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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80416 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Os Discursos de Ódio na Contemporaneidade: Da Face Subjetiva à Face Política

Hate Speeches in Contemporaneity: From the Subjective to the Political Aspects

Los Discursos de Odio en la Contemporaneidad: De la Vista Subjetiva a la Vista Política

Alana Rodrigues Sousa* 

Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Possui Especialização em Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO/2016) e em Políticas Públicas e Socioeducação pela Universidade de Brasília (UNB/2018). Psicóloga clínica na Força Aérea Brasileira.


http://orcid.org/0009-0000-6819-927X

Susie Amâncio Gonçalves de Roure** 

Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás (2000); Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Goiás (2006). Professora associada do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.


http://orcid.org/0000-0002-0067-7893

*Universidade Federal de Goiás - UFG, Goiânia, GO, Brasil

**Universidade Federal de Goiás - UFG, Goiânia, GO, Brasil


RESUMO

O presente artigo propõe apresentar algumas contribuições da psicanálise para entender os aspectos subjetivos e políticos presentes no ódio. No atual contexto sociopolítico brasileiro este afeto tem figurado enquanto discurso predominante e espaços como as redes sociais digitais têm se tornado cada vez mais um campo fértil para a sua propagação e legitimação, sendo por vezes sustentado e fomentado pelo aparato institucional público. Esta pesquisa teve como ponto de partida a releitura e reflexão crítica dos textos freudianos, como os que trazem os conceitos de identificação e narcisismo, centrais para entender o que mobiliza e potencializa a incidência deste afeto bem como seus efeitos na contemporaneidade. Neste percurso foi constatado que o ódio comparece sempre na relação com o outro a partir da intolerância a alguma diferença que representa uma ameaça às ilusões narcísicas do sujeito. Embora seja considerado um afeto constitutivo do ser humano, é também um fenômeno cultural, social e político, podendo tornar-se potencialmente destrutivo para a humanidade quando o objetivo se torna segregar pessoas e grupos a fim de se eliminar as diferenças.

Palavras-chave: discursos de ódio; intolerância; psicanálise; identificação; narcisismo.

ABSTRACT

This article presents some contributions of psychoanalysis to understand the subjective and political aspects of hatred. In the current Brazilian sociopolitical context, hatred has figured as a predominant discourse, thus, spaces like digital social networks have become a fertile field for its propagation and legitimation, sometimes with the support and instigation of the public institutional apparatus. This study has as its starting point the critical reflection of Freudian texts that address concepts of identification and narcissism, central to understanding what mobilizes and enhances the incidence of this emotion, as well as its effects in contemporary times. In this analysis, it was found that hatred always appears in relationships based on intolerance to differences that might represent a threat to the subject's narcissistic illusions. Although it is considered a constitutive emotion of the human being, hatred is also a cultural, social and political phenomenon, and can become potentially destructive for humanity if used to segregate people and groups in order to eliminate differences.

Keywords: hate speeches; intolerance; psychoanalysis; identification; narcissism.

RESUMEN

Este artículo se propone presentar algunos aportes del psicoanálisis para comprender los aspectos subjetivos y políticos presentes en el odio. En el contexto sociopolítico brasileño actual, este afecto ha figurado como un discurso predominante y espacios, como las redes sociales digitales, se han convertido cada vez más en un campo fértil para su propagación y legitimación, siendo a veces apoyado y fomentado por el aparato institucional público. Esta investigación tuvo como punto de partida la relectura y reflexión crítica de textos freudianos, como aquellos que traen los conceptos de identificación y narcisismo, centrales para comprender lo que moviliza y potencia la incidencia de este afecto, así como sus efectos en la contemporaneidad. En ese camino, se constató que el odio siempre aparece en la relación con el otro a partir de la intolerancia a alguna diferencia que representa una amenaza para las ilusiones narcisistas del sujeto. Aunque se considera un afecto constitutivo del ser humano, también es un fenómeno cultural, social y político, y puede volverse potencialmente destructivo para la humanidad cuando el objetivo pasa a ser segregar personas y grupos para eliminar las diferencias.

Palabras clave: discurso de odio; intolerancia; psicoanálisis; identificación; narcisismo.

Apesar das grandes conquistas e avanços advindos das lutas dos movimentos sociais, têm sido cada vez mais notórios os retrocessos vividos em sociedade, principalmente com relação às ditas “minorias”, como o aumento dos discursos de intolerância e a proliferação de narrativas explicitamente odiosas.

Nesse sentido, a internet possibilitou a ampliação dos modos de relacionamento humano e afetivo, especialmente por meio das redes sociais digitais que se tornaram espaço de vivências virtuais entre diferentes pessoas e contextos no mundo inteiro. A internet trouxe ainda um grande e veloz fluxo de informações que circulam e promovem um movimento de ruptura e atropelamento das barreiras que separam o público do privado, o que, por vezes, na contramão do que se conceitua como avanço, resulta em intolerância, ódio e violência.

