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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80449 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Os Fenômenos de Massa e as Redes Sociais no Contexto Político Brasileiro: Uma Leitura Psicanalítica

Mass Phenomena and Social Networks in the Brazilian Political Context: A Psychoanalytic Reading

Fenómenos de Masas y Redes Sociales en el Contexto Político Brasileño: Una Lectura Psicoanalítica

Nathália Carvalho de Souza Jalles* 

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestranda pelo PGPSA/UERJ.


http://orcid.org/0009-0006-6747-1853

Doris Luz Rinaldi** 

Professora Titular do Instituto de Psicologia da UERJ, Membro do Colegiado de docentes do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do IP/UERJ; Psicanalista.


http://orcid.org/0000-0002-8627-1359

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar os movimentos de massa contemporâneos presentes no cenário político brasileiro nos anos de 2013 e 2015, assim como seus efeitos no laço social, a partir das contribuições da psicanálise, valendo-se, em especial, dos textos clássicos de Freud que tratam sobre as massas e o mal-estar na cultura e das elaborações lacanianas sobre os discursos que sustentam o laço social. Com isso, busca-se levantar algumas hipóteses e refletir acerca do fenômeno de formação de massas na atualidade, onde se destaca a mais potente ferramenta de mobilização política contemporânea: as redes sociais. Atualmente, avolumam-se os exemplos no Brasil e no mundo de manifestações convocadas pelas redes sociais, com seu poder de propagação e disseminação de informação e desinformação. Nos últimos dez anos, o que colhemos é a intensificação e complexificação desses processos, conforme avança o “poder” das redes sociais e a forma como ela vem se estabelecendo em nossas sociedades. Na copulação entre ciência e capitalismo observada nas redes, os algoritmos respondem e operam de acordo com os interesses do mercado, manipulando as subjetividades.

Palavras-chave: psicanálise; redes sociais; movimentos de massa; laço social.

ABSTRACT

This article aims to analyze the contemporary mass movements present on the Brazilian political scenario in the years 2013 and 2015, as well as their effects on the social bond, based on the contributions of psychoanalysis, using, in particular, Freud’s classic texts that deal with the masses, civilization and its discontents and the lacanian elaborations on the discourses that sustain the social bond. With this, we seek to raise some hypotheses and reflect on the phenomenon of mass formation today, where the most powerful tool of contemporary political mobilization stands out: the social networks. Currently, examples in Brazil and around the world of demonstrations convened by social networks, with their power to propagate and disseminate information and misinformation, are growing. In the last ten years, what we have seen is the intensification and complexity of these processes, as the “power” of social networks advances and the way in which it has been establishing itself in our societies. In the copulation between science and capitalism observed in the networks, the algorithms respond and operate according to the interests of the market, manipulating subjectivities.

Keywords: psychoanalysis; social networks; mass movements; social bond.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar los movimientos de masas contemporáneos presentes en el escenario político brasileño en los años 2013 y 2015, así como sus efectos en el lazo social, a partir de las contribuciones del psicoanálisis, utilizando, en particular, de los textos clásicos de Freud que tratan sobre las masas y el malestar en la cultura y las elaboraciones lacanianas sobre los discursos que sustentan el lazo social. Con ello, buscamos plantear algunas hipótesis y reflexionar sobre el fenómeno de la formación de masas en la actualidad, donde se destaca la herramienta más poderosa de la movilización política contemporánea: las redes sociales. Actualmente, crecen los ejemplos en Brasil y en el mundo de manifestaciones convocadas por las redes sociales, con su poder de propagar y difundir información y desinformación. En los últimos diez años lo que hemos visto es la intensificación y complejidad de estos procesos, a medida que avanza el “poder” de las redes sociales y la forma en que se ha ido instalando en nuestras sociedades. En la cópula entre ciencia y capitalismo observada en las redes, los algoritmos responden y operan de acuerdo a los intereses del mercado, manipulando subjetividades.

Palabras clave: psicoanálisis; redes sociales; movimientos de masas; lazo social.

No ano de 2013 o espaço público brasileiro foi marcado por manifestações populares em todo o país, que trouxeram novos elementos à cena política, despertando a atenção de analistas políticos e estudiosos de diversas áreas do conhecimento, da mídia e da população dos grandes centros. Dez anos depois, é possível concluir que tais manifestações foram da ordem de um acontecimento, cujas características influenciaram de forma decisiva o que sucedeu no cenário político brasileiro nos anos subsequentes. As questões que balizam esse estudo surgiram da reflexão sobre essas manifestações e suas consequências.

A análise das manifestações de 2013, entretanto, não poderia ser feita sem considerar aquelas que ocorreram dois anos depois, em 2015, que tiveram efeitos diretos sobre os destinos do país, com a deposição de uma presidenta democraticamente eleita em 2016. Procuramos articular esses dois momentos de manifestações políticas massivas, a partir da hipótese de que as bases discursivas das manifestações de 2015 podem ser encontradas nos protestos de 2013, apesar de suas grandes diferenças. Isso nos conduz ao questionamento de como ocorreu esse processo de inflexão entre os protestos de 2013 e os de 2015, caracterizado por alguns como uma mudança de “tons”: “as manifestações começaram coloridas de esquerda e chegaram a 2015 com fortes tons de direita” (Pinto, 2017, p. 123).

