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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.19 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

As guerreiras do babaçu: Mulheres quebradeiras de coco em movimento

 

The babassu warriors: Female coconut breakers in motion

 

Las guerreras del babaçu: Mujeres quebradoras de coco en movimiento

 

Andressa Veras de Carvalho*, I; João Paulo Macedo**, II

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
II Universidade Federal do Piauí - UFPI, Parnaíba, Piauí, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo recuperar as trajetórias de mulheres quebradeiras de coco piauienses que integram o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), demarcando suas lutas cotidianas, formas de resistência e modos de organização e participação política, interseccionados com questões de gênero, raça, etnia, geração, território e demais marcadores que foram compondo seus modos de vida. As trajetórias dessas mulheres são atravessadas pelas situações de opressão, espoliação e violência às quais eram sujeitas, mas também apresentam marcantes histórias de luta e resistência que tecem seu cotidiano, em um contexto de efervescência política, favorecendo a emergência do MIQCB. A participação política das mulheres nesse movimento possibilitou o tensionamento das fronteiras entre público e privado, ao contestarem os lugares tradicionais que, historicamente, têm sido atribuídos às mulheres, como o espaço restrito da casa.

Palavras-chave: quebradeiras de coco, comunidade tradicional, gênero, interseccionalidades, participação política.


ABSTRACT

This study aims to recover the trajectories of Piaui female coconut breakers that integrate the Interstate Movement of Babaçu Coconut Breakers (IMBCB), demarcating their daily struggles, forms of resistance and ways of organization and political participation, intersected with gender, race, ethnicity, generation, territory and other issues that have been composing their way of life. These women's trajectories are marked by situations of oppression, spoliation and violence they were subjected to, but they also present remarkable stories of fight and resistance that they weave in everyday life, in a political effervescence context which favored the emergence of the MIQCB. The women's political participation in this movement made it possible to strain the boundaries between public and private, by challenging traditional places that have historically been attributed to women, such as there stricted space of their home.

Keywords: coconut breakers, traditional community, genre, intersectionalities, political participation.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo recuperar las trayectorias de mujeres quebradoras de coco piauienses que integran el Movimiento Interestatal de Quebradoras del Coco Babaçu (MIQCB), demarcando sus luchas cotidianas, formas de resistencia y modos de organización y participación política, interseccionados con cuestiones de género, raza, etnia, generación, territorio y demás los marcadores que fueron componiendo sus modos de vida. Las trayectorias de las mujeres están marcadas por las situaciones de opresión, expoliación y violencia, pero también presentan marcadas historias de lucha y resistencia que iban tejiendo en el cotidiano, en un contexto de efervescencia política, que favoreció la emergência del MIQCB. La participación política de las mujeres em esse movimiento posibilitó el tensado de las fronteras entre público y privado, al contestar los lugares tradicionales que, históricamente, se les há atribuido a las mujeres, el espacio restringido de la casa.

Palabras-clave: quebradoras de coco, comunidad tradicional, género, interseccionalidades, participación política.


 

 

Objetivamos com este artigo recuperar as trajetórias de mulheres quebradeiras de coco babaçu piauienses que integram o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), demarcando suas lutas cotidianas, formas de resistência e modos de organização e participação política, interseccionados com questões de gênero, raça, etnia, geração, território e demais marcadores que compõem seus modos de vida.

As mulheres quebradeiras de coco são reconhecidas entre os povos e comunidades tradicionais, categoria sociocultural e política que conquistou reconhecimento jurídico-legal após anos de luta e mobilização de suas organizações representativas, culminando na instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), em 2007 a1.

O MIQCB emergiu em um contexto de mobilização de inúmeros movimentos de mulheres no campo brasileiro, influenciados pelo contexto de lutas pela redemocratização do país. Tais movimentos se articularam a outros segmentos, como os sindicatos rurais e a Igreja Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a fim de reivindicar direitos sociais e maior expressão política (Aguiar, 2016). As raízes do MIQCB podem ser encontradas no Maranhão, mais precisamente na região conhecida como Médio Mearim, área de intensos conflitos agrários entre latifundiários e trabalhadores do campo. Em 1989 foi criada a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (ASSEMA), uma organização de apoio técnico aos trabalhadores rurais, que apoiou a criação de um grupo de estudos de mulheres camponesas (Barbosa, 2013). A partir de então, as quebradeiras teriam começado a se mobilizar em busca de maior representatividade política, realizando encontros com mulheres de outras localidades, o que acabou culminando na construção de uma organização própria com articulação interestadual, abrangendo também os estados do Piauí, Pará e Tocantins (Barbosa, 2013). Além de o movimento ter surgido em um contexto de campesinato, ele também foi atravessado por processos históricos relacionados à escravidão e migração forçada, e por situações de opressão e luta frente a políticas desenvolvimentistas pautadas pelo capitalismo monopolista (Veiga, Porro, & Mota, 2011).

No Piauí, a atividade extrativista do babaçu é uma das mais antigas e significativas no Estado, cuja exploração econômica é realizada com diversas finalidades, seja para alimentação, para medicina popular, produção de materiais de limpeza e de cosméticos ou artesanato, constituindo fonte de emprego e renda para milhares de famílias (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí, 2010). O estudo de Silva e Fernandes (2013) acerca da realidade socioeconômica dessas mulheres no Piauí mostra um elevado índice de vulnerabilidade social, com a inserção de 76% das famílias das quebradeiras de coco no Programa Bolsa Família, além de outras questões, como a presença do analfabetismo, moradias precárias e problemas de saúde. Além disso, 53% das famílias de quebradeiras de coco ainda não possuem terra, dependendo da coleta de coco babaçu em áreas cedidas, arrendadas e áreas de parentes.

