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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.6 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Desafios e possibilidades ao trabalho docente e à sua relação com a saúde

 

Challenges and possibilities to docent work and the relation with health

 

 

Luciana Gomes*; Jussara Brito**

Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo, visamos desenvolver uma análise da dinâmica da relação trabalho/saúde dos docentes, revelando aspectos dessa relação e as formas de combate tecidas nos conflitos e tensões do cotidiano, afirmando a vida nas suas diferentes dimensões. Focamos nossa atenção na análise de fatores que contribuem para a “sobrecarga de trabalho” (termo utilizados pelos/as trabalhadores/as), buscando revelar também que tipos de movimentos são feitos pelos professores e professoras para instaurar novas normas de saúde diante de condições tão adversas. Teve como universo as/os professoras/es do ensino médio de uma escola estadual da cidade do Rio de Janeiro.Operamos com algumas das perspectivas da Psicologia do Trabalho, da Saúde do Trabalhador e da Ergonomia da Atividade Situada.

Palavras-chave: Trabalho docente, Saúde, Sobrecarga de trabalho


ABSTRACT

In this article study we sought to develop an analysis that took to the understanding of the dynamics of the relationship work / health of the educational ones, revealing aspects of that relationship and the combat forms woven in the conflicts and tensions of the daily, affirming the life in its different dimensions and incorporating the gender perspective.We fastened our attention in the analysis of factors that you/they contribute to the " work overload" (term used by the workers), seeking to also reveal that types of movements are made by the teachers and teachers to establish new norms of health due to such adverse conditions. Had as universe the teachers of the medium teaching of a state school of the city of Rio de Janeiro. We worked inside of the perspective of the Work`s Psicology, Worker's Health also incorporating the Ergonomic`s Ativity Situated.

Keywords: Docent work, Health, Work overload.


 

 

Neste artigo, desenvolvemos uma análise do trabalho visando à compreensão da dinâmica das relações entre saúde e trabalho dos docentes do ensino médio de uma escola da rede pública estadual do Rio de Janeiro, revelando aspectos dessas relações e as formas de combate tecidas nos conflitos, bem como as tensões do cotidiano, afirmando a vida nas suas diferentes dimensões e incorporando a perspectiva de gênero. Focamos nossa atenção na análise de fatores que contribuem para a “sobrecarga de trabalho” (termo utilizado pelos/as trabalhadores/as), visando revelar também que tipos de movimentos são feitos pelos professores e professoras para instaurar novas normas de saúde, diante de condições tão adversas.

Desta forma, buscamos dar maior visibilidade a esta problemática através de um estudo de viés qualitativo, procurando estar à escuta da dinâmica que aí se estabelece, entendendo como o trabalho na escola contribui para a produção de sofrimento e adoecimento nos que lá trabalham e, ainda, identificando como se defendem da nocividade do ambiente de trabalho e produzem formas de prazer.

Operamos com algumas das perspectivas da Psicologia do Trabalho, da Saúde do Trabalhador e da Ergonomia da Atividade Situada (DANIELLOU, 1998), um conjunto de ferramentas – não só teóricas como metodológicas e técnicas – que possibilitou ampliar os instrumentos de análise para este estudo. Buscamos abordar o trabalho tanto na situação em sala de aula, quanto o trabalho que é realizado fora da escola.

Com a perspectiva de superar os atuais limites do conhecimento científico sobre saúde e trabalho, entendemos que é necessário confrontá-los com os desafios e as indagações advindos da experiência daqueles que vivem as relações a serem investigadas, incorporando-os na produção de conhecimento sobre esse campo.

Dentro desta perspectiva, para entender a saúde, é preciso considerar a vida, o ser vivo. Partimos do pressuposto do ser vivo – de acordo com a linhagem teórica que vem de Canguilhem (2000) –, que vive em seu meio em uma atividade de oposição à inércia e à indiferença, um ser mais que normal, ”normativo”, criativo, que é capaz de produzir novas normas. Um ser capaz de refletir sobre a sua atividade, sua vida, sua saúde que, com sua vitalidade, busca permanentemente a mobilização das forças ativas, que tira de dentro de si, das suas raízes, as energias necessárias para vida, para dar conta das exigências e variabilidades sempre presentes no trabalho.

