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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008

 

ARTIGO

 

Desempenho de crianças com e sem dificuldades de atenção no jogo Mancala

 

Performance of children with and without difficulties of attention in the game Mancal

 

 

Daniela Dadalto Ambrozine Missawa; Claudia Broetto Rossetti

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) , Vitória, ES, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Realizou-se um estudo comparativo do desempenho de crianças com e sem dificuldades de atenção no jogo Mancala. Participaram quatro crianças, entre 9 e 11 anos, avaliadas pela Escala de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) (versão para professores) e pela Tabela de Diagnóstico de TDAH (versão para pais). Os participantes foram divididos em: Grupo A (os que apresentavam traços de dificuldade de atenção) e Grupo B (os que não apresentavam traços dessa dificuldade). Foram realizadas dez oficinas na escola e, após essas, foram apresentadas quatro situações-problema para cada criança. Os dados foram assim analisados: desempenho nas oficinas (vitórias) e Condutas de Desatenção (CDT-1 e CDT-2). Os resultados mostram que há prejuízo quanto ao desempenho nas partidas dos sujeitos do Grupo B, quando comparados aos sujeitos do Grupo A, contrariando a hipótese inicial. Com relação às CDT-1 e CDT-2, o Grupo A apresentou um número maior das mesmas quando comparado ao Grupo B. Os resultados permitem a ampliação das discussões acerca das dificuldades de atenção e a relativização das supostas limitações cognitivas que as crianças com tais características possuem.

Palavras-chave: Dificuldades de atenção; Jogo Mancala; Teoria Piagetiana.


ABSTRACT

It was made a comparative study of the performance in the Mancala game of children with and without difficulties of attention. Four children between the ages of nine (9) and eleven (11) years old participated in the study. It was used the Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) Scale (version to teachers) and the Diagnosis Table of ADHD (version to parents). The participants were divided into Group A (traces of difficulties of attention) and Group B who didn’t show up traces of this difficulty. It was taken ten workshops in the school and four situation problems were presented for each child. It were analyzed the performance in workshops (victories) and behaviors of unattention (CDT-1 and CDT-2). The results point out to the fact there is a non-profit as to the performance on the matches from people of Group B when compared to the people from Group A, contrary to the initial hypothesis. In relation to CDT-1 and CDT-2 the children from Group A presented a bigger number of them when compared to the children from Group B. The results permit the widening of the discussion about the difficulties of attention and the relativization of supposed cognitive limitations that the children with such features have.

Keywords: Attention difficulties; Mancala game; Piagetian theory.


 

 

As dificuldades de atenção têm sido estudadas e compreendidas de diversas formas, sobretudo no decorrer do século XX. Na atualidade, estas dificuldades têm recebido algumas denominações específicas como Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), Distúrbio do Déficit de Atenção (DDA), entre outras. As bases biológicas de tais transtornos e distúrbios têm sido largamente pesquisadas, principalmente no campo da Medicina. Contudo, entende-se que é igualmente relevante a produção de conhecimento e estratégias de intervenção que contribuam para a ampliação dos estudos acerca de tais dificuldades no campo da Psicologia.

O fenômeno da atenção é algo complexo, no qual muitas variáveis estão envolvidas. De acordo com Hallowell e Ratey (1999, p. 318),

[...] o sistema atencional envolve quase todas as estruturas do cérebro, de uma forma ou de outra. Ele governa nossa consciência, nossa experiência na vigília, nossas ações e reações. É o meio pelo qual interagimos com nosso ambiente, seja esse ambiente composto de problemas de matemática, de outras pessoas ou das montanhas nas quais estamos esquiando.

Assim, uma infinidade de estímulos está presente em um mesmo ambiente e, portanto, é necessário que os classifiquemos de acordo com nossos interesses e prioridades. A característica de seletividade da atenção torna possível esse processo fazendo com que consigamos elaborar um sistema lógico e coerente de atuação no mundo.

Dentre os processos mentais estudados por James (1952), em seu compêndio The principles of Psychology, está a atenção. Os itens para os quais a atenção é direcionada são os responsáveis por modelarem a mente. Sem o interesse seletivo, a consciência seria um “caos”, algo indiscriminado e, portanto, impossível à compreensão. Assim, segundo Fonseca (1995, p. 254), em nossa sociedade,

A ocorrência de muitos estímulos, como acontece em muitas salas de aula – permanente barulho exterior, proximidade de recreios e ruas agitadas, várias classes a funcionar ao mesmo tempo, quadro repleto de informação visual mal-estruturada espacialmente, salas carregadas de estímulos nas paredes, ausência de rotinas etc. –, tende a desorganizar a criança. Em muitos casos, é necessário minimizar os estímulos competitivos e irrelevantes.

Essa infinidade de estímulos dificulta o processo de concentração da atenção em algum estímulo, especialmente para as crianças, pois elas começam a descobrir um mundo novo cheio de possibilidades, de novas descobertas que as impelem a buscar e a descobrir tudo aquilo que para o adulto já não é mais novidade.

No contexto atual, as dificuldades de atenção têm sido abordadas de maneira bastante peculiar, quando vêm associadas a outras características, tais como a impulsividade e a hiperatividade. A associação dessas três características tem sido denominada, por médicos e estudiosos, como constituinte do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). O estudo deste transtorno tem sido feito de forma sistemática, principalmente no campo da Medicina, pois se buscam, prioritariamente, explicações biológicas para a compreensão de tal fenômeno.