Pelo amplo campo de lutas que empreendem, reconhece-se que os movimentos de mulheres camponesas têm se tornado um tema proeminente de debates no cenário contemporâneo (Lusa & Freitas, 2017). Entendemos que o caso das mulheres quebradeiras de coco merece destaque nesse debate, considerando a escassez de literatura, embora tenham alcançado maior visibilidade e organização política, inclusive com articulações internacionais, na defesa do acesso à terra e valorização da sua cultura, modo de vida e de trabalho; na luta contra o avanço do agronegócio que tem se ampliado para a região ecológica dos babaçuais; na denúncia contra as frequentes ameaças de morte das lideranças, violência esta interseccionada com questões gênero e raça; mas também pela luta cotidiana e resistência à dominação masculina, patriarcal e capitalista.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo-exploratório, realizado com mulheres que são lideranças nas comunidades rurais de Esperantina (PI) e adjacências, onde está localizada a sede regional do MIQCB. Este município possui uma população de 37.767 habitantes, com uma densidade demográfica de 41,45 hab./km². A população rural representa 38,7% da população. O município apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,605 e incidência de pobreza de 57,47% (Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí [CEPRO], 2013).

A escolha das lideranças foi acordada com a coordenação da regional do movimento, de forma a alcançar uma melhor operacionalização da pesquisa. Participaram do estudo oito mulheres, com idades entre 40 e 79 anos, entre as quais seis se declaravam casadas, uma viúva e uma divorciada. São mulheres que exercem ou já exerceram cargos de coordenação em grupos, associações e sindicatos rurais, além de lideranças informais nas comunidades: Quilombola Olho D'Água dos Negros, Assentamento Rural Fortaleza III e Comunidade Vila Esperança. As três comunidades contam com grupos de mulheres quebradeiras de coco que trabalham na produção de azeite e/ou de farinha de mesocarpo do babaçu e comercializam por meio de políticas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), apoiados por fundações internacionais. Das três comunidades, apenas Vila Esperança permanece sem resolução a respeito da demarcação da área, cujos moradores reivindicam a titulação enquanto assentamento rural.

Para a produção de dados fizemos uso de um roteiro semiestruturado de entrevista acerca de suas trajetórias de vida, incluindo a atividade da quebra do coco, as relações com a comunidade e a participação política no movimento, além das principais conquistas e desafios enfrentados ao longo de suas trajetórias. A análise voltou-se para a seleção dos acontecimentos relatados como significativos ao longo de suas histórias de luta, evidenciando a multiplicidade de experiências/representações, ao mesmo tempo que são reveladoras de sentidos, escolhas e marcas que ajudaram a constituírem a si mesmas e o próprio movimento que representam.

Estruturamos os resultados em conjuntos de narrativas: sobre situações de opressão e resistência; sobre o processo de organização e articulação política; sobre participação política e os tensionamentos entre as fronteiras público-privado. A pesquisa atendeu a todos os aspectos éticos, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (CAAE 80710217.6.0000.5214). Todos os nomes atribuídos às entrevistadas são fictícios, visando preservar a identidade das mesmas.

 

Resultados

No tempo dos patrões: Contexto de opressões e resistência

As histórias das mulheres quebradeiras de coco trazem à tona as mais diversas formas de opressão e violência, tanto materiais quanto simbólicas, assim como permite vislumbrar as diversas formas de resistência a tais sujeições. São narrativas que se conectam a uma série de desigualdades sociais e econômicas que, historicamente, estiveram presentes no campo brasileiro. Tais iniquidades inscreveram marcas nas trajetórias de vida das mulheres, historicamente relegadas à pobreza e submetidas às mais distintas explorações, aprofundadas pelo patriarcado, pelo racismo e pela violência de gênero.

Diante das condições das famílias, que enfrentavam dificuldades para garantir o próprio sustento, as mulheres tinham que trabalhar para ajudar a comprar o arroz, o feijão, o café, etc. Assim, a maioria delas começou a quebrar coco ainda na infância, e, por vezes, tentavam conciliar com os estudos, mas acabavam por desistir. Ademais, o acesso às escolas era mais difícil, especialmente no campo, pois tinham que percorrer longas distâncias, além de estarem organizadas de forma a não atender os modos de vida das famílias que vivem em contextos rurais.

Assim, desde o início... Comecei a quebrar coco! Eu tinha mais ou menos 10 anos. Naquela época as coisas era muito difícil pra gente. Aí eu não sabia muito quebrar coco, passava o tempo todinho e não quebrava um litro de coco. Isso já com 10 anos. Estudava! Mas quando chegava da escola tinha que quebrar um pouco de coco, né? Era o que a gente tinha pra sobreviver... Era o coco (...) Quando [os filhos] eram pequenos eu levava tudo pro mato! Eu nunca gostei de deixar meus meninos nas casas viu? Não gostava não, eu levava, viu? Fazia a comida, levava a comida, levava a água, levava a rede... Até a rede levava pra eles dormir no mato! (Na Agontimé, em 08/01/2018)

Percebe-se que o conjunto de iniquidades que marcaram (e ainda marcam) a vida dessas mulheres se reproduz entre gerações, evidenciando marcadores de gênero. A questão agrária que se manifesta no Brasil desde o período colonial privou inúmeras populações do campo ao acesso à terra gerando um "processo de empobrecimento contínuo e permanente" que é base da exploração fundiária no campo (Lusa & Freitas, 2017, p. 8). Tal processo rebate nas mulheres camponesas de forma mais violenta e excludente, relegando a elas, na divisão sócio sexual do trabalho, o cuidado com a casa, com a alimentação e as providências para sobreviver à pobreza, inclusive com trabalhos agrícolas considerados menores ou invisibilizados como a quebra do coco para sobrevivência, com ciclos de opressão e dominação que se repetem por gerações.

