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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2022  Epub 17-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.66482 

PSICOLOGIA SOCIAL

Atuação da Estratégia Saúde da Família em Casos de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes

Family Health Strategy’s Performance in Cases of Sexual Violence Against Children and Adolescents

Actuación de la Estrategia de Salud de la Familia en Casos de Violencia Sexual contra Niños/as y Adolescentes

Sandra Mara Setti1 

Psicóloga graduada pela Universidade de Passo Fundo, mestra em Psicologia pela IMED, psicóloga na Prefeitura Municipal de Marau.


http://orcid.org/0000-0002-3797-7945

Adalberto de Araújo Trindade2 

Psicólogo graduado pela IMED.


http://orcid.org/0000-0001-7058-2972

Jean Von Hohendorff3 

Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da IMED.


http://orcid.org/0000-0002-7414-5312

1Faculdade Meridional - IMED, Passo Fundo, RS, Brasil

2Prefeitura Municipal de Marau, Marau, RS, Brasil

3Universidade Federal de Pelotas - UFPEL, Pelotas, RS, Brasil


RESUMO

Considerando a cobertura e a posição privilegiada que a atenção básica em saúde ocupa na identificação e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, o presente estudo teve por objetivo compreender como a equipe de uma Estratégia Saúde da Família intervém nestes casos. Realizou-se um estudo qualitativo, documental e baseado na inserção ecológica. Foram realizadas observações da rotina da Estratégia Saúde da Família, análise de prontuários e entrevistas com os/as profissionais. A análise dos dados foi feita a partir da Análise Temática, sob ótica da Teoria Bieocológica do Desenvolvimento Humano. Os principais resultados indicaram a ausência de protocolo no atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na Estratégia Saúde da Família estudada, falta de capacitação dos/as profissionais no atendimento e manejo desses casos e fragilidades da rede intersetorial. Assim, a atuação da Estratégia Saúde da Família requer aprimoramentos, como capacitações e elaboração de fluxos de atendimento, garantindo o cuidado integral e continuado das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e de suas famílias.

Palavras-chave: estratégia saúde da família; atenção primária à saúde; assistência integral à saúde; abuso sexual de crianças e adolescentes; violência sexual.

ABSTRACT

Considering Primary Health Care’s coverage and privileged role on identifying and tackling sexual violence against children and adolescents, the objective of this article was to understand how the team Family Health Strategy intervenes in such cases. This is a qualitative and documental study based in ecological insertion. We observed a Family Health Strategy’s routine, analyzed medical records, and interviewed 20 professionals. Data was analyzed by Thematic Analysis in the light of the Bioecological Theory of Human Development. The main results indicate an absence of protocols when working with children and adolescents who were victims of sexual violence in the researched Family Health Strategy, lack of professional capacitation when dealing with these cases, and fragility of the intersectoral network. Thus, Family Health Strateg’s performance demands improvement, such as capacitation and the construction of service flows that guarantee integral and continuous care of children and adolescents who were victims of sexual violence and their families.

Keywords: family health strategy; primary health care; comprehensive health care; child sexual abuse; sexual violence.

RESUMEN

Teniendo en cuenta la cobertura y la posición privilegiada ocupada por la atención primaria de salud para identificar y hacer frente a la violencia sexual contra niños, ninãs y adolescentes, el objetivo de este estudio fue comprender cómo interviene un equipo de Estrategia de Salud de la Familia en estos casos. Se realizó un estudio documental cualitativo basado en la inserción ecológica. Se realizaron observaciones de la rutina de la Estrategia de Salud de la Familia, análisis de registros médicos y entrevistas con profesionales. El análisis de los datos se realizó a partir del Análisis Temático, bajo la perspectiva de la Teoría Bieocológica del Desarrollo Humano. Los principales resultados indicaron la ausencia de un protocolo en el cuidado de niños, niñas y adolescentes víctimas de violencia sexual en la Estrategia de Salud de la Familia estudiada, la falta de capacitación de profesionales en el cuidado y manejo de estos casos y debilidades en la red intersectorial. Por lo tanto, la actuación de la Estrategia de Salud de la Familia requiere mejoras, como la capacitación y desarrollo de los flujos de asistencia, asegurando una atención integral y continua para los/as niños/as y adolescentes que son víctimas de violencia sexual y sus familias.

Palabras clave: estrategia de salud de la familia; atención primaria de salud; atención integral de salud; abuso sexual infantil; violencia sexual.

A violência sexual contra crianças e adolescentes (VSCA) compreende quaisquer condutas de envolvimento ou de exposição de crianças e adolescentes a atividades de cunho sexual (Lei n. 13.431, 2017), as quais não são entendidas em decorrência da sua etapa de desenvolvimento (World Health Organization [WHO] & International Society for the Prevention of Child Abuse and Neglect [ISPCAN], 2006). Estima-se que a VSCA atinja 18% de meninas e 7,6% de meninos em todo o mundo, embora haja subnotificação (WHO, 2014). No Brasil, entre 2011 a 2017, foram notificados 184.524 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo a maioria das vítimas (74,2%) do sexo feminino (Ministério da Saúde, 2018). Os possíveis efeitos da VSCA podem se desenvolver em curto e em longo prazo, sendo eles físicos, emocionais, cognitivos e comportamentais. Diante de tais efeitos e de tamanha prevalência, a VSCA é considerada um problema de saúde pública (WHO, 2014), portanto, é necessário o investimento em políticas públicas de proteção e prevenção.

