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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2018
ARTIGOS
Usuários de crack em tratamento em Comunidades Terapêuticas: perfil e prevalência
Crack cocaine users in treatment in Therapeutic Communities: profile and prevalence
Consumidores de crack en el tratamiento en Comunidades Terapéuticas: perfil y prevalencia
Tatiana Silveira MadalenaI; Laisa Marcorela Andreoli SartesII
IPsicóloga, Mestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora. Estado de Minas Gerais. Brasil
RESUMO
O estudo teve por objetivo avaliar a prevalência, o perfil e as diferenças entre gênero em usuários de crack atendidos em Comunidades Terapêuticas (CTs) da Zona da Mata, Minas Gerais, Brasil. Para avaliar a prevalência, inicialmente entrevistou-se todos os 34 indivíduos que deram entrada nas CTs num período de dois meses, dos quais 82,4% era por uso de crack. Em um segundo momento, para o estudo de perfil, foram entrevistados 54 homens e 18 mulheres por meio de um questionário contendo informações sociodemográficas, Teste de triagem do envolvimento com álcool, tabaco e outras (Assist) e o Addiction Severity Index (ASI6). A amostra foi caracterizada predominantemente por homens, solteiros, adultos (30 anos), sem trabalho, dependentes da família, com defasagem escolar, classe média e religião protestante. Dependentes de múltiplas drogas, com histórico e problemas recentes de violência, legais, psiquiátricos, bom suporte sociofamiliar e poucos problemas de saúde. As mulheres apresentaram especificidades de problemas psiquiátricos e histórico de abuso sexual e de guarda de filhos. Os resultados fornecem melhor compreensão sobre a população atendida em CTs, que ainda são pouco reconhecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Palavras-chave: Cocaína Crack; Comunidade Terapêutica; Prevalência; Perfil Epidemiológico.
ABSTRACT
This study describes the prevalence and profile of men and women, which are crack cocaine users, attended in three Therapeutic Communities in Zona da Mata, state of Minas Gerais, Brazil. To evaluate the prevalence, we initially interviewed all 34 individuals who entered the TCs in a two-month period, of whom, 82.4 % was for crack cocaine use. In a second moment, 54 men and 18 women were interviewed using a questionnaire containing sociodemographic information, Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (Assist) and Addiction Severity Index (ASI6). The prevalent profile was formed by men, unmarried, aged 30, who did not work, lived with and depended on the family, school delay, middle-class and Protestant religion. Men and women were dependent on multiple drugs, with historical and recent violence, legal and psychiatric problems, good social and familial support, and few health problems. Women presented specificities of psychiatric problems and history of sexual abuse and child custody. Results were compared with profiles of studies with clinical and no clinical samples and provide better understanding of the population served in TCs, newly recognized by the SUS, but little known.
Keywords: Crack Cocaine; Therapeutic Community; Prevalence; Health Profile.
RESUMEN
El estudio tuvo como objetivo evaluar la prevalencia, el perfil y las diferencias entre género en usuarios de crack atendidos en Comunidades Terapéuticas (CTs) de Zona da Mata, Minas Gerais, Brasil. Para evaluar la prevalencia, inicialmente se entrevistó a los 34 individuos que ingresaron en las CTs en un período de dos meses, de los cuales el 82,4% era por uso de crack. En un segundo momento, para el estudio de perfil, se entrevistaron 54 hombres y 18 mujeres a través de un cuestionario que contenía informaciones sociodemográficas, Prueba de implicación con alcohol, tabaco y otras (Assist) y Addiction Severity Index (ASI6). La muestra se caracterizó predominantemente por hombres, solteros, adultos (30 años), sin trabajo, dependientes de la familia, con inadaptación escolar, clase media y religión protestante. Dependientes de múltiples drogas, con historial y problemas recientes de violencia, legales, psiquiátricos, buen soporte socio familiar y pocos problemas de salud. Las mujeres presentaron especificidades de problemas psiquiátricos e históricos de abuso sexual y de custodia de hijos. Los resultados proporcionan una mejor comprensión sobre la población atendida en CTs, que aún son poco reconocidas por el Sistema Único de Salud (SUS).
Palabras clave: Cocaína Crack; Comunidad Terapéutica; Prevalencia; Perfil Epidemiológico.
