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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro 2018
ARTIGOS
Conselho tutelar não se escreve com maiúscula
Tutelary council must not be written with capital letters
Consejo tutelar no se escribe con mayúscula
Estela Scheinvar
Docente. Departamento de Educação e Programa de Políticas Públicas e Formação Humana. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). São Gonçalo. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Dentre as disputas em torno da lei "Estatuto da Criança e do Adolescente" está a luta por descriminalizar algumas situações provindas da pobreza, retirando-as do Poder Judiciário e destinando-as a outros serviços de assistência e de reivindicação de garantia de direitos. Uma proposta que busca produzir deslocamentos com a implantação do conselho tutelar: uma governamentalização da pobreza que dá visibilidade à conjugação dos dispositivos de poder da soberania e da segurança. Embora pensadas para desjudicializar, as práticas do conselho tutelar têm lhe associado ao âmbito da Justiça, ao olhar punitivo presente em uma sociedade que se estrutura pela perspectiva jurídica, distanciando-se da maior parte dos prestadores de serviços, o que é visível, inclusive, na escrita dos textos, ao ser diferenciado dos órgãos e estabelecimentos do Poder Executivo por ser referido com o uso de letras maiúsculas, "Conselho Tutelar", como querem os órgãos do Poder Judiciário.
Palavras-chave: Conselho tutelar; Judicialização; Michel Foucault.
ABSTRACT
Among the disputes around the law "Child and Adolescent Statute" is the struggle for the decriminalization of some situations arising from poverty, taking them off the Judiciary Power, and destining them to other kind of assistance services, or to services that claim for the rights guaranty. This is a proposal that seeks to produce displacements with the implantation of the tutelary council: a governamentalization of poverty that turns visible the conjugation of power devices of sovereign and security. Although initially proposed to dejudicialize, the practices of the tutelary council have associated it to the juridical sphere, to the punitive approach present in a society that structures itself through the juridical perspective, distancing itself from the bigger part of the service providers; this is visible even in the writing of the texts, when it is referred in a different way in relation to the Executive Power organisms, using capital letters: "Conselho Tutelar", as demanded by the Judiciary Power organisms.
Keywords: Tutelary Council; Judicialization; Michel Foucault.
RESUMEN
Entre las disputas en torno de la ley "Estatuto del Niño y del Adolescente" está la lucha por descriminalizar algunas situaciones provenientes de la pobreza, retirándolas del Poder Judiciario y destinándolas a otros servicios de asistencia y de reivindicación de la garantía de derechos. Una propuesta que busca producir desplazamientos con la implantación del consejo tutelar: una gubernamentalidad de la pobreza que da visibilidad a la conjugación de los dispositivos de poder soberano y de seguridad. Aun cuanto fuera propuesto para desjudicializar, las prácticas del consejo tutelar lo han asociado al ámbito de la justicia, a la mirada punitiva presente en una sociedad que se estructura por la perspectiva jurídica, distanciándolo de la mayor parte de los prestadores de servicios, lo que es visible inclusive en la escritura de los textos, al ser referido de forma diferenciada de los órganos y establecimientos del Poder Ejecutivo, con el uso letras mayúsculas: "Consejo Tutelar", como quieren los organismos del Poder Judiciario.
Palabras clave: Consejo Tutelar; Judicialización; Michel Foucault.
Governo e garantia dos direitos da criança e do adolescente
Ao ler na minha tese de doutorado "Conselho Tutelar" com as iniciais em letra maiúscula, Célia Linhares, minha orientadora, me perguntou: "Por que das maiúsculas? O que tem esse estabelecimento diferente de uma escola para merecer esse tratamento?". Uma observação aparentemente de ordem gramatical que, entretanto, como toda análise da Mestra (esta, sim, com maiúscula), nos obriga a pensar nas forças que compõem as relações e o modo como estamos implicados nelas.