Para compreendermos esse processo de inflexão, recorremos ao texto clássico e, ao mesmo tempo, extremamente atual de Freud (1921/2020a), “Psicologia das massas e análise do eu”. Nele exploramos a diferença entre os conceitos de multidão e massa, que Freud herda de Le Bon e McDougall, para caracterizar, em uma primeira aproximação, as manifestações de 2013 e de 2015. A suposição incial que lançamos é de que parte dessa multidão de manifestantes de 2013, em 2015 irá se estruturar em uma experiência social de massa. Essa nova forma de organização se efetivará a partir de pautas em comum, oriundas do eixo de movimentos políticos de extrema direita presentes nas redes sociais, que se valeram da “energia” despertada nas ruas no ano de 2013. Afinal, como visto na obra de Freud (1921/2020a), para os indivíduos estarem ligados em unidade, formando uma massa, deve haver algo que os una entre si, sendo este meio de ligação justamente o que é característico da massa.

O fator novo que chama nossa atenção é a importância das redes sociais, tão presentes nos protestos de 2013 e 2015, como ferramenta de mobilização política. A partir disso indagamos: quais seriam as implicações dessa nova forma de convocação das massas, quando tomamos como referência as concepções de Freud acerca da identificação e da constituição das massas em sua estrutura libidinal? Em complemento a essa pergunta, afinal, o que é a psicologia das massas nos dias de hoje?

Além do texto freudiano sobre a “Psicologia das massas (1921/2020a)”, as formulações de Freud em “O mal-estar na cultura (1930/2020b)” são fundamentais para o desenvolvimento de nossa análise, assim como as contribuições de Jacques Lacan sobre o laço social, em sua teoria dos quatro discursos (1969-70/1992), à qual acrescenta um quinto discurso, o discurso do capitalista, em 1972. Elas nos fornecem subsídios teóricos para refletirmos sobre as questões que discutimos nesse artigo, buscando utilizar o arcabouço teórico da psicanálise para pensar as questões sociais e políticas de nosso tempo, em particular o papel das redes sociais na mobilização política e no futuro das democracias.

A Multidão de 2013

As manifestações populares de junho de 2013, também conhecidas como Manifestações dos 20 centavos, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público em São Paulo. Em seu início, restrito a poucos milhares de participantes, os atos pela redução das passagens passaram a contar com um grande apoio popular, em especial após a forte repressão policial contra os manifestantes, cujo ápice se deu no protesto do dia treze de junho, em São Paulo. Quatro dias depois, um grande número de pessoas tomou parte das manifestações nas ruas, em novos e diversos protestos por várias cidades brasileiras e até no exterior. Rapidamente essas manifestações se alastraram para o Rio de Janeiro, com a mesma proporção de pessoas. No começo eram cerca de quatrocentos mil manifestantes, nos dias seguintes, atingindo a marca de um milhão. Na época, as imagens que circulavam na televisão e na internet mostravam o grande número de pessoas que ocupavam as principais capitais em questão. Essa disseminação não ficou restrita às capitais dos demais estados do país, mas também se deslocou para cidades de médio porte que também foram às ruas para protestar contra o aumento indevido das tarifas dos transportes coletivos, de acordo com as direções do Movimento Passe Livre (MPL) (Moreno, 2013).

Inicialmente convocadas por esse movimento, em determinado momento as manifestações tomaram um rumo diferente do que propunham as convocações do MPL e se desdobraram em diversas pautas: contra a corrupção, os políticos, os partidos políticos e o governo, com críticas aos serviços públicos (Pinto, 2017). O efeito imediato na época foi a queda da popularidade dos políticos e principalmente da então presidenta Dilma Rousseff, que algumas vezes se pronunciou publicamente para tentar contornar os impactos e os impasses criados pela nova cena política (Moreno, 2013).

A partir desse momento surge outra importante característica das manifestações de junho de 2013, que se expressa predominantemente na crítica à corrupção no exercício da política de diversas formas, uma das mais importantes sendo o repúdio à participação dos partidos políticos nas manifestações, mesmo aqueles considerados como de esquerda, pois fariam parte da política tradicional que não representava mais parte da sociedade civil.

Além disso, é preciso destacar a multiplicidade das palavras de ordem, expressão de grupos e segmentos sociais diferentes que compunham a multidão de manifestantes, marcada pela descentralização. Um exemplo muito significativo de uma estética presente nessas manifestações foi a de um certo estrato de manifestantes se vestirem com camisas da Confederação Brasileira de Futebol para representar a noção da não representação partidária, dando ênfase à dimensão de nação, do País Brasil. Posteriormente, tal signo seria reapropriado por outros movimentos políticos, principalmente nas manifestações de 2015, como veremos adiante.

No calor dos acontecimentos, vários autores enfatizaram o caráter múltiplo das manifestações de 2013, assim como a pregnância da horizontalidade dos laços em sua forma de organização. Entre eles Castells (2013) e Birman (2014) que, de alguma maneira, saudaram a novidade que elas trouxeram.