Introdução
O uso de substâncias psicoativas tornou-se um importante problema de saúde pública no Brasil (Carlini et al., 2006; Noto et al., 2003)que vem preocupando psicólogos e outros profissionais de saúde. Embora exista um alarde midiático quanto à epidemia de crack, estudos recentes parecem não evidenciar este fato (Bastos, & Bertoni, 2014; Nappo, Sanchez, & Ribeiro, 2012). Um levantamento realizado em 2012 nas 26 capitais brasileiras e Distrito Federal mostrou que, dentre os 2,28% de dependentes de drogas ilícitas (com exceção da maconha), 0,81% eram usuários regulares de crack e/ou similares (Bastos, & Bertoni, 2014). Esta porcentagem é baixa quando comparada aos 12,3% de dependentes de álcool (Carlini et al., 2006). No entanto, não se pode deixar de considerar que isto representa 35,0% (370 mil pessoas) da amostra de usuários de drogas ilícitas. O uso de crack destaca-se pelo forte potencial em gerar danos em diversas dimensões da vida do indivíduo, incluindo problemas sociofamiliares, psiquiátricos, de saúde, legais e de emprego (Kessler, & Pechansky, 2008; Oliveira, & Nappo, 2008). Estudos indicam que a partir da década de 1990 houve um aumento significativo na procura por tratamento por esta população (Duailibi, Ribeiro, & Laranjeira, 2008; Dunn, Laranjeira, Silveira, Formigoni, & Ferri, 1996; Ferri, Laranjeira, Silveira, Dunn, & Formigoni, 1997). Como consequência, ainda que incipiente (Duailibi et al., 2008), tem havido um interesse nacional crescente em conhecer o perfil dos usuários de crack, tanto em tratamento (Bastos et al., 1988; Domingos, 2012;Horta, Horta, Rosset, & Horta, 2011), quanto fora dele (Bastos, & Bertoni, 2013; Fochi, Moraes, Chiaravalloti, Gandolfi, & Ferreira, 2000; Garcia, Zacharias, Winter, & Sontag, 2012; Guimarães, Santos, Freitas, Cavalari, & Araujo, 2008; Sanchez, & Nappo, 2007).
Com a crescente preocupação com o crack, tem ocorrido uma expansão de serviços para o atendimento aos usuários desta substância. A rede de assistência pública é formada por dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS) que oferecem, além dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), cobertura de hospitais, de equipes de saúde da família, dispositivos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), entre outros. Há ainda uma rede de serviços ambulatoriais e institucionais não governamentais e privados, Alcoólicos e Narcóticos Anônimos (AA e NA) e as Comunidades Terapêuticas (CTs) (Damas, 2013).
As CTs funcionavam como instituições particulares para o tratamento de dependentes de drogas, porém, tornaram-se alvo de atenção nacional nos últimos anos, sobretudo devido às discussões sobre internação involuntária e compulsória no Brasil. Após a regulamentação para seu funcionamento pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (RDC no 29/2011) e, principalmente, a partir do programa federal "Crack, é possível vencer", as CTs foram incluídas na rede complementar de saúde do SUS para atendimento de usuários de crack, álcool e outras drogas, recebendo financiamento de leitos (Brasil, [s/d]).
Embora as CTs sejam uma modalidade muito difundida para o tratamento de usuários de drogas no Brasil e em outros países, pouco se sabe sobre o tratamento e a população atendida por elas, o que pode gerar dificuldade no planejamento do cuidado à população usuária de álcool e outras drogas. Alguns estudos internacionais propuseram realizar este tipo de avaliação (Bell, 1994; Chan et al., 2004; De Leon, 1994; Machado, & Veloso, 2011; Soyez, Tatrai, Broekaert, & Bracke, 2004). Em revisão sistemática, Fiestas e Ponce (2012) identificaram que são raros os estudos sobre os métodos empregados pelas CTs, e os existentes apresentaram problemas metodológicos e não demonstraram evidência suficiente. No Brasil, foram encontrados poucos estudos empíricos conduzidos nas CTs (Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008; Wagner, 2002). Dentre outros fatores, a falta de evidência tem gerado discussões sobre a efetividade desta modalidade de tratamento e sua inclusão no SUS.
