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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.64 no.2 Rio de Janeiro ago. 2012
ARTIGOS
Trabalho e usos da subjetividadei
Work and uses of the subjectivity
Trabajo y usos de la subjetividad
Jose Newton Garcia de Araújo
Docente. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil
Endereços para correspondência
RESUMO
Este texto questiona a hipótese segundo a qual as estratégias de gestão que levam em conta a subjetividade do trabalhador seriam essencialmente libertárias. São discutidas situações históricas anteriores ao advento do capitalismo, no Brasil-Colônia e na França do século XVIII, nas quais a subjetividade do trabalhador é mobilizada instrumentalmente. As pesquisas de Elton Mayo são tomadas como um momento especial em que a psicologia industrial conservadora "descobre" a subjetividade. São também discutidas, no contexto das práticas de gestão, as reflexões de Foucault, para quem o exercício do poder supõe o uso da liberdade. Ele examina a teoria do capital humano e a ideologia do empreendedorismo como novas formas de se atingir a subjetividade, em tempos de crise da sociedade salarial. Neste percurso, argumenta-se que a mobilização da subjetividade tem também um propósito antilibertário.
Palavras-chave: Trabalho; Usos da Subjetividade; Exploração do Trabalhador.
ABSTRACT
This article questions the hypothesis that managerial strategies which take into consideration the subjectivity of the worker would be essentially libertarian. Historical situations are discussed, previously to the advent of the capitalism, in colonial Brazil and in France of the 18th century, in which the worker's subjectivity was instrumentally mobilized. Elton Mayo's researches are seen as a special moment when the conservative industrial psychology "discovers" the subjectivity. Foucault's reflexion that the exercise of power supposes the use of liberty are also discussed in the context of the managerial practices. He examines the theory of human capital and the entrepreneurship ideology as new ways to influence the subjectivity, when the salaried society goes into crisis. Throughout this trajectory, the author argues that the mobilization of the subjectivity also has an anti-libertarian intention.
Keywords: Work; Uses of the subjectivity; Exploitation of worker.
RESUMEN
Este texto pone en duda la hipótesis según la cual las estrategias de gestión que consideran la subjetividad del trabajador serían esencialmente libertarias. Condiciones históricas son discutidas antes de la llegada del capitalismo en Brasil-Colonia y en Francia del siglo XVIII, donde la subjetividad del trabajador se moviliza instrumentalmente. Las investigaciones de Elton Mayo son vistas como un momento especial en que la psicología industrial conservadora "descubre" la subjetividad. También se discuten, en el contexto de las prácticas de gestión, las reflexiones de Foucault, para quien el ejercicio del poder supone el uso de la libertad. Él examina la teoría del capital humano y la ideología del emprendimiento como nuevas formas de movilización de la subjetividad, en tiempos de crisis de la sociedad de retribución. En este trayecto, se argumenta que la movilización de la subjetividad también tiene un propósito antilibertario.
Palabras-clave: Trabajo; Usos de la subjetividad; Explotación del trabajador.
Introdução
Em recente congresso de Psicologia, um eminente conferencista afirmou que, quando as teorias e práticas organizacionais começaram a levar em conta a subjetividade do trabalhador, elas se tornaram libertárias. Essa afirmação me pareceu, no mínimo, intrigante. Apesar de o conferencista não ter definido o que é ser libertário1, sua hipótese não deixava de ser provocadora. E foi o que me levou a discuti-la, no presente texto. Assim, em minha interpretação, tal hipótese apontaria para um divisor de águas: de um lado, estariam as práticas organizacionais não libertárias, ou seja, aquelas que não levam em conta a subjetividade do trabalhador, tomando-o como mero objeto ou recurso humano submetido aos interesses da organização, do capital; de outro lado, as práticas que o consideram como sujeito capaz de, grosso modo, construir novas vias de sentido e de ação, nos espaços de trabalho. Independentemente da validade ou não dessa interpretação, resta ainda uma interrogação sobre o estatuto da subjetividade, na concepção do conferencista. Afinal, ao longo da história do trabalho, é verdade que os gestores não levavam de modo algum em conta a subjetividade do trabalhador?