A nomenclatura do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade vem sendo modificada desde meados do século XIX. A primeira referência foi feita com a denominação de Transtornos Hipercinéticos. A partir daí surgiram outras denominações como “lesão cerebral mínima” (década de 1940) e “disfunção cerebral mínima” (1962). No entanto, as características dessa síndrome foram relacionadas menos a lesões cerebrais do que a disfunções em vias nervosas (Rohde et al., 2000).

Os modernos sistemas classificatórios utilizados em Psiquiatria, como a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e o Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais (DSM-IV), apresentam as seguintes nomenclaturas para a síndrome: Transtornos Hipercinéticos e Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), respectivamente. Apesar de utilizarem nomenclaturas diferenciadas, existem muitas similaridades no que diz respeito às diretrizes diagnósticas (Rohde et al., 2000).

O diagnóstico da hiperatividade não pode ser baseado em dados superficiais e fatos isolados encontrados no decorrer do estudo do caso da criança, visto que os sintomas atribuídos ao TDAH podem estar associados a problemas emocionais e de ajustamento social. Dessa forma, encontra-se freqüentemente, na literatura, o TDAH como um quadro de diagnóstico complexo, de início precoce e evolução crônica (Goldstein; Goldstein, 2003).

Segundo Coes (1999), as pesquisas acerca da natureza neurobiológica do Déficit de Atenção apontam para diversos fatores causais deste distúrbio, tais como: presença de excesso de chumbo no sangue, fatores perinatais, alterações metabólicas (como distúrbios da tireóide), entre outros. Entretanto, a variabilidade das condições associadas ao Déficit de Atenção indica que não há uma causa única, mas que o mesmo se dá na interação de diversos fatores biológicos e psicossociais.

As crianças diagnosticadas como hiperativas geralmente possuem problemas de socialização, visto que as características comportamentais desse transtorno concorrem para que tais dificuldades surjam (Silva, 2003). A criança que apresenta dificuldades na área da atenção, um dos sintomas componentes da tríade e foco do presente trabalho, poderá desenvolver problemas nos relacionamentos com amigos e parentes, principalmente se estes não souberem lidar com o problema e, assim, poderem ajudá-la a conviver e a vencer tais obstáculos.

De acordo com o DSM-IV, há três sintomas que podemos considerar como característicos do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade: impulsividade, desatenção e hiperatividade. Estes não estão presentes com a mesma intensidade nos casos de TDAH. O DSM-IV subdivide essa síndrome em três tipos: 1. TDAH com predomínio de sintomas de desatenção; 2. TDAH com predomínio de sintomas de hiperatividade/impulsividade; e 3. TDAH com os três sintomas combinados (DSM IV, 2000).

Complementando a caracterização desse transtorno, Silva (2003, p. 20) afirma que a alteração da atenção é considerada o sintoma mais importante para o entendimento do DDA, visto que é condição essencial para que o diagnóstico possa ser realizado. “Uma pessoa com comportamento DDA pode ou não apresentar hiperatividade física, mas jamais deixará de apresentar forte tendência à dispersão”.

Ainda segundo Silva (2003), a hiperatividade poderá apresentar-se na forma física e na mental. A hiperatividade física pode ser facilmente identificada: a criança se mostra agitada, não consegue ficar quieta e, por isso, move-se constantemente em casa, na sala de aula e em outros ambientes que freqüenta. A hiperatividade mental apresenta-se de forma mais sutil do que a física (Silva, 2003).

As dificuldades de aprendizagem não apresentam apenas características negativas. Segundo Mattos (2005, p. 31):

[...] muitos portadores de TDAH são vistos como intuitivos, com razoável senso de humor e, talvez, criatividade. Imaginam diferentes projetos, conseguem ver ângulos diferentes dos usuais. Muitos são pessoas com sucesso social e profissional, apesar dos sintomas. Podem ser agradáveis no convívio (ao menos em um convívio social) e ter muitas idéias divertidas.

Entretanto, as características negativas, como não levar as coisas até o final ou não conseguir administrar os projetos em longo prazo, estarão presentes impedindo a criança ou o adulto com TDAH de colocar em prática as idéias e projetos imaginados (Mattos, 2005). Dessa forma, é necessário que a pessoa diagnosticada como hiperativa encontre estratégias para “burlar” estas dificuldades e, assim, conseguir adaptar-se satisfatoriamente ao convívio social.

De acordo com a literatura revista, para o tratamento do TDAH faz-se necessário uma abordagem múltipla que envolva intervenções psicossociais e psicofarmacológicas. No entanto, o medicamento tem sido o ponto central nos tratamentos, com excessiva utilização, principalmente na intervenção em crianças. Atualmente a saída medicamentosa é a mais empregada e o conhecimento produzido na área médica com relação à eficácia dos mesmos é bastante amplo.

A intervenção psicofarmacológica para tratamento do TDAH tem sido realizada com estimulantes, na maioria das vezes. Segundo Rohde e Halpern (2004, p. S68), no Brasil, o único estimulante recomendado para pacientes diagnosticados com TDAH encontrado no mercado é o metilfenidato. A dose terapêutica normalmente situa-se na faixa de 20 a 60 mg/dia. Como a meia-vida do metilfenidato é curta (de 3 a 4 horas), geralmente pode-se utilizar o esquema de administração de três doses por dia: uma de manhã, outra ao meio-dia e uma última ao final da tarde.