Birman (2014), ao reconhecer esse caráter múltiplo das manifestações de 2013, apontava para o fato de que essa disseminação e descentralização das palavras de ordem caracterizavam uma organização por laços horizontais, isto é, sem uma representação política propriamente dita, na forma de laços sociais verticais. Essa forma de organização se deu principalmente pelo fato das redes sociais terem sido os meios de comunicação principais utilizados pelos manifestantes. A convocação e os comentários permanentes sobre os acontecimentos se faziam de forma rápida e instantânea através da internet, dos telefones celulares e pelas redes sociais, atingindo milhares de pessoas ao mesmo tempo, através do espaço virtual.

O autor afirmava que as manifestações de junho de 2013 guardavam similaridades com os movimentos sociais na Europa e nos Estados Unidos ocorridos após a crise econômica de 2008. Os movimentos denominados “Os Indignados” na Espanha e o “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos apresentavam o mesmo quadro organizativo:

Caracterizado pela horizontalização dos laços sociais, acoplada à disseminação e à dispersão de seus participantes, sem esquecer, é claro, da transversalidade que as caracterizava. Da mesma forma a internet, os telefones celulares e as redes sociais foram os dispositivos tecnológicos que catalisaram tais movimentos sociais gigantescos, e foram também os jovens os que mais se implicaram nestas manifestações públicas. (Birman, 2014, pp. 36)

Castells (2013), por sua vez, antes mesmo dos acontecimentos de 2013 no Brasil, ao analisar outros movimentos sociais organizados e convocados por meio das redes sociais, já apontava, por meio do exemplo dos movimentos sociais ocorridos no mundo árabe, a revolução na Tunísia e no Egito (2010-2011), que também foram convocadas pela internet, pelos celulares e pelas redes sociais, que tais revoluções foram organizadas de maneira horizontal e a disseminação das suas demandas estava voltada para a queda da soberania do poder político. Pode-se afirmar que nestas revoluções não houve uma organização de massa propriamente dita, tal como concebida por Freud, centrada na figura carismática do líder situada em posição vertical sobre os demais manifestantes. O que as catalisou foi a presença de uma multidão dispersa e disseminada. Em seu posfácio à primeira edição brasileira, Castells (2013) inclui uma breve análise sobre as Jornadas de Junho na qual afirma:

Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia. Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350 cidades. (Castells, 2013, pp. 270)

E encerra esse posfácio em tom esperançoso: “Pois o que é irreversível no Brasil como no mundo é o empoderamento dos cidadãos, sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens de que tudo que sabemos do futuro é que eles o farão. Móbil-izados.” (Castells, 2013, p. 274)

As análises de Birman (2014) e Castells (2013) representam uma determinada visão presente à época, em que se acreditava que a internet e as redes sociais seriam apenas instrumentos facilitadores da comunicação, que possibilitaram a reunião de insatisfações e demandas políticas diversas, em manifestações marcadas pela espontaneidade a partir de laços horizontais. Nas palavras de Birman, “a internet e as redes sociais foram os dispositivos tenológicos que catalisaram tais movimentos sociais gigantescos” (Birman, 2014, p. 36). Essas manifestações teriam características de multidão e não de massa, pela ausência do líder, mas seriam capazes de provocar revoluções, como assinala Castells, ao se oporem ao poder estabelecido. O que ambos não consideraram, naquele momento, foi o forte poder das redes sociais como instrumento de mobilização política, a partir da crença em uma neutralidade no uso desses dispositivos tecnológicos. Ao invés de espontâneas, pode-se dizer que essas manifestações responderam a um chamado das redes que, por sua vez, são plataformas digitais orientadas por determinados interesses econômicos e políticos.

Essas considerações nos levam à obra “Psicologia das massas e análise do eu” (Freud, 1921/2020a) em que encontramos a valiosa contribuição de Freud acerca da formação de massas. Neste texto, ele procura responder a uma questão principal: o que converte as massas em massas? Em sua investigação, aborda William McDougall, que, em seu livro “The Group Mind”, (1920) discorre sobre o fator da organização das massas. Esse autor acredita que as massas mais simples não possuem organização. E esse tipo de massa, de caráter transitório, ele nomeia como “multidão”. Entretanto, McDougall afirma que essa multidão de pessoas não se reúne facilmente, sem que se forme ao menos um esboço de organização. E são justamente nessas massas mais simples que se reconhece com maior facilidade os fatos fundamentais da psicologia coletiva. Isto é, a condição fundamental para que se forme uma massa, a partir de membros casualmente juntados de uma multidão, é de que esses indivíduos tenham algo em comum, seja um interesse partilhado num objeto ou uma orientação afetiva semelhante em determinado momento. Em consequência, essa massa possui um certo grau de capacidade de influência dos indivíduos que a integram, uns sobre os outros. McDougall assinala que quanto mais forte são essas coisas em comum, mais facilmente irá se formar, a partir dos indivíduos, uma massa psicológica, evidenciando as manifestações de uma “alma coletiva”, como propõe Le Bon. (Le Bon, 1912, p. 14, como citado em Freud, 1921/2020a, p. 140-141)

Nesta perspectiva, o fator mais crucial que se evidenciou no Brasil nas manifestações de junho de 2013 foi o quadro organizativo desses protestos, caracterizado pelo fato da internet, os telefones celulares e as redes sociais terem sido os dispositivos tecnológicos que catalisaram esse movimento social, com a presença massiva da população jovem. Diante disso, dessas manifestações de massas que supostamente não se sentem mais representadas pela organização política tradicional, podemos questionar: como essas massas se formam? Qual é o poder das redes de sugestionar ou mesmo hipnotizar as pessoas, tocando-as em seus interesses mais particulares e conduzindo-os a encampar determinadas ideias e visões de mundo? Qual é o papel do líder, destacado por Freud, nessa nova forma de convocação política, pelas redes sociais?

