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IGT na Rede
versão On-line ISSN 1807-2526
IGT rede vol.14 no.27 Rio de Janeiro jul./dez. 2017
ARTIGO
Marcas na pele: A autolesão sob a ótica da Gestalt-terapia
Skin tags: Self-harm from the point of view of Gestalt-therapy
Damiriane Lino Couto*; Luane Seixas Pereira Cunha**
RESUMO
A produção desse trabalho tem por intuito compreender a conduta autolesiva, um comportamento de violência autoinfligida, a partir da perspectiva da Gestalt-terapia. Essa correlação tem o objetivo central de perceber o modo como a abordagem gestáltica lida com as práticas autolesivas e qual o papel do Gestalt-terapeuta frente essa demanda. Utilizando-se da pesquisa bibliográfica para a coleta de dados as reflexões são direcionadas a partir da percepção "gestáltica" da relação corpo-pessoa-mundo e da forma particular da Gestalt-terapia considerar um sintoma como contextualizado e do sujeito como ser-no-mundo. O trabalho facilitou ainda a reflexão sobre o papel do Gestalt-terapeuta, a qual à este importa atentar-se para a percepção do que a autolesão tem a dizer sobre o sujeito que a pratica. Ainda que o comportamento autolesivo seja difundido nos ambientes sociais, no âmbito acadêmico há uma escassez de produção sobre esse tema, sobretudo nas pesquisas brasileiras. Logo, esse trabalho tem em sua essência a premissa de contribuir com novos olhares sociais e científicos à conduta autolesiva, impulsionando para que o tema deixe de ser um tabu.
Palavras-chave: Autolesão; Autoagressão; Gestalt-terapia; Ajustamento Criativo.
ABSTRACT
The production of this work has the objective understand the self-injurious conduct, a behavior of self-inflicted violence starting of the perspective of Gestalt-therapy. This interconnection has the central objective to perceive the way that the gestaltica approach dealing with self-injurious practices and what is the role of the Gestalt-therapist in front this demand. Using bibliographic research for the collection of data the reflections are directed from the Gestalt perception of the body-person-world relationship and the particular form of Gestalt-therapy to consider a symptom as contextualized and of the subject how to be in the world. The work facilitated the reflection on the role of the Gestalt-therapist, who to this one is attentive to the perception of what the self-injury has to say about the subject who practices it. Although self-injurious behavior is widespread in social settings, there is still a shortage of production on this subject, especially in Brazilian research. Therefore, this work has in its essence the premise of contributing with new social and scientific looks to self- injurious conduct, pushing for the topic to stop being a taboo.
Keywords: Self-injury; Self-harm; Gestalt-therapy; Creative Adjustment.
INTRODUÇÃO
Comportamentos de agressividade autodirigida têm acompanhado a evolução humana, estando presente em culturas e tradições diversas e possuindo variadas funcionalidades e motivações. Na contemporaneidade algumas condutas autoagressivas carregam consigo características religiosas e sociais, como o esticar dos lábios e pescoço em tribos africanas, e, especialmente, na cultura ocidental como meio de garantir a individualidade, caracterizado pelo o uso de "piercings" e tatuagens (BORGES, 2012).
Contudo, determinados comportamentos autogressivos têm ganhado espaços de discussões, especialmente pelas motivações afetivas e emocionais envolvidas, são as práticas automutilatórias e autolesivas (BORGES, 2012). Erroneamente, tais condutas são tidas como semelhantes, no entanto, estas se diferem quanto ao grau de violência, pois enquanto a automutilação volta-se para ações de amputação de parte do corpo, a autolesão se caracteriza por danos sobre a pele, como cortes e queimaduras.
A centralidade desse estudo volta-se, pois, para a prática autolesiva que não esteja relacionada à intenção de suicídio ou à um sintoma de alguma patologia específica. Tendo em vista as colocações de autores como Walsh (2007), Arcoverde e Soares (2012), Cummings (2015), Garreto (2015), a autolesão sem estar relacionada às características supracitadas, pode ser compreendida como uma tentativa de homeostase entre o sujeito e meio. Esse modo de se relacionar com o mundo externo pode, então, representar a melhor maneira que fora encontrada por esse indivíduo na busca por autorregulação
No que se refere à magnitude e prevalência estudos apontam que a autolesão é mais recorrente entre adolescentes e mulheres jovens, tendo início, de modo geral, entre os 11 e 15 anos de idade podendo se estender por décadas (GARRETO, 2015). Autores postulam ainda o crescimento de conteúdo "on-line" sobre a prática autolesiva, propagada especialmente entre adolescentes, o que tem gerado preocupações em termos sociais (CAVALCANTE, 2015; OTTO; SANTOS, 2015).
O comportamento de autolesão é instaurado e mantido por meio de diversos fatores, de caráter biológico, psicológico e social, refletindo assim, a complexidade desse comportamento (ARCOVERDE; SOARES, 2012). Logo, para compreender tal conduta é necessário ter um olhar global, que correlacione o indivíduo com sua história de vida, seu contexto e seu momento atual. Nesse aspecto, a Gestalt-terapia como abordagem psicológica pode fornecer subsídios na compreensão da autolesão, especialmente por sua visão holística do ser-humano. Sendo assim, de que modo a Gestalt-terapia compreende o comportamento de autolesão e qual é a postura do Gestalt-terapeuta frente essa demanda?
A partir desse questionamento esse trabalho visa abarcar questões que correlacione a prática de autolesão e os conceitos da abordagem gestáltica, fornecendo a possibilidade de contribuir para pesquisas com essa temática. Objetiva-se, portanto, facilitar a reflexão sobre o papel da conduta autolesiva no organismo; levantar a discussão acerca da interlocução da Gestalt-terapia e corpo; pensar na autolesão como um ajustamento criativo e fomentar a reflexão acerca do posicionamento do Gestalt-terapeuta em contato com um cliente que tem a prática da autolesão.
Por meio da pesquisa bibliográfica os dados foram coletados a fim de abranger o questionamento central e as especificidades dos demais objetivos desse estudo. A análise dos dados é de abordagem qualitativa e de caráter exploratório, influenciando que o fenômeno seja percebido e compreendido através de um novo paradigma. Para tanto, inicialmente a autolesão é apresentada com o delineamento de seus aspectos gerais, abarcando conceituação e diferenciação de termos, possível definição e prevalência. Posteriormente a autolesão é concebida como um comportamento de múltiplos fatores, indicando estudos que a compreende através de um caráter biopsicossocial. Logo após, a fim de auxiliar o leitor na reflexão acerca da escolha da teoria gestáltica, há um apanhado geral sobre a compreensão de ser e mundo na perspectiva da Gestalt-terapia.
Nesse estudo, explana-se também o modo como a Gestalt-terapia compreende a autolesão, sugerindo reflexões no que se refere a função que o "self" ocupa no organismo. Logo após, a discussão se abrange considerando a compreensão do corpo em Gestalt-terapia, como meio de explorar considerações da conexão corpo-pessoa-ambiente do sujeito que se autolesiona. Finalmente a discussão volta-se para o papel do Gestalt-terapeuta frente à essa demanda, priorizando a ética e a autonomia do cliente que procura a psicoterapia.
O tema da autolesão ainda é pouco discutido no ambiente acadêmico, logo, o desenvolvimento desse trabalho sofreu com a escassez de artigos científicos na área da psicologia e afins. Contudo, através das discussões aqui levantadas têm-se a possibilidade de serem estabelecidas novas reflexões e ponderações no que se refere ao comportamento de autolesão, uma prática socialmente difundida, mas que ainda é um tabu.