Para discutir a questão, comecemos por lembrar que o termo sujeito pode referir-se a duas posições em que, no caso do trabalhador, este se coloca: a primeira remete àquele sujeito com poder de ação, que cria, que resiste, que faz história; a segunda refere-se - citemos o exemplo típico das organizações estratégicas - ao "indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica" (Enriquez, 1997). Nesse sentido, falamos das dimensões de autonomia e heteronomia, inerentes aos destinos da subjetividade e inscritas em nossas histórias individuais e coletivas.
Ao abordar os sistemas organizacionais, Enriquez (1992) afirma que os sujeitos ligam-se à organização por vínculos não apenas materiais, mas, sobretudo afetivos e imaginários. Nesse contexto, ele se refere ora ao imaginário motor - aquele que favorece a diferenciação entre os sujeitos, que impede uma visão monolítica de um projeto coletivo e incita à inventividade, em oposição à repetição -, ora ao imaginário enganoso, através do qual os indivíduos são levados a interiorizar, como seus, os valores impostos pela organização. Essa postura leva à perda da capacidade crítica e induz à homogeneização de pensamentos e afetos, uma vez que os sujeitos se alienam no discurso salvacionista da organização, que lhes promete sucesso, segurança, saúde, benefícios presentes e garantias futuras. No entanto, continua o autor, essa organização castra as iniciativas, a efetiva participação e a dose possível de autonomia dos sujeitos.
Em outra ótica, que julgamos ter pontos de contato com o argumento acima exposto, Foucault (1995) discute as articulações entre as noções de sujeito e de poder, atribuindo dois significados à palavra sujeito: "sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a" (Foucault, 1995, p. 235). Nessa perspectiva, o autor analisa as modalidades de exercício do poder, que não ocorrem, forçosamente, sob a forma de violência. Para ele, a violência pura submete, destrói, fecha as possibilidades, pois só tem diante de si a passividade do outro. Uma relação de poder, ao contrário, se desenha sobre dois elementos fundamentais (pensemos, por exemplo, nos fervorosos gestores de uma empresa, nos fiéis seguidores de uma igreja, nos ferrenhos militantes de um partido político): é importante que o sujeito sobre o qual se exerce o poder "seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis" (Foucault, 1995, p. 243). Afinal, se os mecanismos de sujeição supõem sempre processos de exploração e dominação, estes mantêm relações complexas e circulares com outras formas sutis de exercício do poder. Este, na verdade, não implica a supressão da liberdade do outro. Quem detém o poder não age direta ou imediatamente sobre o outro, não coage, não obriga explicitamente. Ele deixa o outro agir, ele incita, induz, facilita ou dificulta.
Para Foucault (1995), não há relação de poder onde as determinações estejam saturadas - a escravidão, por exemplo, não se enquadra nessa relação. O exercício do poder consiste em conduzir condutas, em operar sobre um campo de possibilidades. Em outras palavras, ele é um modo de ação sobre as ações dos outros, é o governo dos homens uns pelos outros, sem que a liberdade seja aí suprimida.
O poder só se exerce sobre "sujeitos livres", enquanto "livres" - entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades no qual diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer [...] não há, portanto, um confronto entre poder e liberdade [...] neste jogo, a liberdade aparecerá como condição de existência do poder" (Foucault, 1995, p. 244).
Observe-se que, se as relações de poder não implicam, necessariamente, o uso da violência, isso não exclui, no entanto, que os sujeitos livres sejam coagidos por vias indiretas, conscientemente ou não, a fidelidades prévias, a submissões ou adesões acríticas. Assim, o militante de um partido político ou de uma igreja só será livre para colocar em marcha, à sua maneira e por sua iniciativa, os projetos desse partido ou dessa igreja, não os projetos dos partidos opositores ou das igrejas que professem outros credos.