É preciso considerar ainda, ao analisar as manifestações de 2013, o fato delas terem produzido a “matéria-prima” (Pinto, 2017) que semeou a construção dos discursos revelados nas grandes manifestações de 2015. Isto é, na diversidade presente na multidão de 2013 existia, como visto por Singer (2018) uma presença de manifestantes reivindicando pautas conservadoras como “redução da maioridade penal”, entre outras. Isso ocasionou a desmobilização do movimento MPL (Movimento Passe Livre) que anunciou que não convocaria novas jornadas. A partir daí, as jornadas de junho se concentram em iniciativas parciais e com propósitos específicos: redução dos pedágios, derrubada da PEC 37, rejeição ao Programa Mais Médicos, manifestação contra os gastos públicos para a Copa do Mundo de 2014 etc. (Singer, 2018, p. 107). Essas pautas, apropriadas pela mídia conservadora e por movimentos de direita, tinham como objetivo atingir e desmobilizar ainda mais o governo da presidenta Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores (PT), questionando-os fortemente, com o apoio da elite financeira e empresarial. Essa investida conservadora prenunciava uma radicalização política que estava por vir nas manifestações populares dos próximos anos, consequências que naquele ano ainda não era possível prever, mas que estavam se consolidando e motivando ações futuras.

A Massa de 2015

Nos anos que sucederam as manifestações de 2013 até os dias atuais, importantes acontecimentos da cena política se desdobraram no Brasil. No ano de 2014 foram realizadas eleições presidenciais em que houve um acirramento da disputa, especialmente no segundo turno, entre a candidata a um segundo mandato, Dilma Rousseff (PT), e o candidato da oposição Aécio Neves (PSDB). Em 26 de outubro de 2014, Dilma Rousseff vence as eleições com 51,64% dos votos válidos contra Aécio Neves, com 48,36% (Na disputa...,2014), enfraquecida após as manifestações de 2013, apropriadas pela mídia conservadora e pela direita. A presidenta eleita iniciou seu segundo mandato em janeiro de 2015, em meio à grave crise econômica e política. A crise econômica levou o governo a tomar medidas impopulares, incluindo cortes bilionários no orçamento e aumento de impostos (Máximo, 2014). Em paralelo, revelações da operação Lava Jato (criada em 2014) acentuaram-se envolvendo políticos na maioria governistas e alguns oposicionistas. Esses fatos levaram ao descontentamento de parte da população com o governo re-eleito, que se estendeu depois de 2015 (Matoso, 2015). Inicialmente liderado pelo candidato derrotado Aécio Neves e por outros políticos também derrotados nas eleições, iniciou-se um intenso processo de oposição direta à presidenta eleita. Um acontecimento importante da época, foi o fato do PSDB (partido de Aécio Neves) ter aberto um pedido de auditoria no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a fim de apurar a “lisura” da eleição presidencial. O texto protocolado pelo partido argumentava que a confiabilidade da apuração e a infalibilidade da urna eletrônica foram questionadas pela população nas redes sociais e, por isso, seria importante abrir o processo, a fim de sanar essa questão disseminada pelas redes (“PSDB...”, 2014).

O acirramento expressivo da disputa política nestas eleições, fomentado pelos movimentos de 2013, deixaram evidente a existência de forças políticas contrárias ao governo eleito, com o apoio de uma parcela significativa da população, o que resultou nas manifestações de rua em 2015. O Movimento Brasil Livre (MBL), um agrupamento político, foi o principal responsável pela convocação das manifestações contra o governo de Dilma Rousseff em 2015 (Gonzatto, 2015). O grupo é sediado em São Paulo e, segundo o The Economist, foi “fundado no último ano para promover as respostas do livre mercado para os problemas do país” (Carlos, 2015). Em manifesto publicado na internet (MBL, s.d.), o MBL cita seus cinco objetivos: “imprensa livre e independente, liberdade econômica, separação de poderes, eleições livres e idôneas e fim de subsídios diretos e indiretos a ditaduras”.

Em uma entrevista, Amaral (2016), jornalista que atua no jornalismo independente desde 1997, revela que o MBL nasceu dentro da franquia “Students for Liberty”, grupo americano com representações no mundo todo e sustentado por fundações americanas de alinhamento político de direita, ligadas aos irmãos Koch, donos da segunda maior empresa privada dos Estados Unidos, do ramo petroleiro. Ligadas também aos chamados “libertarians americans” que pregam o Estado minúsculo, a substituição das políticas públicas de inclusão pela mera meritocracia, a ausência de regulação da economia, a redução da carga tributária. Segundo Amaral, o objetivo do movimento é influenciar os partidos de direita e não necessariamente constituir um novo partido (“Movimento Brasil Livre...”, 2016).

