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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro 2017
ARTIGOS
Domínio e passividade na economia psíquica de agressores sexuais
Domination and passivity in acts of sexual violence
Dominio y pasividad en la economía psíquica de agresores sexuales
André Luiz Alexandre do ValeI; Marta Rezende CardosoII
IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Este artigo, fundamentado no saber da Psicanálise, é dedicado ao estudo dos mecanismos defensivos em jogo nos atos de violência sexual. Consideramo-los como uma das respostas possíveis do ego diante de uma excitação desorganizadora no mundo interno. Para elaborar esta hipótese, exploraremos a noção de domínio na qual identificamos duas dimensões: dominar o objeto externo por meio do poder, da força e, subjacente a esta, a dominação no mundo interno da invasão de uma força pulsional excessiva. Na relação de domínio, travada nos atos de violência sexual, o objeto deve ser ultrajado, colocado na posição de coisa a manipular. Estes atos, de natureza eminentemente perversa, sinalizam a afirmação de onipotência narcísica do sujeito, como tentativa extrema por parte de seu ego de barrar um vivido de passividade frente a uma alteridade interna inassimilável, na busca de salvaguarda psíquica.
Palavras-chave: Teoria psicanalítica; Violência sexual; Domínio; Narcisismo; Perversão.
ABSTRACT
This article, based on psychoanalytic knowledge, is dedicated to the study of the defensive mechanisms at play in acts of sexual violence. We consider such mechanisms as one of the ego's possible responses before a disruptive excitement in the inner world. To elaborate this hypothesis, we will explore the notion of domination in which we identify two dimensions: to dominate the external object through power, strength, and, underlying these, the domination of the invasion of an excessive instinctual force in the inner world. In the relationship of control, established in acts of sexual violence, the object shall be insulted, placed in the position of a thing to manipulate. These acts of an eminently perverse nature indicate the statement of narcissistic omnipotence of the subject, as an extreme attempt by his ego to bar the experience of passivity before an unassimilable internal otherness, in search for psychical safeguard.
Keywords: Psychoanalytic theory; Sexual violence; Domination; Narcissism; Perversion.
RESUMEN
Este artículo, basado en el saber del Psicoanálisis, se dedica al estudio de los mecanismos de defensa en juego en los actos de violencia sexual. Nosotros los consideramos como una de las respuestas posibles del ego ante una excitación desorganizadora en el mundo interior. Para elaborar esta hipótesis, vamos a explorar la noción de dominio en la que identificamos dos dimensiones: dominar el objeto externo a través del poder, de la fuerza y, subyacente a esta, la dominación, en el mundo interno, de la invasión de una fuerza pulsional excesiva. En la relación de dominio que se traba en los actos de violencia sexual, el objeto debe ser ultrajado, colocado en la posición de cosa a manipular. Estos actos, de naturaleza eminentemente perversa, apuntan la afirmación de omnipotencia narcisista del sujeto, como un intento extremo de su ego para impedir una experiencia de pasividad vivida ante una alteridad interna inasimilable, en busca de salvaguardia psíquica.
Palabras clave: Teoría psicoanalítica; Violencia sexual; Dominio; Narcisismo; Perversión.
Introdução
Desde há alguns anos, a clínica psicanalítica vem se deparando de modo cada vez mais evidente com configurações subjetivas nas quais há forte apelo aos registros do corpo e do ato como modalidade de defesa diante da exacerbação e desequilíbrio no plano dos conflitos internos. Trata-se de situações clínicas marcadas por um vivido de intenso "mal-estar" e que se expressam, muitas vezes, como patologias do agir, cujo incremento na atualidade é notório. Dentre os complexos casos que aí se coadunam, podemos ressaltar as compulsões alimentares, como a anorexia e a bulimia, as compulsões às compras, ao jogo, ao álcool e às drogas, bem como as agressões auto ou hetero infligidas via atos de violência.
É nesse contexto que se insere a nossa reflexão acerca dos mecanismos psíquicos que estariam em jogo nos atos de violência sexual. Estes são definidos pelo constrangimento de alguém a realizar todo e qualquer ato sexual, seja por meio de violência física, ameaça ou fraude, de modo que o consentimento de uma das partes seja sobrepujado pela vontade de outrem. Trata-se de atos que alcançam na figura do estupro, ou na tentativa de estupro, sua expressão mais evidente, mas a ela não se restringem.