Essa mesma relação ocorre no interior das organizações do trabalho. Num sentido próximo àquele dos autores acima citados, Sennett (1999) lembra o regime flexível, no novo capitalismo, no qual a estratégia da concentração sem centralização substitui a organização piramidal pelas estruturas em rede. Essa descentralização do poder, que "dá às pessoas nas categorias inferiores dessas organizações mais controle sobre suas atividades" (Sennett, 1999, p. 63), é apenas aparente. No caso do tempo flexível, através do qual as pessoas trabalham em tempos diferentes e individualizados - algumas trabalham em casa -, o trabalhador seria livre para dispor de seu tempo. No entanto, essa liberdade é ilusória:
Na revolta contra a rotina, a aparência de nova liberdade é enganosa. O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade é o tempo de um novo poder. (Sennett, 1999, p. 69).
O que pretendo argumentar, ao longo das presentes reflexões, é que, no âmbito das organizações do trabalho, contrariamente à hipótese levantada pelo conferencista acima citado, as práticas de gestão têm, sim, como alvo a subjetividade do trabalhador. E que, em sua base ideológica e em seus objetivos, elas não são de modo algum libertárias.
Outra observação: se o exercício do poder, na ótica de Foucault (1995), exclui a violência crua e explícita, não podemos esquecer que outras vias de exercício do poder se dão, ainda hoje, através de formas bárbaras de exploração do outro. Isso sempre ocorreu, ao longo da história humana, nos regimes de escravidão, nos sistemas totalitários de governo ou nas obscuras condutas de aviltamento do outro, na vida pública ou privada, na empresa, na família, na escola etc. Nesse sentido, Barus-Michel e Enriquez (2005) referem-se a uma figura mortífera do poder:
Campos de concentração, genocídio e etnocídio, povos submetidos à escravatura, indivíduos tratados como animais ou mesmo, mais cotidianamente, indivíduos explorados, considerados como máquinas, aos quais é retirada a possibilidade de se encarregarem do seu destino e aos quais é destinada uma existência sem sabor, sem sal, sem vida, perfeitamente repetitiva. (Barus-Michel & Enriquez, 2005, p. 164).
A suposta descoberta da subjetividade
Não é sobre esse poder mortífero que estamos discutindo aqui, pois este, produzindo-se na pura violência, não visa cooptar, seduzir, conduzir condutas ou governar. Deixemos, pois, de lado as modalidades de exploração extrema do outro, essas que geram mortes, acidentes graves, mutilações, invalidez permanente, doenças do corpo e doenças mentais irreversíveis - embora tudo isso ainda ocorra com enorme frequência. Para essas, aliás, nem interessa modelar subjetividades, mas simplesmente sugar ao máximo a força de trabalho do assalariado. O que nos interessa aqui é o exercício do poder que move a inteligência e os afetos, são as práticas de gestão destinadas a garantir a adesão do trabalhador aos objetivos da organização. Se elas não consideram o trabalhador apenas como peças executantes, nem por isso são, forçosamente, libertárias.
Tomemos o exemplo das técnicas de motivação, largamente apregoadas pela psicologia organizacional. Lembremos, a propósito, que não se motiva uma máquina ou um animal, mas, segundo essa perspectiva, um sujeito. Ora, motivar o trabalhador não seria, para os autores que defendem tal visão, mobilizar sua subjetividade? Pois foi isso que fez a psicologia industrial, em seu nascedouro, especialmente a partir de Mayo (1933) e sua Escola de Relações Humanas.