No dia 15 de março de 2015, ocorreram os primeiros protestos em todos os estados brasileiros, em ao menos cento e sessenta cidades. As estimativas totais de participantes variaram de acordo com a fonte: enquanto as polícias militares estimaram entre um milhão e quatrocentos mil e dois milhões e quatrocentos mil, os organizadores afirmaram que estavam presentes três milhões de pessoas (“Mapa...”,2015). O protesto ocorrido na cidade de São Paulo foi o maior de todos, com uma estimativa de um milhão de manifestantes na Avenida Paulista e adjacências (Gadelha, 2015). O discurso predominante nesse protesto entre os manifestantes pedia o impeachment da presidente Dilma e a responsabilização do Partido dos Trabalhadores (PT) pelo escândalo de corrupção na Petrobras (Gadelha, 2015). Alguns manifestantes defendiam uma intervenção militar. Outro elemento presente nessas manifestações, que lhe dava uma tonalidade característica, era a vestimenta da maioria dos manifestantes com as cores da Bandeira do Brasil e as camisetas da Seleção Brasileira de Futebol (“Manifestantes...”,2015).

É importante assinalar que, ao contrário das manifestações de 2013, nas manifestações de 2015 existia um mote principal, a destituição da presidente eleita, expresso no pedido de "impeachment de Dilma Rousseff” (Pinto, 2017). Se nos protestos de 2013 existia uma pluralidade discursiva em torno dos temas sociais, políticos e econômicos, no ano de 2015 o eixo central das manifestações populares é o espectro antipetista. Como visto por Scartezini (2016), a indignação com a corrupção, com a política e com a limitação ao acesso a bens de consumo passam a ser a tônica central dos protestos decorrentes desse espectro. Palavras de ordem como “Fora PT” e “Fora Dilma” deram o tom a estas manifestações (Scartezini, 2016), amplamente apoiadas pela mídia corporativa. Essa massa representava uma parte bastante específica da população, os que eram contrários ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), mas também os descontentes com a crise econômica e política.

Por meio das redes sociais, muitos grupos mobilizaram a população para as manifestações de 2015. Influentes desde o final de 2013, esses grupos de oposição ao governo despontaram em 2015 como os grandes organizadores das imensas manifestações assistidas neste ano (Scartezini, 2016). Grupos como “Vem pra Rua”, “Movimento Brasil Livre” e “Revoltados Online” lideraram todos os protestos anti-governo e os cartazes publicados nas páginas das redes sociais desses grupos revelavam uma posição ideológica que canalizou as manifestações. Isto é, havia nas manifestações de 2015 faixas pedindo intervenção militar, além de um conteúdo anticomunista, que renasceu com a identificação do governo da Venezuela como comunista, e a associação desse país com o Partido dos Trabalhadores e com os governos dos presidentes Lula e Dilma. (Pinto, 2017)

Liderados por jovens de classe média e alta e com instrução acadêmica elevada, estes agrupamentos sociais conservadores que convocaram as mobilizações compõem o perfil do manifestante dos protestos de 2015: homem, jovem, branco, classe média, “apartidário” ou “suprapartidário”. Segundo Scartezini (2016), o manifesto do Movimento Vem Pra Rua faz questão de deixar registrado que é “contra qualquer tipo de violência” e que condena “qualquer tipo de extremismo (separatismo, intervenção militar, golpe de Estado)” e não compactua com governos autoritários. Advertência que não condiz com o que foi visto nas ruas, já que o que mais se viu ao lado das faixas de “Fora Dilma” foram os pedidos de “Intervenção Militar Já”. Ainda que 71% dos manifestantes tenham se declarado contrários à Intervenção Militar, é impossível não atentar para o fato de que expressivos 29% deles eram favoráveis à volta da Ditadura no Brasil (“Quem são...”, 2015). A preocupação com a “ameaça comunista” também se fez presente nestas manifestações e foi uma das justificativas do anseio pelo retorno dos militares ao poder (Scartezini, 2016).

Esse movimento deu esteio ao processo de deposição da presidenta Dilma Rousseff, através da abertura de um de pedido de impeachment no Congresso Nacional, baseado na acusação de crime de responsabilidade por execução das chamadas “pedaladas fiscais”. As mobilizações de rua prosseguiram até o dia 31 de agosto de 2016, quando encerrou-se esse processo, iniciado no dia 02 de dezembro de 2015, resultando na cassação de seu mandato. O vice-presidente Michel Temer assume a presidência do Brasil a partir de então.

Esses fatos revelam o que há de relevante na investigação dessas manifestações de 2015, sob a leitura freudiana. Seguindo nossa hipótese inicial, ao contrário das manifestações de 2013, os protestos de 2015 representavam agora uma organização de massa psicológica propriamente dita. Em “Psicologia das massas e análise do Eu” (Freud, 1921/2020a), ao introduzir a questão da “massa psicológica” a partir da obra de Gustave Le Bon, Freud se indaga: “O que é então uma ‘massa’, de onde ela tira a capacidade de influenciar tão decisivamente a vida psíquica do indivíduo? E em que consiste a alteração psíquica que ela impõe ao indivíduo?” (Freud, p. 140, 1921/2020a)

As questões que Freud procura responder ao longo de seu texto, como vimos, são essenciais para pensar a massa de 2015 e a novidade nas ruas deste ano em relação a 2013. Sobretudo para pensarmos a função das redes sociais como uma ferramenta de mobilização política na contemporaneidade. O que Freud pôde dizer em seu tempo sobre as massas e a partir disso o que podemos articular no nosso?