Parte das comunidades terapêuticas brasileiras são exclusivamente femininas. Estudos têm indicado que há especificidades no uso de crack entre homens e mulheres que devem ser levados em consideração no tratamento. Em revisão realizada por Limberger, Nascimento, Schneider, & Andretta (2016), foram observadas peculiaridades femininas como envolvimento com prostituição, violência física e sexual, baixa escolaridade, gravidez de risco e doenças sexualmente transmissíveis. Para as autoras, há uma ênfase em estudar o consumo de drogas e suas características na população masculina, sendo raros os estudos dirigidos também para mulheres usuárias de crack no Brasil (Pedroso, Kessler, Pechansky, 2013). Em um estudo qualitativo realizado no Brasil com homens e mulheres usuários de crack internados em um hospital de Porto Alegre, foram observados padrões diferentes de comportamento de acordo com o gênero. Por um lado, os homens relataram envolvimento com o crime com a finalidade de obtenção da droga, por meio de roubo ou tráfico. Por outro, as mulheres relataram se envolver com prostituição para adquirir a substância, expondo-se ao risco de doenças sexualmente transmissíveis, violência, gravidez indesejada e exposição dos próprios filhos à droga. São raros os estudos que incluem mulheres usuárias de crack em tratamento em comunidades terapêuticas (Medeiros, Maciel, Sousa, & Vieira, 2016).
A melhor compreensão da população que busca tratamento nestas instituições é importante para o planejamento de estudos de efetividade do tratamento oferecido e de políticas públicas adequadas para a população usuária destas instituições. Este estudo teve por objetivo conhecer a prevalência, o perfil e avaliar as diferenças entre gênero em usuários de crack que buscaram tratamento em CTs.
Método
Tipo de estudo
Foi realizado um estudo transversal, exploratório e descritivo.
Local do estudo
Entrevistas foram realizadas em três CTs localizadas na região da Zona da Mata Mineira, escolhidas por conveniência, sendo uma feminina e duas masculinas. A capacidade de atendimento nas instituições variava entre 12 e 35 pessoas, contavam com equipe multiprofissional incluindo um psicólogo e monitores, que possuíam formação em abordagem terapêutica mista, o tempo de tratamento tinha duração entre seis e nove meses, e o financiamento para o tratamento poderia ser realizado pelo SUS ou particular.
Instrumentos de coleta de dados
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Questionário sobre informações sociodemográficos desenvolvido pela equipe;
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Teste de Triagem do Envolvimento com Álcool, Cigarro e outras Substâncias (Assist) validado para o Brasil (Henrique, De Micheli, Lacerda, Lacerda, & Formigoni, 2004). Composto por oito questões sobre padrão de uso de álcool e outras drogas nos últimos três meses, classificando o consumo de cada substância em uso de baixo risco, uso de risco e indicativo de dependência. Para este estudo, o crack foi desvinculado da classe cocaína utilizando-se a mesma pontuação;
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Addiction Severity Index 6 (ASI 6), validado para o Brasil (Kessler et al., 2012a). Composto por 252 questões divididas em sete áreas: problemas com álcool, drogas, médicos, ocupacionais, legais, sociofamiliares (suporte, problemas e violência) e psiquiátricos. Fornece informações sobre histórico e problemas atuais ocorridos nos últimos 6 meses e 30 dias, além do perfil de gravidade de problemas em cada área.
Participantes, coleta de dados e análise dos dados
Para avaliação do perfil, foram entrevistados 72 indivíduos, que preencheram os critérios de inclusão por serem maiores de 18 anos, serem classificados pelo ASSIST como uso sugestivo de dependência de crack e que buscaram tratamento nas três CTs entre agosto de 2012 e maio de 2013. As entrevistas com os três questionários padronizados foram realizadas dentro dos primeiros 30 dias de tratamento dos indivíduos, nas CTS, em local isolado. As entrevistas referiram-se ao período anterior à admissão ao tratamento. Os critérios de exclusão foram não fazer uso sugestivo de dependência de crack dentro dos últimos três meses, de acordo com o ASSIST, ou ter menos de 18 anos. Foram excluídos 11 indivíduos por não preencherem os critérios de inclusão (N = 10) ou por não terem aceitado terminar a entrevista (N = 1).