1 - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 Características Gerais da Autolesão
O comportamento de autolesão é compreendido pela literatura como uma prática de violência autodirigida (ALMEIDA; HORTA, 2010; ARCOVERDE; SOARES, 2012; BORGES, 2012; CALDAS et al., 2009; OTTO; SANTOS, 2015; WALSH, 2007). Arcoverde e Soares (2012, p. 294) salientam que o ato de provocar danos físicos a si mesmo causa estranheza por contradizer o chamado "instinto da busca pela sobrevivência, evitação da dor e preservação da vida". Nessa perspectiva, Daolio (2012) afirma que a conduta de autodestruição implica a participação de modo repetitivo em alguma atividade de caráter perigoso, havendo ou não a intencionalidade de suicídio.
A prática de autodestruição pode ser percebida historicamente em diversas culturas, vinculando-se, portanto, a uma característica social. Tais comportamentos podem incluir um caráter religioso, possuindo finalidades específicas – como as de curar, marcar posição social, ou ser expressão de espiritualidade – refletindo tradições e demarcando uma posição social para os indivíduos que a pratica (ALMEIDA; HORTA, 2010). Na contemporaneidade o uso de "piercings" e tatuagens são artifícios presentes na esfera social e, ainda que sejam consideradas práticas de agressão autodirigida, são condutas aceitas socialmente (ARCOVERDE; SOARES, 2012; BORGES, 2012).
No entanto, existem comportamentos de agressividade autodirigida que são considerados patológicos por não estarem relacionados a nenhum valor simbólico no meio sociocultural e/ou religioso. Assim, autolesões, automutilações, tentativas de suicídio e suicídio, são condutas que possuem motivações de caráter afetivo e emocional e, por essa razão, o indivíduo pode, provavelmente, experienciar situações de preconceito ou julgamento por parte do outro (SIMEON; HOLLANDER, 2001, apud ALMEIDA; HORTA, 2010). Borges (2012) postula estudos que enfatizam que quando o objetivo não é a morte, mas a tentativa de estabelecer um equilíbrio psicológico frente à situações de adversidades, o indivíduo que não possui mecanismos de homeostase vale-se das condutas autolesivas ou automutilatórias.
Comumente, autores utilizam o termo "automutilação" quando, na verdade, estão se referindo à prática de autolesão (ARCOVERDE; SOARES, 2012). Almeida e Horta (2010), Borges (2012) e Otto e Santos (2015) apontam que a automutilação seria uma espécie de autolesão "maior", tendo por características a amputação de uma parte do corpo. Como nos relatos feitos por Nucci e Dalgalarrondo (2000) onde apresentam seis casos de indivíduos com transtornos mentais que tiveram o comportamento de arrancar os próprios olhos (enucleação ocular). Logo, enucleação de olhos, casos de castração e amputação de alguma parte do corpo são comportamentos característicos de indivíduos psicóticos.
Por sua vez, o comportamento de autolesão refere-se à prática de causar danos ao próprio corpo. Sendo comum nesta conduta o uso de materiais cortantes como lâminas, facas, cacos de vidros ou espelhos para fazer cortes na pele, geralmente nos pulsos, braços e coxas; queimar-se; bater-se; atritar objetos contra a pele, impedir cicatrização de ferimentos e derramar materiais corrosivos sobre a pele, todas essas ações de tal forma que ocorra o surgimento de um ferimento (ARCOVERDE; SOARES, 2012; CAVALCANTE, 2015; CEDARO; NASCIMENTO, 2013; GARRETO, 2015; GRATZ, 2001; KAPLAN et al., 1997). Cavalcante (2015) afirma que tais práticas são utilizadas como meio de suplantar dores de cunho emocional, em que o indivíduo não sabe lidar como o faz com a dor física. Os ferimentos causados podem ter, ainda, a intenção de aliviar o sentimento de culpa sacrificando uma parte do corpo (CALDAS et al., 2009).
É possível perceber, pois, que a conceituação do comportamento de autoagressão sofre diferentes definições, podendo ser prejudicial para a compreensão do fenômeno por não existir um consenso entre os pesquisadores (BORGES, 2012). A mesma autora ainda postula que essa diversidade conceitual deriva das diferenças culturais. No entanto, assim como na pesquisa de Arcoverde e Soares (2012), para esse estudo o termo autolesão será utilizado referindo-se à conduta de ferir-se de modo intencional, não se tratando de uma tentativa de suicídio, de automutilação desfigurante ou estando vinculada à um sintoma de uma determinada patologia, mas relacionada à "...destruição ou alteração direta do tecido corporal sem intenção suicida consciente, mas que resulte em ferimento suficientemente grave para provocar danos a esse tecido" (GRATZ, 2001, p.254).
Diversos estudos acerca da autolesão salientam as funcionalidades da conduta, sendo utilizada, especialmente, como meio de regular aflições emocionais e relações interpessoais (ARCOVERDE; SOARES; 2012; CUMMINGS, 2015; GARRETO, 2015; WALSH, 2007). Nock e Cha (2009 apud BORGES, 2012) e Garreto (2015) ainda consideram outras funções que a autolesão assume para o sujeito que a pratica, relacionando-se à autopunição, podendo ser um comportamento natural, sendo utilizado como forma de influência do comportamento dos outros e como possibilidade de comunicação. O delineamento dessas funções e a prevalência da motivação de caráter afetivo/emocional corroboram com a ideia de Otto e Santos (2015, p.51) que ressaltam: "a autolesão vem mostrar que, para algumas pessoas, a dor na pele não é nada quando comparada à dor psíquica".
No que tange à prevalência Arcoverde e Soares (2012) apontam que a autolesão encontra-se maior entre mulheres, adolescentes e jovens adultos. Caldas "et al". (2009) indicam estudos que demonstram a prevalência da autolesão em prisioneiros, sustentando que o encarceramento pode ser um fator de vulnerabilidade para a autolesão. O comportamento de autolesão pode ser encontrado em pessoas que sofreram negligência e/ou violência na infância, pessoas com diagnóstico de algum transtorno, como transtorno de alimentação, pós-traumático, de personalidade "borderline", de ansiedade (ARCOVERDE; SOARES, 2012; CALDAS et al., 2009; GARRETO, 2015). Contudo, ainda que relacionado à sintomas de psicopatologias o ato de se lesionar propositadamente tem sido descrito como um modo de manifestação independente, já que essa conduta é encontra também em populações não-clínicas (ARCOVERVE e SOARES, 2012).
Segundo Garreto (2015) estudos indicam que o início da autolesão acontece na adolescência entre os 11 e 15 anos de idade e pode permanecer por décadas. Tal autor ainda afirma que mulheres jovens são mais propensas a continuar a prática de autolesão e Borges (2012) ressalta em sua pesquisa que a idade entre 18 e 25 anos é o grupo que possui mais potencial em se desenvolver comportamentos autolesivos. Cavalcante (2015), em sua pesquisa, afirma que a prática da autolesão tem crescido em conteúdo "on-line" e, por conta disso, se observa uma "onda autolesiva" entre adolescentes, gerando certo tom alarmante em escolas, instituições terapêuticas, entre a área médica e na mídia.
Ainda assim, a literatura não fornece dados específicos acerca da estimativa da autolesão. Garreto (2015) reitera que na população brasileira não há estudo epidemiológico publicado a respeito da conduta autolesiva em amostra clínica e/ou populacional em nenhuma faixa etária, confirmando o que sugere Arcoverde e Soares (2012) e Otto e Santos (2015) acerca da escassez de pesquisa feita sobre o fenômeno da autolesão no Brasil.