Lembremos que, à época de Mayo (1933) - suas experiências cruciais, na Western Electric Co., em Hawthorne, ocorreram na segunda metade da década de 1920 -, os gestores estavam preocupados com as condições ambientais de trabalho (luz, umidade, ventilação, frio, calor etc.). Se essas fossem corretamente controladas, os trabalhadores produziriam mais e melhor. Ora, segundo Brown (1954), enquanto o conceito de eficiência era relacionado apenas ao bem-estar corporal, a fábrica ideal se assemelhava a um estábulo modelo. Assim, o trabalhador não era um sujeito, mas um animal nobre, que produz mais quando o ambiente é confortável. Nesse caso, Mayo (1933) teria sido um dos pioneiros da gestão da subjetividade. Mas em que consistiu sua empreitada?
Segundo Enriquez (1987), o trabalho de Mayo, ao enfatizar o lado humano da empresa, ao mostrar a necessidade de se levar em conta a afetividade e a lógica dos sentimentos, não passou de um prolongamento do sistema taylorista, permitindo a este manter-se e perdurar. E mais, como sublinha Enriquez: o que Mayo descobriu, mas logo em seguida encobriu, é que a solidariedade elementar e informal dos grupos não visava à cooperação com a empresa, pois se tratava de uma solidariedade de luta e de resistência contra as pressões da gestão. Mas essa segunda descoberta Mayo deixou escondida. Ao contrário, tanto quanto Taylor (1911), ele pregava uma cooperação harmoniosa, sem conflitos com a empresa, pouco importando a exploração e o sofrimento do trabalhador.
Assim, na visão de Mayo (1933) os gestores devem prover as necessidades sociais dos trabalhadores, a fim de que estes colaborem com a organização e não conspirem contra ela. Para esse psicólogo/ideólogo do capitalismo, os conflitos não se originavam das justas reivindicações dos dirigentes sindicais, frente à opressão no trabalho, mas eram projeções, no campo social, de suas perturbações patológicas infantis, pois eles não tinham amigos nem uma infância feliz (Chacon, 1979). Eis aqui uma perversa redução de um fenômeno social ao psicologismo, na tentativa de esvaziar a luta política. E não é por acaso que o aconselhamento fazia parte das intervenções de Mayo (1933) junto aos trabalhadores. Daí alguns críticos, como Hoopes (2003), afirmarem que ele promovia a psicoterapia, e não a democracia, no interior das organizações.
Em síntese, a Escola de Relações Humanas já nasce antilibertária, ao explorar os caminhos da subjetividade. Observe-se que ela surgiu quando o capitalismo precisava minimizar os conflitos sociais dentro das organizações. Os sindicatos estavam bem organizados, e os modelos de gestão, autoritários ou paternalistas, não surtiam os efeitos esperados. Segundo Bogomolova (1975), essa escola teria o objetivo explícito de defender ideologicamente o capitalismo, tentando convencer o trabalhador de que havia interesses comuns e boas relações entre empregados e empregadores.
Nascida como um meio de reforçar a exploração dos trabalhadores, graças a uma utilização mais completa da capacidade produtiva do homem e, principalmente, das suas reservas psicológicas, a teoria das 'relações humanas' degenerou numa apologética à la mode e tornou-se uma arma ideológica dos monopólios na luta contra o movimento operário. (Bogolomova, 1975, p. 159).
O movimento de relações humanas abriu os caminhos para a até então inexistente gestão da subjetividade. Mayo (1933) constatou o óbvio que Taylor (1911) não vira: que o trabalhador não é apenas o executante das tarefas concebidas pelos administradores. Ou que a empresa não é apenas uma pluralidade de indivíduos disciplinados para a produção. Suas descobertas foram o pontapé inicial das posteriores estratégias de sedução do trabalhador, através de sua suposta valorização. Estas se sofisticariam ao longo do século XX e perduram até hoje, com todos os modismos da gestão dos recursos humanos (ou gestão de pessoas), mas basicamente elas apenas replicam ad nauseam a ambígua e duvidosa estratégia de valorização do trabalhador ou de sua motivação.