A proposta de criação do conselho tutelar é a expressão da disputa entre diferentes modos de subjetivação presentes na governamentalização da pobreza. Até a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei Nº 8.069, 1990)), o Poder Judiciário era o único serviço previsto na estrutura do Estado brasileiro para atender demandas referentes à relação com os menores de 18 anos, que não falam da necessidade de dirimir conflitos interpessoais (como ocorre na Vara de Família) - por mais que eles também existam - mas da situação de pobreza. À diferença das demais áreas do Poder Judiciário, o atendimento destinado aos menores de 18 anos se caracterizou por lidar com situações "dos pobres". Estranhar essa prática foi um movimento de desnaturalização da pobreza como "caso de polícia" e "problema para a justiça"; de desnaturalizar a pobreza como situação a ter como destino uma sentença e uma punição, olhando para a sua produção e para o enfrentamento das suas consequências como uma responsabilidade coletiva e não a ser dirimida por uma "Corte".
Abordada a pobreza como questão de segurança e, em especial de infração penal, como registra Brito, "Por volta de 1930, começa-se a mencionar a relevância de circunstâncias sociais, econômicas e emocionais na determinação da delinqüência juvenil" (Brito, 2003, p. 77). O mesmo não ocorre no discurso sobre a situação de famílias cujas vidas convertem-se em processos do Tribunal de Justiça, incorporando a condição socioeconômica como algo iniludível. A leitura dos processos do Juizado de Menores (1924-1990) apresenta indicadores sociais que deixam claro que, no setor do Poder Judiciário dedicado a pessoas com menos de 18 anos, é a vida de crianças e adolescentes pobres, das famílias pobres, desprovidas de recursos para conduzir-se de forma privada, que é decidida por meio de processos, sem a presença de um advogado particular que as defenda (Nascimento, 2002). Ao estudar os processos não se percebe, entretanto, um incômodo com a ação do Estado que age para encaminhar a situação que chega como um conflito legal, sem qualquer estremecimento em relação aos modos repetitivos que a intervenção pública adota na vida de alguns pobres. As práticas, dentre as quais os dizeres nos processos, se repetem com confortável monotonia.
O ECA, Lei no 8.069 de 1990, que substitui o Código de Menores de 1979 (por sua vez uma atualização do primeiro Código publicado em 1927), é a expressão da luta para retirar do Poder Judiciário algumas situações provindas da pobreza, destinando-as, sem a figura do mandato judicial, aos serviços de assistência e à reivindicação por direitos. Um pensamento que convoca também o Poder Executivo e o Poder Legislativo, mas não por meio de sentenças, entendendo que, em alguns casos, em vez de julgar, cabe ao Estado prover as condições necessárias ao enfrentamento à condição de pobreza. Oferecer recursos, tais como serviços e espaços, ou produzir movimentos para garantir o que se entende como direito, revendo legislações, dotações orçamentárias, prioridades etc., passa a ser atribuição legal prioritária, na expectativa de que as rotinas do Estado garantam os direitos de crianças e adolescentes. O ECA emerge como uma lei que propõe que não sejam encaminhadas ao tribunal muitas das situações que até então apenas tinham esse serviço como destino; em termos legais deixa de considerar delito algumas estratégias de sobrevivência dos pobres e certos conflitos derivados da impossibilidade de incorporar-se às cadeias de consumo material, que em muitos casos é uma condição para o enquadramento nos moldes de vida institucionalmente normalizados. Embora haja um efeito diretamente vinculado àqueles que sempre foram objeto dos processos menoristas, esta nova lei não se destina a alguns (os definidos no Código de Menores como "os menores"), mas a todos os definidos como crianças e adolescentes.