Ainda que se configure como um tema atual no campo da saúde pública e da saúde mental, a magnitude da violência sexual no Brasil - e na maioria dos países - permanece incerta e pouco discutida no âmbito acadêmico. O fenômeno da subnotificação destes casos é reflexo de uma das facetas deste silêncio: somente uma pequena parcela das violações à lei criminal chega ao conhecimento do poder público, havendo uma diferença considerável entre os crimes cometidos e aqueles registrados. As estatísticas indicam que o número real de casos é muitas vezes superior àquele notificado à Polícia e ao Judiciário, estimando-se, por exemplo, que apenas de 10% a 20% das vítimas denunciam o estupro (Souza, & Adesse, 2005). Os casos que chegam ao conhecimento público trazem a realidade de um fenômeno insidioso, que vem crescendo constantemente nos últimos anos, mas de forma silenciosa.
De acordo com dados do Dossiê Mulher 2016, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, foram reportados 5.418 casos de estupro e de tentativa de estupro em 2015 no território fluminense, de modo que, a cada 100 mil mulheres, 54 foram vítimas destes crimes, totalizando uma média impressionante e assustadora de quase 13 (12,8) casos por dia, um a cada 2 horas - sem contar as ocorrências subnotificadas. Somente em janeiro e fevereiro de 2017, já haviam sido relatados 733 casos de estupro no Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Segurança Pública, 2017). A partir destes dados, chega-se à conclusão de que a agressão sexual é a forma de violência a que a mulher fluminense está mais exposta.
Em mais de 30% dos casos, a vítima tinha uma relação de proximidade com o agressor, este sendo geralmente um membro da família (pai biológico, padrasto, irmão ou tio) ou um conhecido próximo (vizinho, parceiro atual ou parceiro antigo) (Pinto, & Moraes, 2016). Além disso, o uso da violência mais acentuado encontra-se entre homens com idade entre 20 e 24 anos, os quais relatam que tais comportamentos se iniciaram na adolescência, aproximadamente aos 15 anos (Souza, & Adesse, 2005).
Em pesquisa quantitativa e qualitativa com 749 homens de faixa etária entre 15 e 60 anos, Acosta e Barker (2003) constataram que os homens entre 15 e 19 anos pareciam "ensaiar" a violência contra mulheres nessa idade, sendo na faixa seguinte, entre 20 e 24 anos, que as taxas de violência se mostravam mais elevadas. Na mesma pesquisa, apontaram que são os homens entre 15 e 24 anos os que reportaram os índices mais altos de agressões sexuais.
Ao voltarmos nossa atenção para a economia psíquica dos agressores sexuais, iremos propor ao longo de nossa reflexão como o ato de violência sexual pode ser considerado um mecanismo defensivo egoico, de caráter precário e radical, diante de uma excitação interna desorganizadora, ou seja, de um afluxo traumático. Desenvolvemos nossas ideias a partir de um trabalho de elaboração de hipóteses, fundamentado num referencial teórico abrangente, sendo nossa pesquisa de caráter conceitual. Porém, pesquisando uma situação subjetiva de cunho psicopatológico, ainda que nos centremos numa metodologia qualitativa, baseada numa linha de argumentação hipotético-dedutiva, a dimensão clínica se revela necessariamente presente nesta investigação.
Ao seguirmos esta via de análise, encontramos na noção de domínio um eixo fundamental para a elaboração de nossas hipóteses, noção a partir da qual é possível depreender uma dupla dimensão: nestes sujeitos, a necessidade de dominar o objeto externo por meio do poder, da força, traz, de modo subjacente a esta, a falência da dominação da invasão de uma força pulsional excessiva no mundo interno.
Consideramos que a relação de domínio que se trava nos atos de violência sexual encontra-se marcada por movimentos de natureza perversa, no sentido - conforme retomaremos mais à frente - em que o objeto deve ser ultrajado, humilhado, violentado, colocado na posição de coisa a manipular. Mostraremos que, nessas passagens ao ato, opera-se uma proclamação da onipotência narcísica por parte do agressor. Através dessa formação defensiva revela-se a tentativa de barrar a constante reatualização de um vivido de passividade frente a uma alteridade interna inassimilável, através do mecanismo de reversão da passividade em atividade, expressa no domínio sexual e violento do objeto externo.