A saúde, para Canguilhem (2000), é algo que se conquista, que se enfrenta e de que se depende, sendo fundamental o papel de cada um nesse combate. Nesse sentido, não se apresenta a idéia de que, no caso de um trabalho ideal, as condições de saúde estariam garantidas. Dentro da perspectiva de uma conquista permanente, saúde é movimento, na medida em que as situações vão mudando, os nossos desejos vão permanentemente se reconfigurando, demandando mobilização por novas melhorias.

Então, saúde é, antes de mais nada, uma sucessão de compromissos que as pessoas assumem com a realidade, e que se alteram, que se reconquista, se define e se redefine a cada momento, se defende a cada instante. Por fim,saúde é um campo de negociação cotidiana e permanente por tornar a vida viável (ATHAYDE; NEVES, 1998, p.32).

Portanto, para este artigo, interessou-nos conhecer como se dá esse processo de luta pela vida e sua relação com o trabalho dos/as professores/as.

Compreender melhor as diferenças entre as tarefas (as prescrições quanto ao que se deve fazer) a serem desenvolvidas pelas/os professoras/es e a atividade (o trabalho que efetivamente se faz), pareceu-nos ser um caminho para desvendar um pouco mais sobre o universo do trabalho docente, entendendo como lidam com as variabilidades (que corresponde ao caráter não previsível das situações de trabalho), estabelecem regulações e de que forma estas implicam em conseqüências para o desempenho das atividades e para a saúde.

 

TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E A REPERCUSSÃO NA ESCOLA

Novos cenários vêm se definindo, em um mundo globalizado, com o capitalismo mundial integrado, produção de novas tecnologias, aceleração de produção, trabalho e trabalhadores/as flexíveis e polivalentes, acompanhados de trabalhadores/as precarizados/as e excluídos das inovações. Estas mudanças se refletem na reestruturação e reforma dos sistemas educativos, afetando o quadro docente, o trabalho que desempenham e as relações profissionais e sociais.

É exigido que os profissionais de educação ofereçam qualidade de ensino, dentro de um sistema de massa, ainda baseado na competitividade, entretanto, os recursos materiais e humanos são cada vez mais precarizados, têm baixos salários, há um aumento das funções das/os professoras/es, contribuindo para um esgotamento e uma contradição quanto à formação que é oferecida.

O estado atual em que se encontra o trabalho na escola, e em particular o trabalho das/os professoras/es, tem chamado a atenção devido ao aumento de adoecimento e afastamento desses profissionais.

Como mostram Martínez et al (1997), a busca de razões para o adoecimento do/a docente trouxe à tona um cenário de um/a trabalhador/a desconhecido/a, e um processo de trabalho que também o é, tanto para a sociedade como para seu próprio realizador e que apresenta diversas leituras.

 

CAMINHOS PERCORRIDOS

Compreender melhor as diferenças entre o trabalho prescrito, que corresponde aos objetivos fixados ao trabalhador por instâncias exteriores a ele, seja pela equipe técnica pedagógica, direção, Secretaria de Educação etc e o trabalho real, que corresponde àquela atividade sobre a qual o trabalhador se fixa para atender aos objetivos gerais definidos pelas tarefas prescritas, pareceu-nos ser um caminho para desvendar um pouco mais sobre o universo do trabalho docente, entendendo como os profissionais lidam com as variabilidades, estabelecem regulações e de que forma estas implicam em conseqüências para o desempenho e para a saúde.

Para este estudo, adotamos a noção de saúde dentro de um modelo dinâmico, que permitiu analisar os recursos, as formas utilizadas pelos docentes para preservar a sua saúde, tendo em vista a relação com o trabalho e as condições a que estão submetidos. Trata-se de uma análise situada e qualitativa, através de uma investigação focada na compreensão do trabalho e sua relação com a saúde.

A coleta de dados envolveu as seguintes etapas: o reconhecimento do problema e coleta de dados gerais; análise da demanda; levantamento de dados sobre o funcionamento geral da escola e do trabalho prescrito das/os professoras/es e a análise da atividade.