A reprodução de ciclos de iniquidades que configuraram a vida dessas mulheres conta também com as marcas das relações de poder e práticas de assujeitamento pelos patrões, ou os chamados "coronéis". Estes eram, geralmente, fazendeiros que se apossavam das terras, em razão de sua influência política e econômica na região. Assim, obrigavam os moradores, que já residiam nesses locais, a trabalharem em troca do ‘direito' de permanecer morando e produzindo na terra. No caso das mulheres, tal condição era intensificada, já que só podiam vender o coco babaçu nos barracões dos patrões, que eram uma espécie de comércio que funcionava dentro da propriedade. Em troca, recebiam um vale, espécie de pedaço de papel, como autorização para que elas trocassem por gêneros alimentícios nos próprios barracões dos patrões, pois não era aceito em outro comércio da cidade. Na narrativa de Tereza, liderança do quilombo, encontramos as marcas desse período:

A nossa luta foi muito forte e sofrida, porque quando nós tínhamos nosso patrão, nós quebrava o coco e vendia pra ele... Mas se quebrasse cinco quilos, chegava lá só dava três. A gente recebia um vale e com ele ninguém podia comprar nada porque papel não se compra. Nós passava necessidade porque não tinha dinheiro pra comprar o sustento (...). Na casa não podia fazer uma parede de barro. Se fizesse no outro dia era pra sair da terra, [a casa] tinha de ser de palha (...). (Tereza, em 05/01/2018)

Além das práticas de sujeição e dominação que limitavam o acesso dos moradores aos meios e recursos de subsistência, havia também as ameaças de violência e os riscos que as mulheres enfrentavam ao ir procurar o coco no mato. Laudelina relembrou de um episódio que aconteceu quando morava com os pais em outra localidade, em que foi ameaçada por um homem que trabalhava para o proprietário da terra. Na época, ela tinha apenas 10 anos.

(...) lá a gente foi proibida quebrar o coco. Uma vez eu tava quebrando coco pra comprar um lápis pra ir pra escola. Quando tava quebrando aquele coco chegou um homem mandado do proprietário proibir a gente quebrar o coco. Nesse dia deu quase morte. Tava quebrando... Quando chegou e disse: "Para de quebrar coco! Quem mandou você quebrar o coco? Vocês não têm direito mais de meter a mão em nada aqui nessa terra". A gente já tava em conflito com o proprietário lá e eles proibiram a gente trabalhar... Eu parei... Era menina. Tinha 10 anos. Fiquei com medo. Corri pra casa do meu pai! (Laudelina, em 21/01/2018)

As narrativas indicam práticas de dominação e subjugação por parte dos patrões que se impunham, muitas vezes, com maior intensidade para as mulheres, por gerações. Sabe-se o quanto que o trabalho das mulheres e a reprodução da divisão sexual do trabalho no campo são apresentadas como elementos constitutivos da identidade das mulheres camponesas (Lusa & Freitas, 2017). Mas as autoras ainda indicam outros marcadores sociais de produção da diferença, a exemplo do próprio gênero. Nesse aspecto, entendemos que o poder, por seu caráter relacional, atravessa todo o corpo social, não podendo, pois, ser apreendido como uma substância localizada nesse ou naquele sujeito, como se certos sujeitos detivessem o poder e outros não. O poder, sobretudo, é algo que circula em rede, que perpassa os indivíduos, o que significa dizer que ele é aquilo que os constitui (Foucault, 1989). Mas "onde há poder há resistência" (Foucault, 1988, p. 91), ou melhor, resistências, pois há uma infinidade de possíveis na produção de resistências.

Antonieta, uma forte liderança do assentamento Fortaleza III, e que iniciou a mobilização na comunidade, conta as dificuldades e as ameaças sofridas pelo coronel que mandava na região:

E aí eu comecei a organizar. Foi fácil? Não foi... Porque o proprietário... Cê sabe que quanto mais tem, mais quer ter. Aí foi difícil! Quando eu saí de lá da reunião já o proprietário mandava dizer, mandou me chamar, que se eu continuasse com reunião com as mulheres, ele mandava a polícia me buscar e mandava arrancar fio por fio de cabelo da minha cabeça. (...). (Antonieta, em 17/01/2018)

No caso das mulheres quebradeiras, a(s) resistência(s) ia(m) se tecendo nos seus cotidianos, como, por exemplo, a estratégia da venda do coco escondida, fora da propriedade dos patrões. Para isso, contavam com o apoio de outras pessoas da comunidade. Mas, em contrapartida, os "patrões" usavam de ameaças, coerção e violência física, impedindo a própria subsistência das mulheres quando elas e outras pessoas da comunidade começaram a vender o coco sem o seu consentimento, ou quando começaram a se articular em grupo. No Quilombo Olho D'Água dos Negros, Tereza, junto a outras cinco mulheres quebradeiras de coco, formaram um grupo para tomar a dianteira da luta:

Pedi que ela [a patroa] subisse o preço do coco, que não tinha preço nessa época... E ela não quis subir. Então eu disse: — ou subia ou então nós ia caçar um meio de comer porque nós não podia passar a necessidade que tava passando. Ela não tinha dinheiro pra dar pra nós. E com o vale nós não podia comprar nada. Aí quando ela soube que nós tava tirando coco, diminuiu lá na balança dela, porque ela achou que nós tava tirando pra vender fora. Quando ela deu fé, que ela soube, ela privou, mandou derrubar tudo quanto é palmeira, tudo quanto é coco, não deixou um só cacho em pé. (Tereza, em 05/01/2018)

Tal situação de conflitualidade, comum nas três comunidades visitadas, remete ao período de dominação das oligarquias rurais e desvela a complexidade mais uma vez da questão fundiária brasileira, produto da colonização e das investidas do capitalismo sobre o campo. No bojo das transformações políticas, sociais e econômicas ocorridas no cenário de transição do período colonial para o modelo de república, foi implementada a Lei de Terras, em 1850, que legitimou o latifúndio e privou um grande número de pessoas do acesso à propriedade da terra, como os povos indígenas e os escravos recém-libertos, dificultando a formação de um campesinato livre (Almeida, 2004).

Tal lei foi criada pouco tempo depois da Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico internacional de escravos, o que provocou uma crise do trabalho servil, fornecendo a fórmula de coerção laboral do homem livre, na qual "se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha que ser escrava. O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da sociedade que somos hoje" (Martins, 2010, p. 10). Desse modo, na realidade brasileira, a questão agrária, que ainda hoje perdura, não é somente uma questão de classe, pois está imbricada com marcadores como raça/etnia e gênero, considerando que, historicamente, a titulação da terra era feita em nome do homem, "o chefe da família".

Deere e León (2003), em seu estudo sobre a realidade das propriedades de terra na América Latina, evidenciam as significativas desigualdades de gênero e como elas têm se relacionado com alguns fatores, como a questão da herança, preferencialmente dada aos homens, além do viés de gênero em programas de reforma agrária e no mercado fundiário. No Brasil, somente após a mobilização de movimentos de mulheres trabalhadoras rurais de várias partes do país, ficou estabelecido na Constituição de 1988, em seu Artigo 189, que "o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil" (Brasil, 1988, p. 112).

Entretanto, apesar da conquista em âmbito jurídico-formal, Deere (2004) afirma que levou mais de uma década até que os movimentos rurais organizados conseguissem efetivamente colocar os direitos da mulher à terra em uma pauta nacional, amplamente divulgada. Isso ocorreu nos anos 2000, na primeira edição da Marcha das Margaridas, a maior manifestação de mulheres do campo, onde conseguiram confrontar o Estado de forma incisiva e fazer com que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) revisasse suas normativas quanto à titulação da terra. Assim, o que foi garantido como direito na Constituição só veio a acontecer na prática com a Portaria n. 981/2003 do referido órgão, em que o procedimento da titulação conjunta se tornou obrigatória e dispôs de mecanismos legais de efetivação (Silva, 2011).

A questão da terra sempre foi uma questão básica para as mulheres quebradeiras de coco, principalmente nas regiões onde ocorreram intensos conflitos com os proprietários. Além disso, a intersecção com a questão racial também estava presente, a exemplo do Quilombo Olho D'Água dos Negros, local marcado pela herança da escravidão e pela exclusão ainda vivas na memória e narrativas das mulheres quebradeiras de coco: "Sabe como é que chamava nós aqui? ‘Aqueles nego tomador de terra'. ‘Aqueles negos são invadidor de terra" (Dandara, em 06/01/2018) e "bando de nego urubu" (Eva Maria, em 06/01/2018). Por isso, para as mulheres quilombolas, "a posse da terra" está entre suas principais conquistas, como complementa Na Agontimé (em 08/01/2018): "E aí depois dessa luta... aí a gente teve a terra da gente, que a gente pode entrar a hora que quiser, pegar o coco a hora que quiser, isso aí pra mim foi muito bom".

 

Reúne aqui, reúne acolá: O processo de organização e articulação política de mulheres quebradeiras de coco

No período da ditadura civil-militar, o país passou por uma intensa transformação no modo de produção agrícola, impulsionada pela política de modernização do campo, privilegiando o agronegócio em detrimento da agricultura familiar. Tal modelo conservou a histórica concentração fundiária do país, intensificando os conflitos já existentes no campo brasileiro (Fernandes, 2012). Nesse período, surgem focos de organização e mobilização de movimentos sociais rurais em diversas regiões do país. Também as mulheres começam a se articular e enfrentar as situações de opressão e espoliação a que estavam submetidas no campo.

No Piauí, os movimentos sociais, no campo e na cidade, vão emergindo no Estado, no final da década de 1970, sob a influência de uma ala mais progressista da Igreja Católica e de intelectuais de esquerda (Fonteles, 2009). No contexto da transição democrática, nos anos 1980, a cidade de Esperantina aparece como uma importante referência no estado, com a criação de organizações com o apoio da Igreja Católica, que, influenciadas pela educação popular, conseguiram mobilizar jovens e trabalhadores rurais para a luta por direitos e pela terra (Matos, 2015). Foi assim que muitos grupos de mulheres quebradeiras de coco começaram a se organizar nas suas comunidades.