Sob tal perspectiva são estabelecidas legalmente faixas etárias para crianças e adolescentes, em função das quais se determinam os encaminhamentos. No caso dos adolescentes (de 12 a 17 anos) que não são enquadrados como autores de infração penal e em todas as situações das crianças (de 0 a 11 anos), inclusive nos casos de infração penal, os grupos que defendiam no fim da década de 1980 uma abordagem que não tivesse como destino um juízo, propõem formas de ação do Estado fora do âmbito do Poder Judiciário, induzindo um olhar para a condição de pobreza não pela perspectiva punitiva. Há uma recusa às estratégias centradas na retirada dos filhos, por meio de guarda, internação e adoção, frente às quais novos modos de governar os pobres emergem. Não que se propusesse erradicar as práticas judiciárias, o olhar judicializado e muito menos a pobreza. O debate orientava-se à construção de um espaço em que fossem discriminadas as situações a serem abordadas por meio de processos jurídicos, incentivando a construção de outras estratégias para enfrentar a condição de pobreza. Antes ou invés de tornar-se um processo jurídico, as ocorrências que não são direta e explicitamente enquadradas na lei teriam que ser analisadas para construir, em cada atendimento, os limites do que se afirma como do âmbito do Judiciário e do que se assume como objeto de outros tipos de estratégias de governo.
Governar na perspectiva pastoral - a partir dos estudos de Michel Foucault - é uma prática de poder que tem "por objetivo a conduta dos homens": conduzir as condutas dos outros ou governar-se a si próprio. Em suas palavras, "o pastorado é um tipo de poder bem específico que se dá por objeto a conduta dos homens [...], por instrumento os métodos que permitem conduzi-los e por alvo a maneira como eles se conduzem, como eles se comportam" (Foucault, 2008a, p. 256). Entender o exercício do poder como "um conjunto de ações sobre ações possíveis" (Foucault, 2010, p. 288) é um prisma através do qual podemos pensar os ajustes que a lei de 1990 propõe para delimitar e melhor controlar campo e sentido da ação da população, certamente com maior ênfase naqueles que são produzidos como ameaçadores. Ao analisar práticas pautadas no Código de Menores de 1979, Passetti (1986, p. 2) afirma que, "pelos discursos de especialistas institucionais se transforma o menor oriundo de famílias consideradas desorganizadas (proletárias) em menor potencialmente infrator". Ou seja, o infrator ou o potencialmente infrator é subjetivado pelas práticas sociais como um sujeito de conhecimento e, nessa medida, uma verdade, operacionalizada por técnicas de governo orientadas mais a fazer funcionar uma máquina de controle que a enfrentar os que são definidos como opositores da ordem e uma ameaça social. Pensando a política dos direitos da criança e do adolescente, "poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado" (Foucault, 2010, p. 293), sustentadas em verdades: "A construção de verdades permanece centralizada no Estado, ancorada em avaliações científicas encontrando, no princípio universal da lei, o dispositivo mais eficaz para a manutenção da ordem" (Passetti, 2003, p. 211).
Para Foucault, a ideia de infração que prevalece em nossa cultura foi inventada pelo pensamento medieval (2008b, p. 66), substituindo as noções de crime ou dano, com suas perspectivas pessoais, imediatas. À diferença destas, infração adquire um sentido difuso de contravenção, sugerindo atingir não só à pessoa diretamente lesada, mas a toda a sociedade, às autoridades, ao Estado. Mais do que enquadrar a infração em uma definição, ela passa a constituir um domínio de saber, na medida em que o infrator vira uma produção subjetiva, perdendo a sua referência histórica e naturalizando a pessoa sob tal condição, para muito além da sua relação com a lei. Longe de ser natural, o infrator é produzido, definido por ações que, institucionalizadas, viram rotina, deixando de ser problematizadas por aqueles que as executam. O sentido pedagógico das práticas de correção torna o profissional, o especialista, o gesto caridoso orientado a salvar, a reformar ou a garantir direitos, um modo de vigiar as condutas. No dizer de Foucault, no curso "Segurança, Território, População", governa-se por meio de técnicas, de mecânicas (2008a), que fazem parte de jogos estratégicos produtores de sujeitos, essencializados quando destituídos da sua perspectiva histórica.