1.2 Autolesão: um Comportamento Biopsicossocial
Para compreender o comportamento de autolesão é preciso identifica-lo como um ato que envolve múltiplos fatores. Arcoverde e Soares (2012) afirmam que a conduta autolesiva é complexa podendo ter motivações biológicas, psicológicas e/ou sociais. A partir desta prerrogativa esse estudo visa abarcar os aspectos biopsicossociais que envolvem o ato de se autolesionar, e como esta compreensão pode contribuir para a reflexão do manejo psicoterapêutico na perspectiva da Gestalt-terapia.
A concepção de analisar o comportamento de modo biopsicossocial emerge da compreensão de homem em Gestalt-terapia, o qual é concebido de modo holístico, como um ser biopsicossocial, dotado de diferentes dimensões (FRAZÃO; FUKUMITSU, 2015). Nessa perspectiva, a conduta autolesiva relaciona-se com os vínculos que o sujeito estabeleceu ao longo de sua história nas diversas extensões – física, afetiva, intelectual, social, cultural e espiritual – que o constitui.
Na esfera biológica a conduta de autolesão está vinculada aos aspectos neuronais. De acordo com os postulados de Arcoverde e Soares (2012) o ato de se ferir, em algumas pessoas, pode ser mantido devido à dependência do neurotransmissor endorfina que é liberada quando há danos corporais. A liberação da endorfina e a eminente sensação de dor física causada pelo ferimento agem como um modo de distração a sentimentos de angústia e frustração, causando alívio temporário. A repetição da conduta autolesiva, nesse aspecto, relaciona-se com o fato de que em toda relação de dependência ocorre o fenômeno da tolerância, logo, ferimentos cada vez mais graves são provocados para manter os altos níveis de endorfina, evitando, assim, a abstinência.
Conforme determinados estudos, os indivíduos que possuem o comportamento de autolesão podem apresentar um déficit na capacidade de resolução de problemas, função relacionada ao córtex pré-frontal, mais especificadamente ao córtex órbito-frontal, envolvido no controle das ações através da antecipação, raciocínio, tomada de decisões, resolução de problemas e ajuste social do comportamento (ARCOVERDE; SOARES, 2012; GARRETO, 2015; KELLER; WERLANG, 2005).
Arcoverde e Soares (2012) ressaltam que a conduta autolesiva pode ser considerada uma alternativa de ação utilizada como estratégia de enfrentamento de estresse. As funções de tomadas de decisões e a capacidade de resolução de problemas envolvem o processo de escolher uma dentre várias alternativas de ação, considerando as vantagens e desvantagens no que se refere aos resultados (se a alternativa escolhida possibilitará o alcance do objetivo), aspectos morais ou sociais (se a alternativa escolhida é tida como moral e/ou socialmente inaceitável para o sujeito e/ou sociedade) e autoconsciência, estando relacionada com as capacidades pessoais de responsabilizar-se pela escolha.
Borges (2012) ainda salienta que as explicações apenas biológicas sofrem críticas, pois a autolesão é considerada um comportamento complexo indo além de conceitos exclusivamente "biologicistas". Nesse sentido, faz-se necessário considerar as demais esferas que podem influenciar a conduta autolesiva e como essas correlacionam-se para que tal comportamento seja efetivado e mantido.
Em muitos casos a autolesão poderá representar uma tentativa desesperada de cura, de estabilidade social e, em outras situações, de espiritualidade como também poderá ser entendida como uma forma mórbida de autoajuda, já que fornece um alívio temporário (BORGES, 2012). Nesse sentido, Otto e Santos (2015) indicam que enquanto alguns sintomas são característicos de uma determinada patologia, a autolesão se configura como um sintoma que se adapta a diferentes demandas, podendo estar presente em casos de estados depressivos, crises de ansiedade, transtorno de personalidade "borderline", momentos de impulsividade, agressividade, e em períodos de isolamento social e de desesperança.
Contudo, ainda que a conduta autolesiva esteja relacionada à uma sintomatologia de determinados sofrimentos psicopatológicos este tipo de conduta é encontrado também em populações não-clínicas, como salienta Arcoverde e Soares (2012). A autolesão é, portanto, um comportamento que impõe discussões mais profundas devendo, pois, questionar sobre a sociedade e cultura atuais, indo além de soluções rápidas, definições e classificações de novas doenças (CAVALCANTE, 2015). Dentro desta perspectiva que se deve buscar compreender o comportamento de autolesão, abarcando além do indivíduo o contexto sócio/cultural no qual este se relaciona.
Caldas "et al". (2009) em seus estudos descreveram o ato de se ferir como uma possível tentativa de comunicar um problema interpessoal, caso o ato seja ignorado ou ocorra uma resposta não solidária ou desagradável, então o comportamento autolesivo pode ser repetido de uma maneira mais ameaçadora até que seu objetivo seja alcançado. Pode-se perceber que os indivíduos que praticam a autolesão possuem grande influência do contexto social, pois como indica Daolio (2012) a época atual legitimou culturalmente condutas autodestrutivas que vão desde vícios socializados à objetalização do outro e de si mesmo. Desse modo, Cavalcante (2015) sugere que a busca de homeostase entre o interno e externo poderá influenciar no surgimento de práticas autolesivas como uma reação para manter o eu acordado em condições de privação emocional não tendo, necessariamente, a intenção de suicídio mas, a busca por equilíbrio.
Perceber-se como não pertencente ao grupo social que o rodeia pode levar o indivíduo a ter reações como a autolesão e a sociedade capitalista contemporânea exerce influência nesse sentimento de "não-pertença". Borges (2012) aponta que uma das formas de conseguir a singularidade e, simultaneamente, de demarcar o lugar na sociedade – sentir-se pertencente à esta – poderá ser através de marcas na pele. A pele passará a ser um reservatório de afetos e as marcas asseguram o indivíduo da sua existência, distinguindo-o do outro e é por ela que se responde ao meio envolvente, possibilitando o equilíbrio entre o interno e o externo.
A autolesão, desse modo, possui funções no organismo de quem a pratica, a funcionalidade do comportamento refere-se à diferentes aspectos e motivações para que o comportamento seja mantido. Borges (2012) pondera estudos que levantam hipóteses diversas para a conduta autolesiva como a de aprendizagem social; autopunição; anti-dissociação; anti-suicídio; identificação; sinalização social; analgésica à dor e a hipótese pragmática. Tal autora ainda sustenta que negligência e/ou maus-tratos na infância pode acarretar traumas, podendo a autolesão ser usada como meio de suplantar as dores que o passado acarretou.
A conduta autolesiva revela-se demasiadamente complexa, visto que são comportamentos que envolvem diversos fatores e que, por essa razão, não podem ser generalizados. A escassez de estudos no Brasil torna-se um obstáculo para levantamentos de dados, como sugere Arcoverde e Soares (2012). A grande variedade de fatores que podem influenciar a conduta autolesiva indica a necessidade de compreender tal ato com especificidade, indo além de generalizações e classificações de psicopatologias, considerando que os fatores ambientais, neurológicos e psicológicos podem afetar, simultaneamente, o indivíduo que pratica a autolesão, pois "tudo afeta tudo e tudo é uma coisa só" (RIBEIRO, 2007, p.34).