A efetivação dessas políticas públicas envolve esforços de múltiplos setores públicos e privados, como a sociedade civil organizada, as esferas de governo, os serviços de assistência social, de educação e de saúde, entre outros. Os dispositivos legais para abordagem à VSCA se fundamentam, principalmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente ([ECA]; Lei n. 8.069, 1990), e suas leis complementares, como a Lei n. 13.431 (2017), que somadas visam a proteção integral de crianças e adolescentes. Na esfera penal, destaca-se a Lei n. 12.015 (2009), que dispõe sobre crimes hediondos, entre eles a VSCA. Além disso, destaca-se o Plano Nacional de Enfrentamento da VSCA, lançado em 2000 (Ministério da Justiça, 2002) e revisado em 2013.

A participação do setor saúde consiste no enfrentamento aos efeitos derivados da violência, atuando também na esfera da prevenção e promoção da saúde. As ações visam o bem-estar da população, tanto em nível individual quanto coletivo, buscando o cuidado continuado. Progressos têm sido alcançados, como a aprovação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (Ministério da Saúde, 2005), que busca, definitivamente, incluir o setor saúde no enfrentamento de violências e acidentes por meio da adoção do conceito ampliado de saúde. Devem ser considerados os condicionantes sociais, históricos e ambientais na saúde dos grupos populacionais, entre eles crianças e adolescentes, grupo de caráter prioritário.

No Brasil, o setor saúde é regulamentado a partir da Lei n. 8.080 (1990), conhecida como Lei Orgânica da Saúde, na qual seus serviços são prestados por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), em níveis crescentes de atenção. Cabe à Atenção Primária à Saúde (APS) ser a principal porta de entrada dos/as usuários/as, já que é ofertada com o mais alto grau de capilaridade e descentralização. A APS busca, sobretudo, facilitar o acesso e assegurar a universalidade, integralidade e equidade em saúde, principalmente, aos grupos populacionais de maior vulnerabilidade social. Para tal, a ESF é utilizada para efetivar sua expansão e consolidação conforme a Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) fundamenta-se em um novo modelo de atenção à saúde, destinado a famílias, no qual é considerado o contexto sociocultural e suas idiossincrasias. É constituída por equipes multidisciplinares como médicos/as e enfermeiros/as, preferencialmente especialistas em saúde da família e comunidade, técnicos/as ou auxiliares de enfermagem e agentes comunitários/as de saúde (ACS’s). Por meio do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) podem ser incorporados/as, em suas equipes, outros/as profissionais, como psicólogos/as, conforme Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Dados sugerem que até julho de 2019, 74,2% da população era coberta pela APS, sendo que em 63,8% essa cobertura era feita pelas equipes de ESF, totalizando mais de 43 mil equipes em todo o país (Ministério da Saúde, 2019). Considerando tamanha cobertura e a dinâmica de trabalho desenvolvido in loco, os/as profissionais da ESF ocupam uma posição privilegiada na identificação e no enfrentamento da VSCA (Lima et al., 2011).

Materiais, como normas técnicas, manuais e protocolos provenientes de órgãos governamentais visam orientar profissionais quanto ao atendimento e manejo dos casos de violência sexual. A exemplo, a Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual (Ministério da Saúde, 2012) e um Caderno de Atenção Básica, de âmbito federal (Ministério da Saúde, 2001), possuem similaridades em seus conteúdos. Abordam os atendimentos clínico, farmacológico e psicossocial da rede intersetorial de atendimento. Sugerem a avaliação da situação de risco da criança ou do/a adolescente, o atendimento multidisciplinar, a notificação à autoridade competente, o tratamento médico, o acompanhamento com equipe de saúde mental e o acompanhamento da família. O/a profissional deve traçar alternativas concretas e sustentáveis, trabalhando também com prevenção do fenômeno da violência. Entende-se que a unificação dos materiais disponíveis, a partir de uma proposição de fluxo de atendimento em rede, facilitaria o acesso das vítimas aos serviços e pode subsidiar o direcionamento dos/as profissionais em suas respectivas áreas de atuação.