Mas o que dizer, afinal, da motivação? Entre outros críticos dessa noção, "lembremos as observações de Schwartz (Schwartz & Durrive, 2007), para quem a motivação é um conceito muito ambíguo, embora muito difundido na psicologia do trabalho e na gestão, como se fosse a chave de tudo. O imperativo seja motivado, neste caso, tem algo de ridículo, como se a motivação estivesse na pessoa e dela dependesse. Bastaria, então, ela se motivar para tudo ficar bem em torno dela e com ela. No campo do trabalho, ainda segundo o autor, tenta-se neutralizar algumas coisas que criam problema, como, por exemplo, o debate de normas e sua relação com os valores. Ora, no exercício da atividade inscrevem-se nossas estreitas relações com os valores, com as pessoas e com os meios nos quais exercemos a atividade. Assim, a motivação não depende só da pessoa, não é um problema restrito ao campo individual, ao psicológico.
Uma volta ao passado
A psicologia, em seu uso como técnica de controle a serviço das empresas capitalistas, teve um significativo impulso com Mayo (1933). Mas ele não foi o primeiro a assinalar a importância de se mobilizar a subjetividade do trabalhador. Muito antes da psicologia industrial, antigos gestores já utilizavam essa estratégia gerencial, sabendo que não basta disciplinar, vigiar e punir. Pois era preciso também, pelo menos aparentemente, valorizar o trabalhador, a fim de cooptá-lo e, ao mesmo tempo, anular suas formas de resistência.
Para ilustrar esse argumento, recorro a alguns exemplos anteriores ao modo de produção capitalista. Começo pela história do Brasil, na qual até mesmo os escravos eram, eventualmente, alvo de técnicas psicologizantes de controle. Em sua Viagem pitoresca pelo Brasil, Rugendas (1949) refere-se às práticas de benevolencias ou agrados dos senhores, clérigos ou civis, em relação aos escravos... a fim de "tornar a escravidão suportável, tanto quanto possa sê-lo uma condição tão contrária à natureza" (Rugendas, p. 169). Isso ocorria desde o momento em que os escravos chegavam nos navios negreiros:
...o primeiro cuidado do comprador é o de arranjar, para o seu novo escravo, algumas roupas que lhe agradem: a faixa de variegadas côres, que lhe enrolam em tôrno da cintura, o paletó de lã azul e o boné vermelho muito contribuem para tornar mais agradável ao negro essa passagem para a sua nova situação. Dão-lhe ainda um grande cobertor de lã grosseira, que serve a um só tempo de leito e de manta e cujas côres vivas, amarelo e vermelho, lhe agradam bastante. Procura-se também, durante o trajeto do mercado à fazenda, manter os escravos de bom humor, tratando-os e alimentando-os bem. (Rugendas, 1949, p. 176).
Digamos que esses senhores podem ser considerados precursores da futura psicologia das organizações. Tais agrados não sinalizavam, evidentemente, uma mudança na condição escrava no Brasil. Os ideólogos da gestão, àquela época, tinham até mesmo a justificativa racional da escravidão que, para eles,
...nada tem de penoso; que não somente a sorte dos negros é aquela para a qual a natureza os fez, mas ainda, que eles são tão felizes que se os europeus da classe operária o soubessem, disso poderia resultar uma concorrência prejudicial aos negros. (Rugendas, p. 167).