1.3 Compreendendo a Gestalt-terapia: Visão de Ser e Mundo
A Gestalt-terapia – GT vai além de uma abordagem ou teoria psicológica, é por tanto, uma forma de ver o externo e o interno, um modo de viver, uma filosofia existencial, uma forma peculiar de perceber a relação do ser vivo com o mundo (GINGER e GINGER, 1995) e, como indica Ribeiro (2006), é uma ciência, técnica e arte. A abordagem gestáltica não refere-se só ao homem mas, à natureza como um todo, por isso resgatar o verdadeiro sentido do humano implica resgatar a relação corpo-pessoa, mente-pessoa, ambiente-pessoa compreendendo os três ângulos do triângulo chamado totalidade (RIBEIRO, 2006).
Conforme salienta os estudos de Fagan e Shepherd (1973) a Gestalt-terapia foi desenvolvida por Frederick S. Perls, sendo influenciado pelas teorias psicanalíticas na perspectiva de Wilheim Reich; pela Fenomenologia-existencialismo europeu e pela Psicologia da "Gestalt" sendo caracterizada como a terceira força da Psicologia. A palavra "Gestalt" é de origem alemã e não há tradução para o português ou qualquer outra língua, Ginger e Ginger (1995, p. 13) afirmam que "Gestalten" significa "dar forma, dar uma estrutura significante"1. "É como se Gestalt-terapia fosse a projeção, a experiência imediata, teórica do que significa Gestalt" (RIBEIRO, 2006, p.138).
Apesar de ser considerado o principal precursor e fundador da Gestalt-terapia, Perls afirmou em seu livro "Gestalt-terapia explicada" que é melhor chamá-lo de "descobridor" ou "redescobridor", pois de acordo com ele a "Gestalt é tão velha quanto o próprio mundo" (PERLS, 1997, p. 3). Nessa mesma obra Frederick S. Perls sustenta que a Gestalt-terapia considera o organismo como um sistema que está em equilíbrio e seu funcionamento deve ser de forma adequada, sendo assim, qualquer desequilíbrio é experienciado como uma necessidade de correção.
Ginger e Ginger (1995, p.16) descrevem a Gestalt-terapia como a "Terapia do Contato", da mesma forma Ribeiro (2007) salienta que a compreensão do termo "contato" quando utilizado em GT difere-se da conceituação habitual. Na abordagem gestáltica o conceito de Contato tem sua complexidade particular e, quando bem compreendida, fornece subsídios para maiores possibilidades de operacionalidade, tornando-se, portanto, um instrumento de trabalho sendo referenciado pelas filosofias e teorias de base da GT: Existencialismo e Fenomenologia, Psicologia da Gestalt, Teoria do Campo e Teoria Holísitca (RIBEIRO, 2007).
Desse modo, Ribeiro (2007) afirma que a Gestalt-terapia está centrada no conceito de Contato e na natureza das relações da pessoa consigo mesma (organismo) e com o mundo exterior. O Contato ocorre sempre na fronteira entre o homem e o mundo, sendo a fronteira um lugar privilegiado do encontro das diferenças. Ribeiro (2007, p. 11) postula ainda, que "Contato é emoção experienciada, é movimento à procura de mudança, é energia que transforma, é vida acontecendo, é consciência dando sentido à realidade". Logo, a compreensão conceitual de "contato" implica e fornece a possibilidade de reflexão dos demais termos utilizados em GT, e assim, favorece o entendimento da concepção de comportamento, de homem e meio, de saúde e doença e, especialmente, do manejo terapêutico na perspectiva gestáltica.
Perls (1997) salienta que o organismo está sempre se dirigindo para a autorregulação, referindo-se à quando o organismo é deixado só para tomar conta de si mesmo, sem que haja interferência ou interrupções, levando este – o organismo – ao equilíbrio adequado. Para Perls o que deve ser compreendido primordialmente é a tomada de consciência em si e de si mesmo, pois a tomada de consciência completa ("awareness") e atual (aqui e agora) pode tornar presente a autorregulação organísmica, sendo o oposto disso toda patologia que interfere no autocontrole organísmico e, consequentemente, na saúde do indivíduo como um todo.
Para que essa autorregulação seja eficaz e saudável o contato deve ser pleno e genuíno abarcando a totalidade do sujeito, refletindo uma visão holística. Sobre esta questão, Ginger e Ginger (1995) salientam a interconexão permanente do indivíduo global, onde o todo está em um fluxo constante no aqui e agora. Há, sendo assim, a necessidade da compreensão do humano enquanto ser de dimensões biopsicossócio-espiritual (RIBEIRO, 2006), Ginger e Ginger (1995, p. 17) afirmam que tal perspectiva sobre o ser humano que a Gestalt desenvolve "favorece um contato autêntico com os outros e consigo mesmo, um ajustamento criador2 do organismo ao meio". Nesse sentido, o ajustamento criador ou ajustamento criativo se refere tanto uma forma do organismo se autorregular, como um meio para não se desintegrar, criando sintomas (SILVA; ALENCAR, 2011).
Aguiar (2014) pontua que o processo denominado autorregulação organísmica pode ser representado pela concepção do "Ciclo do Contato", sendo concebido por Ribeiro (2007) como movimentos orgânicos que procura satisfação de necessidades por meio do contato nos diversos níveis. Assim sendo, a cada ciclo em que uma necessidade é satisfeita o organismo se prepara para um novo ciclo. Da concepção do Ciclo do Contato emerge conceitos como parte-todo e figura-fundo. Perls (1997) afirma que figura é a experiência do primeiro plano e o fundo o conteúdo, a perspectiva, a situação e quando juntos, figura-fundo, formam a Gestalt. Por meio de tal compreensão e por conceber o homem enquanto ser global, que transcende a concepção dualista3, revelando-se enquanto uma totalidade multidimensional, às vezes, uma parte destaca-se e expressa-se em primeiro plano (AGUIAR, 2014).
Ainda se referindo à compreensão do Ciclo do Contato, Ribeiro (2007, p.16) explicita a concepção de "self" em GT, afirmando que: "O ‘self' entra na Teoria do Ciclo do Contato apenas como um dos elementos mediante os quais se pode visualizar como o contato funciona, quando experienciado no encontro humano". Ribeiro (2007) ainda afirma que os fatores de cura e bloqueios de Contato são algumas das várias formas de Contato que dão visibilidade ao "self".
Os bloqueios de Contato, relacionam-se à um funcionamento não saudável do organismo, é um modo de ajustamento criativo que corresponde à uma forma do ser humano de lidar consigo mesmo e com o meio impedindo ou dificultando, em alguns momentos, a realização de um contato pleno – satisfação de uma necessidade – (AGUIAR, 2014). Em contrapartida, como salienta Monteiro Junior (2010) para cada bloqueio de contato há um fator de cura atrelado, essa ideia emerge da concepção que Ribeiro (2007) postula acerca da evolução terapêutica em GT, onde o processo de cura ou da saúde possui uma dialógica, em que tudo afeta tudo.
Na abordagem gestáltica o processo terapêutico de acordo com Ribeiro (2007, p.52) deve:
"[...] facilitar um processo de diferenciação da realidade, com abertura total de horizontes, no qual a pessoa pense diferente, deseje diferente, se sinta diferente e aprenda a correr riscos, de tal modo que crie, em sua vida, formas de contato mais nutritivas e eficientes".
Sendo assim, o processo terapêutico está engajado no processo de mudança, este ocorre no momento em que terapeuta e cliente fazem Contato com suas totalidades, não apenas e necessariamente com seus sintomas, ao psicoterapeuta cabe, por tanto, não tratar a doença e sim a pessoa adoecida (RIBEIRO, 2007).