Para o estudo de prevalência, todos os indivíduos que iniciaram o tratamento em duas CTs, uma masculina e uma feminina, entre junho e julho de 2013, foram entrevistados individualmente com o questionário de informações sociodemográficas e o ASSIST. A terceira CT não foi incluída por ter encerrado as atividades nesta etapa da coleta. Não houve reincidentes no tratamento e perdas de sujeitos neste estudo. O corte de dois meses foi utilizado a fim de garantir que todos os indivíduos fossem entrevistados, considerando a rápida desistência do tratamento recorrente entre os pacientes das CTs.
Após a transcrição dos dados para um banco de dados da versão 22 do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), foram realizadas análises descritivas utilizando média e desvio-padrão, e frequência e porcentagem para descrever a amostra geral e de homens e mulheres. Para comparar as características de homens e mulheres, foram realizados para variáveis categóricas, o teste do chi-quadrado com correção de Yates, quando necessário, ou teste Exato de Ficher para amostras pequenas e teste t de Student para variáveis discretas ou contínuas.
Aspectos éticos
Todos os indivíduos assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido redigido de acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora, que aprovou a realização deste estudo (nº 131157).
Resultados
Com relação à prevalência, 34 indivíduos deram entrada em duas CTs durante o período de dois meses de avaliação. A amostra foi composta por 23 (67,6%) homens, com média de idade de 30,8 anos, 61,8% de religião protestante, 67,6% com mais de dois anos de defasagem escolar e 61,7% entre as classes socioeconômicas B2 e C1. Dessa amostra, 82,4% pontuaram como sugestivo de dependência de crack, sendo este o principal motivo que o levou ao tratamento. Álcool e tabaco tiveram as mesmas porcentagens, 29,4% pontuaram como sugestivo de dependência, seguido pela cocaína em pó, com 23,5%.
Dentre os 72 indivíduos que compuseram a avaliação de perfil nas três CTs, 54 eram homens e 18 mulheres (Tabela 1). Predominaram indivíduos com média de idade de 30 anos, da raça negra (65,3%), religião protestante (61,8%), de classe média (B2 e C1, 54%), com defasagem escolar acima de 2 anos (42,4%), que nunca se casaram (60,6%). Quanto à situação de moradia, 48,2% dos homens e 50,0% das mulheres moravam com os pais, e 94,4% das mulheres e 74,1% dos homens dependiam da família para o sustento. Homens (48,1%) e mulheres (72,2%) apresentaram alta prevalência de defasagem escolar de pelo menos dois anos. Entre os homens, observamos alta prevalência (35,2%) de defasagem de 1 a 2 anos (p = 0,05). Por um lado, foi observada maior proporção de homens (42,6%) que trabalhavam em relação às mulheres (11,1%) e, por outro, maior prevalência de mulheres que dependiam da família como fonte de sustento (H = 74,1%, M = 94,4%, p = 0,03)
Na Tabela 2 são apresentados o histórico e envolvimento recente com álcool e outras drogas. A maioria já fez tratamento anteriormente, em média três vezes. Quase 80% dos homens e 100% das mulheres foram encaminhados para o tratamento na CT por familiares, amigos ou por si próprio (p = 0,07). Apenas nove indivíduos foram encaminhados por instituições de saúde e dois pela justiça. Além do crack, os indivíduos preencheram critérios sugestivos de dependência nos últimos três meses de cocaína, álcool, tabaco e maconha, respectivamente. Os homens apresentaram maior proporção de dependência de álcool e maior consumo de álcool dentro dos últimos 30 dias em comparação com as mulheres. Por sua vez, as mulheres relataram fumar cigarros regularmente, em média, 5,8 anos a mais do que os homens. As mulheres fumaram crack 24,4 dias e tabaco 23,1 dias em média, enquanto os homens fumaram crack 20,7 dias e tabaco 20,4 dias em média dentro do último mês. Na amostra geral, a média de anos de uso regular de crack (pelo menos três vezes por semana) foi de 5,6 anos. Em média, os homens fumaram crack 2 anos a mais do que as mulheres. Nota-se que a idade de início de uso de crack foi, em média, 4 anos anterior entre os homens. A maconha foi a droga consumida por maior tempo entre homens e mulheres, ainda que a idade de início de uso desta droga tenha sido de 13,6 anos entre os homens e 17,1 entre as mulheres. O álcool foi a primeira droga de experimentação por ambos os sexos.