As Redes Sociais como Ferramenta de Mobilização Política

As manifestações de 2013 e 2015 mostraram o poder de convocação e mobilização política das redes sociais. Através das redes, os protestos eram convocados para ocorrerem nas ruas de todo o país. Como vimos, o inegável poder das redes já havia se evidenciado na convocação de movimentos de massa que explodiram em diversos países, como na chamada “Primavera Árabe” no Oriente Médio ou o “Occupy Wall Street” nos EUA e, mais recentemente, os protestos que ocorreram no Chile no ano de 2019. Aparentemente espontâneos, todos guardam entre si uma característica em comum: respondem em grande parte a um chamado das redes sociais.

A partir do recorte que fazemos no presente artigo, ao focalizar as manifestações políticas no Brasil na última década, vemos que o avanço do sistema de comunicação em rede, digitalizado e operado por algoritmos, traz importantes questionamentos acerca de ‘o que’ é mobilizado e ‘quem’ mobiliza. Esta nova forma de laço social, digital, anônimo, em sua função de segregação em bolhas ideológicas, operacionalizadas pela internet e seus algoritmos, tem um papel importante na exacerbação do imaginário, em detrimento da via simbólica, favorecendo o ódio e a agressividade. Refletir sobre isso nos remete a importantes contribuições de Freud acerca do laço social.

Em “O mal-estar na cultura” (1930/2020b), Freud localiza três fontes do sofrimento humano: o próprio corpo, o mundo exterior e as relações com outros seres humanos, sendo esta última a mais grave, que mais sofrimento traz. A partir desta constatação, faz uma importante reflexão em torno do mandamento do amor ao próximo, que nos envia ao coração do problema colocado pelo estabelecimento do laço social: o gozo do próximo, este que é, simultaneamente, semelhante e diverso. Problema que nos conduz aos paradoxos em jogo nas soluções pela via do amor e a complexidade das relações do humano com o seu próximo. Daí a necessidade de que isto se coloque como um mandamento, um imperativo, como nos fala Freud. Mandamento, a seu ver, impossível de ser cumprido, em vista dos impasses que se apresentam na relação ao próximo, quando se escolhe essa via. Freud é categórico ao acentuar a “maldade” que habita o próximo, assim como a mim mesmo, adotando a máxima “homo homini lupus” de autoria do dramaturgo romano Platus, apropriada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes. “O homem é o lobo do homem”, ou seja, aquele que é capaz de “explorar a sua força de trabalho sem uma compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e de matá-lo” (Freud, 1930/2020b, p. 363). Podemos ver nesse fragmento uma referência à dimensão do gozo como um “fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a cultura a arcar com seus custos” (Freud, 1930/2020b, p. 364) em um esforço de “terraplanar” o gozo, como diz Lacan em seu Seminário, livro 16 “De um Outro ao outro” (1968-69/2008).

Para Freud há, portanto, algo de inconquistável no laço social. As contribuições de Lacan, ao abordar o laço social a partir de uma estrutura de discurso, são valiosas para avançarmos em nossa análise, ao nos valermos da teoria dos quatro discursos apresentada em seu Seminário 17, “O avesso da psicanálise” (1969-70/1992). Por se tratar de uma vasta contribuição do seu ensino, procuramos no presente artigo destacar, dentre os quatro discursos que traz inicialmente, o discurso do mestre 1 e um quinto discurso que formula posteriormente, a partir de uma mutação no discurso do mestre, o discurso do capitalista 2. Esses dois discursos nos interessam para pensarmos como operam as redes sociais em tempos de capitalismo neoliberal, sob a hegemonia do capital financeiro, lançando algumas hipóteses sobre as novas modalidades de formação das massas.

De forma resumida, pode-se dizer que no discurso do mestre, que segundo Lacan já havia sido esclarecido por Hegel, por meio de sua formulação teórica acerca da dialética do senhor e do escravo, o lugar de agente do discurso é ocupado pelo significante-mestre (S1) que se dirige ao outro (S2) para que ele trabalhe e produza o mais-de-gozar (a), inspirado no conceito de mais-valia, formulado por Marx. Nesse discurso, o significante é o do senhor, como na dialética de Hegel, que aparece como idêntico a si mesmo, como puro imperativo. A partir disso, podemos pensar que os movimentos totalitários do séc. XX se inscrevem no discurso do mestre, na medida em que representaram uma tentativa de instaurar o reino do Um na política. A grande contribuição de Freud, em “Psicologia das massas”, foi identificar na estrutura libidinal das massas os efeitos hipnóticos que resultam da superposição de lugares ocupados pelo líder, de ideal-de-eu e de objeto, presente nos grupos como o exército e a igreja, antecipando, em 1921, o crescimento do nazismo e do fascismo na Europa.

No discurso do capitalista, chamado também por Lacan de “discurso do mestre moderno”, acontece uma mutação no discurso do mestre antigo, que se produz a partir do momento em que o gozo passa a ser contabilizado. No discurso do capitalista há uma torção da fração do lado esquerdo do discurso do mestre, ou seja: S1 e $ são trocados de lugar, S1 passando do lugar de semblante ao lugar da verdade e o contrário ocorrendo com $, que antes estava colocado abaixo, no lugar da verdade. O sujeito assume o lugar de agente e o S1 vai para o lugar da verdade abaixo da barra, enquanto a outra fração permanece idêntica ao discurso do mestre. Lacan assinala que essa mutação produz um curto-circuito, não havendo relação entre o campo do agente e do outro. Este fato é indicado pelas setas que introduz em forma de cruz e não de forma direta na parte superior da fração, como nos demais discursos, revelando que não há instauração do laço social.