Os primeiros dados gerais sobre o trabalho das professoras e dos professores foram obtidos através da participação no projeto de pesquisa: "A Escola Pública: Dimensões de Gênero, Saúde e Trabalho", que possibilitou o contato com problemáticas subjacentes ao mundo do trabalho escolar e à relação com a saúde.

Fez parte desse projeto, como uma das estratégias de pesquisa, o Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas, que visou também intervir na problemática da precarização do trabalho nas escolas públicas de ensino fundamental, no que diz respeito aos seus efeitos sobre o quadro de saúde/doença das/os trabalhadoras/es de escola (professoras/es, merendeiras, serventes, outros), através da formação das/os trabalhadoras/es para sua autodefesa e do desenvolvimento de uma metodologia de monitoramento das situações de trabalho e saúde, incorporando uma ótica de gênero (BRITO et al, 2000).

Durante o primeiro curso (primeiro momento do Programa de Formação), os sindicalistas participantes expressaram, como nova demanda de estudo, a questão dos adoecimentos e afastamentos da categoria dos professores e o que denominaram de “sobrecarga de trabalho”.

O contato com esta temática levou à reflexão sobre o trabalho docente e os diversos fatores a ele associados, que contribuem para essa sobrecarga, visando compreender o significado deste termo para os trabalhadores e, diante disso, a luta das professoras e dos professores em prol da sua saúde. Contribuíram com essa reflexão as entrevistas iniciais feitas com dois professores, que estavam participando do projeto de pesquisa. Posteriormente, foram utilizados, também como fonte de dados, os relatórios produzidos, particularmente aqueles gerados a partir dos materiais das Alternâncias do Programa de Formação (segunda fase do Programa).

Além da utilização desse material, foi realizado um levantamento bibliográfico, visando obter um quadro de análises efetuadas (informações) sobre a relação entre trabalho docente e saúde, através de diferentes perspectivas. Foram encontradas algumas pesquisas de caráter quantitativo, estudos epidemiológicos, na sua maioria baseados no trabalho prescrito.

Definida a instituição de ensino, no primeiro contato, fizemos observações livres, caminhamos pela escola, observando de forma ainda despretensiosa o que acontecia naquele ambiente; em que tipo de espaço e região estava localizada; as condições materiais e a movimentação dos alunos e das funcionárias.

Através das falas das professoras e dos professores, percebemos questões relacionadas à sobrecarga, às várias jornadas de trabalho assumidas, ao desinteresse dos alunos e à desvalorização do papel do professor, tanto social como economicamente.

Na etapa que correspondeu à análise da atividade, buscou-se descrever e analisar as exigências reais das tarefas, as condições de sua realização e a realização em si pelas/os trabalhadoras/es. Para isso, foram realizadas observações livres na escola, além de diálogos com as professoras e professores que concordaram em participar da pesquisa, nos quais a questão da relação saúde/trabalho e a sobrecarga foram mais exploradas.

Os dados coletados nas etapas anteriores contribuíram para a elaboração do pré-diagnóstico.O estudo das atividades desenvolvidas pelo/a docente se deu a partir de um planejamento previamente estabelecido.

Com o intuito de melhor avaliar essas constatações sobre a sobrecarga, baseadas nos dados que haviam sido coletados até então, elaboramos um instrumento que chamamos "Diário de Bordo". A sua função era servir como um dispositivo de auto-observação sistemática, que as professoras e os professores deveriam preencher dia-a-dia, durante duas semanas.

 

RESULTADOS

A escola estudada é uma escola estadual da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Está localizada numa área residencial, afastada do centro do bairro e com pouco comércio. Funciona em dois turnos, tem 283 professores e professoras e cerca de 5000 alunos.

O número do pessoal de apoio é insuficiente para um bom atendimento da escola, mesmo contando com os contratados pelas firmas de prestação de serviços.

Do universo pesquisado – demarcado pelas entrevistas iniciais feitas com os dois professores que participaram do Projeto de Pesquisa e um professor da escola escolhida, pelos Diários de Bordo que foram devolvidos e pelas demais entrevistas – participaram 11 pessoas, sendo que 7 eram mulheres e 4 homens.

