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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79271 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

O que (A)pre(e)nde um “Jovem Aprendiz”? O Trabalho Psíquico Adolescente durante a Pandemia

What does a “Young Apprentice” Learn? Teenage Psychic Labor During the pandemic

¿Qué hace un “Joven Aprendiz”? Trabajo Psíquico Adolescente durante la Pandemia

Amanda Wecker* 

Psicóloga pela Universidade Feevale. Mestra e Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale.


http://orcid.org/0000-0002-5573-3928

Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto** 

Psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0001-5670-9332

Camila Backes dos Santos*** 

Psicóloga. Doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Pós-doutoranda CAPES do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Feevale.


http://orcid.org/0000-0001-7276-8252

*Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, Brasil

**Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, Brasil

***Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, Brasil


RESUMO

Este trabalho objetiva propor uma discussão acerca dos significantes que envolvem o trabalho psíquico adolescente de jovens do Projeto Jovem Aprendiz durante a pandemia da COVID-19. Trata-se de uma pesquisa-intervenção de caráter psicanalítico, realizada com 26 adolescentes do Projeto Jovem Aprendiz, divididos em dois grupos com 13 integrantes. Para a coleta de dados, foi construído o instrumento "Espaço de fala livre e implicada", que consistiu em quatro rodas de conversa online, com duração de uma hora cada. Os encontros foram registrados em Diário de Experiência e analisados a partir da Poética da Extração. Observou-se que esses jovens recebem a missão de mudar as histórias das famílias, sendo o desejo principal depositado neles pelos pais. As famílias parecem fazer uma retirada precipitada da posição de autoridade, delegando ao Projeto a posição de referência e operando em uma ruptura da transmissão parental. Os jovens sentem-se inseguros, porém encontram no Projeto Jovem Aprendiz um acolhimento para dar continuidade à sua posição de desejo. Consideramos que o Projeto, amparado pela escuta psicanalítica, lançou luz a essas questões que circundam a adolescência, possibilitando outro lugar e outro olhar para esses adolescentes na busca de referências que facilitem o trabalho psíquico necessário para sua constituição.

Palavras-chave: adolescência; inclusão social; pandemia de COVID-19; psicanálise.

ABSTRACT

This work aims to propose a discussion regarding the signifiers involving teenage psychic labor of young people from the Young Apprentice Project during the COVID-19 pandemic. This is a psychoanalytical research-intervention, carried out with 26 adolescents from the Young Apprentice Project, divided into two groups of 13 participants each. For data collection, the "Space of Free and Implicated Speech" instrument was developed, consisting of four online conversation sessions, each lasting one hour. The meetings were recorded in an Experience Diary and analyzed through the Poetics of Extraction. It was observed that these adolescents are given the mission of changing the backgrounds of their families, with this main desire being placed on them by their parents. Their families seem to make a hasty withdrawal of the position of authority, delegating this reference position to the Project and operating in a rupture of parental transmission. The young people feel insecure, yet they find in the Young Apprentice Project a welcome to continue towards their desired position. We believe that the Project, supported by psychoanalytic listening, has shed light on these issues that surround adolescence, allowing another place and outlook towards these adolescents in search of references that facilitate the psychic labor necessary for their constitution.

Keywords: adolescence; social inclusion; COVID-19 pandemic; psychoanalysis.

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo proponer una discusión sobre los significantes que envuelven el trabajo psíquico adolescente de jóvenes del Proyecto Joven Aprendiz durante la pandemia de la COVID-19. Se trata de una investigación-intervención psicoanalítica, realizada con 26 adolescentes del Proyecto Joven Aprendiz, divididos en dos grupos de 13 integrantes cada uno. Para la recolección de datos, se construyó el instrumento "Espacio de habla libre e implicada", que consistió en cuatro ruedas de conversación en línea, con una duración de una hora cada una. Los encuentros fueron registrados en un Diario de Experiencia y se analizaron desde la Poética de la Extracción. Se observó que estos jóvenes reciben la misión de cambiar las historias de sus familias, siendo el principal deseo depositado en ellos por los padres. Las familias parecen hacer un retiro precipitado del puesto de autoridad, delegando el puesto de referencia al Proyecto y operando en una ruptura de la transmisión parental. Los jóvenes se sienten inseguros, pero encuentran en el Proyecto Joven Aprendiz una acogida para continuar con el puesto deseado. Creemos que el Proyecto, apoyado en la escucha psicoanalítica, arroja luz sobre estas cuestiones que rodean a la adolescencia, permitiendo otro lugar y mirada a estos adolescentes en busca de referentes que faciliten el trabajo psíquico necesario para su constitución.

Palabras clave: adolescencia; inclusión social; pandemia de la COVID-19; psicoanálisis.

Narrativas sobre uma Versão de tantas Adolescências… Uma Introdução

Este artigo é oriundo de uma pesquisa de mestrado realizada com adolescentes do Projeto Jovem Aprendiz durante a pandemia da COVID-19. Inicialmente, consideramos importante circunscrever as bordas entre os conceitos que remetem às palavras “jovem” e “adolescente” e situar a nossa posição teórica quanto à escolha do uso de tais termos.

No que se refere à concepção de juventudes, ao considerarmos a sua pluralidade conceitual, nos deparamos com atravessamentos sociais que impossibilitam a sua normatização, tornando cada juventude única e, portanto, singular e, ao mesmo tempo, plural. Quanto à adolescência, apesar de estar comumente associada às teorias do desenvolvimento, será adotada aqui como operação psíquica, situada desde o campo da psicanálise. Trata-se de “um tempo subjetivo crítico, lento e difícil, porém necessário” para que se opere a travessia constitutiva do sujeito (Backes, 2016, p. 9).