A Tabela 3 apresenta os problemas relacionados a saúde, legais, psiquiátricos, violência e suporte sociofamiliar. O relato de doenças físicas ocorridas na vida de uma forma geral foi baixo entre os entrevistados, com exceção de problemas respiratórios. Foram relatados também problemas de pressão alta e epilepsia. HIV/AIDS e hepatite foram relatadas por poucos indivíduos, embora, proporcionalmente, as mulheres relataram maior ocorrência de hepatite do que os homens.
Cerca de 76% da amostra já foram presa ou detida, mesmo que por poucas horas, em média, aos 22 anos pela primeira vez. Os homens apresentaram uma proporção maior de prisões (83,3%) em comparação com as mulheres (55,5%) (p = 0,008). Embora as mulheres tenham relatado que os motivos das prisões foram porte de drogas (16,7%) e roubo (16,7%), a proporção de homens foi significativamente maior de prisão devido ao porte de drogas (37%) (p = 0,05). Além disso, somente os homens relataram terem sido presos por venda ou produção de drogas e crime violento. As atividades ilegais recentes foram prevalentes e variadas, com predominância de agressões com ou sem arma e furto para ambos os sexos. Houve poucos relatos de envolvimento com prostituição.
A maioria dos entrevistados relatou ter recebido algum tipo de suporte sociofamiliar de parceiros, amigos íntimos e parentes adultos no último mês, embora também tenham apresentado problemas de relacionamento com estas pessoas. Referiram-se ainda poder contar com ao menos alguma outra pessoa na vida, como padre/pastor, médico, padrinho de AA ou NA. Mulheres tenderam a apresentar em maior proporção problemas com guarda de filhos (H = 9,2%, M = 22,2%, p = 0,07) e a conviver intimamente com outros usuários de drogas (H = 27,8%, M = 44,4%, p = 0,09).
A maioria dos usuários de crack relatou ter sofrido algum episódio de violência na vida. Mais da metade deles já sofreu agressão física por alguém que conhecia e viu alguém sendo morto. Proporcionalmente, os homens relataram com maior frequência que passaram por situações de alto risco na vida, enquanto as mulheres que sofreram abuso sexual.
Poucos usuários de crack informaram terem sido internados por problemas psiquiátricos. No entanto, sintomas de ansiedade, depressão, delírios e alucinações na vida, e problemas com sono no último mês, foram relatados por grande parte da amostra. Embora não tenha sido observado uma diferença estatisticamente significativa, utilizando um nível de significância de 5%, cabe ressaltar que nas mulheres a prevalência de sintomas depressivos na vida foi de 61,1%, enquanto nos homens de 44,4% (p = 0,10). Os homens tiveram uma prevalência de 42,5% de problemas com sono nos últimos 30 dias e as mulheres, de 27,8% (p = 0,13). Pensamentos suicidas foram relatados por quase 50% das mulheres, que também tenderam a apresentar maiores taxas de tentativa suicídio da vida (27,8%) em comparação com os homens (13,0%) (p = 0,07).
Discussão
Como esperado, a grande maioria dos indivíduos que entraram nas CTs durante os dois meses estudados eram usuários de crack, seguido pelo álcool, cocaína em pó e tabaco. Por um lado, estudos epidemiológicos com amostras não clínicas realizados no Brasil recentemente (Bastos, & Bertoni, 2014) demonstraram ser difícil falar em epidemia do crack. Por outro, este estudo corrobora a alta procura por tratamento por usuários de crack ocorrido nas últimas décadas, relatado por alguns estudos com amostras clínicas. Ferri et al. (1997) mostraram que a procura por tratamento por esta droga passou de 17% em 1990 para 64% em 1993. Outros estudos também mostraram que a procura por tratamento ambulatorial passou a variar entre 50% e 80% em diferentes serviços (Bastos et al., 1988; Dunn et al., 1996; Kessler & Pechansky, 2008; Laranjeira, Dunn, Rassi, Mitsushiro, & Fernandes, 1998).