As idades das/os professores/as variaram de 26 a 60 anos.Tendo um maior número concentrado na faixa etária entre 51 e 60 anos (4). A distribuição das/os professoras/es segundo o seu tempo de serviço revela concentrações (4) num intervalo de até 10 anos e igual número no intervalo de 31 a 40 anos de trabalho docente.

Alguns docentes já poderiam estar gozando da sua aposentadoria, no entanto, preferem manter-se trabalhando. A centralidade do trabalho na vida das pessoas neste momento fica muito evidente. Apesar de todas as adversidades e os comprometimentos relacionados à prática do trabalho docente, este ainda representaria uma forma de manter-se ativo e participativo na sociedade.

Em relação ao número de escolas em que lecionam, tivemos uma distribuição homogênea entre 1 a 3 escolas, para 9 professoras e professores, observando-se apenas um que extrapola essas faixas, pois exerce o magistério em 7 escolas.

As professoras e os professores mostraram-se descontentes com essa situação de estar trabalhando em mais de uma escola. Consideram como ideal que o/a professor/a fique direto numa única escola. Segundo eles, isso seria bom para os/as docentes, pois assim estariam menos sujeitos a uma série de fatores adversos, que são obrigados a enfrentar devido ao número de escolas em que trabalham, podendo, dessa forma, dedicar-se mais à sua prática e, conseqüentemente, melhorar a qualidade das aulas. Além disso, os alunos teriam os professores e professoras por mais tempo dentro da escola.

Quanto ao número de horas em que as professoras e os professores passam em sala de aula com os alunos por semana, vimos que este oscila de no mínimo 24 a até 42 horas.

Entre os pesquisados, dois ainda desenvolvem outras atividades remuneradas além do magistério.

Conforme destacamos, “sobrecarga de trabalho” foi o termo utilizado pelos trabalhadores da educação que participaram do Programa de Formação. O que se constatou foi que a "sobrecarga" está relacionada a um conjunto de elementos de naturezas diferentes, a atividades realizadas em espaços diferentes (diversas escolas, dentro e fora de sala de aula, diferentes salas de aula, deslocamentos). Está associada à variabilidade do trabalho determinada pela gestão, pela política educacional, pela composição e tamanho das turmas, pela infra-estrutura material das escolas e pelo tempo.

Devido aos baixos salários pagos à categoria e visando uma vida mais digna, a maioria dos/as professores/as possui no mínimo duas matrículas e muitos/as ainda desenvolvem outra atividade para complementar a renda.

A/o professor/a pode assumir até dois vínculos (matrículas) de empregos públicos, sejam eles das redes estadual, municipal ou federal. Esses vínculos podem ser, por exemplo, de 16 horas/aulas por semana; neste caso 12 horas devem ser cumpridas em sala de aula e as outras 4 deveriam ser reservadas para elaboração de aulas e outras tarefas, como correção de provas e exercícios. No entanto, um quarto da jornada não parece ser um tempo suficiente para se dar conta do trabalho real associado a essas tarefas e muitas/os professoras/es, na prática, ainda utilizam essas horas fora da sala de aula para conciliar o tempo de trabalho referente à outra matrícula.

Isso implica a necessidade de uma compatibilização das prescrições de trabalho em cada escola, devido às diferenças entre as escolas que podem ser estaduais, municipais ou particulares, sendo assim submetidas a diferentes políticas educacionais, gestões e clientelas.

Entre os 11 professores pesquisados, 8 trabalhavam em mais de uma escola, o que significa dizer que têm no mínimo duas jornadas de trabalho nas escolas.

Todos prepararam as aulas, as provas e outras atividades fora da escola, normalmente em casa. Gastaram em média 6 horas com essas atividades durante a semana. O fato dos docentes estarem assumindo um número cada vez maior de matrículas e horas/aula está fazendo com que o número de horas que passam em sala de aula seja cada vez mais elevado. A essas, somam-se as outras, gastas com os deslocamentos entre a casa e as escolas. O que se percebe é que o tempo prescrito, destinado para essas atividades é insuficiente e, mesmo assim, acaba sendo utilizado para ajustar o tempo com outra matrícula.