Mesmo com as crescentes manifestações do ódio que se reverberam sem pudor em diversos âmbitos, ainda se trata de uma problemática pouco explorada. Dias (2012) se surpreende com a pouca abordagem da temática que segundo ele mostra “certo compartilhamento com os ideais morais da nossa civilização - que procuram sempre manter o ódio afastado da vida cotidiana como sinônimo do que deve ser eliminado.” (p. 24). O ódio está presente desde a constituição do sujeito. No entanto, o que o torna um fenômeno problemático é a saída desse afeto do campo imaginário em direção ao outro com agressividade e hostilidade, como se tem manifesto repetidamente em ambientes sociais diversos.

Desse modo, o presente artigo tem por objetivo apresentar algumas contribuições da psicanálise para entender os aspectos subjetivos e políticos presentes no ódio. Como bem descreve Rosa et al. (2018, p. 15): “Não só o ódio está no ar, mas a possibilidade de dizê-lo sem censura no âmbito dos debates políticos, nas instituições em geral, com expressiva repercussão na mídia e nas redes sociais”. Esta é uma problemática que como consideram as autoras, afeta todas as esferas da vida - do público ao privado. Desde as eleições presidenciais no Brasil em 2018 o tema tem repercutido e ganhado ainda maior sustentação, com novas roupagens no país. O ódio está presente não só no cenário político brasileiro. Acontecimentos como a eleição em 2016 de Donald Trump à presidência nos Estados Unidos parecem, dentre outros fatores, ter suscitado “discursos ressentidos e destrutivos” (Rosa et al., 2018, p. 17).

Rosa et al. (2018) destacam, a partir das contribuições de Rolnik (2017), que a busca por culpados em que se desperta ódios e preconceitos configura uma solução fascista a qual tem se recorrido na atualidade. Importante considerar, que em meio à complexidade e pluralidade de hipóteses interpretativas para os fenômenos fascistas, na psicanálise, a partir de Adorno, o fascismo se aproxima da perspectiva totalitária, onde o tema é abordado pelo viés da “atomização e massificação dos indivíduos na sociedade das massas” (Bueno, 2021, p. 24).

Contudo, de acordo com Bueno (2021), Adorno trabalhou com a perspectiva da psicologia grupal, da vulnerabilidade emocional, das ideologias segregadoras e da compatibilidade do fascismo com regimes democrático-liberais, diferente do que pressupõe o fenômeno totalitário do ponto de vista da ciência política. E sob esse viés, é possível articular o fascismo com o observado nos discursos e posicionamentos políticos do contexto atual.

Rosa et al. (2018) alertam que esses fenômenos não ocorrem por acaso, mas, sim, podem ser considerados estratégias utilizadas na tentativa de criar uma cortina de fumaça enquanto tramitam pautas importantes como as que visam a destituição de direitos, dentre outras que promovem grandes perdas sociais. As condições necessárias para resistir, estariam ligadas a “descortinar a fumaça dos ódios”. (p. 17).

O Ódio em Cena: Um Ponto de Partida à Luz da Psicanálise

Diante da análise inicial do tema proposto é possível pensar a questão do ódio em Freud a partir da transferência positiva e negativa, em que o ódio aparece como constituinte da experiência humana. No trabalho Os instintos e seus destinos (1915/2013), Freud tratou o ódio como uma paixão primária, mais antiga que o amor, associando-o ao prazer-desprazer. Nesse sentido, com relação ao objeto que produz prazer, há uma tendência de aproximação do Eu, ao contrário do objeto que resulta em desprazer, em que o Eu buscará se manter distante. “O Eu odeia, abomina, persegue com propósitos destrutivos todos os objetos que se lhe tornam sensações desprazerosas (...)” (Freud, 1915/2013, p. 78).

Ainda nesse texto, Freud (1915/2013) tomou o odiar como resultado da formação da segunda antítese do amor, que é quando o objeto integra o narcisismo primário. Destacou que o sentido original do ódio diz da relação com o mundo exterior e da sua rejeição por parte do Eu narcísico. Com a saída do estágio narcísico para o estágio que prioriza o objeto, prazer e desprazer resultam da relação do Eu com o objeto em que o Eu busca sua conservação e afirmação.

Com efeito, na elaboração freudiana sobre a constituição do sujeito, o problema do ódio detém um papel decisivo em termos da metapsicologia. Nesta mesma direção, Dias (2012) opta por utilizar o termo no plural - “ódios” -, pela necessidade de se considerar os diferentes pontos que podem ser abordados no fenômeno. Assim, afirma:

[...] que a constituição do mundo psíquico e a noção de exterioridade estão diretamente vinculadas ao ódio, porque o ego-prazer originário, aquilo que vem do exterior e que é causa de desprazer, de satisfação não realizada, rompe com a unidade egoica e é causa de ódio (Dias, 2012, pp. 21-22).