Ginger e Ginger (1995, p.19) salientam que a Gestalt-terapia encoraja o indivíduo a "observar as profundas correntes internas" da própria personalidade, e não exaurir-se lutando contra ela. Nessa perspectiva, Ribeiro (2006, p.106) define GT como uma terapia dialógica, em que o encontro é primeiro intra-subjetivo e em um segundo momento inter-subjetivo, logo, "cliente e terapeuta entram em contato após uma reflexão dialógica interna e recíproca". O caráter intersubjetivo sustenta que o cliente é um ser ativo nesse processo, sendo ele próprio responsável por sua cura, afinal "o terapeuta cuida do cliente para que ele possa se curar" (RIBEIRO, 2006, p.100). Concebe-se, por tanto, que o manejo da psicoterapia deve ser pautado na compreensão do indivíduo em sua totalidade, onde há integração e não análise, sendo uma abordagem existencial a GT não se ocupa somente em lidar com o sintoma mas, com a existência total da pessoa (PERLS, 1997).
2 - METODOLOGIA
A pesquisa bibliográfica tem por objetivo possibilitar que o pesquisador entre em contato com material que já fora produzido em relação ao tema estudado (LAKATOS; MARCONI, 2003). Logo, a fim de contemplar os objetivos propostos nesse Trabalho de Conclusão de Curso e abarcar a pergunta que norteia este estudo, a metodologia utilizada para o embasamento teórico é concernente à pesquisa bibliográfica.
Toda pesquisa de caráter científico tem por finalidade o desenvolvimento de um caráter interpretativo no que se refere aos dados obtidos, desse modo, torna-se imprescindível correlacionar a pesquisa com o universo teórico (PRODANOV; FREITAS, 2013). Por esta razão, o material teórico utilizado nesse estudo com intuito de fundamentar a pesquisa, foram selecionados a partir de artigos acadêmicos, revistas científicas, obras literárias, dissertações e trabalhos de conclusão de curso, utilizando a pesquisa eletrônica em bancos de dados como BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), Google Acadêmico, Revista IGT na Rede, PePSIC, SciELO e Teses USP, entre os meses de Julho à Novembro de 2016.
Com o objetivo de contribuir com a produção científica brasileira, a língua portuguesa foi priorizada nesta pesquisa, no entanto, devido à carência de material produzido referente à temática, produções da língua inglesa foram utilizadas para corroborar com o universo teórico e fornecer subsídios nesta pesquisa. Do mesmo modo, produções mais recentes, foram primordialmente utilizadas. A pesquisa foi delimitada através do uso dos descritores: "autolesão", "automutilação", "autoagressão", "condutas autolesivas", "Gestalt-terapia", "ajustamento criativo", "ética na abordagem gestáltica", "sintoma em Gestalt-terapia", "Intervenção na abordagem gestáltica".
Para melhor compreensão do desenvolvimento desta pesquisa bibliográfica foram feitos 2 gráficos que especificam o delineamento do estudo, bem como, os fatores que influenciaram a inclusão/exclusão do uso de artigos. Os gráficos relacionam-se com: 1.quantidade de artigos encontrados nos bancos de dados já mencionado e 2.os artigos utilizados após os critérios e fatores de inclusão/exclusão.
O total de artigos inicialmente encontrados nas bases de dados foram de 121, no entanto, a partir da pergunta norteadora "De que modo a abordagem gestáltica compreende o comportamento de autolesão e qual postura do Gestalt-terapeuta frente à essa demanda?" alguns critérios foram utilizados para a exclusão de artigos que se referiam a: autolesão como sintoma da esquizofrenia; automutilação como comportamento de desfigurar partes do corpo; pesquisa de amostras populacionais em outros países que não o Brasil, totalizando por fim o uso de 32 artigos.
É válido ressaltar que a pesquisa bibliográfica não é uma repetição do que já foi dito ou escrito acerca de determinado assunto mas, fornece a compreensão de um tema a partir de um novo enfoque ou abordagem, propiciando dessa forma, novos olhares e reflexões sobre um mesmo assunto (LAKATOS e MARCONI, 2003). Portanto, é seguindo tal prerrogativa que esta pesquisa bibliográfica se direciona, a fim de influenciar novas reflexões e servir de base para a construção de novas pesquisas.
No que se refere à abordagem este Trabalho de Conclusão de Curso se relaciona com o método qualitativo onde, segundo Minayo (2001) a pesquisa se refere ao universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, atitudes e valores, correspondendo, assim, a um espaço mais profundo das relações, dos processos e do fenômeno. O objetivo desse estudo é de caráter exploratório, partindo da perspectiva que este tipo de pesquisa tem o intuito de proporcionar maior familiaridade com o problema, objetivando torná-lo mais explícito (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).
Grafico 1. Total de artigos encontrados em cada banco de dados com base nos descritores.
Total de artigos: 121.
Gráfico 2. Total de artigos utilizados com base nos critérios de exclusão.
Total de artigos: 32.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 - A Autolesão nos Caminhos da Abordagem Gestáltica
Considerando o que fora elucidado no decorrer desse estudo, torna-se possível especular o modo como a abordagem gestáltica percebe a conduta autolesiva. Ginger e Ginger (1995) afirmam que a concepção de comportamento em Gestalt-terapia emerge de uma percepção ampla e de um contexto global. Ao passo que, Arcoverde e Soares (2012) salientam que para compreender o comportamento de autolesão faz-se necessário identificá-lo em um conjunto global, que envolve fatores e motivações diversas, de caráter biológico, psicológico e/ou social.
Dessa forma, através das concepções acima citadas, supõe-se que há uma relação entre a concepção de comportamento em GT e o modo como a conduta autolesiva deve ser percebida. A Gestalt-terapia considera o comportamento em seus aspectos e contextos globais (GINGER; GINGER, 1995; PERLS, 1997; RIBEIRO, 2007) e é por essa via que a conduta de autolesão deve ser compreendida de acordo com estudos (ARCOVERDE; SOARES, 2012; BORGES, 2012).
Borges (2012) em seu estudo explicita hipóteses de funções que o comportamento de autolesão poderá assumir, como de aprendizagem social; autopunição; anti-dissociativa; anti-suicídio; identificação; sinalização social; analgésico à dor e a função pragmática, estando relacionada ao fácil acesso. Nessa perspectiva, a concepção de que o comportamento de autolesão assume diferentes funções no organismo dos sujeitos que a pratica pode ser percebida através da premissa gestáltica de que "uma parte num todo é algo bem diferente desta mesma parte isolada ou incluída num outro todo"4 (GINGER; GINGER, p. 14, 1995). Nesse sentido, uma mesma ação em contextos diferentes e feitos por pessoas distintas pode repercutir sentidos diversos.
As diferentes funções que o comportamento de autolesão possui influenciará na função que o "self" irá assumir na personalidade do sujeito que a executa. Ribeiro (2007) sustenta que o "self" é um sistema da personalidade, e sua função é colocar-se como figura/fundo nas relações com o mundo exterior, sendo a expressão da existência estrutural e estruturante em um processo evolutivo na formação do corpo-pessoa-mundo. Através dessa percepção a conduta autolesiva é uma expressão do "self", é a forma do indivíduo se relacionar com o mundo, um modo de ser-no-mundo que, segundo Angerami-Calmon (2007, p. 26), "implica uma luta constante do homem consigo próprio para não perder sua dignidade existencial e suas características individuais".
A relação estabelecida entre o homem e o seu meio ambiente denomina-se fronteira de contato. Esta fronteira é mais ou menos experienciada pelos sujeitos como aquilo que está por dentro da pele e aquilo que está por fora dela (PERLS, 1997). Aguiar (2014) afirma que é na fronteira de contato que ocorre a seleção do que é nocivo e do que é saudável para o indivíduo, regulando as trocas entre organismo e meio e as chances de crescimento e satisfação de necessidade do indivíduo.