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram um dos principais grupos religiosos que atuaram junto aos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Elas surgiram em meio à década de 1960, no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965), a partir de questionamentos internos e pela opção de abertura por parte da Igreja Católica, influenciada pelas transformações pelas quais passava a sociedade latino-americana, frente às repressões das ditaduras militares (Campos & Mendes, 2011). As CEBs constituíram-se em espaços de organização social que fomentavam reflexões sobre a realidade concreta dos indivíduos e, assim, atuaram como lugares privilegiados para o questionamento das políticas de desenvolvimento agrícola de lógica capitalista que estavam avançando no período militar, propiciando novas formas de resistência organizada (Fernandes, 2012).

As interlocutoras mencionaram de forma frequente a atuação da Igreja Católica como elemento de mobilização nas comunidades, inclusive muitas delas estavam envolvidas enquanto liderança de atividades religiosas, como dirigente da comunidade, catequista, etc. Na narrativa de Laudelina, a presença da Igreja Católica é muito viva na memória da comunidade:

A Igreja Católica foi o ponto principal para orientar a gente. A gente vivia, não tinha uma comunidade, não tinha associação, e a gente foi se organizando através da Igreja, através do padre. Ele começou mostrar os caminhos, a tirar nós da escravidão que nós vivia, dizer "é dessa forma que a gente deve viver". Deus mostra pra gente que a gente deve viver sem opressor. Como nós vivia com opressor, "trazer aqui, vender aqui, aqui mesmo pronto e acabou, comércio tá aqui, as coisas vocês vão comprar é aqui, o coco vocês vendem do preço que quiser, na medida que eu quiser", tudo nós fazia! Mas quando começamos a descobrir, aí tomemos outros caminhos, nós se organizemos, criamos a comunidade, depois criamos a associação, pra tá trabalhando no meio social, né? Buscando melhoria de vida para as pessoas, fazendo com que conheçam seus direitos e deveres. (Laudelina, em 21/01/2018)

A participação das mulheres nos espaços das CEBs contribuiu para desempenhar outras funções além daquelas restritas na esfera privada, rompendo, assim, com a rotina do cotidiano, como também estimulou a participação nas lutas sociais e nas mobilizações por melhores condições de vida e direitos (Aguiar, 2016). Desse modo, foi nesses espaços que as mulheres quebradeiras começaram a assumir um lugar de fala, compartilhando publicamente suas condições de vida e convocando a comunidade a organizar ações de resistência, sendo um fator importante na organização das mulheres quebradeiras de coco.

Ao mesmo tempo em que ascendiam as CEBs, na transição entre as décadas de 1970 e 1980, começaram a surgir, no Piauí, centros de assessoria sindical e popular, estabelecendo um trabalho formativo de base, com foco na autonomia e na conscientização dos sujeitos, com o objetivo de transformação social (Fonteles, 2009). Um dos centros criados na época foi o Centro de Educação Popular Esperantinense (CEPES), criado na década de 1980, cuja aliança com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Esperantina também contribuiu para fortalecer a luta das mulheres quebradeiras de coco.

Essa aproximação também promoveu a inserção de mulheres nos espaços do sindicato, a exemplo de Antonieta, que assumiu um cargo dentro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Esperantina – o que antes era inconcebível, pois o direito à participação nas reuniões e decisões era restrito aos homens trabalhadores rurais, em uma realidade nacional. Tal situação invisibilizava a tripla jornada das mulheres, que, além do trabalho doméstico e cuidado com os filhos, quebravam coco e trabalhavam na roça. A histórica desvalorização das múltiplas tarefas realizadas pelas mulheres é um dos efeitos da divisão sexual do trabalho. Antes, as mulheres participavam diretamente das atividades consideradas econômicas (Paulilo, 2004).

Além de cindir os meios de produção, o capitalismo separou o espaço doméstico do espaço de produção. Nesse contexto, apenas as atividades tidas como econômicas passaram a ser consideradas trabalho produtivo e remunerado, fazendo o trabalho reprodutivo ser entendido como improdutivo, embora não seja fácil de visualizar essa divisão quando não há cisão entre unidade familiar e de produção – caso das mulheres quebradeiras de coco, que produzem tanto para subsistência como para a venda. No entanto, geralmente o trabalho na agricultura, trabalho produtivo, provido de valor de troca, costuma ser atribuído ao homem, mesmo que as mulheres participem ativamente dele, o que torna invisível o seu dispêndio de tempo e energia (Paulilo, 1982, 2004).

Além disso, com relação à quebra do coco, Barbosa (2013) afirma que essa atividade foi sendo circunscrita como feminina na medida em que foi perdendo o seu valor no mercado de exportação, ou seja, quando foi perdendo seu valor de troca. Entre as décadas de 1930 e 1950, no auge da economia do babaçu, os homens assumiram a atividade extrativa junto às mulheres, mas quando a quebra do coco foi perdendo espaço, eles começaram a deixá-la a cargo das mulheres. A atividade passou a ser considerada de economia de subsistência e, portanto, foi sendo cada vez mais associada à pobreza e ao universo do privado. Tal situação contribuiu para reforçar a divisão sexual do trabalho e a invisibilidade do trabalho produtivo das mulheres quebradeiras de coco, mesmo que, por vezes, as mulheres apontem que o sustento da família vinha em grande parte do babaçu.