É importante ressaltar que, em casos muito específicos, a medicação torna-se um importante instrumento no tratamento de doenças e distúrbios, desde que utilizada de forma ética e responsável. No entanto, com relação ao TDAH, o tratamento medicamentoso agirá nos sintomas de hiperatividade, déficit de atenção e impulsividade, mas dificilmente irá auxiliar a criança a compreender o que está acontecendo com ela e a desenvolver estratégias para lidar de forma menos danosa com tais sintomas. Dessa forma, concede-se uma solução para “a parcela biológica”, deixando de lado as questões afetivas e sociais que também estão envolvidas.

Quando um diagnóstico minucioso é concluído, e a avaliação é de que a criança apresenta TDAH, é necessário que intervenções paralelas na família e na escola sejam iniciadas. A intervenção com os pais possui a finalidade de, principalmente, fornecer informações acerca da hiperatividade para que eles conheçam o transtorno de forma a poderem contribuir potencializando as habilidades da criança sem apresentarem dúvidas e receios quanto ao tratamento prescrito. O trabalho desenvolvido na escola tem como objetivo preparar o professor para lidar com a criança diagnosticada como hiperativa, pois sabendo das suas dificuldades, o profissional terá condições de trabalhar efetivamente para desenvolver as habilidades e competências dessa criança (Goldstein; Goldstein, 2003).

Dessa forma, o objetivo deste trabalho é buscar compreender as crianças com dificuldades de atenção de acordo com a lógica da diferença, ou seja, apreender suas particularidades, de modo a construir uma visão menos estigmatizada e reducionista, no intuito de resgatar a possibilidade de nos surpreendermos, positivamente, com essas crianças ao olharmos para elas como sujeitos capazes de vencer os obstáculos que lhes são apresentados pela vida.

 

Epistemologia genética e jogos de regras

Piaget (1962, p. 1, tradução nossa) explicita a existência de uma íntima relação entre afeto e inteligência, pois, para o mesmo,

[...] é incontestável que o afeto exerce um papel essencial no funcionamento da inteligência. Sem afeto não haveria interesse, necessidade, motivação; e, conseqüentemente, não haveria inteligência. A afetividade é uma condição necessária na constituição da inteligência, mas, em minha opinião, não é suficiente.

Dessa forma, em algumas situações o afeto pode levar ao erro, mas apenas os fatores cognitivos poderiam corrigir tal estrutura. O afeto participa no desenvolvimento da inteligência, no entanto, não é a causa da formação da mesma. Portanto, a afetividade não é a única condição necessária para o desenvolvimento estrutural (Piaget, 1962).

A atenção é também regulada pela afetividade, pois aquela é motivada e direcionada segundo as necessidades e interesses do indivíduo. Assim,

Não há atos de inteligência, mesmo de inteligência prática, sem interesse no ponto de partida e regulação afetiva durante todo o processo de uma ação, sem prazer do sucesso ou tristeza no caso do fracasso. (Piaget, 1962, p. 3, tradução nossa).

Até mesmo a criança diagnosticada como possuidora do TDAH tem a capacidade de direcionar e focar a atenção naquilo que é do seu interesse.

Dessa maneira, Davis e Espósito (1990, p. 73) afirmam que:

[...] a construção do conhecimento, segundo a abordagem piagetiana, implica em momentos de equilíbrio – ou seja, de estabilidade provisória no funcionamento intelectual – e momentos de desequilíbrio, onde os esquemas disponíveis ao sujeito não são suficientes para assimilar os objetos.

Um conceito importante para entender como Piaget compreende o processo do desenvolvimento cognitivo é o da equilibração, pois, para esse autor esse é um problema central no desenvolvimento. Para Piaget (1976, p. 23), “a equilibração progressiva é um processo indispensável do desenvolvimento e um processo cujas manifestações se modificarão, de estágio em estágio, no sentido de um melhor equilíbrio em sua estrutura qualitativa como em seu campo de aplicação”.

Para Piaget (1980-1996), o desenvolvimento ocorre de forma dialética e, para compreendê-lo, faz-se necessário aprofundar o conhecimento acerca das implicações entre ações e operações, pois é por meio de tais implicações que o processo de transformação é desencadeado. As implicações entre as ações e operações configuram-se enquanto um processo de construção de significações para as experiências vividas, ou seja, é como damos significado a tudo aquilo que se constitui enquanto foco da nossa atenção.

Dessa forma,

"[...] a dialética consistirá essencialmente em construir novas interdependências entre significações, as mais simples sendo solidárias e indissociáveis desde o início, e o mais geral dos círculos dialéticos sendo, sem dúvida, aquele que liga as implicações e as significações. (PIAGET, 1980-1996, p. 13)."

Durante todo o desenvolvimento o indivíduo passará por sucessivos equilíbrios e desequilíbrios, pois apenas assim é que novas estruturas e novos esquemas serão construídos e incorporados, possibilitando um aprendizado e um crescimento permanentes. Contudo, em nossa sociedade erro é o contrário de acerto e, portanto, precisa ser castigado para que não venha a ocorrer novamente. É fonte de culpa, sofrimento, angústia, especialmente no contexto escolar. Neste, o erro é sinônimo de fracasso. No entanto, para Piaget (apud MACEDO, 1994, p. 64), o erro deve ser interpretado de outra forma, pois para a teoria construtivista “a questão é a de invenção e descoberta e não necessariamente de acerto ou erro, como considera, muitas vezes, uma visão formal ou do adulto”.