Em O Mal-estar na civilização Freud (1930/2013) retomou a ideia apresentada em 1915 de o ódio ser anterior ao amor. Postulou que os seres humanos, diferente do que as pessoas pensam, não são criaturas dóceis, amáveis e calmas que reagem apenas frente a uma ameaça, mas sim, possuem também instintos voltados para a agressividade. E há de se saber que existe uma disposição para a satisfação dessa agressão e que nem sempre está presente algum tipo de provocação. Ou seja, a agressividade pode emergir espontaneamente, revelando uma selvageria do ser humano. Essa tendência à agressão é algo que perturba as relações humanas e gera um custo à civilização, sendo assim uma constante ameaça à sua desintegração. Sob essa perspectiva, Freud (1930/2013) afirmou que “paixões movidas por instintos são mais fortes que interesses ditados pela razão” (p. 78). Destaca-se ainda, nas palavras do autor, que:

[...] com todas as suas lidas, esse empenho da civilização não alcançou muito até agora. Ela espera prevenir os excessos mais grosseiros da violência, conferindo a si mesma o direito de praticar a violência contra os infratores, mas a lei não tem como abarcar as expressões mais cautelosas e sutis da agressividade humana. (Freud, 1930/2013, pp. 78)

Segundo Freud, renunciar a agressividade e o prazer que ela desperta no indivíduo, não é uma tarefa fácil. O autor considerou essa hostilidade como uma forma de permitir à pulsão uma saída, um caminho.

Lacan compreendeu o ódio como o que está enlaçado entre as três paixões do ser: o amor, o ódio e a ignorância. No Seminário 20 (Lacan, 1975) o autor referiu-se à paixão da ignorância como aquela em que o sujeito não quer saber de nada. Nesse sentido, “o ódio resulta da impossibilidade de mediação simbólica no encontro com o real, deixando o sujeito na inflação imaginária; situa-se na junção do imaginário e do real, enquanto se enlaça à ignorância, essa na junção do real com o simbólico” (Rosa et al., 2018, p. 19).

Desse modo, no ódio não existe o tempo de compreender, por isso é considerado uma paixão da ignorância que não se articula ao pensamento, abrindo caminho para o gozo. “O ódio produz o rei desse império do significado que nada poderá abalar. Desse império advém a certeza/crença, irmã da ignorância, de que a solução está na destruição do outro em vez da experiência com o outro” (Rosa et al., 2018, p. 19).

Diante do ódio não há espaço para as diferenças, pois o diferente configura uma ameaça à felicidade idealizada, às ilusões narcísicas do sujeito. O outro aparece como inimigo, uma ameaça que precisa ser eliminada (Rosa et al., 2018). Assim, as minorias sociais, com toda a sua bagagem histórica e cultural, tornam-se facilmente esse outro, destinatário do ódio que se pretende eliminar. As autoras destacam a lógica paranoica do ódio retroalimentado pela paixão, em que sua preservação requer a destruição do outro.

Sob esse viés, na ignorância assim como na crença paranoica, o pensamento dá lugar à certeza, pois não existe pensamento na convicção. “A certeza da lógica paranoica acusa o outro, esse que atrapalha o imaginário de viver em um estado de bem-estar social, saúde integral e felicidade” (Rosa et al., 2018, p. 21). Dessa maneira, essa certeza torna as ideias mais próximas do delírio que da fantasia. As autoras trazem assim como exemplo o fanatismo, que se trata de uma fantasia delirante em que não há divisão subjetiva, ao contrário, o que se deseja é a eliminação daquele que não coaduna com as crenças individuais. Nessa mesma direção:

[...] a paixão se caracteriza pela suspensão provisória da barra que separa o significante do significado, portanto, em função dessa suspensão o sujeito vive as expectativas da paixão de forma unívoca, já que aquilo que qualifica a paixão se refere a essa certeza que cada um tem sobre suas ações e sentimentos (Dias, 2012, pp. 26)

Logo, há uma certeza no apaixonado que decorre dessa suspensão da barra, em que o sujeito “não tem mais referência de impossibilidade” (Dias, 2012, p. 26). No entanto, o autor considera que esta é uma condição provisória e por isso não quer dizer que se refere a uma clínica da psicose.

Dias (2012) também discorre sobre o pensamento de que o ódio é um elemento que se apresenta antes do sujeito, frente às suas relações com o Outro e que consiste em um afeto presente desde a sua constituição. Este afeto também se inscreve na condição do Outro ser castrado, “daí sua impossibilidade de atender todas as necessidades e demandas que lhe são dirigidas” (p. 29). Ou seja, o fato de saber dessa impossibilidade de que suas demandas sejam satisfeitas, já abre espaço para a manifestação do ódio.