Estudos indicaram lacunas quanto ao acesso e qualidade dos serviços de saúde para vítimas de violência sexual, esgotamento do sistema e estruturação da rede de atendimento no âmbito do SUS (Amaral, Gomes, Figueiredo, & Gomes, 2013; Arpini, Tanure, Soares, Bertê, & Dal Forno, 2008; Souza & Santana, 2009; Vega & Paludo, 2015). Os principais resultados indicaram que o trabalho ainda é pautado pela predominância da hegemonia biomédica e fragmentação nos processos de trabalho, o que acarreta a descontinuidade do cuidado, falhas na comunicação entre pares, bem como despreparo técnico e conduta ética ineficiente. A fragilidade da rede faz com que o processo seja descontínuo, favorecendo a revitimização e intensificando os efeitos derivados da violência (Arpini et al., 2008). É necessário articular a rede, visando a continuidade do cuidado, reorganizando o sistema e o modelo de atenção para garantir a efetiva humanização do cuidado (Barbiani, Junges, Nora, & Asquidamini, 2014).

Estudos que permitam a compreensão da atuação da ESF em casos de VSCA são necessários. A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH) permite o conhecimento amplo e dinâmico sobre determinado fenômeno e destaca a influência dos ambientes ecológicos no desenvolvimento humano. A TBDH visa o estudo da pessoa em desenvolvimento no contexto em que está inserida (Bronfenbrenner, 1996), sendo o contexto fonte de informações por representar um espaço em que ocorrem suas interações em níveis de complexidade (Bronfenbrenner, 2011).

O modelo bioecológico considera o Processo, a Pessoa, o Contexto e o Tempo (modelo PPCT), propondo o estudo do desenvolvimento humano a partir da interação desses quatro núcleos inter-relacionados. O processo proximal é o principal mecanismo de desenvolvimento humano e ocorre a partir da interação com pessoas, objetos e símbolos no ambiente imediato por meio de uma atividade, em um período estendido de tempo, devendo este aumentar progressivamente em níveis de complexidade. Os processos proximais podem gerar efeitos de competência ou de disfunção (Bronfenbrenner & Morris, 1998). A pessoa é compreendida a partir de suas características individuais, tanto físicas quanto psicológicas, e da sua interação com o ambiente. Tais características são entendidas como produtos do desenvolvimento, que se relacionam com estabilidades e mudanças nas características biopsicológicas ao longo do ciclo vital (Bronfenbrenner, 2011).

O contexto é o ambiente ecológico, compreendido como um conjunto de estruturas relacionadas entre si, compostas por quatro sistemas. O microssistema é o ambiente imediato onde está a pessoa, estabelecendo processos proximais com outras pessoas, símbolos e objetos. O mesossistema corresponde às inter-relações das pessoas com um ou mais ambientes, com participação ativa. O exossistema refere-se a um ou mais ambientes que não envolvam a pessoa em desenvolvimento como participante ativa, mas que exerce/m influência sobre seu desenvolvimento. Por fim, o macrossistema está relacionado à ideologia e às crenças e normas culturais, no qual todos os outros sistemas estão inseridos (Bronfenbrenner, 1996). Por sua vez, o tempo permite analisar a influência das mudanças e continuidades que ocorrem ao longo do ciclo vital do desenvolvimento humano, contemplando os processos proximal e histórico (Bronfenbrenner, 2011).

O método da inserção ecológica foi sistematizado por pesquisadores/as brasileiros/as a partir da TBDH, sendo que o/a pesquisador/a deve estar inserido/a no ambiente ecológico que pretende investigar (Cecconello & Koller, 2003). Assim, a TBDH permite investigar o desenvolvimento humano no contexto, podendo a violência sexual ser entendida em sua complexidade, visto que esta não possui variáveis unicausais. Sendo assim, objetivou-se compreender como a ESF intervém em casos de VSCA, por meio da proposta metodológica da inserção ecológica.

Método

A partir da proposta metodológica da inserção ecológica (Cecconello & Koller, 2003), coletaram-se dados por meio da participação nas atividades da ESF estudada, entrevistas com profissionais e análise documental de prontuários referentes a casos de VSCA atendidos pela ESF. A coleta de dados ocorreu após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da IMED, CAAE n. 70421417.0.0000.5319.

A inserção ecológica foi realizada por Sandra Mara Setti, a qual atuava 20 horas semanais enquanto psicóloga na equipe da ESF, há mais de três anos. Para a realização do estudo, a pesquisadora obteve liberação por parte da gestão municipal, após apresentação do projeto de pesquisa. Foram utilizadas de quatro a seis horas semanais da carga horária total para a realização da inserção ecológica. A pesquisadora inseriu-se nos espaços de acolhimento, atendimento dos diferentes núcleos profissionais, grupos ofertados pela ESF, sendo observada a dinâmica de funcionamento da ESF e dos atendimentos realizados. Também foram acompanhadas atividades intersetoriais. Foram totalizadas 118 horas de inserção ecológica, entre dezembro de 2018 e maio de 2019. Os dados coletados foram registrados por meio de diário de campo.

A ESF estudada abrangia cinco bairros de um município do norte gaúcho, com população adstrita de aproximadamente 5.000 usuários. Possuía seis consultórios, dois ambulatórios, uma farmácia, uma sala de esterilização, um almoxarifado, uma sala de lavagem de materiais, uma sala de reuniões, uma recepção e seis banheiros.