Desse modo, é na fronteira de contato que os eventos psicológicos têm lugar, os pensamentos, ações, comportamentos e emoções são o modo de experiência e encontro com esses eventos de fronteira (GINGER; GINGER, 1995). Aguiar (2014) ressalta que o organismo tende à autorregular-se tendo por objetivo alcançar o melhor acordo possível na busca da satisfação plena de suas necessidades experienciadas, especialmente na fronteira, sendo este acordo denominado ajustamento criativo. Assim, a conduta autolesiva pode ser compreendida, a partir dessa perspectiva, como a reação experienciada na fronteira de contato em busca do equilíbrio entre o organismo e ambiente.
Otto e Santos (2012) postulam que a autolesão relaciona-se à uma maneira particular de reagir à uma emoção dolorosa. Logo, é através desse comportamento que o indivíduo se ajusta aos eventos e emoções que lhe proporcionam dor que ocorrem no mundo externo e são sentidas internamente, é por meio da autolesão que ele busca a homeostase, a autolesão configura-se portanto, como uma forma de ajustamento do organismo ao meio ambiente.
Aguiar (2014) salienta que os ajustamentos criativos podem ser saudáveis e não-saudáveis e o que os diferencia relaciona-se à forma como a interação entre sujeito/mundo acontece, essa interação é sempre regida pelo processo de autorregulação. Assim, o que configura o ajustamento como não saudável é o uso que o sujeito faz dele, a frequência com que ocorre e, principalmente, a impossibilidade do sujeito ajustar-se de outro modo às diversas situações, tornando-se inadequado e disfuncional ainda que satisfaça alguma necessidade específica (AGUIAR, 2014).
Otto e Santos (2012, p. 31) afirmam que "enquanto alguns sintomas são próprios de um determinado sofrimento, a autolesão se configura como um sintoma que se adapta a diferentes demandas". Desse modo, os sujeitos que praticam a autolesão adaptam esse comportamento à situações que experienciam, é pela autolesão, portanto, que o organismo busca autorregulação quando em contato à demandas que proporcionem desequilíbrio emocional. Através da prática deliberada e repetida do comportamento de autolesão o sujeito alcança o objetivo de regulação esperada quando depara-se com emoções que lhe causam dor (CUMMINGS, 2015). Por essa razão a conduta autolesiva pode ser compreendida através da ótica gestáltica como um ajustamento criativo disfuncional.
No entanto, ainda que o ajustamento criativo seja considerado disfuncional, por dar mais ênfase ao criativo do que o adaptativo, o que deve ser lembrado é o caráter de autorregulação do organismo e que cada indivíduo é único e singular, portanto, faz-se necessário considerar que cada indivíduo vai construir o seu "ser-no-mundo" da melhor forma possível de acordo com as condições do momento (NUNES; HOLANDA, 2008). Dessa perspectiva gestáltica e através dos estudos sobre a autolesão é possível considerar tal conduta, independente da função que assuma no organismo, como um modo particular de estar e ser-no-mundo, configurando-se como a melhor maneira que o indivíduo encontrou de aliviar tensões que experiencia no mundo externo.
Essa reflexão pode auxiliar na compreensão do caráter não-suicida da autolesão, ainda que, como sugere Otto e Santos (2012) a repetição do ato possa levar a danos graves ao corpo e ocasionar a morte, a questão está na não existência de intencionalidade de suicídio. Como salienta Kaplan et al. (1997) na conduta autolesiva não há intenção manifesta de suicídio.
Perls "et al". (1998) postulam que todo comportamento, escolha, atitude e construção do indivíduo configura-se como uma tentativa de equilibrar-se diante de algo que o desequilibra, tendo assim uma função na relação que ele estabelece com o meio. Portanto, a autolesão destoa de uma "tentativa de suicídio" estando, pois, baseada na intencionalidade do indivíduo tirar a própria vida (KELLER; WERLANG, 2005), e vincula-se à "tentativa de autorregulação" do seu mundo interno (organismo) com o mundo externo (meio ambiente). Essa concepção fundamenta o que Borges (2012, p. 21) afirma em sua pesquisa que "a autolesão possibilita a regulação emocional".
3.2 - Autolesão, Ajustamento Criativo e o Sintoma na Gestalt-terapia
Sendo na fronteira de contato que ocorre o encontro das diferenças – organismo e mundo externo – é nesse local que a experiência acontece. Através da pele e outros órgãos sensoriais que a experiência é percebida, a pele pode ser tanto a fronteira do indivíduo quanto um órgão de contato (GINGER; GINGER, 1995; PERLS et al., 1997). Em sua pesquisa sobre autolesão, Borges (2012) salienta que é através da pele que se responde ao meio envolvente, possibilitando o equilíbrio entre o interno e o externo, e iniciando o delineamento das fronteiras dos indivíduos.
Na contemporaneidade uma das formas de garantir a individualidade e, simultaneamente, demarcar um lugar na sociedade poderá ser através de marcas na pele (BORGES, 2012). Autores como Arcoverde e Soares (2012) salientam que o uso de tatuagens, brincos e "piercings" são atos de ferir-se socialmente aceitos, essa ideia também é concebida nos estudos de Borges (2012, p. 13) onde afirma que "as tatuagens e os ‘piercings' são considerados, por alguns teóricos, consequências da globalização em que, pela modificação do corpo, se obtém prazer, para além do esperado".
Nunes e Holanda (2008, p. 177) em seu estudo sobre transtorno de alimentação, afirmam que tais comportamentos exercem a função de um "muro protetor entre pessoa e o mundo", semelhantemente, é possível considerar que aqueles que praticam a autolesão utilizam o corpo como forma de defesa do indivíduo, resultante da interação com o campo externo.
Sobre o corpo e campo Ribeiro (2007, p. 12-13) salienta que,
"O campo primeiro e mais importante é o nosso corpo, físico e psíquico, que constitui nosso espaço vital, síntese e reflexo de nossa totalidade. Podemos, dizer, portanto, que todo contato se dá no espaço vital da pessoa e que seu corpo reflete as energias que emanam desse mesmo campo, é portanto, sujeito e objeto do contato, tudo começando e terminando nele, no corpo".
É através do corpo que se inicia o processo de construção da subjetividade do indivíduo, o corpo é o primeiro espaço a ser reconhecido pela criança como sendo ela. Todos os sentimentos e pensamentos passam pelo corpo (ANTONY, 2010). Antony e Ribeiro (2005) ainda salientam que é a partir do corpo que se descobre e interage com o mundo, sendo o corpo, portanto, local de expressão e experimentação. A concepção do homem vinculada à relação corpo-mundo emerge da compreensão Fenomenológico-existencial, filosofias de base da GT.
Como afirma Forghieri (2011, p. 29)
"O corpo tem um poder de síntese; ele unifica as sensações e percepções de si, bem como as que se referem ao mundo; o corpo é simultaneamente unificado e unificador na sua constante e simultânea relação com o mundo".
Seguindo a linha de raciocínio até aqui discutida, é possível conceber que o corpo do indivíduo se materializa no mundo representando o próprio indivíduo, constituindo, desse modo, suas características corporais, como se o corpo fosse a representação fiel de sua existência interna (BROOCKE; MACEDO, 2006). Sendo assim, refletindo através da compreensão fenomenológica de homem, a autolesão pode ser uma metáfora onde as marcas corporais concretas feitas intencionalmente se transmutam em marcas sentidas internamente, de modo abstrato através de sentimentos e emoções.