Outro exemplo, em nossa história colonial, é o jesuíta Johannes Antonius Andreonius, também conhecido como Antonil, cuja presença no Brasil tem um relato minucioso de Bosi, em sua obra A Dialética da Colonização (1992). Segundo Bosi (1992), esse personagem estava na contramão dos ideais do padre Antônio Vieira, que o trouxera para o Brasil. Vieira não se cansou de denunciar a exploração dos povos indígenas e dos escravos, enquanto Antonil sofisticava a racionalização dos métodos de produção, a fim de explorá-los mais e mais. Ele seria um "mentor da psicologia industrial do seu tempo" (Bosi, 1992, p. 163), e sua "consciência moral já está inteiramente dobrada às razões do mercantilismo colonial" (p. 154). Entre os conselhos aos senhores de engenho, em como lidar com a subjetividade dos escravos e índios, esse jesuíta recomendava que o senhor "...nunca se mostre arrogante e soberbo com seus lavradores, pois a insolência gera a revolta e o desejo de revidar. Que a todos contemple com trato afável" (Bosi, 1992, p. 160-161). Ou então: ao fim da colheita, o mesmo senhor deve dar algum mimo ao trabalhador, "para que a esperança deste limitado prêmio o alente novamente para o trabalho" (p. 162). Ou ainda: "ser paternal, ser benévolo com o escravo, é 'caridade útil', que, cedo ou tarde, reverterá para o bem do fazendeiro" (p. 163). Mas qual é a natureza dessa caridade? Eis a descrição de Antonil, que encontramos em Bosi (1992):
O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e o vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver-se como senhor, e [os escravos] não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometerem, de receber com misericórdia o justo e merecido castigo (p. 163).
Aí estaria bem estampado, segundo Bosi, o ethos mercantil de uma religião católica que ensina aos senhores do engenho as maneiras adequadas - a culpabilização - de lidar com seus escravos, a fim de que a produção do açúcar seja rentável. Digamos que aqui também esse ethos tinha algo de perversamente precursor. Sobre isso, lembro a observação de Enriquez (1992), para quem a atual gestão estratégica leva os indivíduos a se culparem pelos problemas organizacionais, como efeito de seu fracasso pessoal, daí aceitarem possíveis punições quando não conseguem uma performance de alto nível.
A gestão pelo afetivo tem levado a uma tal psicologização dos problemas, que os indivíduos alienados já não se perguntam se seu mau êxito é um efeito da estrutura. Eles o vivem (e toda a organização os leva a pensar assim) como um fracasso estritamente pessoal. (Enriquez, 1992, p. 20).
Além dos exemplos acima, valeria evocar certas práticas discursivas que, nos séculos XVII e XVIII, também visavam motivar ou mobilizar a subjetividade do trabalhador. Trata-se de estratégias que têm efeitos na própria história das mentalidades, ou seja, nos modos de pensar e de sentir, nos valores e representações dos indivíduos de determinada época. É assim que Jacob (1995) analisa o surgimento do valor social do trabalho, no pensamento econômico do século XVIII, época de importantes mudanças políticas e econômicas, das quais emergem novas representações relativas à noção de trabalho. O pensamento econômico buscou, então, atribuir ao trabalho - antes considerado uma atividade desprezível, própria de escravos ou das classes ditas inferiores - uma dignidade, um valor social que os séculos anteriores lhe haviam negado. Essa mudança deu-se lentamente, ao longo de vários séculos, mas sofreu uma guinada, em curto tempo, nos períodos que precederam e se seguiram à Revolução Francesa.
Quais eram as referências anteriores? Veja-se, por exemplo, a fala de pessoas da corte, que se dirigiam ao Rei, alguns anos antes da revolução, referindo-se às camadas trabalhadoras: "a última classe da Nação" (...), "classe infortunada, que nada mais tem além de sua própria atividade" (...), "classe de homens tanto mais perigosos quanto mais necessidades têm" (Jacob, 1995, p. 55). Segundo essa autora, tal mudança de representação se deve a que o pensamento econômico descobre o trabalho como produção útil e necessária à sociedade. Os economistas sabiam que as novas atividades produtivas exigiriam muito mais mão de obra, daí definirem o trabalho como remédio obrigatório para o pobre, remédio que exige o dispêndio de muita energia.
Ora, se o trabalho era visto como atividade inferior e indigna, remanejamentos discursivos eram necessários antes de se colocar o problema de sua organização e de sua racionalização. Era preciso uma nova moral social para que o pobre fosse convencido a dedicar-se ao trabalho, além do necessário à sua subsistência. Enfim, o trabalho imposto, forçado, deveria ser reconhecido como um valor em si mesmo, e não apenas como necessidade ou coerção.