Apelo à violência sexual
Balier, Ciavaldini e Girard-Khayat (1996) consideram que a passagem ao ato sexual evidencia uma tendência primária do psiquismo de levar a zero toda a tensão. A radicalidade dessa tendência à descarga suporia, em sua base, a utilização de um mecanismo defensivo radical diante da ameaça de transbordamento pulsional no aparelho psíquico. Os referidos autores concebem essa descarga como estando a serviço da busca, ainda que de modo precário, de apaziguamento interno, cujo destino, em seu limite, seria a salvaguarda psíquica. A excitação em questão pode assumir uma dimensão tal que o sujeito se sente desumanizado por ela, experimentando-a como algo brutal, animal, "fora do controle". Na base dessa situação clínica, supomos, portanto, a presença de uma dimensão traumática.
Baseamo-nos, neste ponto, na posição sustentada por Freud em Além do princípio de prazer (1920/2010), quando propõe uma concepção econômica do trauma. Esta diz respeito à correlação entre o excesso de excitações no mundo interno e a precariedade das fronteiras egoicas. Trata-se, neste sentido, de elementos inassimiláveis que ingressam no mundo interno sem que haja abertura à sua representação, aspecto revelador da fragilidade egoica do sujeito diante desses elementos. A precariedade das fronteiras egoicas diante do excesso de excitação nos remete à questão do limite entre a alteridade interna e a externa: o ego do sujeito passa a ser invadido, de dentro, por um pulsional mortífero, que não pode ser efetivamente interiorizado ou recalcado. Essa situação, que configura a dimensão traumática, enquanto estado de passividade do ego diante da força pulsional, resulta, muitas vezes, numa "solução" defensiva por parte do ego, onde há convocação do registro do ato, como via de descarga e "localização" desse excesso.
Ao analisar a prevalência da dimensão econômica na análise das patologias do agir, em especial nos comportamentos de violência sexual, Balier (2005; 1996/2000) caracteriza o recurso a esta passagem ao ato como reflexo de uma urgência econômica que visa à descarga a qualquer preço, sob a égide da compulsão à repetição. Sublinha que, "claramente, o ato não aparece como realização de uma representação animada por um desejo incontrolável, mas como uma última prova de existência, precisamente frente a uma falha de representação que age, de alguma forma, como um 'buraco negro'" (Balier, 2005, p. 70, tradução nossa). Sua hipótese é que atos como o estupro, o assassinato ou o suicídio remeteriam ao que Janin (1995) considera em termos de colapso tópico.
A noção de colapso tópico nos fala justamente de um encontro problemático entre a realidade psíquica e a realidade externa, de modo que os dois registros tendem a se confundir, fazendo com que se perca a transicionalidade entre eles. Os estados de colapso tópico indicam que uma das defesas mais eficazes do psiquismo contra o efeito devastador do traumatismo seria a tentativa, por parte do ego, de separar, de clivar de si uma das partes da realidade.
O ego, clivado, fica marcado por uma zona vulnerável que pode ser reativada sempre que uma situação de ameaça a ele se apresente. Forma-se assim uma carapaça narcísica capaz de protegê-lo contra o transbordamento interno, porém, à custa de extrema dessimbolização, que impede a realização de qualquer atividade representacional.
Aqueles que cometem os atos de violência sexual acabam por utilizar, em maior ou menor escala, a realidade externa como lugar de regulação do funcionamento psíquico (Ciavaldini, 2006). Segundo este ponto de vista, pode-se compreender a "vítima" como sendo uma parte do ambiente, cuja função seria a de estancar a angústia de aniquilamento e de colapso, impossíveis de serem administradas psiquicamente pelo ego de tais sujeitos. Através do domínio da vítima transparece a falência de seus recursos internos.