A compatibilização das prescrições entre as diferentes direções das escolas representa um aspecto importante no estabelecimento da margem de manobra do/a professor/a. Em escolas cuja direção adotou uma postura autoritária e rígida, sentiram-se pressionados, todos reclamaram do clima pesado da instituição e alguns chegaram a se afastar, através de pedido de transferência ou licença, retornando após mudança da direção.

Quando a gestão é participativa ou simplesmente mais flexível, fica mais fácil para o/a professor/a se organizar através de acordos informais, resolver problemas de faltas, uma vez que os calendários escolares são diferentes, com dias diferentes para conselhos de classe, reuniões pedagógicas, entre outras atividades. Os acordos de horário são freqüentes e é o que possibilita, em alguns casos, que os/as profissionais assumam uma carga horária maior do que formalmente poderiam cumprir.

O fato de trabalharem em mais de uma escola implica diversos deslocamentos ao longo do dia, existindo uma série de variabilidades associadas a esses deslocamentos. Boa parte das/os professoras/es mora em bairros muito distantes das escolas, levando cerca de 1:30 minutos a 2 horas para chegar até esta, ou até mesmo em bairros vizinhos, mas devido às rotas adotadas pelos ônibus, gastam cerca de uma hora no trajeto.

Todos estes aspectos associados já contribuem para um comprometimento dos intervalos de tempo que deveriam ser utilizados para descanso ou para as refeições, mas sujeitos às variabilidades, revelam comprometimentos bem maiores: o docente fica sem tempo para realizar suas refeições ou as faz de forma acelerada, isto quando não as substitui por lanches rápidos.

O trabalho real do/a professor/a extrapola os limites do tempo e do espaço do trabalho na escola. De acordo com a prescrição do trabalho, esse profissional deveria cumprir por semana um determinado tempo em sala de aula e outro tempo seria reservado para elaboração de aulas e demais atividades. Entretanto, devido às variabilidades, como número elevado de alunos por turma, espaço inadequado para desenvolver as atividades fora da sala de aula (sala dos professores), más condições de trabalho (ruído, falta de recursos materiais, como computador, livros, folhas e revistas), tempo insuficiente, constantes interrupções por parte dos alunos etc, uma regulação feita pelas professoras e professores é ocupar o que seria o seu tempo livre com essas atividades, invadindo as suas vidas domésticas.

O/a professor/a precisa ainda organizar o seu tempo com o trabalho que leva para casa e o tempo destinado ao trabalho doméstico. Essa invasão dos espaços domésticos interfere na vida pessoal.

Alguns períodos ou meses do ano têm intensidades diferentes de trabalho de acordo com o ano letivo. Os momentos considerados de maior "sobrecarga" correspondem ao início e ao fim do ano letivo.

Vimos, segundo o relato dos/as professores/as, que os efeitos do trabalho são mais sentidos no fim do ano, na forma de um cansaço maior, insônia, ou sono que não é reparador, ansiedade, irritação e estresse.

O atual cenário brasileiro do sistema escolar público revela um quadro de condições precárias de trabalho. A escola estudada refletiu o processo de precarização da rede pública de ensino, apresentando quantidade insuficiente de trabalhadoras/es de educação; ausência de equipamentos coletivos essenciais ou falta de manutenção dos existentes; insuficiência de infra-estrutura e de recursos materiais.

Os/as professores/as têm de lidar com as variabilidades ligadas aos recursos materiais, que vão desde a falta de conservação das instalações do prédio da escola, à falta ou péssimas condições de materiais como: cadeiras, carteiras, livros, materiais didáticos; da falta de água até a falta de papel, giz e apagador.

A carência ou as más condições dos recursos materiais faz com que atividades aparentemente simples transformem-se em verdadeiros desafios, sobretudo se considerarmos as várias jornadas de trabalho assumidas.