Nesse sentido, é pela via do que foi intitulado por Freud como desprazer, que o ódio comparece. E o desprazer é algo que vem de fora do sujeito, é ocasionado por fatores externos, vindo desse Outro, que barra demandas, mas que faz emergir a dimensão do exterior (Dias, 2012).

Rosa et al. (2018) consideram que embora haja ambivalência entre amor e ódio no cerne do sujeito e da agressividade, sendo que um mesmo objeto pode ser destinatário tanto de um quanto de outro, ainda haverá uma potencialidade presente no ódio. Contudo, as autoras postulam que “pôr em ato amor, ódio ou destruição é escolha e responsabilidade do sujeito - mas o ultrapassa” (p. 22). Isso ocorre porque está em jogo também a trama pulsional do sujeito que, segundo as autoras, é também trama política, ideológica e cultural, como pode ser observado no trecho seguinte:

[...] o ódio é uma problemática clínica e política, pois instala-se numa economia psíquica e num laço social que gera discursos e atos. E, mesmo em tempos de laços sociais movidos pelo ódio, há uma escolha ético-política quanto ao que e a quem nos alinhamos (Rosa et al., 2018, pp. 23)

Desse modo, com os apontamentos trazidos até aqui, é possível constatar que os escritos psicanalíticos sobre o ódio possibilitam compreendê-lo enquanto um afeto que emerge a partir da relação com o outro, da intolerância às diferenças e é também fator político. E para pensar o que aqui denominamos de face subjetiva do ódio e ainda o que mobiliza e potencializa a incidência deste afeto, foi necessário perpassar por elaborações freudianas como o narcisismo das pequenas diferenças e a estruturação dos laços afetivos que Freud propôs em Psicologia das massas e análise do Eu (1921/2013), que serão abordadas a seguir. Sabe-se que a resposta para esta questão não se trata de algo simples ou linear e, portanto, não se pretende esgotar a compreensão do presente fenômeno neste artigo.

A Ignorância e a Destruição do Outro: Identificação e Narcisismo no Ódio e nas Massas

Nas obras freudianas Psicologia das Massas e Análise do Eu; O mal-estar na civilização e Moisés e o monoteísmo foram externalizadas as inquietações de Freud frente ao que pode ser considerada a política do ódio que pairava sobre a Europa à época do nazifascismo. O cenário daquele período foi percebido pelo criador da psicanálise como um fenômeno de massa a partir do retorno de uma política obscurantista que objetivava e resultava na exclusão da alteridade (Fuks, 2011).

Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud (1921/2013) destacou o inconsciente na sua relação com a cultura e as relações do Eu e da massa moderna com o outro. Sob essa ótica, os processos identificatórios possibilitam entender o quanto o cenário sociopolítico de uma nação, associado ao uso de recursos digitais, como a internet e as redes sociais, podem potencializar o fenômeno do ódio nas massas quando a sua propagação se dá por aqueles que ocupam o lugar do ideal do Eu, herdeiro do narcisismo original.

Assim, a identificação foi apresentada por Freud (1921/2013) nesta obra como “a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto” (p. 64), além de ser o mecanismo que promove a ligação dos indivíduos na massa, ou seja, tem algo em comum, da ordem da afetividade, que os une especialmente à figura do líder. Os discursos mecânicos, empobrecidos de argumentos e repetitivos são característicos dos processos identificatórios presentes nas massas e comumente observáveis nas narrativas das redes sociais, que sob a justificativa do direito à “liberdade de expressão”, se legitimam e se presentificam cada vez mais nos discursos de ódio e atos de violência no meio social.

Em geral, nos grupos identitários opera-se a prevalência de suas ideias em detrimento às de outro grupo, o que consiste em disputa política. No entanto, Ferreira (2018) destaca que mesmo que um determinado grupo institua o outro como inimigo, sabendo-se o porquê odeia e não se compactua com determinadas ideias ou atitudes, isso se difere de quando o que prevalece e passa a imperar é unicamente a hostilidade, o afeto, o ódio. “É aí que a disputa deixa de ser do campo político e torna-se absolutamente gratuita e despolitizada, com a única chance de cair numa discursividade reativa e de trocas de ofensas, sem nenhuma implicação social contundente.” (Ferreira, 2018, p. 196).

Ou seja, a face política revela gradativamente seus componentes subjetivos que perpassam pelos processos identificatórios, narcísicos e pelo ódio enquanto paixão, elementos estes que compõem os grupos, mas ainda, segundo a autora, não podem ser tomados de forma rígida, única ou preestabelecida para a compreensão de fenômenos complexos.