Tais meios de defesa implicam o assujeitamento dos objetos. Sustenta Cardoso (2002/2010) que, ao tomar os objetos como "coisa" a manipular, o sujeito busca se afirmar, através de uma relação de poder, de domínio do objeto externo. Ao assujeitá-lo, a alteridade deste é negada, ou seja, a singularidade de seu desejo. Em contrapartida, há o predomínio absoluto do desejo daquele que domina a cena, e que se exerce enquanto poder onipotente. No que concerne aos agressores sexuais, o domínio sexual ativo sobre o outro parece, no entanto, resultar de um apelo egoico ao mecanismo de inversão de uma posição de absoluta passividade - em última instância, passividade do ego diante do excesso pulsional - em atividade. Tal inversão se dá de modo também exteriorizado, através da dominação do objeto. O polo passividade/atividade encontra-se no centro da problemática que aqui analisamos, tendendo a ser constantemente reatualizado, enquanto compulsão à repetição.
No ato de violência sexual, é buscada a neutralização de uma angústia de aniquilamento, operação que se dá pela via de domínio do objeto externo. Tal tentativa é exercida de modo externalizado, mobilizando um polo fundamentalmente sensório-motor. No caso específico em questão, trata-se do apelo à violência sexual atuada contra o corpo de uma vítima passiva. O objeto externo sobre o qual é exercida essa tentativa de domínio torna-se, essencialmente, um objeto de apoio, de suporte, na tentativa desesperada, por parte do agressor sexual, de manter um "fiapo" de vida psíquica.
É o registro do corpo que assume, em sua concretude e fragmentação, a primazia da cena. Nestas situações clínicas, o corpo do agressor assume o lugar privilegiado da descarga do excesso pulsional sob a forma de uma passagem ao ato, uma vez que, como indicamos acima, tal excesso não pode ser efetivamente dominado pelo psiquismo, em decorrência da fragilidade dos processos de simbolização que cada vez mais se evidenciam.
Tudo se passa como se esta esfera da existência invadisse a totalidade do espaço subjetivo. Entretanto, o corpo não será aqui nada mais que um corpo "inapto ao prazer e à atividade representacional, desafetado, inabitado, cujo sentido dado pelo outro permanecerá [...] mais que enigmático" (Enriquez, 1984, p. 179, tradução nossa). O corpo desses sujeitos encontrar-se-ia desafetado, reduzido a um corpo funcional. Nesta relação que, em última instância, se estabelece entre dois corpos, não haveria espaço para a busca de prazer sexual, como uma resposta de satisfação, mas estaria, de fato, em jogo uma tentativa desesperada do ego de descarregar abruptamente aquilo que é da ordem do excesso inassimilável.
Aponta Birman (2003) que estes são sujeitos solipsistas, cuja subjetividade se fecha sobre si própria, impedindo a interlocução com a alteridade do outro. A interação intersubjetiva adquire caráter traumático, exigindo o acionamento de uma série de defesas precárias, mas que visam, em última instância, a assegurar a existência psíquica. Estas defesas, por sua vez, comportam caráter repetitivo no campo das relações objetais, trazendo incessantemente à tona o caos e a imprevisibilidade que marcam o contato com o outro.
Frente à impossibilidade de lidar com a alteridade interna, o ego procura dominar o objeto externo, submetê-lo a partir da afirmação atuada de sua onipotência narcísica. Frente às ameaças vindas das inevitáveis mudanças do objeto, procura-se exercer poder sobre ele. O que nessas situações se evidencia - aspecto de considerável importância em nossa argumentação sobre os fundamentos metapsicológicos da economia psíquica dos agressores sexuais - é o registro do domínio.
Passividade e atividade na relação de domínio
Ao eleger como objeto de análise a noção de domínio, afirma Dorey (1981) que, apesar de esta noção ter reconhecida importância clínica na tradição psicanalítica, observa-se um número relativamente reduzido de trabalhos a ela dedicados. Segundo Laplanche e Pontalis (1982/2001), essa noção foi introduzida no início da obra freudiana, desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996), em referência a uma pulsão específica. Posteriormente, em Além do princípio do prazer (1920/2010), a noção de domínio será subsumida por Freud à ação da pulsão de morte, tornando-se uma de suas funções, proposição que vem alterar seu complexo estatuto metapsicológico.