Mas os economistas da época sabiam que sua nova moral não seria suficiente para domar o trabalhador. Por isso, alertavam sobre a necessidade de múltiplos controles e sanções os que resistissem ao trabalho obrigado. Mais uma vez, era preciso mobilizar a subjetividade. Mas de que maneira? A esse respeito, uma passagem do texto de Jacob (1995) parece especialmente esclarecedora. Ela cita a figura de Colbert, que, ainda em meados do século XVII, num instrumental elogio ao trabalho, não apenas pretende convencer seus contemporâneos de que "os homens se sentem bem, desde que queiram trabalhar", mas vai além: "uma de suas expressões favoritas para falar do trabalho é: 'é preciso excitar ao trabalho'" (Jacob, 1995, p. 59). Essa intuição de Colbert seria a mais pura tradução do é preciso motivar para o trabalho, que surgiria com os psicólogos da motivação, a partir de Mayo (1933). Ou seria a tradução do é preciso tocar a subjetividade do colaborador, encampada pelos psicólogos e gestores de nossos dias.
Ainda na linha das mudanças discursivas ou das representações do trabalho, cito outra, que hoje se expandiu por toda a sociedade. Digamos que a mudança operada pelo pensamento econômico, em torno do século XVIII, foi um dos suportes ideológicos para a sustentação da chamada sociedade salarial. Segundo Bendassoli (2010), foi a sociologia que, com Marx (1844/1983), Weber ((1920/2005) e Durkheim (1893/2004), compreendeu a sociedade como essencialmente fundada no trabalho, destacando aí duas figuras centrais: a) a fábrica, espaço de produção, regida pela racionalidade e eficiência econômicas; b) o operário, que sucede o trabalhador agrário das sociedades feudais e vende sua força de trabalho, sem ter acesso aos meios de produção. Se, para Marx, o operário era o ator por excelência da luta de classes ou da revolução social, para os administradores, como Taylor, ele era perigoso, devendo ser psicologia industrial, com Mayo (1933), o trabalhador era o indivíduo que deveria ser artificialmente valorizado, desde que cooperasse, sem contestação, com os objetivos da empresa.
A sociedade do trabalho, no entanto, começa a entrar em crise, principalmente após os trinta anos gloriosos do capitalismo, período que vai do pós-guerra aos meados da década de 1970. Daí também a crise do Estado do Bem-estar Social (Welfare State). O taylorismo e o fordismo não se sustentam mais sozinhos nos processos de produção. Novos modelos tecnológicos surgiriam, tais como o toyotismo, o modelo de organização da produção criado na fábrica da Toyota, no Japão. Tal modelo exigia também inovações na chamada gestão dos recursos humanos. O desemprego estrutural torna-se parte desse contexto, o investimento no capital especulativo passa a concorrer com o investimento na produção. Essas transformações remetem ao advento do neoliberalismo na economia. Mesmo com a crescente substituição do homem pelas máquinas e pelas tecnologias da informação, o modo de produção capitalista continua precisando do homem. Mas o velho discurso da valorização do trabalho alienado, apesar de ainda praticado, não se sustenta mais.
Em seu curso no Collège de France (1978-79), publicado como Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008) propõe-nos o conceito de governamentalidade neoliberal. Ele aponta, então, para outra mutação epistemológica essencial promovida pelo neoliberalismo norte-americano, que reintroduz o trabalho em novas bases, no campo da análise econômica. Em outras palavras, é o mercado que será a chave de decifração ou o princípio de inteligibilidade da sociedade e do comportamento dos indivíduos. Esse mercado será uma espécie de substância ontológica do ser social, das relações e dos fenômenos sociais, dos comportamentos individuais e coletivos.