Embora o ódio surja com mais transparência no mundo virtual, mostrando uma difícil, senão impossível conciliação entre Eu e Outro, também se mostra presente na vida cotidiana, nas divisões de classe, religiosas, nas questões de gênero, no racismo e outras formas de conflitos de opinião e intolerância às diferenças que emergem em variados espaços. Cunha (2018) ressalta que dentre algumas configurações que podem ser destacadas desse afeto que se expressa na relação com o outro está o fato de não desejar ou não ‘poder’ se identificar com esse outro estrangeiro.

Como salienta Fuks (2011), o estrangeiro “corresponde ao não-familiar, ao desconhecido, àquilo que é apreendido com horror.” (p. 11). Entretanto, há um paradoxo que a psicanálise apresenta ao apontar que o outro pode ser suscitador de fascínio e de desprezo, um desconhecido, mas, ao mesmo tempo, próximo. Como exemplo temos a relação do bebê com o Outro da linguagem - função normalmente desempenhada pela mãe. O outro neste caso é constituído como “familiar-estrangeiro” (Fuks, 2011).

Além disso, assim como o Eu, a multidão também possui os objetivos de controlar as excitações externas e regular as tensões internas. Porém, isso não é o suficiente para reduzir os conflitos entre amor e ódio, inibir a barbárie ou regular as instâncias psíquicas entre Eu, Isso e Supereu. Conforme destacado por Fuks (2011) a partir da leitura de Freud, se faz necessário “o grupo produzir seu outro a partir do qual forja sua própria identidade, diferenciando-se e defendendo-se dessa alteridade, eliminando as diferenças internas, fabricando uma unidade fictícia com o objetivo de perpetuar sua dominação real.” (p. 45).

Adorno (2015) também chamou a atenção para como na cultura fica clara a ideia, raramente questionada, das pessoas amarem quem são como elas e odiarem os que são diferentes. E nesse sentido Freud (1930/2013) em seu trabalho O Mal-estar na civilização afirmou: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade.” (p. 80).

Le Bon, citado por Freud (1921/2013), comparou o indivíduo na massa ao indivíduo hipnotizado por não estar em condições de gozar plenamente das suas faculdades mentais ou ter consciência dos seus atos. “A influência de uma sugestão o levará, com irresistível impetuosidade, à realização de certos atos” (p. 13). Ou seja, há um agir muito mais instintivo na massa, chegando a ações bárbaras, primitivas, assim como uma diminuição da capacidade intelectual do indivíduo, que desaparece nesse contexto.

Freud destacou características na massa como a sugestionabilidade, a manifestação do contágio, a credulidade e a ausência de crítica. Na massa, nada é considerado improvável. Ou seja, não há dúvida ou incerteza. Como exemplo disso, pode-se destacar a indústria de fake news nas eleições presidenciais ocorridas no ano de 2018 no Brasil, com grande alcance e adesão nas redes sociais, o que culminou no ano seguinte na instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no congresso.

Esse foi um importante acontecimento, que deu rumos diferentes ao cenário político daquela época bem como da atualidade, podendo ser relacionado ao que Freud (1921/2013) disse sobre a ambivalência dos sentimentos na massa: “Ela vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem.” (p. 26). Assim, o que movimenta a massa não são argumentos bem elaborados, mas sim imagens de impacto, exageros e a repetição mecânica daquilo que se quer passar, o que revela uma conduta ética bastante questionável, características facilmente observáveis nas fake news.

Outra característica importante e notável na formação da massa, apresentada por Le Bon e mencionada por Freud, é o aumento da afetividade que pode ser altamente elevada nos indivíduos. McDougall citado nesta mesma obra de Freud, considerou que os indivíduos ficam entregues às suas paixões na massa, ocasionando a perda da individualidade; como se fundissem uns aos outros. O indivíduo perde o senso crítico e é tomado por esse afeto (Freud, 1921/2013).

Ainda sob este prisma, Freud (1921/2013) considerou que o que caracteriza a massa são as ligações libidinais e apresentou o conceito de libido como “[...] uma expressão proveniente da teoria da afetividade. Assim, denominamos a energia tomada como grandeza quantitativa - embora atualmente não mensurável - desses instintos relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra ‘amor’.” (p. 43). Contudo, os afetos de aversão e hostilidade também estão presentes na massa, principalmente relacionados àquilo ou àqueles a que ela se opõe, assim como se faz presente em todo e qualquer laço social.

O criador da psicanálise postulou ainda que é na relação de aversão, ou seja, de ódio ao outro, que se reconhece “a expressão de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si” (Freud, 1921/2013, p. 57). Há uma crítica àquilo que se desvia das suas características individuais e um desejo ou uma provocação no sentido de modificá-los. E a partir daí se tem uma disposição ao ódio, à agressividade, pela via do narcisismo.