A operação psíquica que envolve a adolescência remete a importantes transformações nos registros do Real, Simbólico e Imaginário. O adolescente, em razão de um novo estatuto do seu corpo e de sua imagem, que vacila quanto à identificação especular, se lançará em um trabalho de reformulação de uma imagem na qual poderá se identificar, havendo uma reedição do Estádio do Espelho, conforme apontado por Jean-Jacques Rassial (1999). O Real, assim, provoca o início do trabalho adolescente, a partir do luto sentido pelo sujeito de sua posição, o que exige um trabalho de recomposição de sua imagem e de deslocamento de posições, acionando os registros do Imaginário e do Simbólico, respectivamente (Rassial, 1999). Se na infância se fez necessário um Outro primordial que atestasse a identificação do bebê com uma imagem refletida, nessa reedição o adolescente convocará Outros a ocuparem esse papel. Esses Outros se diferenciam do Outro primordial posto que agora são percebidos, pelo adolescente, como castrados. Nesse sentido, a imagem refletida no espelho não é exatamente a do adolescente, mas sim “uma imagem que sempre deve muito ao olhar dos outros” (Calligaris, 2014, p. 25). O adolescente enxerga, em si, o que imagina que os outros enxergam nele e, entre a criança que foi e o adulto que ainda não é, seu espelho é “frequentemente vazio” (Calligaris, 2014, p. 25), sendo um terreno fértil para fragilidades na autoestima, inseguranças e sintomas depressivos.

Na tentativa de preencher esse vazio angustiante, o adolescente buscará respostas para a questão “o que os adultos querem e esperam de mim?”. Cada adolescente construirá respostas muito distintas, traduzidas em suas condutas múltiplas e complexas, tal qual os sonhos e desejos reprimidos dos seus pais (Calligaris, 2014). O adolescente, utilizando-se dessa questão como alicerce, construirá sua imagem a partir daquilo que deve ao outro, vendo-se aprisionado ao eu ideal, a uma imagem oriunda dos significantes do Outro que constituem o ideal do eu (Lacan, 1962-63/2005, 1966/1998). Há, aqui, a tarefa de desprender-se, renunciando a essa posição objetal de ser-para-o-outro enquanto imaginário de completude do narcisismo infantil, apreendendo das relações sociais os meios simbólicos para construir sua identidade, seu ideal de futuro e se constituir enquanto um sujeito orientado na busca de seu próprio desejo, vinculando-se ao ideal do eu (Freud, 1914/2010). Com os ideais onipotentes da infância desmoronando, o simbólico é solicitado a amparar a travessia entre a criança e o adulto, o privado e o público, entre a saída de casa e a entrada no campo das relações sexuais amorosas e das identificações coletivas, os ideais encarnados nos pais e os ideais presentes na cultura. Nesse desprendimento, se faz necessário que o adolescente apreenda e inscreva novas metáforas para suceder a metáfora paterna (Rassial, 1999).

Nosso compromisso, portanto, é o de conjugar o termo “jovem” e sua relação com a perspectiva plural e heterogênea da experiência das juventudes, com os desafios que cada adolescente encontra para fazer a travessia rumo à adultez, compondo diferentes “narrativas e versões sobre a adolescência” (Mügge et al., 2021, p. 13). Assim, a versão da adolescência eleita nesta pesquisa é a do Jovem Aprendiz, Projeto de Extensão da Universidade Feevale, desenvolvido desde 2007, com mais de 800 jovens formados, tendo como principal pressuposto o impacto das mudanças sociais e econômicas na juventude. Seu foco é o desenvolvimento da autonomia de jovens provenientes de famílias de baixa renda (com rendimento de até 1,5 salário-mínimo) e em situação de vulnerabilidade social, a partir do preparo e inserção no mundo do trabalho e sua transição para a vida adulta em sociedade, de forma ética e cidadã. A fim de promover uma inclusão amparada nas dimensões sociais, culturais e profissionais, o Projeto integra atividades de áreas técnicas e humanas, com Oficinas de Informática, Português e Psicologia (Wecker et al, 2019).

Sabemos que são diversos os impactos na juventude a partir das mudanças sociais e econômicas e, em nosso estudo, elegemos a pandemia da COVID-19 como principal fonte de perturbação do contexto atual. A partir das estratégias de enfrentamento do vírus, os adolescentes foram privados de sua liberdade e do convívio social em um tempo em que o território social e a presença do outro se mostram fundamentais para o franqueamento do trabalho psíquico exigido. Em função do isolamento social, o regime presencial da rede pública e privada de ensino foi suspenso, havendo planejamento de tarefas à distância e aulas na modalidade online, o que atingiu cerca de 300 mil estudantes de ensino médio a nível estadual e cerca de sete milhões em âmbito nacional (QEdu, 2021). O prolongamento do mal-estar, a sobrecarga de atividades, o afastamento dos encontros presenciais com os pares, a falta de espaço em casa, que está sendo compartilhada diretamente com o restante da família, e as repercussões financeiras são geradores de impacto psicológico nos adolescentes. Ainda, o medo, relacionado à contaminação e à morte pelo vírus, bem como o luto sentido pela experiência de perda de milhões de pessoas portam potencial traumático.

No que se refere especificamente aos jovens do Projeto, trata-se de adolescentes provenientes de famílias em situação de desigualdades, residentes de bairros periféricos, em moradias simples compartilhadas com o restante da família - muitas vezes numerosa. Por serem alunos de Ensino Médio, vinculados à rede pública de ensino, a suspensão dos encontros presencias não foi substituída por aulas online, mas sim por planejamento de tarefas à distância, o que implicou em sentimentos de sobrecarga, exclusão, solidão e desamparo por parte dos adolescentes. No âmbito familiar, o hiper convívio, as dificuldades financeiras e o medo de contaminação e de morte somam para os sentimentos de sobrecarga e desamparo.

Como se não bastasse todo o desconhecido inerente à adolescência, que se descortina no corpo, nas sensações, e na dinâmica das relações, em função da pandemia da COVID-19, os jovens se viram diante de algo absolutamente inusitado, sem que encontrassem no tecido social um discurso que pudesse bordejar a angústia, produzindo um cenário árido para que o trabalho adolescente acontecesse. Tal percepção nos fez questionar de que forma esses jovens podem construir um ideal de futuro, projetar esse ideal e se situar no mundo, neste cenário. Assim, a partir destas questões, este trabalho, ao integrar a pesquisa de mestrado aqui referida, objetiva discutir os significantes que circundam o trabalho adolescente dos jovens do Projeto Jovem Aprendiz durante a pandemia da COVID-19.