Todos esses fatores acabam interferindo no desempenho em sala, as/os professoras/es sentem que a aula fica mais pobre, pois não podem contar com os recursos que gostariam de ter. Mas usam sua criatividade, mudando os planos, fabricando o próprio material, utilizando recursos práticos do dia-a-dia dos alunos, conversando com outros/as professores/as e trocando materiais. Em alguns casos, convidam até os próprios alunos para ajudar. Apesar disso, muitas coisas deixam de ser feitas, há uma quebra na programação e não se consegue cumprir o planejado.

Diante dessa situação, as/os professoras/es sentem-se impotentes e frustradas/os, o que revela o comprometimento com o seu trabalho e a responsabilidade pela formação dos alunos. Gostariam de acrescentar algo para os seus alunos, mas deixam de fazê-lo.

Por outro lado, os ajustes que são realizados imprimem uma intensa dinâmica cooperativa entre os/as professores/as, ou seja, para dar conta dos problemas gerados pela carência de recursos, o trabalho coletivo se faz fundamental, entretanto esta dimensão é melhor explorada por aqueles que têm mais tempo de profissão.

No estudo realizado, observamos que a elaboração dos modos operatórios para atingir os resultados exigidos, diante das limitações relacionadas a fatores institucionais, pedagógicos e burocráticos, ocorreu ao custo de conseqüências para a saúde e para o desempenho.

As várias matrículas assumidas cruzaram uma série de variabilidades e diversidades das atividades realizadas em espaços diferentes (várias escolas, dentro e fora da sala de aula, clientelas, etc.), implicando na necessidade de compatibilização entre as atividades.

Com base no esquema de Daniellou (1998), podemos dizer que a atual situação de trabalho dos docentes é limitante, pois a possibilidade de agir sobre os objetivos (ensinar/educar turmas de cerca de 40 alunos, muitas vezes com dificuldades de aprendizagem) ou sobre os meios (recursos materiais, infra-estrutura, etc) é muito pequena, implicando que os resultados exigidos sejam atingidos ao custo de modificações do estado interno, representando danos à saúde.

Apesar de todas as limitações a que o trabalho docente está sujeito atualmente, apresenta ainda uma certa flexibilidade: a possibilidade de poder "escolher" (dentro das suas limitações) quantas matrículas irá assumir, em quantas escolas trabalhar, os modos operatórios utilizados em sala de aula, o uso da criatividade na elaboração de novos meios (como as apostilas que elaboram), na realização de atividades, na utilização de materiais, etc. Como o trabalho é situado predominantemente em sala de aula, através da relação professor-aluno, isso representa uma certa autonomia para o/a professor/a, confere uma certa liberdade de decisão no trabalho intelectual, apesar das prescrições do trabalho.

A margem de manobra que o docente possui diante do quadro atual do sistema educacional está cada vez mais reduzida, em função do excesso de atividades, do tempo despendido com o trabalho que extrapola os limites da escola, do cansaço físico e mental acumulados e dos deslocamentos. Conseqüentemente, há um aumento da carga de trabalho.

A implicação desse aumento da carga de trabalho traduziu-se em custos à saúde, segundo o relato das professoras e professores, como: mal-estar geral, falta de ar, pressão baixa, tonturas, cansaço, labirintite, esgotamento físico e mental, problemas nas cordas vocais, problemas respiratórios, alergias, rinite, perturbações do sono (insônia e sono que não é reparador), perturbações de caráter digestivo, formas de alimentação inadequadas (podendo implicar a médio e a longo prazo em deficiências nutritivas), estresse, aumento nos níveis de ansiedade, frustração, angústia, depressão e irritabilidade. Tudo isso fica potencializado no fim do ano letivo.

Devido às transformações no mundo do trabalho e suas repercussões na escola, à desvalorização social e econômica da profissão, ao descaso com que têm sido tratados pelos governantes, sobretudo nos últimos anos, os profissionais expressam um sentimento de indignação muito grande. Não vêem o reconhecimento do seu trabalho e dos seus esforços, como a busca por aprimoramento (como cursos de especialização, mestrado e doutorado), sentem-se desrespeitados e, de certa forma, explorados, porque a intensificação do trabalho é cada vez maior e os salários estão cada vez mais defasados.