No citado texto de 1905, a noção de domínio é remetida à ação de uma pulsão específica - Bemächtigungstrieb. A "pulsão de domínio" é aí considerada a partir do estreito vínculo que teria com as pulsões parciais sem que, no entanto, Freud lhe conceda nesse momento uma significação estritamente sexual, já que ela seria ligada à crueldade infantil. Esta encontra na masturbação seu modelo precursor, de modo que é no campo do autoerotismo que a pulsão de domínio foi originariamente situada.
Apoiando-se nas contribuições de Gantheret sobre a genealogia da pulsão de domínio em Freud, Cardoso (2002/2010) esclarece que, antes de se intentar o domínio contra um objeto externo (ou que se encontra inicialmente impossibilitado), a criança procura exercer, de modo autoerótico, o domínio sobre o seu próprio corpo, seus órgãos erógenos. Posteriormente a atividade de domínio realizada sobre o próprio corpo se deslocaria rumo ao objeto.
Como avançamos acima, a partir de 1920, em Além do princípio do prazer, a noção de domínio sofre transformação teórica, não mais sendo referida a uma pulsão específica, e remetendo a partir de então à ação propriamente dita da pulsão de morte. Resulta desse remanejamento a perda da especificidade da pulsão de domínio, uma vez que a pulsão de morte veio englobá-la. Desse modo, a pulsão de domínio passa a ser considerada uma das modalidades que a pulsão de morte pode assumir. A dimensão de domínio vem a configurar, então, uma função ativa, concernente ao exercício da pulsão de morte, radicalizando-se, desse modo, a ideia de domínio como passagem à posição ativa.
É no modelo do jogo do carretel (Fort-Da), descrito por Freud no mencionado texto de 1920, que encontramos ilustração profícua desse movimento de inversão passividade/atividade envolvido na função de domínio: ao jogar o carretel para longe repetidamente, a criança encena o movimento de separação da mãe, passando, através do jogo, à posição de atividade. É ela quem se separa agora da mãe, tendo vivenciado passivamente, no plano da realidade, a experiência de separação. Neste jogo, além da inversão passividade/atividade no que se refere à vivência das excitações oriundas da separação do objeto, opera-se uma tentativa de "vingança" contra o objeto, no sentido em que a criança adquire no jogo o poder de se liberar da força excessiva que a ela inicialmente se impôs.
O jogo do Fort-Da conjuga em si a busca da criança por uma dominação-controle da excitação interna, além da capacidade de tornar-se, de certo modo, senhora do objeto. Estes dois sentidos - o de dominar o objeto pela força e o de tornar-se senhor das excitações, ligá-las - se alternam constantemente na noção freudiana de domínio. Estão conjuntamente em ação a indissociabilidade da dominação das excitações (objeto interno) e do domínio do objeto (externo).
É no intuito de reverter o vivido de passividade em atividade que o sujeito busca, através do ato de violência, dominar o objeto externo, afirmando-se. Seguindo este ponto de vista, pontua Dorey (1981) que a noção de domínio só encontra sua verdadeira fecundidade quando entendida como modo singular de interação entre dois sujeitos. O domínio corresponde justamente a um agenciamento complexo da relação com o outro (interno e externo), seu sentido situando-se, simultaneamente, no campo intrapsíquico e no intersubjetivo, devendo ser abordado como relação de domínio.
O referido autor trabalha com a hipótese de que a relação de domínio comporta sempre dimensão de transgressão - transgressão do outro como sujeito desejante -, daí sua acepção de "apropriação por despossessão do outro". Trata-se de uma "confiscação", que envolve uma violência infligida, trazendo prejuízo a outrem por invasão e usurpação de seu domínio privado, em detrimento de sua liberdade individual. O que seria visado no exercício do domínio do objeto seria precisamente a esfera de desejo nesse outro. Sua alteridade seria vivenciada como avassaladoramente "estranha" e fugidia.
Dominar o objeto pela força nos fala de uma tendência muito arcaica do psiquismo: a de neutralização do desejo do outro, de abolição de toda a sua singularidade e, mais fundamentalmente, de uma recusa de toda diferença. Visaria, portanto, à transformação do outro em um objeto inteiramente assimilável, cuja singularidade é rechaçada. Na relação de domínio opera-se um poder tirânico diante do qual o outro, objeto de violência, se vê subjugado, controlado e manipulado, mantido em um estado de submissão e dependência.