Nesse discurso, o lugar da verdade é ocupado pelo significante do mestre moderno, o Capital e sua promessa de gozo, enquanto o sujeito, reduzido à condição de consumidor, resta fixado a essa verdade, desconhecendo a sua castração e atuando sob o duplo imperativo de gozo do mestre: produza, consuma! Em outras palavras, nos diz Lacan:

Porque o discurso do capitalista está ali, vocês veem... [indica o discurso no quadro negro]… uma pequenininha inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome [consomme], se consome tão bem que se consuma [consume]. (Lacan, 1972, pp. 48)

Em que essas considerações de Lacan sobre o discurso do capitalista nos ajudam a compreender o papel das redes sociais, que “andam rápido, rápido demais”, e sua interferência na esfera política na atualidade, através da manipulação da informação e da fabricação de massas de novo tipo?

A manipulação para fins políticos e eleitorais é uma das facetas das redes e tem impactos incalculáveis. Um dos exemplos desses fatos foi o escândalo da empresa Cambridge Analytica envolvendo o Facebook, em que a empresa utilizava-se da análise de dados coletados a partir do uso de redes sociais da internet, para executar planos de “comunicação estratégica”. Atuou tanto no mercado consumidor quanto na política, utilizando técnicas de análise de personalidade para elaborar propagandas que estimulem pessoas de diferentes perfis a consumir mercadorias ou a votar em determinado candidato ou proposta política (Maia, 2022). Ao mesmo tempo que abordava esses usuários, um a um, através de mensagens personalizadas, tocando justamente em seus interesses particulares, formava também um discurso comum que atendia a determinados fins políticos. A sua participação foi decisiva no resultado das penúltimas eleições americanas, assim como na saída da Grã-Bretanha da Comunidade Europeia, mostrando o poder de intervenção das redes sociais no espaço político.

A forma de operar dessas empresas, a partir das redes, nos remete ao modo de funcionamento do discurso do capitalista, que procura atingir cada um em seu gozo, alimentando a expectativa de gozo com a promessa de um gozo garantido. Nesse processo, o que parece estar em jogo é “um processo de fragmentação da massa” (Rinaldi, 2021, p. 60), através de uma estratégia de propaganda e manipulação da informação, que tem como objetivo reconstituir essa massa que se fragmentou, para, em seguida, formar uma nova, que se reunifica por razões diferentes. Essas novas razões, manipuladas pelas redes através de seu funcionamento algorítmico, favorecem determinados discursos políticos em detrimento de outros, assim como promovem candidatos. A novidade neste tipo de estratégia é a de que o ator político não precisa sustentar suas mensagens necessariamente em presença, junto aos seus seguidores. A comunicação pelas redes, através de mensagens anônimas irá se incumbir, em parte, disso.

Este fato nos revela uma importante diferença em relação ao modo como Freud caracteriza as massas tradicionais, em que o líder ocupa um lugar decisivo, como ponto de unificação da massa, veiculando sua mensagem publicamente, o que as inscreve no discurso do mestre. Já a estratégia política através das redes, no que ela se dirige a cada um em seus ‘gostos’ particulares, “buscando domar as diversas formas de gozo e produzir uma uniformização do gozo a ser vendido como ideal” (Rinaldi, 2021, p. 61) adequa-se ao estilo do discurso do mestre moderno, o capitalista. Dessa forma, sustentado pelo discurso do capitalista e não mais pelo discurso do mestre, assistimos ao líder ressugir nessa nova cena, produzido a partir das redes sociais e seu sistema algorítmico.

Considerações Finais

Atualmente, avolumam-se os exemplos no Brasil e no mundo de manifestações convocadas pelas redes sociais, com seu poder de propagação e disseminação de informação e desinformação. Nos últimos dez anos, o que colhemos é a intensificação e complexificação desses processos, conforme avança o “poder” das redes sociais e a forma como ela vem se estabelecendo em nossas sociedades. Ainda mais quando, como formulou Lacan em 1970, se dá a “curiosa copulação” entre ciência e capitalismo (Lacan, 1970/1992, p. 103) que podemos observar nas redes em que os algoritmos respondem e operam de acordo com os interesses do mercado, tocando a cada um de nós em nossos interesses particulares, nos levando aos mais diversos tipos de consumo.

Esses fatos levados às últimas consequências, dentre outros fatores, resultaram no governo que viria após a destituição político-parlamentar da presidenta Dilma Rousseff. Essas matrizes discursivas presentes em 2013 e 2015 nos movimentos de massa, impulsionaram novos rumos do cenário político brasileiro que em seu apogeu culminaram na eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro em 2018, eleito democraticamente, mas com o grande incentivo e financiamento da sua máquina tecnológica de desinformação expressa principalmente no compartilhamento de mensagens através dos aplicativos Whatsapp, Facebook, Instagram e outros.