Com a teoria do capital humano, associada à ideia de empreendedorismo, o neoliberalismo quer apagar a figura do trabalhador, do operário, tentando dar-lhe outro estatuto, numa nova figura da alienação. Ele não é mais operário, agora é empreendedor. Assim, ficaria também apagado, discursivamente, o conflito capital-trabalho. Para Foucault, nesse cenário, é o próprio estatuto do trabalho e do homo oeconomicus que se transforma. O neoliberalismo tem, pois, novas estratégias para apropriar-se da gestão da subjetividade.
No bojo desse novo cenário, vemos emergir, por exemplo, o culto da performance e seus efeitos nocivos ao suposto empreendedor (Ehrenberg, 2010), e a sociedade baseada no gerencialismo, que Gaulejac (2007) analisa como sociedade doente da gestão. A economia política elege como objeto o comportamento humano, e suas palavras de ordem são: competência, habilidade, proatividade, competitividade, ousadia, entre outras.
O trabalho é visto como uma conduta econômica, não interessando a classe ou o lugar social do indivíduo, que deve tomar-se a si mesmo como capital, como uma microempresa, sob o imperativo permanente de fazer investimentos em si mesmo. E, mais grave ainda: o indivíduo e o capital não seriam exteriores um ao outro. Antes, ele era o trabalhador, o cidadão, sujeito de direitos, agora é Você S/A. O homo oeconomicus não é o homem das trocas sociais, é o homem da empresa e da produção (Foucault, 2008). Daí a comercialização de todas as relações humanas, a qualquer preço e em qualquer lugar, num regime de relações essencialmente concorrenciais nas quais cada indivíduo deve passar à frente do outro, como numa nova "guerra de todos contra todos" (Hobbes, 1979).
Essa ideologia, no entanto, não se restringe ao mundo da empresa. Os valores econômicos migraram da economia para praticamente todos os recantos da vida social, ganharam forte poder normativo, instituindo novos processos e políticas de subjetivação. O dito empreendedorismo é imposto como a matriz de conduta a ser disseminada pela sociedade inteira; ele se aplica ao operário, ao executivo, ao desempregado, ao professor, ao estudante, ao esportista, ao trabalhador rural, ao religioso, aos pais e filhos. Ele quer que todo indivíduo incorpore a lógica do capital como a razão de sua existência, como o fundamento último da vida em sociedade.
Em resumo, a governamentalidade neoliberal é essa nova exigência do capitalismo de mobilizar, em seu favor, as energias de cada sujeito. Nos cenários de crise do trabalho e do emprego, das desigualdades sociais e de rendas, de tantas incertezas, investir no empreendedorismo parece ser a melhor ilusão. E é neste sentido que termino as presentes considerações, com uma citação de Enriquez (Haroche & Enriquez, 2002), para quem a ilusão da liberdade de empreender já estava presente à época do Iluminismo. Aqui, mais uma vez, fica evidente a mobilização da subjetividade por vias antilibertárias:
A supressão da escravidão... está ligada sobretudo à idéia geral da liberdade de empreender, à construção de grandes empresas. Havia necessidade de indivíduos exploráveis, verdadeiramente livres para vender sua força de trabalho onde fosse necessário. O trabalhador livre seria também o trabalhador flexível e móvel que pode ser explorado... Trata-se do movimento geral do Iluminismo, concomitante ao desenvolvimento do capitalismo, e o capitalismo não precisa de escravos. Ele precisa de indivíduos que, no limite, se auto-alienem. Como pensava Diderot, ele precisa de escravos que acreditem ser cidadãos. (Haroche & Enriquez, 2002, p. 104).
Referências
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Endereços para correspondência:
Jose Newton Garcia de Araújo
jinga@uol.com.br
Submetido em: 25/05/2012
Revisto em: 25/08/2012
Aceito em: 26/08/2012
i Texto referido à pesquisa apoiada pelo CNPq (Bolsa PQ).
1 O dicionário Aurélio (1986) assim define o termo: Libertário: [Do fr. Libertaire.] Adj. e s.m. 1. Partidário da liberdade absoluta. 2. Anarquista (2). [Fem.: libertária. Cf. libertaria, do v. libertar.]