Freud (1930/2013) propôs que o Eu, diferente do que se pensa, não é uma instância autônoma, bem demarcada e que ofereça segurança ou qualquer garantia, mas sim que não possui fronteira nítida, podendo chegar à instância do Id que corresponde ao inconsciente. Com a pesquisa psicanalítica, Freud entendeu que no auge do enamoramento a fronteira entre Eu e objeto ameaça desaparecer, tornando-se Eu e Tu um só, de modo que se aja como se assim fosse. Desse modo podem emergir patologias em que a delimitação do Eu frente ao mundo se torna problemática. Em outras palavras, é um não reconhecimento dos limites, daquilo que é do próprio Eu, componente da vida psíquica, com o que é do mundo externo.

Em seu estudo, Freud prosseguiu dizendo que esse sentimento do Eu, presente no adulto, não pode ser demonstrado desde o princípio, mas é constituído. O autor traz o exemplo do bebê que ainda não separa seu Eu do mundo exterior. O processo de separação se dá aos poucos, em resposta a vários estímulos. “Surge a tendência a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer, a jogar isso para fora, formando um puro Eu-de-prazer, ao qual se opõe um desconhecido, ameaçador ‘fora’” (Freud, 1930/2013, p. 18).

Com isso, se dá o primeiro passo para a formulação do princípio da realidade que marca os desdobramentos seguintes e que diz respeito à distinção do que é interior - pertencente ao Eu e do que é oriundo do mundo externo. Rosa et al. consideram um problema a forma que o sujeito, para atingir o ideal do Eu, se aliena a uma massa e prosseguem, dizendo que:

O ideal do eu, embora fundado narcisicamente e pelo desejo do Outro, traduz-se pela possibilidade de produzir e buscar objetos fálicos e lugares que tomam a forma de ideais que orientam os laços com o Outro, os laços sociais, sustentados pelo desejo e pelas identificações” (Rosa et al., 2018, pp. 25)

A falta de liberdade dos indivíduos na massa está relacionada ao papel que opera o líder - o ideal - na subjetividade de seus membros. Contudo, as ilusões nela constituídas asseguram os interesses narcísicos de cada membro. Há um desejo de ilusão. Mesmo o desiludido quer iludir-se e isso nutre o ódio ao outro, a esse outro que não se adapta, que sabe da sua impossibilidade de alcançar a plenitude e felicidade. Aqueles que não se adaptam, são considerados ameaças à civilização. (Rosa et al, 2018). A base política da massa se consolida, como destaca Fuks (2011), quando ela, unida aos seus pares de iguais, direciona o ódio contra o que está fora, ou seja, o outro.

Rosa et al. (2018), como citado em Ferreira (2018), argumentam que pelo viés identitário são formadas barreiras entre o Eu e o outro que, com sua rigidez, favorece radicalismos e intolerâncias:

A intolerância é aqui compreendida como um engessamento do próximo, que aparece enquanto uma ameaça à liberdade ou como estranho por não compartilhar dos mesmos modos de existência de um grupo hegemônico. Elege-se o outro inimigo para que se fortaleça o narcisismo, deixando de lado as coisas do comum ou do amor (Ferreira, 2018, pp. 190)

Nesse sentido, a coesão de uma comunidade ou grupo funciona como uma forma de assegurar o narcisismo, em que o outro consiste no estrangeiro (Ferreira, 2018). Esse fenômeno que foi apresentado até aqui e que evidencia o amor entre os pares no grupo e o ódio ao outro Freud denominou de narcisismo das pequenas diferenças. Este conceito apareceu pela primeira vez no seu texto O Tabu da Virgindade de 1918 e auxilia no entendimento dessa hostilidade inerente e constante nos vínculos humanos. O conceito trata mais especificamente da agressividade que surge a partir do que no outro se difere de mim, caracterizando uma dificuldade de reconhecer o outro, pela via das mínimas diferenças.

Desse modo, o conceito de narcisismo é fundamental para compreender o percurso da formação psíquica do indivíduo. Assim, Freud (1914/2013) considerou o narcisismo um processo necessário e estruturante do desenvolvimento que vai do autoerotismo do bebê, em que o investimento da libido está no próprio Eu, às escolhas objetais, em que a libido é direcionada aos objetos, podendo retornar novamente ao Eu. Assim, denominadas respectivamente, de libido narcísica e libido objetal (Freud, 1930/2013). Esse é um processo que se constitui na relação com o outro, ou seja, nas relações sociais, e de modo mais pontual, pode ser compreendido quando o sujeito encontra em si próprio, um objeto de gozo (Fuks, 2011).

