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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.6 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006
COMUNICAÇÃO DE PESQUISA
As estratégias de fuga e enfrentamento frente às adversidades do trabalho docente
The facement and scape's strategies in face of teaching work advertsities
Gideon Borges dos Santos*
Universidade do Federal do Rio de Janeiro
CARACTERIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA DE ESTUDO: TRAJETÓRIAS
Essa pesquisa é resultado de um estudo em nível de Mestrado em Educação, realizado na Universidade Federal da Bahia 1, no período de junho de 2002 a julho de 2004. Na minha experiência como professor da Educação Básica, era comum observar, na maioria dos pares, um desgaste com relação ao exercício profissional. Frases do tipo “eu não agüento mais esses alunos”, “estou doido para que o ano acabe logo”, “esses alunos não querem nada”, poderiam ser evidências de um esgotamento profissional resultante da atividade docente.
Esse palco da vida cotidiana escolar me levou à problematização do tema: o que fazem esses professores para, mesmo estando num ambiente considerado tão adverso, permanecerem nele, de modo mais ou menos equilibrado?
A escola que se tornou cenário desta pesquisa faz parte do quadro de escolas municipais da cidade de Salvador, Bahia, e atende crianças ao nível de Ensino Fundamental de 1ª à 8ª série.
A maior parte do material da pesquisa foi construído a partir de três momentos. Primeiramente, observações feitas com os professores, coordenadores e diretores (40 no total) em três situações cotidianas: nos intervalos, nas reuniões pedagógicas e nos eventos comemorativos realizados pela escola. No segundo momento, analisei documentos que organizam o trabalho pedagógico, como por exemplo, regimentos escolares e decretos, plano de desenvolvimento escolar, plano de capacitação pedagógica, quadro de horário, quadro de distribuição de disciplinas, mapas de aprendizagem, atestados médicos, além de bilhetes escritos por professores e dirigidos à direção e aos colegas. No terceiro momento,realizei entrevistas semi-estruturadas.
DO CONCEITO DE SAÚDE NA PSICODINÂMICA DE TRABALHO
A saúde na Psicodinâmica do Trabalho busca compreender como os indivíduos mobilizam suas inteligências em busca de estratégias para lutar contra as adversidades do cotidiano, as doenças, a loucura e a morte. Para Canguilhem (2000), a saúde de um organismo está não apenas na sua capacidade de adaptação ao ambiente, mas também na capacidade que os indivíduos têm de instituir outras normas de vida e de interação com o ambiente; não é simplesmente ausência de doença, ou simplesmente alterações quantitativas e qualitativas dos organismos, bem como a inconsciência do corpo, mas a capacidade que o organismo tem de movimento, em estando doente, de criar condições em busca da cura; um luxo biológico de se poder adoecer e se restabelecer.
Em consonância com essa concepção de saúde, Dejours (1992) sinaliza que, pela organização do trabalho, os indivíduos podem criar, recriar, transformar, (re)significar constantemente a atividade que realizam no sentido de atender às suas necessidades, expectativas e anseios. Paradoxalmente, essa mesma organização, quando colocada de maneira rígida, é incapaz de satisfazer às necessidades dos indivíduos, gerando-lhes angústias, insatisfações, medos, descompensações psicossomáticas, incorrendo em prejuízos de natureza física e psicossocial. Assim, se for verdade que existem ambientes mais ou menos adoecedores, é tão verdade que existem sujeitos com maior ou menor propensão a determinadas formas de adoecimento e de cura.
Surgem, então, as estratégias defensivas e de enfrentamento às adversidades do contexto organizacional que emergem do confronto entre o modo como as subjetividades são tensionadas pelos indivíduos quando em atividade produtiva.
As estratégias de enfrentamento (sofrimento criativo) e as defensivas (sofrimento patogênico) podem se caracterizar como recursos para uma convivência saudável no espaço organizacional. No primeiro caso, para o sujeito enfrentar as adversidades encontrando satisfação na atividade realizada e, no segundo, para não se desgastar poupando energia e não se desestruturando física e psiquicamente. Porém, as estratégias defensivas só se configurarão como mecanismo de saúde quando parte da energia pulsional oriunda da tensão do sofrimento é canalizada para algo socialmente produtivo. A permanência do sujeito no uso de estratégias patogênicas pode levá-lo ao adoecimento psicossomático e esse campo de negociações é forjado nas malhas da organização do trabalho ou no campo da divisão das tarefas e do modo como as relações são produzidas (DEJOURS, 1996).