De acordo com Davis e Espósito (1990, p. 73), para uma proposta de ensino-aprendizagem derivada da teoria psicogenética, a conduta apropriada deveria ser

"[...] partir dos conhecimentos que os alunos já possuem, ou seja, de seus sistemas de significação; apresentar problemas que gerem conflitos cognitivos; dar ênfase à maximização do desenvolvimento e não apenas à busca de resultados, centrando-se no processo de construção do conhecimento; aceitar soluções “erradas” como pertinentes, desde que indicadoras de progressos na atividade cognitiva; fazer com que os alunos tomem consciência dos erros cometidos, percebendo-os como problemas a serem enfrentados, sem que se lhes imponham caminhos previamente traçados."

O erro seria, dessa forma, uma fonte de novas possibilidades e de aprendizado e não um símbolo do fracasso individual. O erro é tido como algo que pertence, intrinsecamente, a alguém, ou seja, é fruto da incapacidade da própria pessoa. No entanto, para que o erro seja estudado de forma construtiva, faz-se necessário analisá-lo em toda a sua complexidade, buscando a compreensão dos múltiplos fatores que estão envolvidos nesse processo.

Atualmente, o brincar tem sido considerado de fundamental importância para o desenvolvimento da criança. De fato, para Vectore (2003, p. 106)

"[...] fatores como a entrada da mulher no mercado de trabalho, alterações nas concepções de família e o ritmo frenético da vida nas grandes cidades contribuíram para realçar a importância do lúdico no contexto do desenvolvimento humano, na medida em que cada vez mais, nos dias atuais, o tempo e o espaço do brincar encontram-se ameaçados, acarretando conseqüências funestas para o desenvolvimento da criança, tais como o isolamento e a falta de solidariedade, que sinalizam uma diminuição exacerbada da dimensão humana, a qual floresce nas relações com o outro."

As características dos jogos em geral permitem a construção de uma situação prazerosa para a criança, fazendo com que ela se sinta à vontade para partilhar o seu universo com os demais. O jogo motiva a criança e a torna receptiva com relação à colaboração na situação de pesquisa. É necessário ressaltar que “o jogo proporciona o treino das capacidades deficitárias das crianças hiperativas e, conseqüentemente, conduz a resultados satisfatórios em outras habilidades de desenvolvimento” (Barros, 2002, p. 74).

A importância do jogo é, portanto, ressaltada constantemente, tanto pela sua fonte de divertimento, descontração, integração, como pelo seu importante papel no desenvolvimento cognitivo não só do indivíduo no período da infância, mas durante toda sua vida.

 

O jogo Mancala, a atenção e a concentração

A escolha de um jogo de regras como instrumento de intervenção se deve, principalmente, ao seu importante papel na produção de “[...] uma experiência significativa para as crianças tanto em termos de conteúdos escolares como do desenvolvimento de competências e de habilidades” (Macedo; Petty; Passos, 2000, p. 6). O jogo pode, então, tornar-se um instrumento bastante eficaz no trabalho com crianças que apresentam traços de déficit de atenção em ambiente escolar, pois pode ajudar a controlar os sintomas típicos com esforço voluntário ou em atividades de interesse (Rohde et al., 2000).

Segundo Retschitzki, Assandé e Loesch-Berger (1986, p. 308), no jogo Mancala,

"[...] no que concerne à natureza das atividades colocadas em ação quando de uma partida, podemos afirmar que são os aspectos intelectuais que dominam. Com efeito, o acaso não tem qualquer influência sobre o desenrolar do jogo."

O Mancala é um jogo de regra que possui cerca de duzentas diferentes modalidades de realização. Estima-se que tenha entre 3500 e 7000 anos e que seja originário do antigo Egito, já que vestígios de tabuleiros foram encontrados na pirâmide de Keops, nos templos de Luxor e Kamak e nos desertos da Arábia. Estima-se, ainda, que tenha sido jogado por diversas culturas ao longo dos anos. Cada cultura possui uma forma particular de jogar o Mancala e concede ao mesmo uma significação social específica.

O Mancala recebe diferentes denominações de acordo com a região em que é jogado. No Sudão, Gâmbia, Senegal e Haiti é conhecido como Wari, na Nigéria, como Ayo e no Brasil era chamado de Adi pelos escravos que o trouxeram da África (NETO, 1989). Além disso, “Existem múltiplas variantes que se apresentam com nomes muito diversos: Kalah, Mancala, Serata, Palankuli, Wari, Solo etc...” (Retschitzki; Assandé; Loesch-Berger, 1986, p. 308).

Na modalidade escolhida, o jogo é composto por um tabuleiro retangular de madeira com 14 cavidades divididas em duas fileiras de 6 casas cada uma, além de duas casas restantes que serão utilizadas como reservatório (denominado oásis) e 36 sementes que serão distribuídas no mesmo, conforme a Figura 1:

Figura 1: Tabuleiro e Peças do Jogo Mancala

 

Podemos descrever as suas regras da seguinte forma: é um jogo para dois jogadores; são colocadas 3 sementes em cada uma das 12 casas, com exceção dos oásis; a área de cada jogador é composta por uma fileira e o oásis que está à sua direita (que só será utilizado pelo proprietário); para jogar, o participante deverá distribuir todas as sementes de uma de suas 6 casas, uma a uma, nas casas subseqüentes, em sentido anti-horário; o jogador nunca colocará sementes no oásis adversário; toda vez que o jogador passar pelo seu próprio oásis, 1 semente será colocada no mesmo, sendo que as sementes que forem colocadas não poderão ser utilizadas novamente no jogo; quando a última semente da distribuição parar em uma casa vazia pertencente ao jogador, ele poderá capturar todas as sementes que estiverem na casa adversária à frente, colocando-as em seu oásis; ao terminar a semeadura, o jogador passa a vez, exceto quando a última semente distribuída for colocada no próprio oásis; o jogo será encerrado quando todas as casas estiverem vazias, ou quando o número de sementes não for suficiente para alcançar o lado do adversário; o vencedor será aquele que tiver maior número de sementes em seu oásis.1