No que se refere ao conceito de narcisismo aplicado às massas, destaca-se a explanação que Fuks desenvolve e que possibilita maior elucidação, sendo ela:

Quando aplicado às massas, o conceito designa a insuflação amorosa da identidade coletiva obtida. Já o termo “pequenas diferenças” foi cunhado para descrever o processo pelo qual, sob a égide do ideal de supremacia, a intolerância ao outro é exibida muito mais intensamente contra as diferenças próximas do que contra as fundamentais. (Fuks, 2011, pp. 48)

Nesse sentido, de algum modo o Eu é nutrido narcisicamente quando se elege o outro para odiar, esse outro, diferente dos membros da massa. E não se trata de qualquer diferença, são pequenas diferenças, mas que são reais ao sujeito ao ponto de impedi-lo de nutrir outro tipo de afeto. Fuks (2011) ressalta que o ódio não nasce da distância, mas sim de algo que é muito próximo, familiar ao sujeito, como por exemplo entre povos vizinhos de países diferentes, ou mesmo entre estados de um mesmo país, bairros de uma mesma cidade etc.

Ao considerar a face subjetiva do ódio enquanto afeto movido pela identificação e pelo narcisismo, é preciso salientar o ódio às minorias sociais e sua potência à exclusão e à eliminação da diferença. Sob este viés, Ferreira (2018, p. 193) diz que: “Na lógica da identificação estará o polo oposto do reconhecimento de uma diferença, isto é, a lógica da segregação.” Nesta direção, aquilo que o sujeito não admite de mais íntimo em si mesmo é visto como o objeto externo ao qual o ódio é endereçado. Ou seja, há algo de si em quem se odeia e que resulta em alvo da segregação.

A Segregação e a Face Política do Ódio

Fuks (2011) faz uma importante constatação sobre o que seria o horror ao não-familiar e como ele se tornou alvo do que deve ser eliminado na modernidade - uma arma política que tem como objetivo normalizar os sujeitos, enquadrá-los a um padrão, extirpando aquilo que os difere e aqui acrescento, desenvolvendo uma espécie de fetiche da idealização. A autora nesse sentido traz como exemplo o discurso de Hitler e destaca: “O judeu habita em nós; porém, é mais fácil combatê-lo sob sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível” (Zaloszcyc, 1993, como citado em Fuks, 2014, p. 4).

Quando se faz presente a segregação ocasionada a partir do ódio, fica explícita a sua face política que precisa ser considerada. É nessa perspectiva que Rosa et al. (2018) dizem:

Isso implica questionar as causas, os discursos e os procedimentos que engendram o ódio, ou seja, trazer à tona o desemprego, as desigualdades e as discriminações. Desse modo, pode-se restituir a alteridade e a possibilidade de um mundo partilhado, elaborar o mal-estar, elucidar a instrumentalização subjetiva para cooptar os sujeitos nessa política e estabelecer metas sociais. (Rosa et al., 2018, pp. 28, grifo dos autores)

Ou seja, é preciso que a face política do ódio esteja presente nos estudos e discussões deste fenômeno, diferente do que muitas das vezes ocorre, havendo uma disposição para desconsiderar ou anular a incidência dos discursos políticos, dando tratamento unicamente ao campo subjetivo, como se fossem questões independentes. Freud já nos mostrou em 1921 que não há distinção entre a psicologia do Eu e a psicologia dos grupos, isso porque seus fundamentos partem da mesma lógica.

Koltai (2018) pondera que se de um lado o ódio é tratado na teoria freudiana como estrutural na constituição do Eu e na sua relação com o objeto, de outro é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que o sujeito se afirma e se diferencia na sua singularidade, o ódio também contribui para a destrutividade humana, ou seja, para a barbárie. A autora salienta ainda que nesse mal-estar instituído culturalmente, quando se traz o poder à cena, o ódio pode produzir uma dicotomia social e política de aniquilamento do outro, reverberando em políticas do ódio, como se faz notar no fragmento abaixo:

Falar em políticas do ódio é, antes de mais nada, falar nas políticas que foram implantadas por todos os totalitarismos do mundo, principalmente em suas versões nazista e estalinista, ambas fruto dos reveses da democracia e que trazem a marca da denegação da castração e o amor ao ódio, na medida em que o fenômeno totalitário requer o ódio como cimento do laço social, ódio não apenas do outro, rejeitado para fora do grupo, mas também ódio do sujeito no homem (Koltai, 2018, pp. 261)

E que sujeito é esse eleito para se odiar? A partir do conceito de narcisismo das pequenas diferenças, é possível pensar que qualquer um pode ocupar este lugar, assim como Dias (2012, p. 47-48) também mostra que “[...] todo o problema do ódio implica o tipo de lugar e de função que o Outro ocupa em relação ao sujeito”. Desse modo, existem alguns grupos que carregam marcas culturais e sociais que não cessam de retornar, seja no imaginário ou no real, mantendo-os mais propensos a serem depositários desse ódio. É o sujeito reduzido a um mero traço diferencial, seja ele a raça, o sexo, o gênero, a classe ou credo etc.

Angenot (1998), como citado em Koltai (2018) propõe que as ideologias sofrem oscilações de tempos em tempos, assim como o mercado de ações, e ao retomar e analisar fatos ao longo da história é possível entender isso. Nesse ínterim, a entrada e saída de situações de massacre, barbárie, regimes totalitários, nazifascismo, marcam a história mundial.