Silva e Alencar (2011) afirmam que o corpo é representado como a parte orgânica do indivíduo e, por ser organismo o corpo está em interrelação com o mundo externo buscando sempre sua melhor expressão, logo, o comportamento patológico, a doença/sintoma corporal configura-se como sendo a melhor maneira de satisfazer às demandas do ambiente.
Os autores supracitados salientam que o conceito de ajustamento criativo é "...o que melhor acolhe a questão da doença e assim permite se trabalhar a questão da doença/sintoma" (SILVA; ALENCAR, 2011, p. 357). Nesse sentido Nunes e Holanda (2008) reiteram que o adoecer é visto como uma etapa de um ajustamento criativo disfuncional que possui, muitas vezes, a funcionalidade de proteger o sujeito de determinadas experiências insuportáveis. Portanto, a prática da autolesão pode ser percebida como o sintoma, sendo o modo que o organismo ajustou-se para relacionar-se com os outros e com o mundo externo.
Conforme D'acri (2007) o sintoma é a busca constante por uma forma de diminuir a angústia e sofrimento, ainda que esta forma seja uma deformação do que entende-se por original e saudável. O sintoma corporal é, portanto, uma espécie de porta de entrada escolhida pelo cliente para se mostrar, é o que ele consegue fazer para pedir ajuda no momento, ainda que o faça de modo involuntário (GINGER; GINGER, 1995), a autolesão, contudo, é feita de modo intencional.
Diversos autores (ARCOVERDE; SOARES, 2012; BORGES, 2012; GARRETO, 2015) atribuem ao ato de se lesionar propositadamente a função de busca de equilíbrio psicológico frente à sentimentos diversos, desse modo, é através da autolesão que o indivíduo reage às demandas internas e, especialmente, sociais. Cremer (2011) salienta que o sintoma dá a notícia de que algo não vai muito bem com o sujeito, mas que faz sentido para aquele dado momento da vida. É possível, então, considerar a prática de autolesão como um indicativo de que alguma necessidade não foi suprida de modo saudável, mas que para determinando momento tal conduta possibilitou o equilíbrio do sujeito consigo mesmo, com o outro e/ou com o meio.
Ainda concebendo a ideia do sintoma na abordagem gestáltica Nunes e Holanda (2008) afirmam que sintoma é a expressão fenomenal do sujeito que aparece enquanto tal, sendo também um modo de ajustamento que não está de acordo com as necessidades reais e atuais do indivíduo. Contudo, tais autores comentam que o sintoma simboliza algo a respeito da vida da pessoa, como uma espécie de mensagem, logo, não se pode simplesmente extingui-lo, uma vez que é algo desenvolvido pelo organismo.
A partir das explanações feitas, a correlação entre a autolesão e a concepção de sintoma em Gestalt-terapia fornece subsídios para o desenvolvimento de uma postura terapêutica que considere o indivíduo como um todo e não apenas como sintoma (NUNES e HOLANDA, 2008). Sendo assim, é possível refletir que tal qual o sintoma a conduta autolesiva possui uma função específica no organismo do indivíduo que a pratica. Através de uma visão gestáltica o movimento do terapeuta deve se relacionar à compreender o que a autolesão significa na vida da pessoa, qual posição ocupa e qual relação possui com a história de vida.
3.3 - O Gestalt-terapeuta e Práticas Autolesivas: O Respeito à Autonomia do Cliente
Na medida em que este estudo possibilita a discussão da autolesão, como uma doença/sintoma sob a ótica da abordagem gestáltica, faz-se necessário discorrer acerca das possibilidades terapêuticas interventivas. Inicialmente é preciso salientar que a concepção de saúde em Gestalt-terapia refere-se a comportamento fluido, criativo, livre e espontâneo, desse modo, considera-se além do sintoma, o todo que está em terapia – o psiquismo, o meio social, o corpo – para assim chegar o que mantêm o sintoma (NUNES; HOLANDA, 2008; SILVA; ALENCAR, 2011).
Nessa perspectiva, Martín (2008, apud SILVA; ALENCAR, 2011) postula que uma personalidade sadia é alcançada quando os campos psicológico, social e corporal funcionam de forma harmoniosa e, se possível, paralelamente. Ao desenvolver uma perspectiva unificadora do ser humano que integra dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais, a Gestalt-terapia favorece, para o cliente, um contato autêntico com os outros e consigo mesmo e um ajustamento criativo do organismo ao meio (GINGER; GINGER, 1995).
Caldas "et al". (2009) comentam que o atendimento psicológico para indivíduos que praticam a autolesão funciona como espaço de acolhimento e expressão de subjetividades. Logo, o trabalho do psicoterapeuta deve estar pautado em estabelecer um vínculo com o cliente que forneça um espaço de experiência e expressão. A psicoterapia, desse modo, deve priorizar o contato e a relação dialógica, tendo em vista a compreensão do sintoma e o que ele está encobrindo, propiciando ao cliente a reflexão e, por consequência, a descoberta de novas formas de lidar com o meio externo (NUNES; HOLANDA, 2008). Arcoverde e Soares (2012) salientam que, de modo geral, quem pratica a autolesão não diz que o faz por vergonha ou medo de julgamentos, dessa forma, no processo terapêutico o vínculo estabelecido é fundamental para o desenvolvimento saudável da comunicação e da intervenção.
Sendo assim, é por meio do ajustamento criativo que a pessoa pode superar o que já não tem funcionalidade, mantendo um constante processo e ampliação de sua autonomia dentro das possibilidades que encontra no ambiente (PINTO, 2009). Por essa razão, o terapeuta propiciará um espaço para que essa autonomia seja alcançada e para que o cliente torne-se curioso por si mesmo, compreendendo o sentido do sintoma e refletindo novas formas de ser-no-mundo, se assim o quiser (NUNES; HOLANDA, 2008).
Cummings (2015) define a autolesão como um dano repetido e deliberado no tecido do corpo como modo de evitar dor emocional. A conduta autolesiva é entendida como uma lesão intencional, sobre esse ato Arcoverde e Soares (2012) afirmam que causa estranheza por contradizer o instinto de busca pela sobrevivência. Nesse sentido, é fundamental que o psicoterapeuta preze pela suspensão fenomenológica e pela inclusão, onde a primeira se refere ao terapeuta ouvir a demanda clínica sem emitir julgamentos pessoais, ao passo que a segunda diz respeito a atitudes permissiva do terapeuta, sem julgar o comportamento do cliente como positivo ou negativo (NASCIMENTO; VALE, 2013). As duas premissas citadas favorecem que o contato ocorra e, por consequência, possibilita condição para "awareness" por parte do cliente, isso é experienciar-se corporalmente com sensações distintas que reverberam fluidez (BROOCKE; MACEDO, 2006).
Sendo assim, o fazer ético da clínica é pautado na possibilidade de o terapeuta ser capaz de ouvir as demandas do cliente sem emitir julgamentos pessoais e/ou socialmente construídos, tais atitudes permitirão uma comunicação fluida na terapia e um contato autêntico na relação terapeuta-cliente (NASCIMENTO; VALE, 2013). Nessa perspectiva, o cliente que tem o comportamento de autolesão deve ser visto em um contexto, a compreensão de sua demanda deve ser ampla, envolvendo as diversas dimensões que o constitui, sem tomar sua conduta como certa ou errada mas, como a expressão de quem ele é e por tanto aceitá-lo de forma empática e acolhedora.