AS ADVERSIDADES DO TRABALHO DOCENTE
As adversidades encontradas por professores no cotidiano escolar, causadoras de sofrimento em relação à docência, são decorrentes de dois eixos na organização do trabalho, na maioria dos casos permeada por exigências de aumento de produtividade: 1) no modo como as relações socioafetivas são produzidas com os superiores, com os pares, com os alunos, com os pais e com a comunidade; 2) na relação estabelecida com o conteúdo da ação docente.
A primeira decorre, primeiramente, de pressões externas e internas que os docentes sofrem dos superiores – em particular da Secretaria Municipal de Educação (SMEC) – para se envolverem em suas propostas, quer seja na execução de projetos encaminhados à escola, quer seja na exigência em participar dos cursos de formação continuada, ou ainda, na determinação por aprovar um maior número de alunos.
Outra fonte de adversidade é o calendário escolar e, neste caso, a pressão advém também de alunos e pais pela imediata divulgação dos resultados das avaliações (falas que insinuam atrasos na divulgação, não cumprimento do dever, perda de notas, irresponsabilidade por parte do professores), desconsiderando que o professor tem várias turmas com exigências que se acumulam. Aos pais e alunos, soma-se a direção escolar e da Secretaria, que pressionam pelo registro das notas nas cadernetas e boletins escolares de modo que, ao final do ano, a tensão se agrava.
Conflitos e intrigas criados por colegas de trabalho também fazem parte do cenário nas organizações de ensino pesquisadas. Tais fatores configuram-se, por vezes, em adversidade entre os professores, gerando relações de “inimizades”, individualismo, desconfianças e desrespeito.
A não participação dos pais na escola, o baixo interesse dos alunos pelos conteúdos escolares e o “mau comportamento” destes também são fontes de adversidade. Para os professores, são poucos os pais que vão à escola, que procuram saber como está o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos, seu comportamento, e que contribuem com o processo de educação escolar. Quanto aos alunos, a adversidade está no fato do professor ter que lidar com o não interesse daqueles pelas atividades propostas nas disciplinas do currículo, e com seus comportamentos muitas vezes agressivos. Quando o docente propõe algo que não produz sentido para os alunos, então, o sofrimento se instala e o sentimento de impotência, de culpa e de inutilidade preenche o solitário e intimista vazio deixado pela percepção de não desempenhar bem a sua função.
A falta de material pedagógico e de funcionários que dão apoio à atividade docente também se configura como obstáculo, uma vez que vai exigir do professor um esforço maior no exercício do ensinar, acelerando o desgaste profissional.
Por fim, os baixos salários pagos são um grande obstáculo à produtividade e qualidade, uma vez que obriga o professor a um esforço maior na tentativa de ampliar carga horária para ter acesso a bens e serviços produzidos na sociedade. Por outro lado, esse mesmo fator o impede ter acesso a tais bens pela indisponibilidade de tempo.
ESTRATÉGIAS DE FUGA E ENFRENTAMENTO
A idéia de cumplicidade é bastante útil para expressar a forma como professores procuram se ajudar uns aos outros, buscando solucionar dificuldades encontradas em seu cotidiano. Como se dá, então, a dinâmica dessa cumplicidade? No apoio que recebe tanto da direção escolar, quanto dos colegas, para planejar e executar atividades alternativas que promovam aprendizagem dos alunos, ainda que não tenha condições adequadas para tal, pela falta de material e equipamento pedagógicos; nas barganhas feitas entre professores e direção; no apoio, nas confidências e nos aconselhamentos sobre problemas de ordem pessoal e profissional; e na criação de um clima que viabilize a convivência através da organização de eventos.
A realidade, pode-se detectar uma permanente invenção do cotidiano, uma capacidade que os professores têm de construir atividades alternativas de exercício da docência, com intuito de solucionar uma dificuldade ou se desgastar menos.