A maioria dos pacientes foi encaminhada ao tratamento nas CTs por si próprios, por familiares ou amigos e um número menor por profissionais ou pela justiça. Estes dados sugerem que processos de internação voluntária e compulsória não tem prevalecido nestas CTs.
O perfil de usuários de crack encontrado neste estudo foi semelhante ao de outros estudos com amostras clínicas (Carvalho, & Seibel, 2009; Domingos, 2012;Ferreira Filho, Turchi, Laranjeira, & Castelo, 2003; Fochi et al., 2000; Garcia et al., 2012; Guimarães et al., 2008; Horta et al., 2011) e não clínicas (Bastos, & Bertoni, 2013; Carlini et al., 2006; Oliveira; & Nappo, 2008; Sanchez, & Nappo, 2002).
Diferentemente da maioria dos estudos, os indivíduos incluídos em nossa amostra pertenciam a classe média. É possível que este resultado decorra do financiamento particular das CTs. Horta et al. (2011) também encontraram este resultado em pacientes em tratamento em CAPS AD da região metropolitana de Porto Alegre, o que indica que o uso de crack não é exclusivo entre pessoas de baixo nível socioeconômico, tanto em capitais, quanto no interior. Estes resultados sugerem que, mesmo com a possibilidade de financiamento do SUS, a população menos favorecida tem mais dificuldade de chegar ao tratamento das CTs.
Uma parcela importante dos homens declarou que estava trabalhando, contudo, a maioria dependia da família ou amigos para sua sobrevivência, principalmente as mulheres. Outros estudos com amostras clínicas também encontraram parcelas de usuários de crack que trabalhavam formalmente (Carvalho & Seibel, 2009; Domingos, 2012; Guimarães et al., 2008). No entanto, a maioria dos indivíduos entrevistados nestes trabalhos informaram que conseguiam recursos por meios ilegais ou estavam fora do mercado de trabalho. Em nosso estudo, poucos indivíduos disseram que se sustentavam por meios ilegais.
Como esperado, o crack foi a droga de maior consumo dentro dos últimos 30 dias, tanto pelos homens quanto pelas mulheres, embora a porcentagem de consumo do tabaco tenha sido semelhante em termos de média de dias de uso nos últimos 30 dias, indicando que o uso destas duas substâncias era concomitante. Um levantamento realizado pela Fiocruz encontrou que o uso de álcool e de tabaco eram os mais prevalentes entre usuários de crack (Bastos, & Bertoni, 2014). No entanto, em nosso estudo, o padrão de consumo de álcool foi semelhante ao de maconha e pouco superior ao de cocaína, correspondente a metade dos dias de consumo de crack e tabaco. As altas taxas de uso sugestivo de dependência para todas estas substâncias indicam um perfil grave de uso de múltiplas drogas, resultado também observado em outros estudos com usuários de crack (Bastos, & Bertoni, 2014; Oliveira, & Nappo, 2008; Oliveira, Ponce, & Nappo, 2010). Oliveira e Nappo (2008) encontraram uma combinação frequente entre crack, álcool, maconha e cloridrato de cocaína. O álcool foi relatado como paliativo aos efeitos do crack, sendo intercalado com o uso para manutenção do consumo por maior tempo. A maconha era utilizada como paliativo dos efeitos negativos do crack. Já o uso combinado com a cocaína visava aumentar a intensidade e duração dos efeitos positivos. Neste sentido, o crack parece ser a droga de escolha principal e as outras substâncias são utilizadas como moduladoras dos efeitos do crack.
Este padrão grave de uso de múltiplas drogas associado ao uso de crack confirma-se pelos anos de uso regular de drogas e pelo histórico anterior de tratamentos entre homens e mulheres, que se iniciou na adolescência. Considerando que o consumo de crack, em média, se iniciou após 20 anos, os tratamentos anteriores focaram-se em outras drogas. A idade de início de uso de crack foi bastante superior à de outras substâncias, ao contrário de idade de início por volta dos 14 anos relatada por Guimarães et al. (2008). O início de uso tardio, após os 18 anos, foi relatado por 69,5% de pacientes de um estudo com CAPS AD (Horta et al., 2011). Vale destacar que as mulheres fumaram cigarro, em média, cerca de 5 anos a mais do que os homens. É possível que este padrão esteja associado ao alto índice de depressão entre as mulheres (Rondina, Gorayeb, & Botelho, 2003).