A avaliação das reações de cada professor/a às condições de trabalho e às pressões do meio de trabalho não pode reduzir-se a uma simples soma dos efeitos de cada fator que gera "sobrecarga"; é preciso considerar as variações individuais, motivadas pelas características e a história própria de cada um.

O limiar entre a saúde e a doença é singular, ainda que seja influenciado por planos que transcendem o estritamente individual, como o cultural e o socioeconômico. Porém, em última instância, a influência desses contextos dá-se no nível individual. Isso pode ser verificado na medida em que há diferentes respostas diante da mesma estimulação num mesmo grupo socioeconômico e cultural.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo procurou compreender a dinâmica da relação trabalho/saúde dos/as professores/as do ensino médio da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, especificamente a atividade situada, o que os trabalhadores definiram como "sobrecarga de trabalho".

Focamos nossa atenção na análise de fatores que contribuem para a sobrecarga, visando revelar também que tipos de movimentos são feitos pelos professores e professoras para instaurar novas normas de saúde diante de condições tão adversas.

O que constatamos foi que a "sobrecarga de trabalho" está relacionada às dificuldades enfrentadas diante das diversidades e variabilidades associadas ao trabalho, dentro e fora da escola, frente ao quadro atual da educação.

Os custos à saúde identificados, segundo o relato dos/as professores/as assemelham-se aos sinais de sofrimento encontrados na pesquisa realizada por Neves (1999), que foram referidos por essa autora como uma sensação genérica de intenso mal-estar, envolvendo problemas de saúde relativos à ansiedade, tensão, nervosismo, depressão, angústia, insegurança, esgotamento, estresse e irritabilidade. Somamos a esses, frustração, falta de ar, pressão baixa, tonturas, labirintite, perturbações do sono (insônia e sono que não é reparador), perturbações de caráter digestivo, problemas nas cordas vocais, problemas respiratórios, alergias, formas de alimentação inadequadas (podendo implicar a médio e a longo prazo em deficiências nutritivas). Por outro lado, parece que há uma potencialização desse conjunto de problemas em determinadas épocas do ano, como no fim do período letivo.

Isto nos leva a pensar que uma intervenção sobre o curso do ano letivo, especialmente no que se refere aos períodos e às formas de avaliação, poderia ser realizada, visando reduzir este acúmulo de problemas.

Podemos dizer que, diante das mesmas influências (infidelidades do meio, segundo CANGUILHEM, 2000), diferentes respostas se apresentam através de diversas formas de adoecer entre os/as professores/as, o que nos parece indicar que não há um padrão tão rígido, ou seja, não poderíamos falar de forma tão precisa em uma ”doença específica do professor".

Esse mesmo conjunto de problemas é citado na publicação da Federación de Enzeñanza de CC.OO. (2000), baseado em sete diferentes pesquisas, como freqüente entre profissionais que exercem assistência. O mesmo autor sugere que há relações entre esses distúrbios e a síndrome de burnout, sugerindo ainda que esta seria um risco para a saúde das/os professoras/es, o que para nós demonstra a imprecisão desse conceito. Entretanto, cabe registrar que, com esse estudo qualitativo, dirigido a compreender o trabalho docente, observamos que há uma grande variabilidade nessa situação (inclusive relacionada aos próprios trabalhadores: idade e tempo no magistério, implicando diferenças), além de diferentes possibilidades de regulação e movimentos em defesa da saúde. Por outro lado, as carências materiais encontradas na escola são de tal ordem, as dificuldades com os alunos tão intensas, a precarização do tempo (CATTANEO, 1997) e de condições de vida tão objetivas, que entendê-los como “sensações de inadequação ao posto de trabalho e de incapacidade para resolver problemas”, primeiros sintomas de burnout, segundo Delgado (1995), em citação da Federación de Enzeñanza de CC.OO. (2000), nos soa como um deslocamento de foco (dos meios de trabalho para o trabalhador), além de um enrijecimento na análise dessa situação complexa e multifacetada. Insistimos que as reações psíquicas compreendidas como burnout são resultantes de um processo/produção social e, portanto, não deveríamos nos ater às formas individualizantes de apreensão da problemática. Para nós, talvez fosse mais apropriado pensar em termos dos limites existentes para a produção da saúde nesse coletivo.