A escolha por eleger estes os sujeitos de nossa pesquisa se deu alicerçada em duas motivações. A primeira diz respeito à articulação entre ensino, pesquisa e extensão, uma vez que o Projeto Jovem Aprendiz é um dos projetos de extensão da universidade de vinculação das pesquisadoras. A segunda, refere-se a essas condições de desigualdades e vulnerabilidades a que os jovens estão submetidos. Consideramos, desse modo, um devir ético investigar, compreender, discutir e propor intervenções pautadas nas dimensões da saúde e da inclusão social destes jovens. Ressaltamos que tal objetivo contempla uma análise surgida a posteriori, oriunda da análise dos dados e dos “efeitos de leitura” da pesquisadora, conforme pressupostos da pesquisa em psicanálise.

Percursos Metodológicos de uma Pesquisa-Intervenção

Este artigo compõe uma dissertação de mestrado, sendo uma pesquisa-intervenção de caráter psicanalítico, aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Feevale, sob o CAAE número 44770221.1.0000.5348. Contamos com a participação de 26 adolescentes, sendo 19 do sexo feminino e sete do sexo masculino, com idades entre 16 e 17 anos, integrantes do Projeto de Extensão Jovem Aprendiz vinculado à Universidade Feevale, residentes no Vale dos Sinos, que cursaram o Ensino Médio nos anos de 2020 e 2021 e cumpriram as normas de suspensão do regime presencial.

Na pesquisa de mestrado, utilizamos o instrumento “Espaço de fala livre e implicada”, que contempla um formulário online, disponibilizado via Google Forms, para recolher informações iniciais sobre os jovens, e rodas de conversa online, via BlackBoard Learn, com eixos temáticos norteadores para discussão: 1- adolescência antes da pandemia; 2- adolescência durante a pandemia; 3- o adolescente e seus planos para o futuro; 4- adolescência, pandemia e política; 5- o adolescente e a cultura; 6- considerações dos adolescentes sobre as Rodas de Conversa. Os eixos temáticos foram pensados de modo a possibilitar que os adolescentes falassem de si e da sua experiência de atravessamento da pandemia da COVID-19, juntamente aos impasses e efeitos sentidos nesse período. A Plataforma BlackBoard Learn, sala virtual em que ocorreram os encontros, era a plataforma oficial da Universidade, utilizada também pelo Projeto, possibilitando que as pesquisadoras e os jovens tivessem intimidade com os comandos e conferindo maior fluidez ao processo.

Esse instrumento tem inspiração na Escuta Flânerie (Gurski, 2019), uma proposta metodológica de pesquisa, escuta e intervenção que articula a ética da escuta psicanalítica com as temáticas da experiência e do flâneur em Walter Benjamin (1933/2019, 1934-39/2019). Encontramos, na figura do flâneur, um catador de restos que, a partir do que seria descartado ou negado, aponta para a possibilidade de oferecer um espaço para o desaceleramento e o tropeço, o impensável e o detalhe, podendo vir a se produzir novas formulações acerca das mesmas coisas. Gurski (2019) propõe, nesse sentido, que o pesquisador esteja em uma posição de flâneur, disposto a escutar as narrativas do sujeito, oferecendo a possibilidade de uma fala livre e implicada com o tempo de cada um - questão que inspira o nome de nosso instrumento -, evocando o surgimento de uma narrativa mais próxima às questões desse sujeito. A conjunção do paralelo entre a atenção flutuante e a postura de flâneur reconfigura a possibilidade de circulação da palavra, através da sustentação temporal comum ao catador.

Gurski (2019), em sua pesquisa, preocupou-se em produzir condições de fala livre e implicada com o tempo de cada um que circula por instituições socioeducativas, lugares estes em que a palavra se encontra aprisionada e apagada. Em nosso estudo, compreendemos a importância da fala e da escuta em contextos de encontros e desencontros, marcados por uma espécie de “ditadura” pelo enclausuramento de palavras e sentidos, contextos que se constituem de rastros e restos, destroços e fragmentos, como pode ser considerado o contexto de pandemia da COVID-19. Assim, inspiradas por essa preocupação, nosso intuito, a partir do instrumento “Espaço de fala livre e implicada”, foi criar um espaço potencializador de simbolização, para que os adolescentes, ao falarem de si e da sua história, pudessem produzir um deslizamento de sentido, tecendo novos significantes. Através dessa movimentação narrativa, via testemunho, busca-se promover ancoragens e representações simbólicas e metafóricas fundamentais para que as vivências traumáticas se decantem em experiências.

Para tecer registros das mais diversas ordens, relacionados à experiência da pesquisa, elegemos os Diários de Experiência (Gurski, 2017; Gurski & Strzykalski, 2018). Trata-se de uma metodologia de registro dos processos de pesquisa que também recebe, em sua concepção, influência da figura do flâneur, além de inspirar-se no diário de campo advindo dos estudos etnográficos e em concepções psicanalíticas, como a associação livre e o a posteriori. As autoras propõem que os registros sejam feitos de forma livre, associativa e reflexiva, de modo a não exigirem uma sistematização e normatização comuns à uma produção textual. Podem, pelo contrário, aparentar um texto fragmentando, inacabado e sem articulação evidente entre as frases (Gurski & Strzykalski, 2018).

Em nossos Diários, além das transcrições específicas das rodas de conversa com os jovens, registramos, em movimento de associação livre, nossas impressões, sensações, percepções e reverberações durante e a posteriori ao momento da intervenção. Dessa forma, amparadas no ato de flanar por entre os fragmentos recolhidos e os restos resgatados da vivência de pesquisa, realizamos um trabalho artesanal de tecitura, de modo a tecer, em nossos Diários, questões acerca dos arranjos singulares e dos conteúdos transferenciais, criando a possibilidade de que tal vivência se decantasse em uma experiência.