São as práticas judiciárias as que definem um infrator, constroem o delinquente e, com ele, toda uma aparelhagem para afirmá-lo nesse lugar que produz a necessidade de intervir em nome da sua correção e da segurança social. Compreendido por uma série de estratégias visíveis, oficiais, espontâneas ou imperceptíveis, o discurso que governa produzindo o infrator (mesmo que em potencial) tem a potência de uma verdade. Não é o discurso que tecnicamente é verdadeiro, mas é a ordem discursiva que confisca toda possibilidade de olhares múltiplos para abordagens singulares, concentrando o poder do Estado ao controlar o lugar e o modo como se fará justiça. Por mais que alguns conceitos possam ser revistos e outras técnicas de governo constituídas, ao que assistimos no Brasil do fim do século XX, mesmo com a mudança de paradigma que determina direitos para a criança e o adolescente, está longe de ser o estremecimento desse lugar de verdade atribuído ao Poder Judiciário como definidor do sentido da vida.
Articulado por leis, o universo judicializado se apoia em relações de saber, ditas científicas e assumidas como verdadeiras, em nome do bem comum. São as pessoas as que são julgadas por meio de concepções morais, antes de pensar nas circunstâncias da sua ação e nos códigos legais que as enquadra. Uma moradora de rua que faz opção de não ir para abrigos ou de recusar as possibilidades que o discurso dos especialistas lhe oferece é interditada tão logo caia nas mãos dos órgãos de assistência, como no caso de uma mãe que constituiu uma rede de proteção nas ruas em que morava e, ao ser retirado à força o seu bebê, ela é abordada como uma pessoa com distúrbios psiquiátricos, pela "violência da sua reação". Um modo de governo pautado em uma concepção de sociedade atomizada que requer coerção, como propõe o pensamento positivista, para garantir coesão harmoniosa. Pensamento sustentado na crença em um saber definido como científico e, portanto, dotado da verdade necessária para ser seguido por aqueles que queiram escapar da condição de infrator, por não seguir a norma e ser visto como uma ameaça social. Questão de opção. Demanda por assujeitamento a um modo padronizado sobre o qual não se pensa, mas ao qual se adere, sob a ameaça da intervenção do Estado, por meio de figuras que operam pela lógica do tribunal, como efeito próprio de relações de verdade institucionalizadas, ainda que em espaços extrajudiciais.
Esvai-se a figura do indivíduo tanto no caso de alguém que é definido como infrator, quanto no caso do profissional que conduz tal enquadramento. Tem-se uma produção do sujeito infrator, como elemento constituinte do sujeito Estado, que habita a todos, e se intensifica naqueles que consideram conduzir-se pela vida certa. Não é apenas o Juiz que enquadra. Muito antes e depois de ele receber o processo e julgar, há um exército de profissionais que lhe antecedem e sucedem, nos diversos setores do tribunal, na escola, na polícia, no sistema de saúde, nos centros de assistência social ou em qualquer outro estabelecimento que, como parte do Estado, sente-se responsável pela ordem social, pronto a proteger a sociedade. Todo juízo depende de um aparelho de correção que atua por fora do campo judiciário para montar o processo ou para executar a sentença. Mecânica que invisibiliza a singularidade de um acontecimento. Garantir a segurança da sociedade tem sido a tarefa do Estado, desde o século XVIII, e no Brasil com maior domínio no século XIX, tendo como suporte maior o Poder Judiciário, sem localizá-lo em uma pessoa, mas em um sistema pormenorizado, que dá a impressão de dedicar-se a cada situação como se fosse única, dado o refinamento dos procedimentos, embora opere de maneira centralizada com a força do Estado, por meio de técnicas de governo instituídas. Ao Poder Judiciário foi atribuída a responsabilidade de cuidar da sociedade não só dando destino aos atos delituosos, mas prevenindo-os. Justiça como parte do Estado e não como algo acima ou ao lado dele, para além de qualquer técnica jurídica empregada por diversos aparelhos.