A demanda era organizada por meio de agendas vinculadas a cada profissional da equipe, que era mantida aberta para consultas médicas, odontológicas e coleta de citopatológico. Também ocorria o acolhimento a livre demanda, realizado pela enfermagem, psicologia e farmácia. Cada atendimento era registrado no prontuário eletrônico, em sistema computacional 1. Eram desenvolvidas ações programáticas como visitas domiciliares às puérperas e recém-nascidos/as, Programa Remédio em Casa e participação em atividades intersetoriais. A ESF conduzia grupos de hipertensos/as e diabéticos/as, de atividade física, de artesanato, de gestantes e de cessação de tabagismo. A equipe realizava reuniões semanais para organização e planejamento das ações, discussão de casos e atividades de educação permanente.

Por meio de um roteiro para análise documental, foram analisados integralmente 12 prontuários de casos de VSCA atendidos pela ESF entre os anos de 2014 e 2019. Em 2016, houve troca do sistema de prontuários, sendo que após a migração do sistema computacional, não foram mais encontradas algumas informações referentes aos atendimentos prestados pela ESF. Apesar disso, todos os dados encontrados nos prontuários foram objeto de análise.

A ESF contava com 21 profissionais, identificados com a letra P, seguida por números de 01 a 21, sendo: uma médica, um médico de apoio, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, seis agentes comunitárias de saúde (ACS’s), uma farmacêutica, uma dentista, uma auxiliar de saúde bucal, uma auxiliar administrativa, uma sanificadora e seis residentes dos núcleos profissionais de enfermagem (n = 2), farmácia (n = 2) e psicologia (n = 2), que atuavam na ESF por meio de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (RESIM). Destes, 11 concordaram em ser entrevistados/as, sendo 10 mulheres e um homem, todos/as na faixa etária entre 24 e 45 anos. Os níveis de escolaridade variaram entre pós-graduação (n =3), graduação (n = 3), curso técnico (n = 1) e ensino médio (n = 4). O tempo de atuação em seu núcleo profissional na ESF variou entre três meses e 14 anos. Utilizou-se um questionário de dados sociodemográficos para caracterizar os participantes e um roteiro de entrevista semiestruturada para compreender como a ESF intervém em casos de VSCA. As entrevistas foram gravadas em áudio, tiveram duração média de 26 minutos e foram transcritas na íntegra.

A análise dos dados provenientes da inserção ecológica, das entrevistas e da análise documental dos prontuários foi feita a partir da Análise Temática do tipo indutiva (Braun & Clarke, 2006), em seis etapas: (1) familiarização da pesquisadora com os dados coletados; (2) codificação inicial e identificação de conteúdo dos dados coletados; (3) revisão da codificação, visando identificar e agrupar temas; (4) revisão dos temas, avaliando se existem subtemas que possuam autonomia de conteúdo; (5) definição e nomeação dos temas, considerando a sua importância e relação com o problema de pesquisa; (6) produção do relatório de resultados. O processo para análise dos dados foi guiado pela TBDH, baseada no modelo PPCT. Posteriormente, foi realizada a análise documental e o levantamento prévio dos dados foi revisado com uma auxiliar de pesquisa.

Resultados

A análise conjunta dos dados advindos das observações, das entrevistas e dos prontuários coletados resultou em três temas. O primeiro tema, “A ESF: Do atendimento multidisciplinar à ausência de protocolo” abrange a atuação da ESF nos casos de VSCA, sendo considerada a porta de entrada para os serviços de saúde. Compreenderam-se as ações intersetoriais desenvolvidas pela equipe da ESF e do RESIM, as quais buscam a prevenção de agravos e a promoção de saúde e bem-estar dos/as usuários/as.

Por meio do roteiro para análise documental, observou-se o fluxo de atendimento na unidade. Identificou-se que oito vítimas de violência sexual eram meninos com idades entre quatro a 12 anos e quatro meninas com idades entre 12 a 17 anos. O/a profissional que realizou o primeiro atendimento destes casos foi o/a médico/a (n = 8), o/a enfermeiro/a (n = 2) e o/a psicólogo/a (n = 2). Em 10 prontuários não havia informações sobre o encaminhamento dos casos, um era proveniente do Ministério Público e um da escola. A maior parte dos casos (n = 8) chegou à ESF devido a queixas clínicas, como dor abdominal, diarreia, vômito, febre e solicitação de exames de rotina. Em três prontuários havia o registro de notificações, sendo um para a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e dois para o Conselho Tutelar. Tais notificações foram realizadas pela enfermeira, médica e psicóloga. Ressalta-se que não foram encontrados registros da notificação compulsória para a saúde nos prontuários, sendo que não é possível afirmar que a equipe não realizava o preenchimento. Não foram encontradas as contrarreferências dos encaminhamentos nos prontuários analisados.