Após contato prévio com o Projeto de Extensão e demais combinações, a primeira autora esteve presente em uma das Oficinas do Projeto, realizadas através da Plataforma Blackboard Learn, com o intuito de apresentar a pesquisa e convidar os adolescentes a participar da mesma. Foi encaminhado, neste encontro, o link do formulário online contendo inicialmente a Apresentação da Pesquisa, os Termos de Consentimento/Assentimento Livre e Esclarecido e, por fim, algumas questões iniciais sobre os adolescentes, vinculadas ao instrumento “Espaço de Fala Livre e Implicada”. Dos 29 integrantes do Projeto, 26 aceitaram o convite para participar da pesquisa e, assim, organizamos dois grupos de 13 participantes cada, dividindo-os por ordem alfabética, de modo a formarmos rodas mais intimistas e com maior possibilidade de circulação da palavra.

Durante os encontros que seguiram, a primeira autora contou com o auxílio de duas acadêmicas voluntárias de Iniciação Científica, vinculadas ao curso de Psicologia da Universidade, que também produziram os registros em seus Diários de Experiência. Totalizamos quatro rodas de conversa, de uma hora cada, para cada grupo, ocorridas semanalmente, durante um mês, todas as sextas-feiras à tarde em horário letivo. Destacamos que a autoria das narrativas apresentadas na Discussão dos Resultados foi destacada a partir das letras iniciais do nome dos participantes, a fim de preservar suas identidades.

Os Diários de Experiência foram analisados através da Poética da Extração (Dos Santos, 2018), uma proposta metodológica de caráter psicanalítico que articula a arte da escuta com o processo de “cortar para ler”, composto a partir do processo de leitura/corte/escrita produzido por Foer (2010) sobre uma obra já escrita, intitulada “A Rua dos Crocodilos”, de Bruno Schulz, resultando em um “livro-escultura-objeto-obra-de-arte”, intitulado “Tree of Codes”. Inicia-se, na obra, um processo manual de extração de palavras através do recorte, criando vazios que permitem novas composições da narrativa, construindo uma história original com as palavras restantes e possibilitando a entrada de um terceiro, o toque, na relação olhar e livro, que produz a condução da leitura a partir da experiência tátil. O trabalho de Foer (2010), em Tree of Codes, fornece visibilidade poética ao fazer artesanal presente no processo da escuta psicanalítica e faz resistência às produções em massa, de modo que para cada página utilizada, uma nova lâmina foi produzida. Trata-se de um processo de desmontagem da narrativa, de modo que, de um detalhe, recortado, de uma poética da extração, algo único, novo e singular pode surgir.

Tal metodologia faz uma alusão, desse modo, ao processo de extração significante do e no campo do outro/Outro que o bebê precisa fazer para constituir-se sujeito, produzindo sua própria cadeia, como num jogo, ou numa brincadeira. A proposta de uma lâmina singular para cada página cortada é tomada como inspiração para a Poética da Extração (Dos Santos, 2018), de modo que o pesquisador, calcado na transferência, a partir de sua escuta atenta e flutuante, produz cortes e extrações a partir daquilo que o toca, ou seja, seus efeitos de leitura. Tal extração/corte na narrativa do sujeito é capaz de fazer surgir sobre a base das mesmas palavras um novo jogo significante, com potencial de produzir uma nova e outra história. Conforme a discussão dos resultados for sendo apresentada, esperamos que o leitor perceba a extração de palavras específicas, elevadas a posição de significante, que foram servindo de fio condutor para a escuta/leitura realizada.

Entre Brincadeiras e Trabalhos... Tecendo a Discussão dos Resultados...

O elemento central que compõe o título deste estudo brinca, propositadamente, com múltiplos sentidos, na medida que evidencia o significante “aprendiz” e o extrapola, em um deslizamento de sentidos, para prender e apreender. Em uma busca no dicionário Michaelis (2021) pelo significado de tais palavras, encontramos, em aprendiz, aquele “que dá os primeiros passos em uma atividade”; evidenciamos o significado de prender: “ficar preso ou seguro; agarrar-se, embaraçar-se, enganchar-se” e, por fim, em apreender podemos citar “captar o sentido de; assimilar mentalmente; absorver, alcançar, compreender”, ainda, “pôr-se inquieto; perturbar-se, preocupar-se”.

A partir desse significante e seus outros sentidos, identificamos, no sujeito adolescente, o lugar de aprendiz que surge enquanto nova posição subjetiva, de transição, e diz respeito àquele que está dando os primeiros passos em direção à saída das relações familiares. Tal questão não é tarefa fácil, pois não se trata de uma saída puramente física, uma mudança geográfica de endereço. Antes, trata-se de uma saída metafórica, implicando uma mudança na posição ocupada, até então, na relação com o Outro e com o desejo. O aprendiz adolescente se encontrará, muitas vezes, emaranhado em seu registro familiar, em sua posição objetal infantil de ser-para-o-outro enquanto imaginário de completude e, a partir disso, se encontrará preso naquilo que imaginariamente deve ao outro, de si mesmo. Para avançar em seu caminho, o aprendiz adolescente deverá se colocar em posição de assumir-se como sujeito de um ato, construindo um outro lugar, para si, diferente daquele ocupado em sua infância, construindo fronteiras entre eu e outro/dentro e fora (Rassial, 1999).

Esse ato/construção só é possível a partir de uma perturbação/inquietação/angústia sentida pelo adolescente que, paradoxalmente, deseja continuar preso nessa posição infantil e anseia desprender-se para alcançar novos e outros lugares, no exercício de sua inscrição social. Para tanto, o aprendiz adolescente precisará apreender e inscrever uma nova metáfora paterna, enquanto significante fundamental, a partir de outros significantes e sentidos, de experiências com o corpo (seu e do outro), com o sexual, com as fronteiras e com o desejo (Rassial, 1999). Trata-se, sobretudo, de um processo de desprender-se da posição infantil, de origem, para prender-se/fazer laço com outra posição em relação ao Outro e ao desejo.

O(s) Trabalho(s) de um Aprendiz-Adolescente

Em confluência com o significante aprendiz e suas derivações, há um trabalho que surge também como significante dependendo da posição em que se encontra e aponta para diferentes sentidos: trabalho na posição de operação psíquica e na posição de uma inclusão no mercado de trabalho, que é o cerne do Projeto Jovem Aprendiz. Utilizaremos essas duas vias de sentido para narrar essa versão específica da adolescência aqui apresentada.