Negando sua alteridade, aquele que domina "marca" sobre o objeto sua própria singularidade. Tal movimento de afirmação narcísica, em detrimento do reconhecimento da alteridade do outro, nos instiga a afirmar o caráter eminentemente perverso envolvido na relação de domínio, aspecto primordial nos atos de violência sexual.
A dimensão perverso-narcísica nos atos de violência sexual
De acordo com Balier (1996/2000), o modo de funcionamento psíquico dos autores de agressões sexuais revela a tentativa extrema de anulação do outro, do objeto externo, em sua diferença, reduzindo-o a um estado coisificado, condição de sua dominação. A dimensão do domínio no ato de violência sexual sinaliza a questão do poder ultrajante e abusivo exercido sobre o objeto e, portanto, os movimentos perversos envolvidos nessa atuação. Nesse sentido, esse ato, enquanto abuso de poder e recusa do reconhecimento da alteridade do outro, configura, em nosso entender, uma dinâmica psíquica eminentemente perversa.
Nos atos perversos, a relação de domínio se desenvolve no registro erótico, o que significa dizer que o domínio do sujeito se realiza, na maioria das vezes, sobre seu parceiro ou parceira sexual. Segundo Dorey (1981), a relação de domínio na perversão tem inegável dimensão destrutiva e natureza essencialmente especular, dual e, portanto, não mediatizada. Ao ter a singularidade de seu desejo expropriada, o objeto violentado fica aprisionado na posição de duplo, a qual lhe é designada pelo sujeito perverso, que assume, dessa maneira, a imagem projetada de seu reflexo especular. Na cena de violência em questão, resta somente o desejo perverso do agressor, impresso no objeto como marca indelével de seu assujeitamento a ele. O estado de servidão da vítima fornece ao agressor a prova incontestável do domínio que ele é capaz de exercer sobre o outro.
A dimensão patológica própria a essa resposta eminentemente perversa seria justamente a cristalização de um modo de funcionamento psíquico fundamentado em atos que necessitam afirmar compulsivamente a onipotência narcísica do sujeito, recurso extremo diante de um vivido constante de passividade, de desamparo. Nossa hipótese é que, através da manipulação violenta do objeto - abusado, humilhado, rejeitado, coisificado -, o agressor escaparia supostamente do perigo de aniquilamento e de desintegração egoica veiculado, em última instância, pelo caráter excessivo, não metabolizável, de elementos internos, inassimiláveis.
Não estaríamos aqui, mais uma vez, diante da polaridade passividade/atividade que insiste em se reatualizar? Tal defesa de caráter perverso teria em sua base o mecanismo elementar da "transformação no contrário" (Freud, 1915/2010). Este diz respeito à inversão de um estado de absoluta passividade diante de uma alteridade interna, da qual o ego não consegue se apropriar, a uma posição ativa, como afirmação de onipotência narcísica, exteriorizada via domínio sexual do objeto a violentar. Sustentamos que esta dimensão se encontra fortemente presente nos autores de agressões sexuais violentas.
A respeito dos crimes sexuais, Neau (2005a) indica que subjacente a eles haveria a tentativa de "controle onipotente sobre o objeto, permitindo lutar contra a dependência, e a ereção de um si grandioso, que se traduz pela desvalorização do outro, sem traço da angústia de perda do objeto" (Neau, 2005a, p. 267, tradução nossa).
A autora (2005b) chama a atenção para o fato de que os autores de agressões, em especial os agressores sexuais, são, em sua indiscutível maioria, homens. Ela trabalha com a hipótese da prevalência de um registro "masculino maníaco" nesses sujeitos, o qual visaria, segundo modalidades singulares em cada homem, defendê-los contra a dependência implicada na passividade, fonte de desamparo e de ameaça de perda do objeto - em grande escala, ameaça de aniquilamento narcísico, de perda do ego como objeto.