A força da psicologia das massas na contemporaneidade, não só no Brasil, mas como no Mundo, se manifesta quando assistimos a eventos como a Invasão do Capitólio nos Estados Unidos após a derrota do ex-presidente Donald Trump nas eleições de 2020, e o evento equivalente a este no Brasil, a invasão às sedes dos Três Poderes em Brasília que ocorreram na tarde de 8 de janeiro de 2023, quando uma massa de bolsonaristas invadiram o Palácio do Planalto, o Palácio do Congresso Nacional e o Palácio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, com o objetivo de instigar um golpe no governo Lula após a derrota do ex-presidente Bolsonaro nas eleições de 2022.

Estes eventos ilustram de forma eloquente a mobilização das massas através das redes sociais e a função do líder que é forjado pelas redes. Além disso, exemplificam a questão da massa psicológica agir como uma arma. Uma arma que no exemplo do evento do Capitólio foi capaz de invadi-lo e depredá-lo a partir de mensagens de incentivo do ex-presidente Donald Trump pelo Twitter, deixando um legado de dois manifestantes mortos, setecentos e vinte e cinco manifestantes indiciados judicialmente, três policiais mortos e outros cento e quarenta feridos. (Holanda, 2022)

No exemplo brasileiro, a massa foi capaz de depredar e causar enormes prejuízos aos prédios da Praça dos Três Poderes, incitados por declarações de Bolsonaro ao longo de todo processo das eleições de 2022, em que questionava a validade do processo eleitoral brasileiro disseminando informações falsas sobre as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral através das redes sociais. Este evento deixou um legado de quarenta pessoas feridas (Roriz & Schwingel, 2023), mais de mil e quatrocentos detidos (Mestre, 2023), e quarenta e quatro policiais militares feridos (Rios, 2023). E representou algo inédito na história político brasileira, o mais grave ataque à sua democracia desde o golpe de 64.

Torna-se urgente, portanto, pensarmos essas questões sob a perspectiva da insistência de um “real que avança” através de uma importante reflexão que Laurent (2017), em seu texto “Gozar da Internet”, elabora a partir da seguinte passagem de Freud em “O mal-estar na cultura” (1930/2020b):

Por meio de todas as suas ferramentas, o ser humano aperfeiçoa os seus órgãos - motores, bem como os sensoriais - ou remove os obstáculos para o seu funcionamento. Os motores colocam à sua disposição forças imensas que ele pode, a exemplo de seus músculos, adequar para a direção que quiser; o navio e o avião fazem com que nem a água nem o ar possam impedir a sua locomoção. Com os óculos, ele corrige os defeitos da lente em seu olho; com o telescópio, ele enxerga a longínquas distâncias; com o microscópio, ele supera as fronteiras da visibilidade, delimitadas pela estrutura de sua retina. Com a câmera fotográfica, ele criou um instrumento que retém as fugidias impressões visuais, que é o que o disco de gramofone deve lhe fornecer para as impressões sonoras igualmente efêmeras, sendo ambos, no fundo, materializações da capacidade que lhe foi dada para a lembrança, a da sua memória. Com a ajuda do telefone, ele ouve a partir de distâncias que mesmo os contos maravilhosos considerariam inalcançáveis; a escrita foi, originalmente, a língua daquele que está ausente; a moradia, um substituto do ventre materno [Mutterleib], o primeiro e provavelmente o sempre ainda ansiado alojamento, no qual nos encontrávamos seguros e nos sentíamos tão bem. (Freud, 1930/2020b, pp. 338-339)

Segundo Laurent (2017), a tela do computador conectada à internet é tudo isso ao mesmo tempo. Acredita que a casa, como substituto do corpo materno como nos diz Freud, está agora ligada a essa domótica fundamental a uma imagem do universo. Assim, não precisamos mais olhar pela janela, a natureza se desvaneceu. “O real substituiu a natureza, o real avança.” (Laurent, 2017, p.2) e esse real é feito de objetos que não têm nada de natural, de modos de fazer, de processos. Conclui:

O real avança, como Nietzsche dizia que o deserto avança. Se a escrita era a linguagem do ausente, como diz Freud, o chat, o e-mail, os jogos on-line, o Facebook, o WhatsApp e o Instagram são a linguagem do excesso-de-presença do Outro da civilização Una e digital. (Laurent, 2017, pp. 2)

Nesse “real que avança”, colhemos os efeitos nefastos dessa nova forma de manipulação política operada pelas redes sociais que perpetua a promessa de um gozo perdido a ser vendido como um ideal para a massa identificada, criada artificialmente. Freud em uma de suas maiores contribuições acerca do laço social, nos diz “a psicologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social” (Freud, 1921/2020a, p. 137), salientando a inscrição do sujeito na história, na cultura, no laço social. Portanto, não é possível ignorar os movimentos políticos-culturais de nossa época, as tentativas de instauração do Um na política e aniquiliação do outro por ele ser o Outro, tão difundido nos discursos de ódio, que vimos nos últimos anos no Brasil. Isso que retorna, avança e resiste nos lança a problemática do inconquistável que habita o laço social e nos convoca a pensarmos a partir da psicanálise, no que ela promove no limite de seu saber, o sujeito a partir da dialética do desejo.

Notas

1 Discurso do mestre:

2 Discurso do capitalista:

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Recebido: 14 de Maio de 2023; Revisado: 12 de Agosto de 2023; Aceito: 27 de Agosto de 2023

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