Retirando qualquer véu de neutralidade ou tecnicista, a experiência brasileira entre tribunais que mandam prender e sistemas penitenciários que dizem não ter capacidade física para aprisionar um contingente dito excessivo, mostra que é uma relação sem maior tensão. Administrativa. Continua-se mandando prender no Brasil, e continua-se empilhando gente nas condições mais violentas imagináveis, sem que haja qualquer movimento constrangedor significativo, de parte a parte. São os definidos como infratores os considerados problemáticos e merecedores de qualquer grau de subjugação. Há um acoplamento entre as práticas judiciárias e as práticas sociais centradas no encarceramento, simultâneo à fértil retórica sobre a inadequação das condições necessárias para aprisionar e o estado real com que isto acontece. Não há movimentos contundentes fora da prisão contra o Estado, recusando o modo como trata tais pessoas. Não há constrangimentos efetivos sobre o Poder Judiciário, cujas práticas têm como horizonte o aprisionamento, sabendo-se que as pessoas são enviadas a um sistema prisional saturado, que usa cotidianamente como uma das técnicas diletas o suplício. Não são pessoas as que estão em questão. São infratores, por isso presos; são presos, porque infratores. Defende-se a ordem, salva-se à sociedade. Saberes das mais diversas especialidades reunidos dentro do sistema de justiça ou fora dele, executando suas sentenças, vão se conectando menos pelas suas especificidades profissionais e políticas (serviços de saúde ou assistência social, legisladores, conselheiros tutelares, equipes pedagógicas escolares etc.) e mais pela naturalização do julgamento como mecanismo de organização social.
No contexto do enfrentamento à ditadura civil militar de 1964-1985 e da reinstalação da República, a então nova Constituição Federal de 1988 organizou as políticas sociais por meio da institucionalização do movimento social organizado, da chamada sociedade civil organizada, que esteve presente disputando os sentidos inscritos na Carta Magna que saudava os novos tempos. Em relação à política para a criança e o adolescente, o artigo 227 da Constituição Federal estabelece as diretrizes que o ECA (Lei Nº 8.069, 1990) veio a regulamentar. Destaco aqui dois elementos em relação a essa Lei: a discriminalização da pobreza, por meio da condição universal de sujeitos de direitos para crianças e adolescentes, e a convocação à organização da sociedade civil, por meio de conselhos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, com a participação paritária de representantes do governo e dos foros da sociedade civil (Scheinvar, 2004). Em termos práticos, significa que, antes de enviar as pessoas a julgamento, cabe ao Estado garantir por meio das políticas públicas os direitos que estejam sendo violados, para encaminhar ao Poder Judiciário apenas situações definidas como necessárias de serem julgadas. Com base nessa ideia é inventado, no ECA, um novo equipamento social, uma nova tecnologia de governo, fora da alçada do Poder Judiciário, com autonomia em relação ao Poder Executivo, pois que vinculado à sociedade civil organizada: o conselho tutelar.
Conselho tutelar
Legalmente, o conselho tutelar é um "órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente", instalado nos municípios, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local para mandato de 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) recondução, mediante novo processo de escolha" (Lei Nº 8.069, 1990, arts. 131 e 132). Uma proposta que causou enorme disputa legislativa pela perda de poder prevista para os Juizados, é verdade, mas também pelo estremecimento de entregar à sociedade civil representada por pessoas sem qualquer certificação acadêmica, sem ter necessariamente formação universitária, a responsabilidade de atender e encaminhar as demandas que sempre foram destinadas ao âmbito judiciário, retirando da alçada dos especialistas togados e de especialistas representantes da administração pública, o destino das vidas mantidas na pobreza1. Um movimento que foi vivido como um modo de desjudicializar as relações definidas como conflituosas, caracterizadas pela condição de pobreza.