A alta prevalência de sintomas de depressão e ansiedade corroboram os achados de outros estudos (Garcia et al., 2012; Guimarães et al., 2008; Wagner, 2002. As mulheres apresentaram maior taxa de tentativos de suicídio, e tenderam a apresentar maior taxa de depressão e pensamentos suicidas do que os homens, como observado em outros estudos (Garcia et al., 2012; Horta et al., 2011). Outro estudo mostra a alta prevalência de problemas psiquiátricos entre usuários de crack (Kessler et al., 2012b). Os transtornos psiquiátricos podem funcionar como um preditor importante de recaída e não adesão ao tratamento (Duailibi et al., 2008). Estes dados reforçam o perfil de gravidade destes pacientes, e a importância da inclusão do acompanhamento psicológico e psiquiátrico para os pacientes nas CTs, o que nem sempre acontece.
Quanto aos problemas de saúde física, o problema respiratório crônico possivelmente é uma consequência do uso prolongado da cocaína fumada. As demais doenças relatadas também foram descritas também em outro estudo (Domingos, 2012). Por outro lado, foi baixo o número de pacientes infectados pelo HIV, resultado também observado em um estudo com amostra de pacientes de um CAPS AD (Domingos, 2012). Alguns autores sugerem que devido ao baixo nível socioeconômico, os usuários de crack tendem a trocar sexo por droga, tendo como consequência uma alta taxa de HIV (Duailibi et al., 2008; Pechansky et al., 2006). Contudo, no presente estudo a amostra não era composta por indivíduos de baixo nível socioeconômico, e poucos relataram ter se envolvido com prostituição, o que pode explicar, em parte, esta diferença. Não é possível desconsiderar uma subnotificação dos casos de HIV, já que nem todos os indivíduos passaram por avaliações médicas. A prática de exames laboratoriais não é uma rotina em todas as CTs e não é um procedimento obrigatório segundo as leis que regulamentam as CTs (Resolução de Diretoria Colegiada [RDC], 2011).
A maioria dos pacientes, tanto homens quanto mulheres, apresentou histórico e envolvimento recente com atividades ilegais, corroborando outros estudos sobre a presença importante de antecedentes criminais entre usuários de crack (Garcia et al., 2012; Guimarães et al., 2008; Horta et al., 2011). Os homens apresentaram maior histórico de problemas com a justiça, como maior taxa de prisão, especialmente por porte e venda de drogas, e envolvimento com crime violento. Porém, ambos os sexos se comportaram de maneira semelhante adotando um considerável envolvimento recente com atividades ilegais das mais diversas naturezas. De acordo com Oliveira e Nappo (2008), o usuário de crack se envolve em atividades ilícitas devido à fissura pela droga que provoca uma busca incessante pela mesma e a realização de atividades ilícitas advém da falta de recursos financeiros para a aquisição do crack. Em estudo realizado por estes autores em São Paulo, metade das mulheres usuárias de crack relataram ter se prostituído em troca da droga. Em nosso estudo, poucos indivíduos envolveram-se com prostituição. Homens e mulheres parecem ter elegido outras fontes ilegais como recursos para obtenção da substância, como furto, roubo e ameaças de agressão com ou sem arma.
A alta prevalência de usuários que viveram situações de violência confirma o encontrado em outros trabalhos com amostras clínicas no Brasil (Horta et al., 2011; Kessler et al., 2012b). Conforme a literatura (Bastos & Bertoni, 2014), as mulheres sofreram em maior proporção abuso sexual, embora os homens também o tenham relatado. Os homens, por outro lado, estiveram mais presentes em situação de risco de vida. Um estudo demonstrou que pacientes em tratamento para abuso de substâncias estão particularmente envolvidos em situações de violência (Murray et al., 2008). É possível que grande parte das situações relatadas sejam decorrentes do uso de drogas na rua, do envolvimento com o tráfico de drogas, roubo e agressão relatados ou de situações precedentes de vulnerabilidade social e familiar a que muitos usuários de drogas são expostos.