Como disse Antonieta: "nós não era reconhecida como quebradeira, né? Nós era reconhecida como mulher que é somente do trabalho da casa, cuidar do filho, do marido e daquela coisa toda" (Entrevista concedida em 17/01/2018). Desse modo, as mulheres eram consideradas apenas as "esposas de trabalhadores", e o seu trabalho seria compreendido como simples ajuda ou complemento (Paulilo, 1982). Foi em reação a esse enquadramento, ‘esposa de fulano', que limitava a participação das mulheres nos espaços políticos, que mulheres rurais começaram a se organizar em várias regiões do país, reivindicando a participação nos sindicatos e o reconhecimento profissional como trabalhadoras rurais (Deere, 2004), conquistando esse estatuto com a Constituição Federal de 1988, o que possibilitou também às mulheres a garantia dos benefícios sociais da licença-maternidade e da aposentadoria aos 55 anos (Pimenta, 2012).

Nesse contexto, também foram influentes as agências de cooperação internacional e as Organizações Não-Governamentais, especialmente por meio do financiamento de projetos voltados para as mulheres quebradeiras de coco. Em suas narrativas, elas relataram as constantes visitas de pessoas ‘de fora', da Itália, da Alemanha, geralmente para realizar palestras e cursos. Os recursos adquiridos com os projetos junto às discussões de gênero, embaladas pelas assessoras das entidades internacionais, possibilitaram dar visibilidade às condições de vida das mulheres quebradeiras de coco, além de permitir a construção de estratégias para diminuir, de certa forma, algumas assimetrias de gênero.

Veio um projeto, e a gente foi contemplado aqui... Aí quando a gente fundou essa cantina, né, porque que a gente fundou? Porque quem vendia o coco eram os maridos né? Então os maridos iam vender o coco, aí lá eles bebiam a metade de cachaça (risos). Não comprava as coisas que as mulheres desejavam, né, que a gente necessitava em casa. E aí a discussão das mulheres, os depoimentos, fez com que o CEPES na época, que era o Centro de Educação Popular Esperantinense, que representava as associações junto com o movimento, fez com que implantasse a cantina nas comunidades (...). Então eu ia quebrar meu coco, eu ia vender lá e eu ia comprar o que eu quisesse, do xampu ao batom, o sabonete. Então, o meu marido não precisava mais ir na cidade vender, né, nem no barracão lá que tinha. Então eu ia vender, aí eu ia comprar o que eu queria, o que eu desejava, né, aí a gente começou a entender mais como que é o direito da gente, né? (Maria Felipa, em 13/01/2018).

As cantinas, antes chamadas de quitandas, eram uma espécie de comércio, diferente dos antigos barracões dos patrões, onde as mulheres podiam vender o coco com o "preço justo", o preço que corria no mercado, além de poder comprar diversos gêneros alimentícios, como feijão, arroz, açúcar, café, etc. O dinheiro que sobrava era dividido entre as quebradeiras. Ademais, o financiamento das agências, embora pequeno, foi considerado importante à medida que possibilitou a criação e a sobrevivência de muitos movimentos sociais, custeando os encontros de mulheres de diferentes regiões e comunidades, as publicações, os cartazes de divulgação dos eventos, entre outras coisas (Thayer, 2001), permitindo, então, às mulheres quebradeiras seu uso estratégico para conseguirem se organizar.

Desse modo, com as aproximações com o sindicato e com o CEPES, as mulheres quebradeiras piauienses tiveram conhecimento da realidade das quebradeiras de outros lugares, e por meio do financiamento de agências internacionais, foi possível a realização do I Encontro Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu, em São Luís, entre os dias 24 e 26 de setembro de 1991, onde participaram mais de 250 mulheres, entre quebradeiras e assessoras. Este primeiro encontro permitiu às mulheres enunciarem suas condições de vida e descobrirem semelhanças em suas demandas e reivindicações, convergindo para a criação da Articulação das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu, que, em 1995, passou a se chamar Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu.

A partir de então, as mulheres construíram uma identidade política, a partir da autonomeação ‘quebradeira de coco', em suas lutas cotidianas. A identidade política é um elemento construído no interior de um processo de mobilização e permite certa consistência de intervenção para os grupos envolvidos neste processo. Nessa medida, produz tanto transformações subjetivas, nos sujeitos, como também objetivas, permeando diferentes esferas do cotidiano, configurando "potência emancipatória das formas de ação coletiva em diferentes espaços da cotidianidade" (Prado, Campici, & Pimenta, 2004, p. 314).

 

Participação política e os tensionamentos das fronteiras público-privado

A luta das mulheres começou com a resistência frente às relações de poder em que estavam enredadas com os maridos ou companheiros, que demarcavam os papéis tradicionais destinados às mulheres, hierarquizados, mantidos através de gerações. São papéis reproduzidos pelas mães: "naquele tempo a mãe da gente dizia que começou a produzir os filhos e não tinha como mais sair de casa. Naquele tempo era assim: a gente pariu tinha que ficar" (Dandara, em 06/01/2018). Ou reproduzidos pelos próprios maridos: "não, não vai não, não vai nem dizer que vai, que não vai!" (Anita, em 13/01/2018).

Tais questões, por vezes, limitavam ou despotencializavam a possibilidade de participação e de ação política das mulheres. Na narrativa de Antonieta, podemos visualizar as conformações tradicionais de gênero que destinam a mulher à esfera privada, ao trabalho reprodutivo, ao cuidado de casa e da família, ao lugar do "não-político".