Notamos, desde o início, que muitos desejos são depositados nesses jovens. Suas famílias, em geral, não tiveram oportunidade e acesso ao ensino superior e acabam pondo tais expectativas em seus filhos, a saber, de que ingressem na faculdade, consigam um bom trabalho e tenham sucesso financeiro. Os jovens, em diversos momentos, acabam por senti-las não como um sonho conjunto, mas como um peso, uma responsabilidade de sustento, dada essa vulnerabilidade, principalmente financeira, que tais famílias se encontram, em especial no momento pandêmico. Sobre essa questão, J., um adolescente de 16 anos, desabafa:

“Eu preciso ser bem-sucedido, comparando preciso ser tão bom quanto (o restante da família). É uma pressão, bem agoniante. Não sabemos o que vai acontecer depois. Mas tenho que ter nome grande, fazer todos os cursos. A mãe quer que eu faça muita coisa para a pouca idade que eu tenho. Tudo que ela não fez, ela quer que eu faça. As coisas que não estou a fim e ela me obriga... Mais controla o que tenho que fazer do que pensa no que eu realmente quero. Eu noto que sempre tenho vários planos, várias faculdades que poderia fazer. Porque se uma não der certo, tenho outra saída. Quero abrir uma empresa de marca própria roupa, fazer Design Gráfico. Mas também poderia fazer Fisioterapia... e tenho mais cursos que penso. Tenho o alfabeto todo de planos.”

Esses sonhos, ao serem depositados, se transformam em carga, em peso, e os jovens se veem na condição de, muito cedo, fazer esse enfrentamento, sustentando essas expectativas. Essa carga os retira abruptamente da crise instalada na adolescência, os colocando a se portar como adultos, tendo que “sustentar” em um momento em que eles demandam ser sustentados (Coutinho, 2004). Assumir essa carga e construir uma posição subjetiva diante dela é o trabalho na adolescência (Calligaris, 2014). Percebemos, nesse sentido, que os adolescentes estão, em muitos momentos, em uma posição de receptáculo dos restos dessa família, sendo depositados neles, também, as frustrações de seus pais, pois, conforme Rosenberg (1994), os pais depositam em seus filhos todos os desejos que não cumpriram para os seus próprios pais. Sobre essa questão, E., uma adolescente de 16 anos, aponta, em uma leitura muito perspicaz, que “alguns pais querem realizar através dos filhos os sonhos que não realizaram”, nos remetendo ao comentário de Calligaris (2014) sobre os adolescentes serem excelentes intérpretes dos adultos. Neste momento, a adolescente N., de 16 anos, chora angustiada ao dizer:

“Para minha mãe nunca é o suficiente, nunca vou ser ninguém na vida. Por que ela não conversa comigo? Por que tudo ela joga na minha cara? As frustrações dela, ela joga tudo em mim, não tem onde descontar e aí tem eu. Minha convivência com ela só melhorou quando eu consegui um trabalho.”

Esses jovens recebem, de seus pais, a missão de mudar a história da família, conforme ilustrado na fala de E.: “eles sempre acharam que eu seria a primeira pessoa da família a entrar na faculdade. Sinto a pressão para conseguir um trabalho bom para ajudar a família e ir para faculdade, para sustentar eles”. O verbo sustentar salta em nossa escuta e nos faz questionar esse lugar de sustentação, ocupado pelos jovens, que se esperaria da família. Esta parece se retirar da posição de referência de forma um tanto precipitada, provocando um abandono e colocando esses jovens em um lugar de desamparo. Abandono este diferente daquele abordado por Julien (2004), que o propõe enquanto uma retirada fundadora do sujeito. Para o autor, os pais devem propiciar aos seus filhos, através da transmissão de sua filiação, o poder de abandoná-los, de modo que, ao pô-los no mundo, devem saber também se retirar e, assim, seus descendentes poderão se tornar capazes de fazer o mesmo. Este desprendimento, um deixar-de-ser-para-outro, torna-se possível a partir de uma castração que é, desse modo, libertadora. Ao não ser o objeto de gozo dos pais, o sujeito pode caminhar em direção a outro lugar, em direção à sua própria geração, construindo outras relações alhures de sua família de origem. Os pais que, por sua vez, também permanecem em sua própria geração, através da conjugalidade, possibilitam uma relação pais-filho unitransitiva, sem o peso da dívida de reciprocidade. A partir da lei do desejo, o filho poderá abandonar seus pais e conquistar outras posições.

A fala da adolescente M., de 16 anos, direcionada ao espaço escolar que, durante a pandemia, “comparece” através do envio de atividades por e-mail, ilustra o desamparo sentido pela retirada antecipada, por parte dos adultos, desse lugar de referência e ancoragem, legando aos jovens a necessidade de serem autodidatas no processo de transmissão de sua filiação. Nos preocupa tamanha responsabilidade em uma tarefa que, necessariamente, precisa passar também pelo outro.

“Me incomoda muito que a gente tá sendo quase autodidatas e quando a gente não consegue entender sozinho algum conteúdo, a gente vai procurar eles e parece que eles ficam incomodados, como se fosse nossa culpa não entender um conteúdo. Nunca passou pela minha cabeça que eu teria tanta responsabilidade antes dos meus 18.”

Diante dessa tarefa de transmissão e filiação, que passa necessariamente pelo outro, observamos na contemporaneidade um certo apagamento de referências nos próprios adultos que, desorientados frente à sua tarefa, não conseguem ocupar o lugar esperado pelos adolescentes, repercutindo nesse sentimento de desamparo (Coutinho, 2004). Essa retirada, quando feita de forma abrupta e precipitada, se torna uma mensagem paradoxal. Apesar de, a princípio, ser uma retirada formativa para o sujeito, por ocorrer anterior a um tempo (psíquico) propício, acaba por prender o adolescente a um imperativo superegoico de que precisa satisfazer os pais, o prendendo à dívida de um amor que seria recíproco. Dessa forma, pode surtir o efeito contrário: ao invés de abrir a possibilidade de abandonar os pais, o adolescente se sente abandonado/desamparado. Isso ocorre uma vez que, para sair de casa, enquanto metáfora psíquica sobre se constituir em outro lugar que não o ocupado na infância, o adolescente precisará construir fronteiras entre o eu e Outro, dentro e fora e, para tanto, deverá se haver com as dicotomias existentes entre as posições de alienação ao Outro e de autonomia de sua própria palavra, passividade e atividade, feminino e masculino, objeto e sujeito do desejo. Precisará, assim, buscar referências no dentro (de casa) e no outro (de seus pais), sustentando novas inscrições quanto à metáfora paterna, no campo do Outro (Mello, 2004). A partir desse paradoxo, nos surge a seguinte questão: como esses jovens irão perfazer sua experiência adolescente se a mensagem que captam, de seus pais, é a de que parece não poderem voltar para a casa?