A simplicidade das regras possibilita sua rápida aprendizagem. O bom desempenho no jogo é adquirido por meio da experiência prática do jogador.2 Essas facilidades fazem com que o estudo das estratégias e condutas empregadas, no decorrer do jogo, por crianças com dificuldades de atenção em comparação com crianças sem indícios das mesmas, seja possível e repleto de ensinamentos (Retschitzki; Assandé; Loesch-Berger, 1986).

Dessa maneira, o presente trabalho teve como objetivo estimar a possibilidade de utilização de um jogo de regras como instrumento de avaliação dessas dificuldades, por meio do estudo comparativo do desempenho de crianças com e sem dificuldades de atenção, no jogo Mancala.

 

MÉTODO

Participantes

As crianças que participaram da pesquisa se encontravam na faixa etária entre 9 e 11 anos, sendo que três estavam cursando a 4a série e uma cursava a 3a série. Três dos participantes estudavam na mesma escola, portanto, apenas uma professora, que lecionava nas duas classes, participou da seleção. O outro participante foi selecionado pela professora da escola onde estudava.

Os participantes foram divididos em dois grupos: os do Grupo A foram indicados pelas professoras como possuidores de traços de dificuldades de atenção. Estas crianças não possuíam diagnóstico fechado e, conseqüentemente, não estavam fazendo uso de medicação no decorrer da coleta de dados. O Grupo B era formado por crianças que também foram indicadas pelas professoras como não possuidoras de traços de dificuldades de atenção. Cada grupo foi formado por dois participantes, dessa forma a pesquisa foi realizada com um total de quatro participantes.

 

Instrumentos e procedimentos

Para que a presente pesquisa fosse viabilizada, duas escolas de Ensino Fundamental, uma da rede municipal e uma da rede privada, ambas em Vitória, foram contatadas. As indicações iniciais de participantes feitas pelas professoras foram ratificadas com a aplicação da escala de TDAH – versão para professores (Benczik, 2000). Após essa etapa, uma tabela3 diagnóstica para pais também foi utilizada. Em seguida, os dados foram coletados durante dez oficinas do jogo Mancala as quais ocorreram nas escolas. Cada criança participou de um total de quatro oficinas, sendo que em cada uma foram jogadas cinco partidas, totalizando vinte partidas para cada participante. A primeira oficina foi realizada com a participação da criança, do pesquisador e de um monitor (para auxiliar no registro das informações coletadas), e teve como objetivo apresentar, por meio de um protocolo de instrução padrão, as regras do jogo Mancala. Após as oficinas, quatro situações-problema foram apresentadas para cada criança. A coleta de dados foi realizada em seis etapas que se encontram descritas de forma resumida no Quadro 1.

Quadro 1: - Etapas da Coleta de Dados

Etapas

Participantes

Atividade

1a

Pesquisador e diretor ou coordenador

Contato com a escola.

2a

Pesquisador e professores

Entrevista com as professoras para indicação dos participantes e aplicação da Escala de TDAH – versão para professores.

3a

Pesquisador e pais

Entrevista com os pais para assinatura do Termo de Consentimento e aplicação da tabela de TDAH – versão para pais.

4a

Pesquisador, um participante e o monitor

1ª oficina – apresentação do Mancala para cada participante em particular.

5a

Pesquisador, dois participantes e o monitor

2ª à 6ª oficinas – os participantes jogam entre si (sistema de rodízio para que todos joguem com todos) e o pesquisador participa como observador.

6a

Pesquisador, um participante e o monitor

7ª oficina e apresentação das situações-problema para cada participante em particular.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise do desempenho dos participantes foi realizada a partir da tabulação do número de vitórias, derrotas e empates: a) dos jogadores; b) de cada jogador com os demais participantes; e, c) entre o Grupo A (participantes com dificuldade de atenção) e o Grupo B (participantes sem dificuldade de atenção).

O jogador André foi o que obteve a maior porcentagem de vitórias (60%), e a jogadora Beatriz foi a que obteve a maior de derrotas (75%). A porcentagem de empates foi a mesma para todos os quatro participantes (5%). É importante ressaltar que os valores foram medidos para cada jogador em particular e não interjogadores.

Considerando a ordem decrescente da porcentagem de vitórias, ficaria assim configurado: André (60%), Bruno (45%), Antônio (30%) e Beatriz (20%). A ordem decrescente de derrotas seria a seguinte: Beatriz (75%), Antônio (65%), Bruno (50%) e André (35%). Considerando estes dados, pode-se perceber que houve uma alternância de vitórias entre os participantes dos Grupos A e B, com uma pequena vantagem para os participantes que possuem dificuldades de atenção.

Observa-se que o jogador que obteve o melhor desempenho no decorrer das oficinas foi  André, participante do grupo com indícios de TDAH, e o que obteve o pior desempenho foi Beatriz, participante do grupo que não possuía traços de TDAH. Diante dessas informações, podemos observar que a questão de possuir ou não dificuldades de atenção não pode ser entendida enquanto garantia de fracasso ou de sucesso a priori. Todos os seres humanos possuem limitações, a questão é que as de alguns são mais evidentes e menos compreendidas do que as de outros. Para uma melhor visualização da relação entre vitórias, empates e derrotas de cada jogador será apresentado a seguir o Gráfico 1.