A demanda excessiva de atendimentos pela ESF foi reiteradamente mencionada (P02, P03, P05, P06, P07, P09, P10 e P11). Observou-se a rotatividade dos/as profissionais, desligamento de residentes e mudanças constantes nos horários das atividades da ESF. Especificamente sobre o atendimento, foram incluídas as percepções dos/as profissionais sobre o fluxo de atendimento nos casos de VSCA, evidenciando-se a ausência de protocolo na ESF conforme trecho da entrevista de P04.

Não tem protocolo né... Mas a gente procura fazer o papel da ESF né? Tem o agente (ACS) né? O agente vai acompanhar essa família, ter um olhar mais de perto e caso identifique alguma situação continuando a ocorrer... e o atendimento que a gente pode ofertar na unidade, psicológico, médico. Acolhimento e depois acionar os outros órgãos. Acho que não tem fluxo pré-estabelecido né, mas até porque são casos que deveria ter né. Deveria ter, porque eu não me sinto preparado para atender. Existe uma grande lacuna ali na preparação para isso, mas enfim.

Os/as 11 profissionais entrevistados/as indicaram que, nos casos de VSCA, há a centralização e direcionamento para atendimento psicológico e médico. Tal resultado também foi observado na análise dos prontuários, que indicou uma média de 14,16 atendimentos psicológicos para cada criança ou adolescente vítima de violência sexual. Assim, os atendimentos em psicologia foram os que tiveram maior média de frequência, seguidos pelos atendimentos de ACS’s, com média de 9,25.

O segundo tema, “O/a profissional da ESF: Entre a confusão e o comprometimento” abrange as concepções dos/as participantes, bem como da atuação de cada núcleo profissional da ESF no atendimento dos casos de VSCA e os sentimentos vivenciados durante a prática profissional. Observou-se que, embora os/as participantes tenham demonstrado saber o que é a VSCA, há falta de conhecimento em profundidade sobre a temática. Aspectos como confusão em relação ao perfil da vítima (i.e., a não consideração de meninos como vítimas), idade (i.e., que os adultos são capazes de se defender da violência sexual) e no atendimento (i.e., que a violência não deve ser abordada diretamente para não aumentar o sofrimento das vítimas) foram observados. Além disso, a falta de conhecimento também esteve relacionada ao atendimento/manejo conforme evidenciado por P3.

(...) eu não me sinto muito nisso assim. Parece que... [Silêncio]... Mesmo que eu conseguisse identificar, não sei se eu conseguiria intervir de uma forma. Eu acho que uma intervenção seria trazer para a equipe e aí ver o que poderia ser feito. Não sinto que eu teria essa capacidade.

O papel de cada profissional restringiu-se ao seu próprio núcleo profissional, sendo que alguns/mas participantes não tinham clareza quanto a sua atuação no atendimento dos casos de VSCA. O acolhimento e a escuta foram apontados como a primeira estratégia de manejo nos casos de VSCA, quando estes casos chegam à ESF, para que, posteriormente, sejam referenciados para os serviços necessários (P01, P02, P04, P05, P07, P09, P10 e P11). Os sentimentos acerca do manejo dos casos de VSCA mencionados nas entrevistas foram raiva (P04, P10), vergonha (P01), medo (P01, P06, P07, P09), indignação (P04), preocupação (P05), tristeza (P07, P09), pena (P07, P08) e repúdio (P04). Além das entrevistas, sentimentos dos profissionais puderam ser observados em um momento de inserção ecológica, em que o P05 e o P11 conversavam sobre o encaminhamento de um menino vítima de violência sexual. P11 mencionou dificuldade e despreparo no manejo e atendimento dos casos, relatando sentirse mobilizado e “com um nó na garganta” (sic.), sendo que neste momento embargou a voz e estava com os olhos cheios de lágrimas.

Os/as participantes relataram que se identificaram com a vítima e seus familiares (P01, P04, P05, P07, P08, P09, P10 e P11). O medo de compartilhar os casos de VSCA com a equipe e de notificar/encaminhar para a rede foi indicado, sendo atribuindo à falta de proteção, tanto das vítimas quanto dos/as profissionais envolvidos/as (P01, P05, P06, P09, P11). Os/as participantes (P01, P05, P06, P07, P08, P10, P11) também mencionaram dúvidas com relação à atuação da rede nos encaminhamentos dos casos, especificamente sobre a função de cada serviço da rede intersetorial. Por fim, foi indicada a necessidade de capacitações e a criação de espaços para discussão e aprofundamento da temática (P01, P02, P03, P04, P06 e P07).

O terceiro tema “A fragilidade da rede intersetorial” está relacionado ao fluxo de atendimentos externo à ESF. Os encaminhamentos ocorriam majoritariamente por meio de ofícios, mas ocasionalmente era realizado contato telefônico com o serviço de referência para repasse do caso. Em geral, os casos encaminhados para a rede retornavam para a ESF, principalmente, para atendimento psicológico. Foram identificadas dificuldades que os/as profissionais encontram ao encaminhar estes casos para a rede intersetorial (i.e., falta de comunicação entre os serviços e a exposição de ofícios aos/às agressores/as); as falhas encontradas na rede (i.e., burocracia e demora de atendimento pelos serviços) e a ausência de contrarreferência conforme relatado por P09.