Nessa condição de passagem, nesse lugar entre a criança que já foi e o adulto que ainda não é, retomamos a afirmação de Calligaris (2014) sobre o espelho do adolescente estar, frequentemente, vazio, refletindo uma imagem de quem deve ao outro. Esse vazio é um terreno fértil para angústias e, através da imagem de dever, o adolescente tentará preenchê-la respondendo às expectativas dos adultos. Podemos compreender essa relação através da fala de J. que, apesar de iniciar contando sobre a pandemia e sua ansiedade com tantos trabalhos - escolares e domésticos, foi lida e interpretada, por nós, enquanto uma fala que denuncia sua angústia acerca do trabalho adolescente, enquanto sentido de significante, e sua angústia quanto a estar preso nesse imperativo de satisfazer o outro.

“Aqui na minha casa foi bem difícil, eu fico muito ansioso e minha mãe fica falando que eu nem sei o que é ansiedade e aí eu penso “tá bom, sou só desesperado mesmo”. O que me acalma é desenhar, tem vezes que eu fico muito tempo aqui desenhando. Tem dias que eu ficava 8 horas seguidas desenhando para me acalmar. Quando acabam os trabalhos, a gente fica pensando como vai fazer os próximos. Quando fico com trabalho da escola, é a manhã toda, e minha mãe reclama que eu não fico lá embaixo. Minha mãe insiste em dizer “quando tu vai começar a ajudar em casa?” Eles acham que só porque a gente está em casa durante a pandemia tem que ajudar em tudo, mas não são só os trabalhos de casa que a gente tem, tem coisas da escola também. É bem confuso e difícil saber o que mais fazer para agradar os pais.”

Essa dificuldade de saber sobre o que esperam os adultos, sentida por J., é uma questão comum aos adolescentes, pois, conforme Calligaris (2014), os adultos se contradizem, demandam autonomia e sucesso social dos jovens, ao passo que a negam, em um esforço de mantê-los infantis e subordinados sob o pretexto de se prepararem melhor para a vida adulta, quando, bem sabemos, tal preparação só vem com a experiência do próprio trabalho, da própria travessia adolescente. Não há treinamento, muito menos caminho predefinido (Mügge et al., 2021). Tais demandas contraditórias, endereçadas aos adolescentes, serão lidas e incorporadas por eles enquanto um ideal de eu. Ao serem interpretadas e realizadas, para além da sentença proferida, apontam para um desejo inconsciente dos adultos e poderiam, imaginariamente, para os adolescentes, garantir a manutenção de sua posição objetal infantil. Sobre essa questão, E. comenta:

“Um dos grandes problemas dos jovens é tentar suprir as expectativas dos pais. Eu fui criada pensando que o estudo seria meu passaporte para uma vida melhor. Mas às vezes nos colocam pressão que não precisa. Eu estava tentando conciliar estudo do Jovem Aprendiz, do ENEM e da escola. Tinha gente me falando que eu deveria aproveitar esse espaço de tempo para ler mais. Para aumentar meu vocabulário, dicção e escrita. Que eu não deveria sobrecarregar com estudos da escola. Mas as mesmas pessoas que estavam dizendo isso eram as que me enviavam trabalho para fazer. Fica incoerente.”

O sucesso de tais interpretações, por parte dos adolescentes, produz, como efeito, um desencontro entre gerações. Isso ocorre, pois, a demanda do adulto, de caráter paradoxal, aponta para um desejo inconsciente e, portanto, recalcado e, ao ser realizado pelo adolescente, em ato, fará o adulto recalcar tal desejo (Calligaris, 2014). Percebemos claramente esse processo na fala de V., um adolescente de 16 anos:

“Me irrita muito os pais nos proibirem de fazer as coisas porque eles se arrependeram quando fizeram na adolescência, tipo????? Ok, tu já teve tuas experiências, agora deixa >>>eu<<< ter as minhas para eu poder ter as minhas opiniões. É muito nada a ver para mim esse negócio de impor as experiências próprias em cima dos outros, a gente precisa ter as nossas experiências para moldar o nosso caráter.”

Extraímos, dessa fala, a palavra experiência por acreditarmos que se relaciona com o trabalho adolescente para muito além de objetivamente “fazer coisas”. A experiência, aqui, traduz a tecitura necessária de experimentações, estranhezas, familiaridades e transmissões que constituem um sujeito em seu laço social. Tal tecitura, no adolescente, trará consigo disjunções e lutos, estranhamentos, indisposições e despersonalizações como efeito da difícil tarefa de abandonar o ninho familiar, se deslocando e se posicionando para/em um outro lugar (Mügge et al., 2021). Uma das disjunções necessárias, nesse processo, está relacionada à imagem do pai ideal, advinda da infância, que precisará cair para que o adolescente possa enxergar alhures de sua relação familiar e buscar outras e novas relações no exercício do laço social. Nesse processo, o adolescente passará por um luto dessa imagem ideal e começará a perceber a distância entre ela e o real (Julien, 2004), conforme observamos na fala de J.:

“Eu amava meu pai, tipo muito, mas hoje em dia, eu percebo o quanto de coisa ruim que ele fez para mim que eu não tinha “consciência” de que eram coisas ruins e agora eu tento falar só o mínimo com ele, ele não parece ser mais meu pai, e sim só algum estranho que mora aqui em casa sabe.”