Gráfico 1: - Número Total de Vitórias, Derrotas e Empates por Participante

 

O Gráfico 1 explicita que, apesar de Beatriz ter apresentado uma porcentagem superior de derrotas com relação aos demais jogadores, em números absolutos, esta não foi significativamente superior ao número de derrotas apresentado por Antônio. É válido ressaltar que a mesma diferença, em números absolutos, existente entre o número de derrotas, apareceu com relação ao número de vitórias, só que em ordem inversa, ou seja, Antônio apresentou um número superior de vitórias.

Antônio e Beatriz foram os dois jogadores que apresentaram o número de derrotas maior do que o número de vitórias. É importante ressaltar que eles possuíam características diferentes durante o jogo. Antônio foi um jogador mais agitado, falava bastante, enquanto Beatriz jogava em silêncio, aparentemente mais centrada no jogo.

Pode-se observar que houve uma significativa discrepância entre os números de vitórias e derrotas de Beatriz. O que não ocorreu com Bruno, pois ele apresentou uma diferença mínima (igual a 1, em números absolutos) entre vitórias e derrotas.

É importante destacar que o menor número de vitórias foi igual a 4, ou seja, nenhum participante perdeu todas as 20 (vinte) partidas disputadas. Este é um resultado importante, pois demonstra que as diferenças com relação à presença ou à ausência das dificuldades de atenção não afetaram de forma significativa o desempenho dos jogadores.

Os dados relativos a Condutas de Desatenção foram analisados buscando-se um aprofundamento na compreensão de tais condutas, quando apresentadas pelos participantes com indícios de dificuldades de atenção, por meio de um estudo comparativo entre estes e os participantes sem tais indícios. Para analisar as diferenças com relação à atenção dos participantes com indícios de TDAH (Grupo A) e aqueles sem indícios de TDAH (Grupo B) foram construídas duas categorias denominadas “Condutas de Desatenção Tipo-1 e Tipo-2”.

Considerou-se Conduta de Desatenção a não-execução de duas regras do jogo: a) jogar novamente quando a última semente da distribuição cair no oásis (Conduta de Desatenção Tipo 1 – CDT-1); e b) capturar as sementes do jogador adversário quando a última semente da distribuição cair em uma cavidade vazia – serão capturadas as sementes que estiverem na casa em frente à que estava vazia e que recebeu a última semente da distribuição (Conduta de Desatenção Tipo 2 – CDT-2). As regras acima descritas foram consideradas como as mais eficientes, no que concerne ao alcance do objetivo final do jogo, que é o de armazenar o maior número de sementes no oásis. As condutas descritas foram prejudiciais para o alcance da meta estabelecida pelas regras do jogo. Realizou-se uma análise intergrupos da freqüência com que esses episódios foram apresentados.

Cada uma dessas categorias foi confrontada com o número de vezes em que o participante poderia ter apresentado a Conduta de Desatenção, e tal possibilidade foi denominada de “freqüência geral”. Na CDT-1, a freqüência geral significa o número de vezes em que a última semente da distribuição caiu no oásis; na CDT-2, a freqüência geral representa o número de vezes em que a última semente da distribuição caiu em uma casa vazia. Portanto, a freqüência geral em ambos os casos representa a possibilidade de exibição das Condutas de Desatenção (Tipos 1 e 2).

Quadro 2: - Freqüência Geral e Freqüência da CDT-1 por Grupo

GRUPO

CDT-1

FREQÜÊNCIA

GERAL

Abs.

%

A

11

5,53

199

B

3

1,62

185

 

Assim, o Quadro 2 explicita a relação entre os números absolutos de apresentação da CDT-1 e as porcentagens de cada grupo. O Grupo A obteve maior número de freqüência geral, ou seja, teve o maior número de possibilidades de apresentar a estratégia de jogar a última semente da distribuição mais vezes no oásis, no intuito de vencer o jogo. Percentualmente, o Grupo A apresentou 5,53% das vezes o CDT-1, enquanto o Grupo B apresentou 1,62% das vezes tal comportamento. Pode-se perceber que mesmo tendo apresentado uma freqüência geral maior do que a do Grupo B, o Grupo A apresentou a porcentagem de CDT-1 superior.

O Quadro 2 apresenta uma diferença quanto à freqüência da CDT-1, quando se comparam os Grupos A e B. Houve um predomínio do Grupo A na apresentação de tal conduta. No entanto, a diferença da freqüência geral – número de vezes em que tal conduta poderia ter ocorrido – entre os dois grupos não foi tão discrepante. Esse resultado vem confirmar a idéia inicial de que as crianças com dificuldades de atenção apresentariam maior número de Condutas de Desatenção no jogo. Considerando a situação de jogo como um momento agradável, descontraído e de divertimento, em que a pressão sobre a criança é menor, esse resultado vem fortalecer a idéia de que os jogos de regras, neste caso o Mancala, são importantes e eficazes na avaliação das dificuldades de atenção em crianças. As dificuldades apresentadas pelas crianças continuaram aparecendo, só que de uma forma menos frustrante para as mesmas.