Eu acho que a nossa maior dificuldade é a rede (...). Acho que isso é uma coisa muito séria e que faz com que a gente tenha até... que a equipe tenha até medo de fazer. Porque a gente tá se expondo em alguns momentos. Isso é uma dificuldade. A dificuldade, às vezes de conseguir progredir... Porque vai pra outro órgão e volta pra unidade... volta pra unidade.. e volta sempre como atendimento psicológico.

Na análise documental, verificou-se que a maioria dos prontuários (n = 10) não possuía informações sobre encaminhamentos, além de não haver informações sobre as contrarreferências dos encaminhamentos. Evidenciou-se, portanto, a falta de padronização dos serviços e a insuficiência de dados registrados nos prontuários.

Os principais serviços da rede apontados pelos/as participantes foram o Conselho Tutelar (P01, P02, P03, P04, P05, P06, P07, P08, P09, P10 e P11), o Ministério Público (P01, P04, P05, P09, P10 e P11), ou ainda, à DPCA, que foi notificada diretamente (P03, P07, P09, P10). A falta de articulação e de comunicação entre os serviços acabava por gerar frustração nos/as profissionais da ESF diante dos encaminhamentos mal sucedidos (P02, P03, P05, P06, P07, P09, P10, P11).

Discussão

O objetivo deste estudo foi compreender como uma ESF intervém em casos de VSCA. O processo de interação entre a pesquisadora e os/as profissionais foi frequente durante a inserção ecológica, sendo permeado pela troca de informações e de sentimentos, evidenciando uma relação de confiança. O conhecimento da rede intersetorial sobre o estudo, que se deu ao longo do seu desenvolvimento, por meio das redes sociais da pesquisadora e por conversas informais entre os/as profissionais, possibilitou a saída da pesquisadora da ESF para atividades extramuros, levando a temática da VSCA para outros serviços (e.g., serviços socioassistenciais e escolas). Tais fatores favoreceram a ocorrência de processos proximais e a relação entre diferentes microcontextos, além do desenvolvimento da pesquisadora.

A análise do microssistema ESF indicou que não há um fluxo interno específico para o atendimento dos casos de VSCA. Estes, geralmente, chegam à ESF por meio de ofícios do Conselho Tutelar ou do Ministério Público. Ao receber a suspeita ou o encaminhamento, os casos são direcionados para os/as profissionais da medicina e psicologia da ESF e alguns são discutidos em reunião de equipe. Identificou-se que a reunião de equipe e as educações permanentes constituem-se em espaços facilitadores para os processos proximais, pois ocorrem em uma base regular de tempo e favorecem a interação entre os/as profissionais, promovendo trocas de experiências e novos aprendizados.

A partir das observações da pesquisadora, da percepção dos/as profissionais e também das características de cada profissional, observou-se características de força (Bronfenbrenner & Morris, 1998), como o fato da equipe engajar-se no atendimento e encaminhamento dos casos de VSCA. O apoio mútuo e as discussões dos casos em equipe podem ser entendidos como geradores de processos proximais. Evidenciaram-se, também, características de recurso (Bronfenbrenner & Morris, 1998), como a falta de conhecimento sobre a temática e a falta de experiência no atendimento/manejo destes casos. Os/as participantes relataram sentimentos (i.e., medo, raiva, frustrações) que atravessam o trabalho, dificultando o engajamento em processos proximais. Isso corrobora estudos prévios, que apontam que a temática pode despertar nos/as profissionais sentimentos de difícil manejo, podendo interferir negativamente na conduta dos casos (Deslandes, Vieira, Cavalcanti, & Silva, 2016; Veloso, Magalhães, & Cabral, 2017).

Embora a equipe tenha se mostrado receptiva e empática ao atendimento dos casos de VSCA, nem sempre é o/a mesmo/a profissional que realiza tal atendimento, o que pode dificultar o estreitamento de vínculos entre profissional e paciente. Embora os/as profissionais tenham indicado o acolhimento e a escuta como manejo dos casos, não há aprofundamento e nem protocolo relacionado a essas condutas. Também não há uma base regular de tempo de atendimento. Tais fatores podem desfavorecer a ocorrência dos processos proximais com efeitos de competência para as crianças e adolescentes atendidos.

No atendimento em casos de VSCA na ESF, observou-se a centralização e direcionamento para atendimento psicológico. Ressalta-se que o/a profissional psicólogo/a não faz parte da equipe mínima da ESF, mas pode ser inserido/a por meio do NASF-AB, atuando como matriciador/a conforme Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. A inclusão do trabalho do/a psicólogo/a na equipe mínima torna-se imprescindível para a avaliação e conduta dos casos de VSCA. Ainda no microssistema, encontra-se a atuação dos/as profissionais do RESIM, que pode ser avaliada como uma potencialidade, visto que amplia as possibilidades de atuação da equipe (i.e., educação permanente, ações intersetoriais e práticas integrativas em saúde), favorecendo novos processos de aprendizagem.