A compreensão do comportamento de autolesão como um ato de motivações biopsicossociais e de funções diversas, favorece o entendimento de como essa conduta se relaciona com outros fatos ou acontecimentos que marcaram de algum modo a vida da pessoa. Os aspectos biológicos, psicológicos e sociais que estão, possivelmente, envolvidos na autolesão indicam a necessidade do Gestalt-terapeuta se atentar para o indivíduo como um ser global, e por tanto, entendendo a possibilidade de um atendimento multiprofissional.
Broocke e Macedo (2006) ressaltam que é necessário, para o Gestalt-terapeuta prestar atenção ao corpo, pois é através do corpo que o indivíduo estabelece o relacionamento com o mundo e com seus determinantes, e é ele que se revela para a investigação através da perspectiva fenomenológica. As autoras citadas ainda afirmam que abordar o corpo gestalticamente implica reconhecer o funcionamento integrado corpo/mente, sendo fundamental a atenção por parte de toda ação psicoterapêutica à vivência corporal concreta, individual e original experimentada pelo cliente em suas relações, que abarcam a si, ao outro e ao ambiente.
As marcas sentidas de modo abstrato e emocional são transferidas pelo sujeito, de forma concreta, para sua própria pele. É, portanto, através da pele que o contato é experienciado, ela protege e delimita ao mesmo tempo em que possibilita trocas com o meio, ela é, sendo assim, metáfora e ilustração concreta (GINGER; GINGER, 1995). Diante disso, é fundamental perceber de que modo é a relação corpo-pessoa-mundo desse sujeito.
Finalmente, vale ressaltar que o terapeuta não se ocupa em analisar o sintoma mas, se interessa pela forma, pela relação atual, pela observação das circunstâncias e as distorções da relação presente e como estes aspectos influenciaram o surgimento do sintoma, sem justifica-lo ou sustenta-lo mas, explorá-lo junto com o cliente numa relação empática (GINGER; GINGER, 1995). Cremer (2011) considera que, ao focar no sintoma, perde-se a totalidade do sujeito e trabalhar para eliminá-lo seria perder a única pista que se tem daquela questão, podendo ainda ser uma forma de extinguir a maneira existencial que o sujeito possa ter conseguido para ajustar-se às demandas.
Refletindo gestalticamente acerca do processo psicoterapêutico de um sujeito que se autolesiona, o foco não estaria na retirada de tal comportamento, mas na compreensão de sua relação com a totalidade do cliente. Desse modo, considera-se que o Gestalt-terapeuta não se empenhará em negar as emoções, situações e sentimentos que influenciam a prática de autolesão, mas facilitará a reflexão do sujeito para que ele próprio descubra novos modos de ajustamentos criativos saudáveis e novas formas de ser-no-mundo. Devendo, pois, considerar primordialmente a autenticidade do cliente que procura a psicoterapia, relacionando-o com seu contexto e experiência atuais e com os contatos que estabelece com os outros no meio ambiente. Por fim é importante ressaltar que: "O gestaltista, assim como o encanador, vela para assegurar uma circulação fluida, para desobstruir os canais, para evitar tanto a seca quanto a inundação" (GINGER; GINGER, 1995, p. 164).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É através da pele que sensações concretas são experienciadas. A pele é a camada protetora do organismo e, simultaneamente, a possibilidade de perceber e estabelecer um Contato. O corpo, como um todo coberto de pele e terminações nervosas, é a expressão de existência do sujeito, e é por meio dele que há a interrelação entre o organismo, o outro e o meio ambiente, refletindo a totalidade de um Contato.
Perceber a autolesão à luz da Gestalt-terapia fomentou a reflexão das diversas formas de Ser-no-mundo que ao ser-humano é possível. Apesar da autolesão possuir uma definição complexa, por ser um comportamento de variáveis biopsicossociais e por sua conceituação sofrer divergência na literatura, sua característica principal são as marcas feitas na superfície do corpo. As marcas são feitas, sobretudo, nos braços e pernas, sendo estes membros de locomoção e contato.
Compreender gestalticamente a conduta autolesiva implica o reconhecimento de que é através do corpo que o indivíduo se relaciona com o mundo externo, e que seu corpo é a expressão própria de sua subjetividade e de seus sentimentos internos. Desse modo, as marcas concretas feitas sobre a pele refletem marcas sentidas de forma abstrata e internas, experienciadas na fronteira de Contato.
Quando o sujeito depara-se com demandas que ocasionam desequilíbrio no organismo, seja algum sentimento/emoção que naquele momento lhe cause dor, a autolesão é a "porta de saída" para que esse equilíbrio seja restaurado, ou ainda para que a sensação de homeostase seja experienciada. Naquele dado momento, ainda que de forma rápida e momentânea, a autolesão foi a melhor maneira de aliviar as tensões do meio, o que se configura um ajustamento criativo disfuncional ou um sintoma.
Pensar em sintoma na abordagem gestáltica é pensar no papel do Gestalt-terapeuta. As intervenções e o modo de trabalho psicoterapêutico com sujeitos que praticam a autolesão se assemelham com a forma de se trabalhar com outras demandas, visto que, o Gestalt-terapeuta tem por premissa cuidar da pessoa e não do sintoma/doença. Especialmente, quando se percebe que o sintoma sempre reflete e simboliza a existência e história de vida do sujeito, ao terapeuta cabe, pois, buscar compreender essa relação e facilitar o contato do cliente com suas experiências.
A autolesão é um tema que tem fomentado discussões no âmbito social por envolver valores morais, e por essa razão quem pratica pode sofrer preconceitos e julgamentos. Porém, o que não se discute é que a cultura atual pode ser um facilitador para que tal ato seja legitimado, contatos são estabelecidos de modo cada vez mais superficiais e o culto ao individualismo é pregado.
Desse modo, a autolesão sob a ótica da abordagem gestáltica pode favorecer uma visão revolucionária, que considera o indivíduo em sua totalidade, não o definindo através de um sintoma e/ou ação. O Gestalt-terapeuta busca compreender, junto com o cliente, o que determinado ajustamento criativo tem a dizer sobre a sua história de vida, como esse modo de Ser-no-mundo reflete suas experiências internas.
Ainda que o comportamento de autolesão seja amplamente difundindo nos ambientes sociais, especialmente entre adolescentes por meio de conteúdo "online", no âmbito acadêmico há uma escassez de produções à esse respeito o que, de certo modo, impulsionou para que esse trabalho fosse desenvolvido. O intuito desta pesquisa é, essencialmente, explanar reflexões sociais e científicas acerca da autolesão, favorecendo que o tema possa ser discutido sem sofrer discriminações, influenciando desse modo o surgimento de novas pesquisas que possam dar a voz àqueles que, por algum motivo, praticam a autolesão.
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NOTAS
* Damiriane Lino Couto: Psicóloga formada pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Jequié, Bahia no ano de 2017. Psicóloga clínica da cidade de Jaguaquara, Bahia e Psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) de Itaquara, Bahia.
** Luane Seixas Pereira Cunha:
1 Aspas dos próprios autores Serge e Anne Ginger.
2 Grifo dos autores.
3 Conceito religioso e filosófico que admite a coexistência de dois princípios básicos, como corpo e mente, estando um e outro sempre em conflito (BARTOSZECK, 2007).
4 Grifo dos autores
Endereço para correspondência
Damiriane Lino Couto
Endereço eletrônico:damiriane.coutopsi@gmail.com
Luane Seixas Pereira Cunha:
Endereço eletrônico:luseixaspsi@hotmail.com
Recebido em: 13/12/2017
Aprovado em: 26/04/2018