Na investigação, privilegiamos as falas, as auto-observações sistemáticas, tentamos entender como se dá a dinâmica da relação saúde/ trabalho, sobretudo do ponto vista dos/as professores/as. Estamos cientes da complexidade que envolve esta relação e das limitações dos instrumentos em abarcar esse conhecimento com a intensidade que desejávamos.

O trabalho docente na escola pública é complexo, abarcando inúmeras problemáticas que envolvem desde aspectos macros - como a globalização, as transformações no mundo do trabalho, entre outros - até questões do cotidiano em sala de aula, como, por exemplo, a falta de giz. Por mais que tenhamos caminhado, buscando desvendar o trabalho docente, o que descortinamos foi apenas um outro olhar, uma outra perspectiva de compreensão desse trabalho.

Vale a pena ressaltar a suspeita que sentimos a respeito das dificuldades dos/as trabalhadores/as em falar sobre sua saúde. Não era nosso interesse investigar o perfil de morbidade, até porque esse tipo de estudo já foi realizado com mais propriedade por outras pesquisas.

À medida que fomos avançando na investigação, fomos descobrindo vários outros sintomas (já relatados anteriormente). O que nos surpreendeu foi a forma como essa questão foi tratada num primeiro momento. Até mesmo o falecimento repentino, por problemas cardíacos, de um professor que estava participando da pesquisa, não foi comentado por nenhum colega nas visitas posteriores ao fato. Cabe ressaltar que a cardiologia é uma das principais clínicas procuradas pelos/as docentes. Pareceu-nos curioso, ainda mais por se tratar de um professor muito extrovertido e que aparentava ter boas relações com os colegas. Levou-nos a pensar sobre o que isso representa. Seria uma estratégia de defesa dos professores e professoras para não entrar em contato com o que poderia representar a nocividade das condições de trabalho?

Um padrão de normatividade é instituído, onde sintomas relatados pelos/as professores/as, como estresse, ansiedade, entre outros, são considerados "normais" da profissão, inclusive, sabendo-se previamente quando deverão surgir com mais intensidade, de acordo com o calendário do ano letivo.

Esse esforço em parecer normal, de certa forma estaria indicando uma resistência à situação, um movimento em prol da saúde.

Uma vez que percebemos que os sintomas de sofrimento estão relacionados ao trabalho como um todo, parece-nos que melhorias em suas condições produziriam uma redução da carga de trabalho, um aumento da margem de manobra do trabalhador, o que implicaria em menos custos à saúde, além do impacto benéfico na saúde mental e a repercussão disso na saúde de forma geral.

Vale a pena ressaltar a importância da dimensão do coletivo neste trabalho. Observamos alguns movimentos realizados, envolvendo o coletivo, que se apresentaram como saídas diante das infidelidades do meio. A configuração atual do trabalho, com toda a correria em que se transformou a vida dos/as professores/as, inibe a formação de espaços de troca, onde essa dimensão coletiva poderia ser melhor desenvolvida. Até mesmo a sala dos professores tem se revelado um espaço visitado ainda de forma tímida nesse sentido. Quem mais utiliza a dimensão coletiva são os/as professores/as com mais tempo de serviço na escola. Parece-nos que essa dimensão deveria ser mais explorada no trabalho docente, como uma forma de lidar com as adversidades, criando novas possibilidades de enfrentamento e ações coletivas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Luciana Gomes
E-mail: lugomes@fiocruz.br

Jussara Brito
Email: jussara@ensp.fiocruz.br

Recebido em: 05/07/2006
Aceito para publicação em: 11/08/2006

 

 

NOTAS

* Psicóloga, Mestre em Saúde Pública - Saúde, Trabalho e Ambiente pela Escola Nacional de Saúde Pública/ Fundação Oswaldo Cruz. Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ FIOCRUZ.
** Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, com pós-doutoramento em Ergologia - Análise Pluridisciplinar de Situações de Trabalho pela Universidade de Provence/França. Pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública/ FIOCRUZ.

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