Ainda que a inserção ecológica não tenha avançado para além do microssistema, é possível inferir que fatores dos demais sistemas interfiram na ESF. O mesossistema compreende a relação da ESF com a comunidade local e escolar, gestão e outros serviços da rede intersetorial. Os encaminhamentos dos casos de VSCA ocorriam principalmente por ofício, denotando dificuldades na comunicação e articulação da rede intersetorial. Os/as profissionais do serviço também indicaram dúvidas sobre a função de cada serviço da rede. Para efetiva atuação e articulação, é necessário conhecimento dos serviços que compõem a rede intersetorial e suas funções. Assim, relações mesossistêmicas aparentemente não são resolutivas, não há um fluxo de atendimento e nem contrarreferência dos encaminhamentos realizados, o que denota a fragmentação do cuidado. Estas relações são absolutamente necessárias para um atendimento efetivo em rede. Evidenciou-se que a ESF desenvolvia atividades de promoção e de prevenção à saúde, visando o bem-estar de seus/uas usuários/as. Tais ações não eram direcionadas à VSCA, o que pode estar relacionado à complexidade da temática, podendo ser considerada, ainda hoje, um tabu na sociedade.

Em relação ao exossistema da ESF em estudo, identificou-se a influência do RESIM. Qualquer alteração de atividades vinculadas à universidade, impactava o fluxo de atendimentos da ESF, já que ajustes eram necessários na agenda dos/as residentes e dos/as demais profissionais da equipe, refletindo diretamente no atendimento dos/as usuários.

Em termos macrossociais, as representações sociais da sexualidade e a falta de investimento público nos serviços são fatores que devem ser levados em consideração. Observou-se que o Plano Nacional de Enfrentamento da VSCA (Ministério da Justiça, 2002) não estava sendo totalmente efetivado. Evidenciou-se a falta de padronização dos serviços, a insuficiência de dados registrados sobre o atendimento e os encaminhamentos, a falta de protocolos específicos de atendimento e a falta de programas de formação para os/as profissionais e agentes que lidam com este agravo (Paixão & Deslandes, 2010). Além disso, o período sócio-histórico em que o país se encontra pode influenciar as representações sociais sobre sexualidade e a precarização dos serviços. Projetos que visam proibir discussões sobre gênero e educação sexual em escolas tendem a aumentar o estigma relacionado ao tema, bem como cortes no financiamento ao SUS podem fragilizar os serviços.

Por fim, o tempo compreendeu a observação dos/as profissionais da ESF em suas atividades durante cinco meses. A rotatividade de profissionais (i.e., médicos/as), o desligamento de residentes (i.e., enfermagem, psicologia) e a troca constante de horários (e.g., turno único, funcionamento da farmácia), podem ser fatores limitadores para o estabelecimento de vínculo com os/as usuários/as e para a ocorrência de processos proximais, que são importantes na atenção aos casos de VSCA.

Mesmo diante dos resultados desse estudo, que indicam a falta de preparo para o manejo dos casos de VSCA, a importância da ESF no atendimento e cuidado continuado nesses casos é evidente. Para que a ESF atinja seu potencial neste tema é necessária a atuação da equipe multidisciplinar, por meio de um fluxo de atendimento. Compreendeu-se, por meio dos resultados, que o acolhimento das vítimas e familiares pode ser feito por qualquer profissional da ESF. O acolhimento consiste em receber a demanda e proceder com encaminhamentos iniciais. A partir do que foi constatado neste estudo, após acolhimento, o/a profissional deve realizar a notificação da violência e encaminhar para a vigilância epidemiológica e para o Conselho Tutelar, visando a garantia dos direitos da criança e do adolescente. A notificação também deve ser anexada ao prontuário do/a paciente. Após acolhimento, a vítima deve ser encaminhada para atendimento médico e psicológico, visando o planejamento da conduta para cada caso. Em ESF’s em que o/a psicólogo/a não está inserido/a, a vítima e seus familiares podem ser encaminhados para serviços da rede intersetorial, como serviços de saúde (CAPSi) e socioassistenciais (CREAS), por exemplo. Este fluxo está em concordância com a Norma Técnica de Prevenção aos Agravos da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, considerada um marco para atenção em saúde e na rede intersetorial para a violência sexual (Ministério da Saúde, 2012).

As famílias podem ser acompanhadas in loco por ACS’s, por meio de visitas domiciliares periódicas. Ressalta-se a importância da construção conjunta (i.e., profissionais, pacientes, familiares) de planos terapêuticos singulares (PTS’s - Lei n. 13.431, 2017), conforme avaliação e necessidade de cada caso. Os encaminhamentos e as contrarreferências devem ser evoluídos no prontuário do/a paciente, para acompanhamento do caso. Sendo assim, um fluxo de atendimento foi proposto com base nos resultados deste estudo (Figura 1).