Gráfico 2: Freqüência Geral e Freqüência da CDT-1 por grupo

 

Observando o Gráfico 2, pode-se perceber que o número de CDT-1 apresentado pelos participantes do Grupo A foi maior do que o apresentado pelos participantes do Grupo B. No entanto, faz-se necessário ressaltar que o Grupo A obteve maior freqüência geral do comportamento de jogar novamente quando a última semente da distribuição caía no oásis.

O grupo de crianças que possui indícios de dificuldade de atenção (Grupo A) apresentou maior número de Condutas de Desatenção Tipo 1 com relação às crianças que não possuem tais indícios (Grupo B). Apesar de André (Grupo A) ter sido o segundo a apresentar o maior número de CDT-1, ele obteve o melhor desempenho dos quatro participantes. O participante Antônio, que obteve um número bem elevado de CDT-1 se comparado aos demais (8 ou 9,52%), não foi o que apresentou o pior desempenho, pois este foi apresentado por Beatriz que, em contrapartida, apresentou o menor número de CDT-1(apenas uma vez). Portanto, podemos perceber que a CDT-1 não foi a causa determinante para o sucesso ou o fracasso dos jogadores.

O Quadro 2 explicita a apresentação da CDT-2 dos Grupos A e B.

Quadro 3 - Freqüência Geral e Freqüência da CDT-2 por Grupo

GRUPO

CDT-1

FREQÜÊNCIA

GERAL

Abs.

%

A

15

6,47

232

B

5

2,16

232

 

Analisando o Quadro 3, pode-se observar que o número absoluto de apresentações da CDT-2 foi três vezes maior para o Grupo A em relação ao Grupo B. Quanto à porcentagem, o Grupo A também demonstrou número mais elevado, 6,47% contra 2,16% do Grupo B. É válido ressaltar que a freqüência geral foi igual para ambos os grupos.

Esses resultados novamente confirmam a idéia inicial de que as crianças com dificuldades de atenção apresentariam número maior de tais condutas do que as crianças que não possuem tais indícios. No entanto, é válido ressaltar que tais condutas não foram apresentadas apenas pelas crianças do Grupo A. Todas as crianças apresentaram certo índice tanto da CDT-1 como da CDT-2. Dessa forma, percebe-se que certo limiar de desatenção é “normal” em todas as pessoas, visto que a manutenção da atenção concentrada consome bastante energia dos indivíduos, o que nos faz pensar que os períodos de desatenção poderiam ser uma forma de “descansar” o cérebro do excesso de informações a que somos expostos.

Se todos possuímos certo grau de desatenção, a diferença entre as crianças que possuem tais dificuldades das que não as possuem será quantitativa e não qualitativa.  Os que não são considerados como possuidores de dificuldade de atenção conseguem lidar com o limiar de desatenção como algo natural, portanto, isso nos leva a crer que, para as crianças que possuem um limiar de desatenção em um nível que prejudica a convivência e a realização de tarefas, a questão é encontrar alternativas de superar tais dificuldades.

O Gráfico 3 explicita a relação entre os dois grupos de forma a facilitar a visualização.

Gráfico 3: Freqüência Geral e Freqüência da CDT-2 por Grupo

 

 

Conclui-se que, com relação às Condutas de Desatenção, tanto no desempenho individual quanto no desempenho por grupo, quem obteve maior índice de apresentação de tais condutas foram os participantes com dificuldade de atenção (Grupo A). Confirmando, portanto, a hipótese inicial de que estes últimos apresentariam número superior de Condutas de Desatenção. No entanto, é importante ressaltar que essas condutas não prejudicaram significativamente o desempenho de André (Grupo A), pois foi ele quem obteve o melhor desempenho dos quatro participantes.

A freqüência geral total dos Grupos (A e B) na CDT-1 e na CDT-2 ficou assim definida: CDT-1 = 384 e CDT-2 = 464. Esses resultados dão pistas acerca da estratégia montada pelos jogadores no decorrer das oficinas, pois observando os resultados apresentados pode-se perceber que a estratégia de jogar uma semente na casa vazia para capturar as sementes do adversário foi preferida por todos eles, se comparada com a utilização da estratégia de jogar novamente quando a última semente da distribuição cair no oásis.

A análise das Condutas de Desatenção (CDT-1 e CDT-2) corresponde à análise dos erros apresentados pelos participantes no decorrer das oficinas. É importante ressaltar que o participante Bruno lidou de forma diferenciada em relação ao erro apresentado pelo jogador adversário. Enquanto alguns torciam para que o outro cometesse algum tipo de erro no jogo, em alguns momentos Bruno mostrava o erro que havia sido apresentado e permitia que o mesmo fosse corrigido.

É importante ressaltar que o erro não foi o único responsável pelo sucesso ou fracasso dos jogadores, como pôde ser observado nos índices de Conduta de Desatenção apresentados. O maior exemplo disso foi o jogador André, pois, apesar de ter o segundo maior número de Condutas de Desatenção (CDT-1 e CDT-2), foi o aluno com o melhor desempenho quanto ao número de vitórias, derrotas e empates, quando comparado aos demais jogadores.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os resultados apresentados, pode-se considerar que o objetivo principal da pesquisa de investigar a possibilidade de utilização do jogo Mancala como instrumento de avaliação de crianças com dificuldade de atenção foi alcançado, visto que as Condutas de Desatenção das crianças que haviam sido diagnosticadas como possuidoras de tal dificuldade puderam ser observadas no decorrer das oficinas com o referido jogo.