Cabe a ressalva, contudo, de que não seja possível naturalizar a prevalência deste tipo de resposta nos homens, sem considerar a inter-relação incontornável com os aspectos socioculturais envolvidos na construção da masculinidade contemporânea. Estamos diante de sujeitos que têm realizado cenas, cada vez mais frequentes, de exibição de força, como modalidade de afirmação da masculinidade e, mais ainda, como busca de afirmação de si. Tudo se passa como se os homens precisassem se afirmar por meio da força - movimento que reforça a afirmação da precariedade de sua capacidade elaborativa egoica, uma vez que a resposta à angústia se dá por uma via agressiva, corporal, exteriorizada, atuada, primária, em detrimento dos processos secundários, de pensamento, sublimação, representação (Birman, 2008).
São comportamentos que evidenciam um funcionamento psíquico em que a categoria virilidade/atividade/sadismo é valorizada ao extremo em detrimento da categoria feminilidade/passividade/masoquismo. Esses sujeitos não podem descansar, não podem parar, sob o risco de serem invadidos por afetos traumáticos. Em seu psiquismo, a vivência de passividade revela-se impossível de ser integrada. Tais comportamentos atuados - ativos - teriam em seu fundamento um temor diante da passividade e da insuportável dependência que o objeto lhes provoca.
Ao ressaltar a prevalência do número de homens a recorrer aos atos de violência sexual, Lattanzio (2011) destaca o fato de que, por mais que a dependência e a passividade sejam comuns a todos os seres humanos, homens e mulheres teriam modos diferentes de lidar com elas. Segundo ele, "Por mais que essa passividade seja intolerável para ambos, os homens são mais compelidos a darem respostas explicitamente fálicas ao mal-estar, caindo muitas vezes em formas violentas e estereotípicas de se colocar frente ao outro" (Lattanzio, 2011, s.p.).
Sublinha o autor que, diante da necessidade de negar a dependência e a passividade que lhes são constitutivas - mas que, em determinados homens, assumem caráter absolutamente insuportável -, eles recorrem a respostas estereotipicamente fálicas e agressivas. Quando a passividade adquire contornos mortíferos para esse ego masculino fragilizado, a resposta "é estereotipada, é violenta, é defensiva, é, paradoxalmente... frágil" (Lattanzio, 2011, s.p.).
Esses sujeitos vão procurar tornar dependente deles o objeto do qual eles mesmos dependem, o que seria operado por meio dos mecanismos de controle onipotente do objeto. É o par dependência/onipotência que ganha aqui especial significação, como expressão da relação de domínio estabelecida entre o agressor sexual e sua vítima. Nos termos de Jeammet e Corcos (2005, p. 78): "[...] as relações vivas dão lugar às relações de domínio; as ligações humanas se transformam em sobreinvestimentos do funcionamento mecânico do corpo e de um pensamento desligado de seu alimento afetivo; as emoções são substituídas pela busca de sensações".
Concluindo nossa reflexão, procuramos apontar algumas vias de compreensão teórica dos atos de violência sexual - sem, evidentemente, pretender a exaustividade da questão. Consideramos esta modalidade de passagem ao ato como um mecanismo egoico, radical e precário de salvaguarda psíquica diante da irrupção de um excesso traumático que não pode ser metabolizado psiquicamente, alteridade interna não assimilável.
Na tentativa de dar conta dessa dimensão interna irrepresentável, é a esfera do domínio que se configurou para nós como ferramenta teórica prioritária. O ego se engaja em uma passagem ao ato cuja função seria torná-lo senhor das excitações internas através do domínio, pela força, do objeto externo. Este ato é acionado pelo mecanismo de transformação da passividade em atividade, espécie de última defesa.
Exploramos, portanto, a dimensão de domínio no ato de violência sexual, considerando sua natureza perversa, expressa através do exercício do poder sexual - ativo e violento - sobre um objeto externo, "coisificado". Este acaba por ser "dessubjetivado", manipulado para que aquele que domina possa afirmar sua suposta onipotência narcísica. O engrandecimento de si e a manipulação do corpo do outro são produtos inextricáveis da relação de domínio a qual configura uma violação do objeto na sua condição de sujeito desejante. Os atos de violência sexual constituir-se-iam como recurso precário e radical do ego de sobrevivência psíquica, enquanto última defesa.
Referências
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Endereço para correspondência:
André Luiz Alexandre do Vale
alavale88@gmail.com
Marta Rezende Cardoso
rezendecardoso@gmail.com
Submetido em: 02/10/2015
Revisto em: 09/04/2017
Aceito em: 22/04/2017