Tal aspecto é particularmente visível quando os professores, frente às dificuldades de aprendizagem dos alunos, recorrem a atividades que escapam (positiva ou negativamente) da rotina escolar. Frente ao suposto desinteresse do aluno pela escola, diante da não aprendizagem, os professores utilizam-se de estratégias como pressionar os alunos a se comportarem melhor e se interessarem mais pelos estudos; fazem uso de advertências orais; fazem de conta que não estão vendo qualquer atitude dos alunos, considerada inadequada, visando não se desgastar, despender menor esforço, evitar aborrecimentos ou mesmo evitar um clima afetivo desfavorável; redirecionam o problema para uma autoridade superior como direção escolar e pais (esse tipo de atitude é utilizado quando todas as outras já se esgotaram e sendo assim, o desfecho é, freqüentemente, a suspensão temporária dos alunos das atividades escolares).
O intervalo entre as aulas significa para muitos professores um recurso de “fuga” às adversidades cotidianas, quer seja prolongando o tempo de entrada na sala de aula e, conseqüentemente, reduzindo o tempo de exercício da docência; nos acordos, muitas vezes não cumpridos, de permutar o intervalo para antecipar o término da aula; ou no prolongamento do intervalo, para quanto tempo for possível, reduzindo cada vez mais o tempo de se defrontar com a sala de aula e com os problemas que dela advêm.
Afastar-se das atividades configura uma outra estratégia de defesa, construída por professores, frente às adversidades do cotidiano escolar. A forma mais comum é pelo uso de atestados médicos. Se somássemos o número de dias de liberação por motivo de doença que os professores da escola pesquisada tiveram, desde 1998 até julho de 2003, teríamos um total de 1212 dias. Se a proporção for correspondente, poderíamos dizer que, a cada grupo de 40 professores, pelo menos um poderia ser contratado por um ano letivo e pago com o que se gasta com liberação de professores, via atestado médico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os professores não ficam estáticos frente às adversidades do trabalho, como espectadores que assistem aos acontecimentos. Ao contrário, criam movimentos, visando enfrentar as dificuldades ou se defender delas. O curioso dessa relação está no fato desses movimentos buscarem o mínimo equilíbrio frente ao exercício da docência. É um atributo potencializador de saúde como capacidade normativa de mobilização afetiva, cognitiva e motora para dar conta das pressões do dia-a-dia.
Os professores constroem estratégias de enfrentamento e afastamento às adversidades. No primeiro caso, buscam encontrar sentido, satisfação e prazer na profissão. Já no segundo, trata-se de um recurso para tornar a profissão menos desgastante.
Ao se utilizar das estratégias defensivas, de afastamento das atividades, seja enganando o tempo, seja promovendo atividades sem propósitos educativos, ou ainda realizando um ensino irresponsável, aprovando alunos no conselho de classe por pressões da SMEC ou de quem quer que seja, o professor estará cristalizando na escola a banalização do processo educativo e cerceando sua própria possibilidade de encontrar prazer frente ao ato de ensinar.
Ao contrário, ao se utilizar de estratégias de enfrentamento às adversidades visando tornar viável o ambiente escolar na forma inventiva de atividades alternativas de aprendizagem, cultivando a cooperação entre os pares, alunos, comunidade escolar, fazendo dos momentos escolares momentos de satisfação e prazer, os professores demonstram um sinal de força, de responsabilidade, de coragem, de resistência e de virtude ao transformar a banalização do processo educativo em criatividade que promove aprendizagem.
Por fim, deve-se ressaltar que nos complexos movimentos de fuga e enfrentamento das adversidades do cotidiano escolar, muitas vezes, o que está em jogo é o que provoca maior ou menor desgaste, maior ou menor bem-estar ao professor, e esse critério, de ordem subjetiva, pode retirar de cena a idéia do próprio processo educativo. Há que se interrogar: diante de uma escola que não oferece as condições minimamente adequadas para o processo educativo, a luta pela melhor sobrevivência e bem-estar é o que restou ao educador?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. [ Links ]
DEJOURS, Cristophe. A loucura do trabalho: estudos de psicopatologia do trabalho. 5 ed. ampl. São Paulo: Cortez, 1992. [ Links ]
________ Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. In: TORRES, Ofélia de Lanna Sette (Org.) O indivíduo nas organizações: dimensões esquecidas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1996. p. 149-173. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: gidborges@yahoo.com
Recebido em: 24/08/2006
Aceito para publicação em: 01/09/2006
NOTAS
* Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorando do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
1 Dissertação de Mestrado apresentada no programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação do Professor Dr. Miguel Angel Garcia Bordas.