Temores, de um lado, de que a noção de direitos que funda o ECA liberalize a coação aos que se desviem da norma e, de outro lado, de que a perda da soberania "do Juiz" - de fato, do sistema de justiça com todos os aparelhamentos que o compõem - significasse o caos provindo da falta de profissionalismo. Falava-se do ECA como se fosse um livro aberto aos fluxos poéticos da vida livre e não como um código legal com seu viés restritivo e punitivo. Certamente, as chamadas "medidas de proteção" do ECA (Lei Nº 8.069, 1990, Título II) abriram horizontes para agir sob formas espontâneas, mais próximas de recursos e possibilidades das famílias enquadradas na lei, e para reivindicar políticas públicas. Por sua vez, o fato de os conselheiros tutelares terem que ser moradores da região onde atuam e terem que ter alguma experiência na área da criança e do adolescente para se candidatarem ao cargo, foi uma aposta na aproximação entre os que executam a lei e os enquadrados nela, bem como na mobilização da sociedade civil para reivindicar os recursos necessários à garantia dos direitos consagrados em lei. Uma proposta ameaçadora aos que defendiam os velhos modos de governar e cheia de entusiasmo, desafios, apostas, para os que queriam ver nascer outras práticas para enfrentar a pobreza ou, pelo menos, para lidar com ela. Um momento de grandes expectativas que não necessariamente corresponderão às práticas que estavam por vir.
Acoplada aos dispositivos, soberano e disciplinar, de governo, Foucault (2008a) registra, a partir do século XVIII na Europa, a emergência do dispositivo de segurança que, conjugado aos primeiros, constrói formas de exercício de poder com novos matizes. Dentre os elementos a destacar, para efeitos da presente análise, está a governamentalidade por meio de um novo sujeito que é a população e os mecanismos com os quais ela é construída e conduzida - tornando-se sujeito e objeto de governo - tais como o cálculo com base em estatísticas que definem indicadores para medir o grau de desvio dos parâmetros estabelecidos como ideais, construindo a ideia de risco e fundamentando a ideia de prevenção. Produz-se com a estatística, no contexto da noção de população, um sujeito político central, que é o desviante, o perigoso. Este é um dos novos sujeitos, com as mecânicas que lhe são correlatas, que compõe tecnologias que, para Foucault, constituem um biopoder, por pautar-se em "mecanismos que têm por função modificar em algo o destino biológico da espécie" (2008a, p. 15), por meio, entre outras características, da transformação no sentido da normalização.
De acordo com suas pesquisas, Foucault entende que há diferenças no modo como opera a normalização por meio do dispositivo disciplinar e do dispositivo da segurança. No primeiro caso, diz ele que "a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza" (Foucault, 1987, p. 153). Trata-se da centralidade do adestramento que delimita o normal e o anormal, e que Foucault, no curso de 1978, diz que "preferiria dizer, a propósito do que acontece nas técnicas disciplinares, que se trata muito mais de uma normação do que de uma normalização" (2008a, p. 75). Ressalva feita no contexto de um curso (Segurança, Território, População) dedicado a apresentar e trabalhar o dispositivo da segurança, a partir da ideia que há diferentes "curvas de normalidade, e a operação de normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em relação às outras" (2008a, p. 83). Não que o dispositivo da disciplina ceda. Ao contrário: os modos de governo que operam não só pela disciplinarização própria aos estabelecimentos totalitários como cárcere e internato, mas também no meio aberto, com abordagens calculistas em função das noções de risco-periculosidade-prevenção, expressa a existência de condições para a ampliação das mecânicas de controle.