Os pacientes das CTs estudadas pertencem à classe média, com suporte familiar e muitas vezes são sustentados por eles. Domingos (2012) também encontrou maior nível de suporte social e familiar entre usuários de crack do que de cocaína em pó em atendimento em um CAPS AD. A maioria dos indivíduos da amostra morava com os pais, enquanto poucos informaram que viviam na rua, ao contrário do encontrado no levantamento de Bastos e Bertoni (2014). Considerando que a maioria informou ter sido encaminhado para o tratamento por familiares, amigos ou por si próprio, estes resultados podem indicar que o suporte familiar esteja associado a chegada ao tratamento em CTs, embora mais estudos sejam necessários para investigarem esta associação. Por outro lado, ficou evidente que o nível de conflito com as pessoas com quem convivem também foi elevado em ambos os sexos. Como em outro estudo (Garcia et al., 2012), grande parte dos usuários relatou conviver com algum familiar ou amigo íntimo que também faz uso de drogas, sendo maior entre as mulheres. Kessler et al. (2012b) encontraram médias elevadas nos escores de problemas familiares entre 293 usuários de crack em tratamento avaliados pelo ASI 6. Abordagens de tratamento que incluem o sistema familiar são de extrema importância para a população usuária de drogas e têm sido amplamente discutidas (Schenker, & Minayo, 2004; Silveira & Silva, 2013). Alguns estudos apontam a importância de programas de prevenção de uso de drogas com o amplo envolvimento da família (Silva, & Silva, 2006).
Por fim, cabe destacar que o perfil da amostra feminina em tratamento nas CTs é semelhante aos estudos especificamente com mulheres, em que se diferenciaram dos homens em tratamento nas CTs por maior relato de depressão, suicídio, uso de cigarro, histórico de abuso sexual, e problemas com os filhos. O perfil dos homens em tratamento nas CTs, por sua vez, diferenciou-se em relação às mulheres por maior prevalência de problemas com a justiça por atividades ilegais, especialmente relacionados a drogas e violência, e também por maior exposição a situações de risco de vida (Limberger et al., 2016, Pedrosoet al., 2013). É fundamental que tais características sejam consideradas no tratamento nas CTs.
Considerações finais, limitações e estudos futuros
Este estudo trouxe originalidade, considerando a falta de estudos empíricos sobre o perfil e prevalência dos pacientes atendidos nas CTs no Brasil. Os resultados mostram que houve algumas especificidades entre os gêneros, mas que, de um modo geral, os usuários de crack necessitam de intervenções médicas e psicossociais variadas, o que nem sempre ocorre nas CTs. Os resultados apresentados são relevantes considerando que são raras as CTs femininas ou outros serviços exclusivamente para mulheres usuárias de drogas no Brasil. Além disso, a maioria dos estudos populacionais e com amostras clínicas sobre o tema são dedicados à população masculina.
Os dados encontrados fornecem uma melhor compreensão sobre as necessidades da população atendida por esta modalidade de tratamento recém-incluída no SUS. Porém, não são suficientes para ilustrar e direcionar o caminho de seu papel nas atuais políticas públicas de enfrentamento do uso de crack e para usuários de crack, álcool e outras drogas. O acesso às CTs e a variedade do tratamento ofertado estão entre as dificuldades de realização de estudos sobre a população e a efetividade do tratamento. Os estudos de perfil dos usuários de crack, ainda que incipientes, contribuem para a tomada de decisões acerca do direcionamento das políticas públicas para usuários de drogas de forma a adequar e melhorar o acesso e a qualidade do tratamento para os que necessitam. São necessários mais estudos para avaliação de perfil em outras localidades e avaliação do tratamento ofertado, principalmente pelas CTs credenciadas pelo SUS.
Este estudo teve como limitação o reduzido tamanho da amostra, principalmente de mulheres. A seleção das CTs por conveniência também não permitiu a generalização dos resultados.
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Endereço para correspondência:
Tatiana Silveira Madalena
tatianamadalena2013@gmail.com
Laisa Marcorela Andreoli Sartes
laisa.sartes@gmail.com
Submetido em: 07/02/2015
Revisto em: 12/02/2018
Aceito em: 03/03/2018