Ah minha filha... este é que é o problema que nós, você não foi não, eu fui criada numa educação que a mulher era só em casa, pra cuidar dos filhos e do marido e das panelas, né? Quando a gente casava a mãe já dizia: "olha não pode sair, só se o marido deixar" aquela coisa toda né? Essa aí foi uma grande barreira... (...) O marido não deixava, a filha arrumando filho e trazendo pra dentro de casa, ele consentindo porque não queria, que eu já tava começando a sair. E aí eu passei por cima: "pois fica aí!". Comecei a participar na comunidade. [Ele] foi me buscar na comunidade: "hoje é o último dia que tu participa da comunidade". Lá na comunidade nós não brigamos não, brigamos foi em casa. (Antonieta, em 17/01/2018)

Essa narrativa nos permite problematizar a dicotomia público-privado que incorre, para Miguel e Biroli (2014, p. 31), em uma visão limitada da política que a isola das relações de poder existentes no cotidiano, "negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações familiares". Nessa cisão, a esfera pública seria aquela fundamentada na universalidade e na impessoalidade, enquanto a esfera privada seria o espaço da intimidade, das particularidades. Mas à medida que as mulheres quebradeiras foram enfrentando os maridos que lhes determinavam quando e se elas podiam sair de casa, elas foram tecendo fissuras nessa lógica que as conformavam ao espaço doméstico e aos cuidados com os filhos e marido.

Podemos dizer que as mulheres quebradeiras de coco babaçu foram rompendo sua fronteira do espaço vivencial (Barbosa, 2013), em razão da saída do espaço restrito de suas casas em direção aos espaços de luta. Inclusive, inúmeras mulheres assumiram papéis de liderança nas comunidades onde viviam, a exemplo de Antonieta e Tereza, que estavam à frente das ações de resistência aos patrões, e também conseguiram adentrar os espaços institucionais que eram restritos aos homens, como o sindicato rural de Esperantina. Ali, Antonieta assumiu um dos cargos da direção. "As mulheres tomaram um pouco as rédeas do sindicato, que hoje tem mulher que é presidente do sindicato, da associação, que antes a gente não tinha esse direito e hoje a gente tem, através da luta" (Antonieta, em 17/01/2018).

Além dos conflitos diretos que algumas mulheres quebradeiras travavam com seus maridos, havia outros elementos que colocavam desafios a sua participação política, como a responsabilidade pelo cuidado dos filhos e pelas atividades domésticas, o que necessitava uma reorganização dentro de casa, envolvendo, inclusive, acordo com os próprios maridos.

No período que eu entrei [no MIQCB], eu tinha meus filhos, eram pequenos ainda, né, então, tipo assim, a gente deixa os filhos, às vezes chega, o marido tá com a cara desse tamanho, a gente tem que viajar pra fora, né, sai. Agora não, melhorou a nossa vida, mas no começo a gente saía, não deixava nem um quilo de açúcar, né, e chegava achava tudo vivo (risos) (...) nós saía, viajava três dias, nós não tinha diárias, era voluntário, nós não tinha dinheiro pra comer, viajar nos ônibus, nós não tinha dinheiro nem pra ir no banheiro. Nós ia nos banheiros e ficava "ah nós vamos entrar e nós vamos sair que nós não vamos ficar aqui, sem ter um centavo né". Então o movimento começou assim, todo mundo se dobrando. Então foi muito difícil nesse período, né, porque a gente vivia do coco, então se eu saía 3 dias, como que eu ia quebrar coco, né? Não podia quebrar coco, então se o marido ficasse e quebrasse algum coquinho, tudo bem, se não, ia sobreviver do que ficava até eu chegar, mas eu chegava pra mim quebrar coco, né, porque eu não chegava com dinheiro. (Maria Felipa, em 13/01/2018)

A participação em atividades políticas toca sensivelmente a questão do tempo livre. Tal fator afeta particularmente as mulheres pela forma como a sociedade está organizada, pois responsabiliza-as pela gestão de suas casas, o que acaba diminuindo o tempo disponível para se envolver em outras atividades (Miguel & Biroli, 2014). Isso acaba exigindo das mulheres que se envolvam em múltiplas tarefas. As mulheres quebradeiras têm que cuidar da casa, dos filhos, trabalhar na roça, quebrar coco e ainda participar das atividades do movimento social. Além disso, a participação política também está relacionada às posições de classe nas quais se encontram as mulheres, expressas pela falta de dinheiro para os gastos com deslocamento para participar dos encontros e reuniões, além das consequências para o sustento da família devido à sua ausência na quebra do coco.

Desse modo, podemos entender como operam as interseccionalidades na constituição dos sujeitos, uma vez que as privações associadas à opressão de gênero podem ter diferentes sentidos para as mulheres (Miguel & Biroli, 2014), pois estabelecem "interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas" (Butler, 2003, p. 20). Contudo, as mulheres seguiram resistindo cotidianamente para poderem participar do movimento e lutar pelos seus direitos na perspectiva de transformar determinadas estruturas políticas e sociais, ao tempo que tais ações também produziam deslocamentos subjetivos nos modos de se perceber no mundo, de se relacionar consigo mesmo e com os outros, de se posicionar diante das situações que lhes cercam, de agir, e de perceber que os espaços da política, os espaços da fala pública, os espaços além-casa também lhes pertencem. Nas seguintes falas, entendemos como a ação política das mulheres quebradeiras junto ao movimento foi produzindo novas subjetividades, novos modos de experimentar o mundo:

No início assim é muito difícil, a gente fica com medo de falar, não sabe o que é as coisas, vão aprendendo, participando das reuniões. Eu passei muitos anos calada nas reuniões, caladinha, sem dar uma palavra, né, passei pra coordenação, caladinha, sem dar nenhuma palavra e aí eu comecei a entender, porque quando a gente começa a entender e a praticar, aí é tudo muito fácil né, assim. Mas quando a gente começa, é muito difícil, a gente tem medo de falar o que não é certo, né, e, mas assim, o movimento é uma escola, quem passa pelo movimento, ele estuda porque ele fica formado pra falar em qualquer lugar que você for (...) Então, aprendi a falar, aprendi a dar reunião, aprendi a falar na televisão, aprendi, assim, é um monte de coisa que a gente aprendeu depois que o movimento surgiu na nossa vida, que se a gente for contar dá um mês porque é muita coisa, né? (...) E aí depois a gente já aprende a reivindicar os direitos, né, os projetos, já sabe que a gente tem o direito lá nos projetos que tem, dos produtos, já consegue fazer debate sobre o melhoramento dos produtos, sobre a legalização, é muita coisa, né, que a gente aprende quando o movimento surge na vida da gente. (Maria Felipa, em 13/01/2018)

Minha filha, [o movimento] é tudo na minha vida, o movimento foi e é a minha vida. Por quê? Porque eu me realizei um pouco como mulher, eu me valorizei, estou me valorizando como uma mulher, trabalhadora rural, quebradeira de coco babaçu, não tenho vergonha de dizer "eu sou quebradeira de coco babaçu" (...). O movimento pra mim é tudo isso que eu realizei, porque se eu não tivesse me valorizado, a minha luta, a minha identidade, eu não tinha andado por esse lugar por onde eu já andei e ainda queria ir mais... (Antonieta, em 17/01/2018)

Podemos, então, apontar a ação política das mulheres quebradeiras de coco como um importante ponto de tensionamento das relações de poder nas quais elas estavam enredadas, como, por exemplo, o enfrentamento dos lugares naturalizados como espaços únicos onde as mulheres podiam transitar; e os efeitos produzidos nos seus modos de vida, no modo de inscreverem no mundo ao experimentarem desejos outros: desejos de participação ativa na luta por seus direitos, por melhores condições de vida, pelas questões de gênero; desejo pela legitimação do seu lugar de fala, para que suas vozes sejam ouvidas; desejo de traçar outros caminhos que não aqueles que foram historicamente traçados para elas. A participação política das mulheres no movimento permitiu recusar lógicas normativas que determinam o que elas podem e devem fazer e os espaços que podem ou devem ocupar. Ainda que não tenham mudado radicalmente as relações de poder, indicam tensionamentos frente às demarcações tradicionais de gênero, representadas pelas "posições de ‘dona-de-casa', ‘do lar', ‘esposa do agricultor'", ao criar novos modos de existir, reconhecer-se e se relacionar (Salvaro, Lago, & Wolff, 2013, p. 87).

 

Considerações Finais

Destacamos, neste estudo, as conquistas inegáveis das mulheres quebradeiras de coco babaçu piauienses ao longo de sua árdua trajetória de experiências de exclusão, de invisibilidade, de lutas físicas e simbólicas, de organização e mobilização social, que transformaram o cotidiano dessas mulheres de inúmeras formas, permitindo-lhes se reposicionar frente às condições adversas impostas e, assim, experimentar, (re)inventar novos desejos para si mesmas. Este estudo nos permitiu entender como questões de classe, gênero, raça e geração estão imbricadas, produzindo desigualdades, considerando o quanto as dinâmicas de exploração-dominação têm o sistema patriarcal-racista-capitalista o seu pilar sustentação e limitação das possibilidades de vida das mulheres. Mas também permitiu visualizarmos resistências que combinam lutas frentes as relações sociais de raça, gênero e classe com a questão da terra, o que requer a conquista de espaços em diferentes dimensões da existência.

Não tivemos a intenção de esgotar a discussão, considerando que as realidades dessas mulheres são moventes e dinâmicas. Contudo, esperamos que esse estudo contribua para conferir visibilidade aos contextos de vida das mulheres quebradeiras de coco babaçu no Piauí, que ainda permanecem expostas a diversos tipos de violência física e simbólica e à insuficiência de políticas públicas, especialmente ao considerar as inúmeras marcas de gênero, classe, raça/etnia, entre outras, que posicionam essas mulheres na realidade social.

 

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Endereço para correspondência
Andressa Veras de Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Campus Universitário Lagoa Nova
Av. Senador Salgado Filho, 3000, Lagoa Nova, CEP 59078-900, Natal - RN, Brasil
Endereço eletrônico: dressacarvalho7@gmail.com
João Paulo Macedo
Universidade Federal do Piauí
Campus Ministro Reis Velloso - Departamento de Psicologia
Av. São Sebastião, 2819, Reis Velloso, CEP 64202-020, Parnaíba – PI, Brasil
Endereço eletrônico: jpmacedo@ufpi.edu.br

Recebido em: 25/12/2018
Reformulado em: 07/04/2019
Aceito em: 13/05/2019

 

 

Notas

* Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
** Psicólogo pela Faculdade Santo Agostinho (2004), Mestre (2007) e Doutor (2011) em Psicologia pela UFRN. Está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPI. Bolsista PQ 2 do CNPq.
1 O MIQCB foi um dos quinze representantes de comunidades tradicionais, assim como sertanejos, seringueiros, comunidades de fundo de pasto, quilombolas, pescadores artesanais, entre outros, a compor a comissão responsável pela elaboração dessa política junto a entidades governamentais.

 

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