa ser construída durante o percurso.
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Wickson, F.; Carew, A.L.; Russell, A.W. (2006). Transdisciplinary research: characteristics, quandaries and quality. Futures, 38, 1046-1059. [ Links ]
Notas
A.W.L. da Silva
Endereço para Correspondência: R. João Pio Duarte Silva, 864/21, Bairro Córrego Grande, Florianópolis, SC 88.037-001, Brasil.
E-mail para correspondência: awls12@hotmail.com.
(1) Para efeito deste trabalho, define-se equipe ou grupo (aqui tomados como sinônimos) como um conjunto de duas ou mais pessoas, unidas temporariamente por uma tarefa ou objetivo comum, e que apresentam algum nível de interação, interdependência e relação interpessoal.
(2) Os membros leigos das equipes transdisciplinares recebem várias designações, como stakeholders - "interessados" (Scholz et al., 2006; Wickson et al., 2006; Walter et al., 2007; Pohl, 2008; Martens et al., 2010); "não cientistas" (Maasen et al., 2006; Steiner e Posch, 2006; Walter et al., 2007); "praticantes" (Scholz et al., 2006; Steiner e Posch, 2006; Mobjörk, 2010); "atores do mundo da vida" (Pohl e Hirsch-Hadorn, 2008); "atores não científicos", "stakeholders sociais", "cidadãos" (Hage et al., 2010); "atores sociais" (Hirsch-Hadorn et al., 2006); "participantes não acadêmicos", "participantes sociais" (Tress et al., 2004); "representantes da indústria, governo, e/ou sociedade civil" (Uiterkamp & Vlek, 2007); "representantes do grupo de pessoas afetadas" (Balsiger, 2004); "usuários finais da pesquisa" (Roux et al., 2010); "usuários", "proprietários dos problemas", "clientes" (Martens et al., 2010).
(3) Jacques Lacan, psicanalista francês, é considerado o introdutor da chamada "matematização da psicanálise", em que procura formalizar a psicanálise de maneira analógica à matemática moderna (Checchia, 2004).