A partir de tal disjunção, o adolescente poderá desprender-se do imperativo de responder a esse ideal e posicionar-se em outro lugar com relação ao desejo, algo sobre o qual C., uma adolescente de 16 anos, se posiciona: “a minha mãe já planejou toda a minha vida na cabeça dela, mas eu sempre falo para ela parar de criar expectativas em cima de mim, que eu quero viver a minha vida”. Nessa experiência de desprendimento e reposicionamento, o adolescente precisará sustentar um não lugar gerador de angústia, à medida que não se reconhece mais como criança e ainda não é reconhecido como adulto (Mügge et al., 2021).

No exercício da sustentação desse não lugar e da angústia decorrente, espera-se que o adolescente conte com o apoio de seus pares e outros adultos que compõem o campo do social, contudo, em função da pandemia da COVID-19, tal campo se tornou um território restrito, restando aos jovens o espaço físico de suas casas e o hiper convívio familiar. Durante os encontros, os adolescentes falaram muito de seus pais, de suas demandas e de como estas recaem sobre eles - os filhos. Ainda, falaram sobre o desejo de escrever uma história diferente da escrita por seus pais. Nesse contexto, o hiper convívio justamente com esses pais acabou produzindo reduzidas possibilidades de um respiro, refletindo numa certa paralisia para os jovens. Escutamos, no discurso desses adolescentes, que o Projeto Jovem Aprendiz representou um espaço - mesmo que virtual - em que puderam circular e respirar outro oxigênio, de modo a construírem e compartilharem suas narrativas sobre o impacto da pandemia, pois não diferente dos adultos, os jovens também paralisaram.

O Lugar de Aprendiz e a Abertura de uma Fresta para o Trabalho Adolescente

Notamos, nos encontros realizados, que o lugar de aprendiz ocupado por esses jovens no Projeto acaba por fazer contorno ao não lugar e ao consequente vazio observado em seus espelhos, bordejando, como efeito, a angústia. O apoio de seus pares e a percepção de um outro olhar, recebido de outros adultos que não os pais, colocou em suspensão, mesmo que temporariamente, a posição de “sustentação” ocupada na organização familiar. Falas como “eu me identifico”, ditas em coro pelos jovens, foram proferidas incontáveis vezes, provocando, de acordo com os jovens, a sensação de união e amparo do grupo. Os adultos atuantes no Projeto foram caracterizados como compreensivos e ofertantes de um lugar “de igual para igual” para os jovens, opinião que J. complementa, remetendo à pulsão invocante: “só a voz do professor G. já tranquiliza a gente, a voz de um Deus grego”. Aqui, percebemos que, apesar dos imperativos que aprisionam o adolescente em determinadas posições, há um sujeito que se sente chamado/invocado a se desprender e a existir em outro lugar (Vives, 2009) no exercício do seu laço social, lugar este “de igual para igual”, de reconhecimento.

Ao retomarmos o contexto de vulnerabilidade social vivido pelos adolescentes e suas famílias, a posição de “sustentação” torna-se ainda mais custosa, aprisionando-os. Contudo, há aqui um paradoxo. Os pais, ao produzirem um recuo pela sua retirada (precipitada), também, mostram um outro caminho - incentivando à inscrição ao Jovem Aprendiz, de modo a indicar onde buscar as referências que eles não conseguem sustentar. Assim, apesar da perda da referência parental infantil, há um lugar para onde esses pais estão olhando, há um ideal de eu. Esse lugar, apontado pelos pais, pode produzir um endereçamento libidinal nos jovens, mas, ao mesmo tempo, produz angústia ao exigir uma resposta.

O Projeto Jovem Aprendiz, ao possibilitar um outro olhar e um outro lugar para esses adolescentes, na busca de referências que facilitem o trabalho psíquico necessário para sua constituição, torna-se uma política de inclusão. Nessa perspectiva, R., uma adolescente de 17 anos, comenta: “é um milagre na vida, eu estava super para baixo, depois que entrei só coisa boa aconteceu, parece que estou trancada numa caixa e o Jovem Aprendiz é uma janela”. Recortamos, dessa fala, a palavra janela e a tomamos enquanto significante de abertura, de uma fresta por onde o trabalho psíquico possa se dar em meio à pandemia.

A palavra janela origina-se do latim ianua que, por sua vez, tem origem na palavra grega janus (Michaelis, 2021). Tais etimologias se fazem importantes aqui dado o fascínio de Freud por estatuetas de duas faces, pois representavam uma unidade para sempre clivada pela dualidade, condição do próprio sujeito moderno. Nesse sentido, Janus, uma das estatuetas da coleção de Freud, foi um deus romano de duas faces opostas, conhecido como uma espécie de porteiro celestial, uma entidade consagrada que simbolizava entradas e saídas, inícios e términos, passado e futuro (Da Silva, 2014). Tal condição de dualidade, própria do sujeito moderno, é experienciada em peso pelo adolescente que precisará se haver com as dicotomias entre as posições de alienação e autonomia, passividade e atividade, feminino e masculino, objeto e sujeito do desejo. As duas faces opostas de Janus nos remetem ao enfrentamento dessas dualidades pelo adolescente enquanto ocupa um não lugar, estando paradoxalmente, ao mesmo tempo, voltado ao passado - à criança que foi, e ao futuro - o adulto que ainda não é. As faces fazem menção, ainda, aos opostos Real e Imaginário, que parecem produzir nos jovens um estado de vigília relacionado à angústia de responder aos ideais de eu mencionados ao longo de nossa discussão. A prisão sentida pelas inúmeras responsabilidades e pela posição de ser sustentação para suas famílias intensifica-se pela dimensão da palavra ter perdido o seu poder, dado o contexto pandêmico que vivemos - de trauma e horror - e dada a retirada precipitada dos pais desse lugar de referência. O que faz referência, então, para esses jovens?