No entanto, no estudo comparativo entre crianças com dificuldades de atenção e crianças sem tais dificuldades, observou-se que os dois grupos apresentaram Condutas de Desatenção. Entretanto, o número de tais condutas apresentadas pelas primeiras foi superior ao apresentado pelas do segundo grupo. Esses resultados exprimem a complexidade e dificuldade quanto ao diagnóstico de tais dificuldades, pois, como pôde ser observado, não existe uma separação radical entre os indivíduos que, teoricamente, possuem tais dificuldades e aqueles que não as possuem.

Espera-se que os questionamentos levantados pelas discussões aqui iniciadas sejam úteis para a quebra de paradigmas excludentes e limitantes e para a mudança das posturas preconceituosas com relação às pessoas que apresentam características do TDAH nos diversos ambientes em que estiverem inseridas.

Com relação à escola,

"[...] é importante que o professor faça uso, em sua prática docente, dos desequilíbrios apresentados por seus alunos, de forma a lhes propiciar condições para construírem novas estruturas cognitivas e chegar a novos estados de equilíbrios, maiores e superiores aos precedentes." (DAVIS; ESPÓSITO, 1990, p. 74).

A forma como o fenômeno das dificuldades de atenção é abordado, especialmente nas escolas, precisa ser revista, pois a educação recebida pelas crianças na escola tem um papel muito importante, no que diz respeito a como elas enxergarão e enfrentarão o mundo. O sistema de ensino precisa tornar-se menos excludente e limitante para que as diferenças sejam aceitas, respeitadas e devidamente trabalhadas.

O processo educacional é longo e cheio de percalços e, segundo Piaget (1973, p. 32), “o ideal da educação, não é aprender ao máximo, maximizar os resultados, mas é antes de tudo aprender a aprender; é aprender a se desenvolver e aprender a continuar a se desenvolver depois da escola”.

Portanto, o maior desafio para a criança com dificuldade de atenção é desenvolver a sua forma particular de aprender e é nesse momento que ela precisa do educador para apontar as possibilidades. No entanto, o processo de formatação do conhecimento e da forma de conhecer impetrado pela escola tem feito com que esta seja transformada em um ambiente de exclusão, onde quem não se adapta é marginalizado e desrespeitado em sua singularidade. A lógica adaptativa não permite que as diferenças sejam expostas e trabalhadas; esta lógica tem produzido “indivíduos em série”, programados para atender ao regime capitalista vigente.

Ainda de acordo com Piaget (1962, p. 2, tradução nossa), o afeto é essencial na constituição da inteligência, no entanto, não é a única causa dessa constituição. Pois, “o afeto explica a aceleração ou retardamento da formação das estruturas – a aceleração no caso de referir-se ao interesse e necessidade; retardamento quando os estados afetivos atuam como obstáculos para o desenvolvimento intelectual”.

Considerando essa íntima participação da afetividade no processo de constituição da inteligência, bem como sua importância no que diz respeito à produção e manutenção dos interesses e necessidades de cada indivíduo, é necessário ressaltar que cada pessoa possui interesses e necessidades diferenciados e que, portanto, elas poderão responder de forma diferenciada a um mesmo estímulo.

Dessa forma as crianças que possuem traços de dificuldades de atenção poderão responder aos estímulos, tanto em casa como na escola ou em outro ambiente em que estejam, de forma diferenciada daquelas que não possuem traços de tais dificuldades. Não significa dizer que as primeiras são inferiores ou menos capazes e sim que necessitarão de estímulos e alternativas, em alguns momentos, diferentes das que não possuem tais dificuldades, que as toquem afetivamente.

A dificuldade de atenção tem sido utilizada para produzir um rótulo permanente para a pessoa que possui tais características. No entanto, faz-se necessário que essa limitação impetrada pela sociedade seja desnaturalizada, possibilitando à criança a construção do conhecimento de forma ativa e responsável. Para que isso se torne possível, é necessário que seja realizada uma flexibilização dos sistemas de avaliação para que estes passem a trabalhar com os erros construtivos, que possibilitam um desenvolvimento mais participativo e menos doloroso para o indivíduo.

Considerando os resultados das análises do desempenho dos participantes, das CDT-1, da CDT-2 e das situações-problema, pode-se observar que houve um relativo equilíbrio entre o Grupo A e o Grupo B. Dessa forma, os resultados encontrados possibilitam a desnaturalização das limitações e incapacidades atribuídas previamente às pessoas diagnosticadas com TDAH. O intuito não é negar que existam algumas particularidades e sim, dar a essas crianças o direito de ultrapassarem as barreiras, vencendo os desafios que lhes são colocados pelas suas dificuldades para que, assim, possam lutar pelos seus sonhos e construir uma vida de satisfação pessoal. Portanto, a busca aqui é para que as crianças com dificuldades de atenção não sejam vistas apenas pela lente do estereótipo, mas como pessoas com qualidades e defeitos, aptas a aprender a lidar com eles da melhor forma possível.

 

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Endereço para correspondência

Daniela Dadalto Ambrozine Missawa
E-mail:dani@missawa.com.br

Claudia Broetto Rossetti
E-mail:cbroetto.ufes@gmail.com

 

 

Recebido em: 20/12/2007
Aprovado em:21/07/2008
Revisado em: 20/09/2008

 

 

1Mais detalhes sobre o histórico e as regras do Mancala podem ser obtidos em <http://www.jogos.antigos.nom.br/mancala.asp>.
2Partidas virtuais podem ser jogadas em: <http://www.rocketsnail.com/mancala/classic.htm>.
3A escala encontra-se disponível em: <www.tdah.org.br>. Acesso em: 12/08/2004. Página eletrônica da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA).

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