Figura 1 Proposição de fluxo de atendimento nos casos de VSCA na ESF e sua relação com a rede. 

Para que o fluxo proposto seja efetivado, é necessário que ocorram capacitações com os/as profissionais da ESF e também da rede intersetorial. De acordo com os resultados deste estudo, os conteúdos a serem abordados são: identificação, características, consequências e formas de manejo da VSCA, além do esclarecimento da atribuição/função de cada serviço e de cada profissional da rede intersetorial no atendimento e manejo destes casos. Reuniões periódicas entre serviços e os/as profissionais envolvidos/as também são necessárias para a construção e manutenção do fluxo, bem como para o planejamento conjunto de intervenções conforme preconiza a Lei n. 13.431 (2017). Tais reuniões fomentarão as trocas entre microcontextos, favorecendo as relações mesossistêmicas necessárias à adequada atuação da rede intersetorial.

Tomadas em conjunto, estas ações visam o cuidado integral e continuado da criança e do/a adolescente vítimas de violência sexual e de sua família, bem como abrem possibilidades para a identificação desses casos. Também é necessário o investimento em políticas públicas que garantam o acesso das vítimas e familiares aos atendimentos e aos serviços protetivos, bem como que contemplem ações voltadas à prevenção, principalmente em contextos emergentes de desenvolvimento humano como escolas e comunidade local.

Após a realização da pesquisa, foi agendada uma devolutiva em forma de capacitação para a equipe da ESF. Foram disponibilizadas duas horas de uma reunião de equipe para a atividade, que foi realizada pela pesquisadora. A partir dos resultados da pesquisa, foi contextualizado o fenômeno da VSCA, seus sinais, sintomas e as formas de identificação, bem como a atuação da ESF e da rede de atendimento e as possibilidades de manejo destes casos.

Considerações Finais

A VSCA é um fenômeno complexo e abrangente, que envolve diferentes aspectos, cenários e sujeitos. A compreensão da atuação da ESF nestes casos exigiu um referencial teórico-metodológico que possibilitasse o conhecimento do fenômeno no contexto em que ocorreu. A inserção ecológica possibilitou aproximação com a realidade dos/as participantes, bem como o conhecimento de suas características pessoais e dos processos de desenvolvimento ao longo do período de realização da coleta de dados.

Os resultados aqui apresentados apontaram para a proposição de conteúdos que devem ser abordados em capacitações e ações para o fluxo de atendimento. Os conteúdos devem contemplar a identificação, características, consequências e formas de manejo da VSCA, além do esclarecimento da atribuição de cada serviço e profissional da rede intersetorial. Além disso, indicam que é necessário que os serviços da rede intersetorial possam intervir de maneira articulada, evitando a revitimização, ampliando o apoio às famílias e, consequentemente, apresentando maiores índices de resolutividade.

Tais resultados devem ser analisados levando-se em consideração suas limitações. Uma delas refere-se ao fato de não ter uma equipe externa no momento da coleta de dados, conforme sugerido pela literatura (Cecconello & Koller, 2003). Em contrapartida, a inserção da pesquisadora no contexto onde atuava enquanto profissional pode ser vista como uma potencialidade, dado o método da inserção ecológica. Identifica-se, também, a carência de estudos brasileiros em psicologia que descrevam uma proposta metodológica que apresente rigor científico e confira maior validade ecológica para estudos que tenham como base a TBDH (Cecconello & Koller, 2003).

Assim, este estudo soma-se a estudos nacionais da área (Hohendorff, Habigzang, & Koller, 2015; Lima et al., 2011; Luna, Ferreira, & Vieira, 2010; Netto & Deslandes, 2016; Zanelatto, Medeiros, Santos, & Munari, 2012), não tendo como pretensão esgotar as discussões sobre a temática. Novas pesquisas são necessárias e podem abranger mais participantes, bem como realizar inserções ecológicas em outras ESF’s, de diferentes cidades e estados, abarcando diferentes contextos socioculturais do país. Os estudos podem visar a elaboração de um protocolo de atendimento e capacitação para os/as profissionais inseridos/as no serviço, aprofundando a relação da ESF com a rede intersetorial nos casos de VSCA.

1 Sistema adquirido pelo município. O sistema contempla os cadastros de pacientes, ações programáticas, controle epidemiológico e acolhimento com classificação de risco. Permite que o/a profissional realize os registros dos atendimentos realizados, de forma online, por meio da avaliação SOAP (subjetivo, objetivo, avaliação e plano). Permite o acesso a relatórios sobre produtividade e listas de grupos de riscos. É interligado em toda a rede de atendimento das ESF’s do município em estudo.

Financiamento: O estudo foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), por meio do edital 01/2017 - Apoio a Recém Doutor (ARD), e da Fundação IMED, por meio de bolsa produtividade concedida ao terceiro autor.

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Recebido: 07 de Outubro de 2020; Revisado: 12 de Abril de 2021; Aceito: 13 de Abril de 2021

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