Para responder a essa questão, retomamos o significante janela, enquanto abertura/passagem/furo, e o relacionamos ao ato analítico enquanto posição avessa aos imperativos de enclausuramento do sujeito em uma posição objetal. Contrário aos opostos totalitários de Real (nada) e Imaginário (tudo), o ato analítico aposta na produção de um furo pela via do Simbólico, uma abertura/janela através da palavra. Nessa perspectiva, a nossa pesquisa, orientada pelos pressupostos psicanalíticos, e o Jovem Aprendiz da Universidade Feevale, por conter um atravessamento de caráter interdisciplinar e inclusivo, com o amparo da psicanálise, em sua gestão, podem proporcionar essas janelas - necessárias - na asfixia causada pelo enclausuramento - físico, relacionado à pandemia, e de palavras e sentidos, relacionado aos imperativos opostos de tudo ou nada - que os adolescentes estão enfrentando.

O grande desafio enfrentado por esses jovens que encaram seu trabalho adolescente em meio à pandemia, é o de sair dessa dupla posição de enclausuramento e, nesse sentido, o furo - da janela, proporcionado pelo Projeto Jovem Aprendiz, pode ser um caminho de respiro, de abertura, um caminho possível para perfazer essa experiência de construção de fronteiras, tendo uma casa-projeto-sala de aula para a qual retornar. Nessa perspectiva, em nossa pesquisa, a posição da primeira autora na transferência com esses jovens foi a de provocar o trabalho (psíquico), através da palavra e da escuta, possibilitando abrir caminhos/frestas/janelas para os adolescentes. Escutamos tal efeito nas palavras de D., um adolescente de 17 anos: “me desculpa por falar bastante, mas eu precisava colocar para fora”.

Tecituras Adolescentes... e Considerações Finais

Este estudo teve como objetivo discutir os significantes que circundam o trabalho adolescente dos jovens do Projeto Jovem Aprendiz durante a pandemia da COVID-19. Destacamos, de início, a posição de “sustentação” em que estes jovens se veem ao receberem, de seus pais, a missão de mudar a história da família. Os pais parecem fazer uma retirada precipitada da posição de autoridade, depositando no Projeto a posição de referência, em uma tentativa de ruptura de uma transmissão psíquica. Os jovens sentem-se inseguros, mas encontram no Projeto o acolhimento para dar sequência a sua posição de desejo.

A partir dessa compreensão, brincamos com o significante aprendiz e o extrapolamos, em um deslizamento de sentidos, para “prender” e “apreender”, a fim de discutir a posição subjetiva em que estes adolescentes se encontram, bem como o trabalho psíquico necessário para sua constituição. O lugar de aprendiz, nesse sentido, surge enquanto nova posição subjetiva, de transição, e se refere àquele que está dando os primeiros passos, em seu processo adolescente, em direção à saída (metafórica) das relações familiares, implicando uma mudança na posição subjetiva ocupada, até então, na relação com o Outro e com o desejo. Este aprendiz adolescente se encontrará, em muitos momentos, emaranhado em seu registro familiar e em sua posição objetal infantil e, nesse sentido, se encontrará preso naquilo que imaginariamente deve ao outro, de si mesmo. Para seguir em seu próprio caminho, precisará assumir uma nova posição, de sujeito de um ato, de modo a construir um outro lugar, para si, diferente daquele ocupado em sua infância.

A posição do flâneur presente em nossa metodologia nos convocou a fazer algo com os restos e rastros que recolhemos, para que isso não se perdesse e, nesse sentido, conduzimos uma aposta de inscrição no campo da experiência, através das narrativas que foram contadas e compartilhadas. Inserimos, assim, um outro saber, psicanalítico, contrário à racionalização e à cientifização positivista que poderiam capturar e enclausurar a palavra. Tal posição serviu de amparo metodológico para que pudéssemos produzir condições de criação de um lugar de importância para a palavra e, consequentemente, para a experiência.

Tanto o Jovem Aprendiz quanto a nossa pesquisa se propõem a olhar para um lugar que os pais e a escola parecem não estar olhando no momento pandêmico. Ao ofertarmos um espaço de fala livre e implicada e de escuta sensível e afetiva, notamos surgir, como efeito, aberturas, advindas do significante “janela”, compreendidas enquanto um setting propiciador para que os jovens passassem a se olhar e enxergar, eles mesmos, também este lugar, compartilhando e trabalhando, em grupo, nessa tecitura que é a adolescência.

Nesse sentido, o Jovem Aprendiz Feevale se caracteriza não somente como uma forma de o jovem conseguir sua primeira experiência de trabalho, mas, para além, como uma política de inclusão, considerando os aspectos relacionados à educação, às manifestações de diversidades no contexto sociocultural e à qualidade de vida. Tal hipótese, levantada nesta pesquisa, possibilita aberturas para novos questionamentos, a saber, acerca dos efeitos, nos adolescentes jovens aprendizes, do atravessamento psicanalítico e das intervenções de caráter interdisciplinar e inclusivo, realizadas pelo Projeto. Ainda, a posteriori, nos interrogamos quais são os significantes tomados enquanto passaportes/entradas para a vida adulta na experiência destes jovens. A presente pesquisa, por ocorrer no tempo limitado de um mestrado, não pôde se deter nas questões aqui levantadas e tampouco acompanhou o cotidiano do Projeto junto aos jovens e às empresas. Tais limitações foram tomadas no sentido de novas aberturas e possibilidades para tecer uma nova pesquisa - desta vez a nível de doutoramento. Esperamos, a partir disso, esboçar um caminho metodológico pautado nas dimensões da saúde e da inclusão social para a juventude do Projeto Jovem Aprendiz.

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (PROSUC CAPES, No. Processo 44-2019).

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Recebido: 14 de Março de 2023; Revisado: 10 de Julho de 2023; Aceito: 11 de Julho de 2023

Endereço para correspondência Amanda Wecker Universidade Feevale - Curso de Psicologia, ERS-239, 2755, Novo Hamburgo - RS, Brasil. CEP 93525-075, Endereço eletrônico: amandawecker@feevale.br

Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto Universidade Feevale - Curso de Psicologia, ERS-239, 2755, Novo Hamburgo - RS, Brasil. CEP 93525-075, Endereço eletrônico: lisianeoliveira@feevale.br

Camila Backes dos Santos Universidade Feevale - Curso de Psicologia, ERS-239, 2755, Novo Hamburgo - RS, Brasil. CEP 93525-075, Endereço eletrônico: camibackes@gmail.com

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