Sob uma nova ótica, Lacan (1953-54/1986) afirmou em seu primeiro seminário que “somos muito suficientemente uma civilização do ódio” (p. 316). Esta afirmação possibilita a reflexão de que não estamos vivendo um fenômeno novo, da contemporaneidade, mas que o ódio se faz presente nela e de tempos em tempos de forma mais assoladora.

Nessa perspectiva, o cenário atual com o qual nos deparamos é de retrocesso daquilo que parecia caminhar para outra direção, mas que ao contrário, tem ecoado fortemente no campo político e ideológico do país, como a expansão e valorização do capitalismo, aumento de discursos fascistas e o questionamento da ordem política que culminou, em 2016, em um golpe parlamentar, destituindo uma presidenta eleita democraticamente.

Mais recentemente, esse mesmo questionamento resultou na tentativa de um golpe de Estado, ocorrido em 08 de janeiro de 2023, com o ataque violento aos prédios dos Três Poderes da República como reação à não aceitação do resultado das eleições presidenciáveis no Brasil, em que figurou vitorioso, Luiz Inácio Lula da Silva.

Sendo assim, tais fatos constituem importantes marcos no cenário político mais recente do país, que já vinha imerso no crescente discurso de ódio às classes, ao gênero, racial, enfim, ódio que surge às diferenças. Estes, dentre tantos outros exemplos que poderiam ser dados, revelam o quanto a democracia esteve fortemente ameaçada com a efervescência do fascismo no país e no mundo, tema ao qual não caberá um aprofundamento nesta ocasião, pois exigiria um trabalho a parte.

Ainda assim, se faz oportuno dizer, a partir de Rancière (2005) como citado em Koltai (2018), que há uma recusa da discussão e do entendimento nas políticas do ódio, o que caracteriza uma negação do que seria o central na política, que é a forma de ação e subjetivação coletiva em que se inclui também o rival, o diferente, no mesmo mundo. Segundo esse autor, a política democrática “cria um nós aberto e inclusivo que reconhece a fala de igual para igual com o adversário” (Koltai, 2018, p. 265), ou seja, na contramão do que ocorre nas políticas do ódio, em que não se reconhece nada em comum entre o Eu e o outro.

E Para Concluir...

É possível considerar que o ódio, muitas vezes perpetrado e legitimado por figuras de poder, tem nos dias de hoje, com o auxílio da internet, obtido grande alcance da mensagem que se pretende propagar. Isso favorece que aqueles que já se identificam em alguma medida com determinadas temáticas, não só possam aderir àquele conteúdo, mas, tornarem-se membros de uma massa psicológica que agora é também digital.

Os processos identificatórios operam no inconsciente pelas vias do amor e do ódio, o que demonstra a ambivalência existente entre esses afetos. Sendo assim, diante de um fenômeno de massa, o sujeito ao se juntar a um grupo, ainda que provisoriamente, elege os demais que representam alguma diferença para odiar. Há que se considerar que as redes sociais e os seus mecanismos subsidiados pelos algoritmos tornam esse percurso ainda mais veloz e eficiente.

Deste modo, como visto até aqui, o ódio emerge sempre da relação com o outro, da intolerância às diferenças e é também fator político. Logo, de algum modo nesse processo o Eu é alimentado narcisicamente, e por isso os conceitos de identificação e narcisismo caminham proximamente a esse afeto. Sendo assim, as diferenças que suscitam o ódio ao outro, embora sejam entendidas como “pequenas diferenças” a partir do conceito de narcisismo das pequenas diferenças, tornam-se grandes para quem odeia, visto o investimento libidinal muitas vezes mobilizado em torno desse afeto. Nesta direção é que se têm os possíveis e arriscados desfechos, como nos casos em que resulta em violência e nos crimes de ódio.

Ainda que o ódio seja tratado enquanto afeto constitutivo do ser humano e primordial na relação com a alteridade, é também um fenômeno cultural, social e político. O fato de dizê-lo ser constitutivo não nos isenta da responsabilidade de com quem nos alinhamos, ou daqueles que escolhem dirigi-lo violentamente ao outro, pois, como já apresentado anteriormente, trata-se também de uma escolha ético-política.

O reconhecimento disso, assim como pensar intervenções possíveis frente à face mortífera do ódio, é um compromisso clínico e político da psicanálise e que requer um novo posicionamento em relação a esse discurso que tem marcado a subjetividade de uma época (Rosa et al., 2018). Como sugere Safouan (1993) citado em Koltai (2018), seria importante tentar, através da palavra, transformar o ódio mortífero em ciúme simpatizante.

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Recebido: 07 de Abril de 2023; Revisado: 20 de Agosto de 2023; Aceito: 22 de Agosto de 2023

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