Alarga-se menos a racionalidade que define a normalidade e mais o controle que incorpora alguns graus do que é rotulado como diferente, para constrangê-lo em seu próprio funcionamento, não reprimindo-o, mas incitando-o em um "jogo no interior das normalidades diferenciais". Demarcar curvas de normalidade significou a proliferação de diagnósticos médicos e psicológicos, a invenção de síndromes, doenças, tudo isso usando a classificação das chamadas diferenças, que nada mais são que enquadramentos que definem as pessoas por características como tamanho, funções físicas (por exemplo: a cegueira e as múltiplas formas da chamada baixa visão, os vários tipos de audição até a perda da audição, as inúmeras síndromes ditas neurológicas), construindo um cardápio inesgotável que convoca especialistas e subespecialistas, justificando submeter às pessoas e às suas famílias a uma ordem de controle para deixá-las no "ponto certo" do gráfico das "normalidades": "a operação de normalização consiste em jogar e fazer jogar umas em relação às outras essas diferentes distribuições de normalidade" (Foucault, 2008a, p. 83).
Na década de 1990, no Brasil, as políticas relacionadas à área da criança e do adolescente dão visibilidade sobretudo à conjugação de dois dispositivos de poder: 1) o soberano, fortalecido com a definição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, colocando todos, não só os "irregulares" - como acontecia com o Código de Menores de 1979 - na mira do Poder Judiciário, em adesão a um contrato com o Estado, legalmente instituído e naturalizado, do qual ninguém escapa e 2) a segurança, sustentada na população como
um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e regularidades até nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos e a propósito do qual pode-se identificar certo número de variáveis de que ele depende e que são capazes de modificá-lo (Foucault, 2008a, p.97).
Condições subjetivas dadas pela produção soberana do sujeito de direitos, do cidadão, desse sujeito em quem se identifica, "o universal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos" - como diz a definição citada - articulando o governo da população. "Sujeito de direito", "cidadão", noções universais sustentadas na condição de liberdade nos moldes de um mercado que estabelece relações de troca. Mercadorias em equivalência, quando se afirma só ser possível ter direitos de haver deveres: "toma lá, dá cá". Lógica naturalizada quando considerado que os intercâmbios necessários à sobrevivência têm que passar pela troca material (mercado) e pela troca de comportamentos morais-legais (dever), como imperativo para o "merecimento". Um sistema amarrado que garante que a sociedade civil devidamente normalizada realize a vigilância necessária para fazer funcionar um ordenamento que passa a estar em todos, mesmo sem diplomas, togas ou escritórios pomposos, como acontece com o trabalho de conselheiros tutelares. Enfático ao registrar as artimanhas de governo do capitalismo, Deleuze (1992, p. 213) afirma que "Não existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal cujas sedes são os Estados, as bolsas", o que existe no capitalismo é "uma fantástica fabricação de riqueza e de miséria" e que "os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as 'alegrias' do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente".
Dois dispositivos, da soberania e da segurança, que se acoplam trazendo características novas à política para a infância e a adolescência no raiar do século XXI. Técnicas de governo como a periculosidade (Foucault, 2008a) e o risco (Castel, 1987) têm como efeito uma prática profissional vigilante e punitiva, como tem se confirmado na história dos conselhos tutelares. Muito próxima do serviço prestado por um tribunal judiciário. Sem a necessidade de uma preparação específica para aplicar uma lei, a lógica da segurança se espraia pelos corpos que ao uníssono compõem o Estado. Nesse movimento foi possível outorgar legalmente poderes à sociedade civil para que assumisse os conselhos tutelares, sem exigências em termos de formação técnica. Esse é o cidadão, defensor e executor da lei, de um instrumento de governo com conotações de classe, raça, gênero, orientada a preservar certa moral, ordem e hierarquia que no Brasil tem significado não só a perpetuação da desigualdade social, mas formas brutais de governar os pobres.
A forma econômica aplicada à conduta dos sujeitos busca aperfeiçoar a ação destes a fim de racionalizar o cotidiano. O princípio que rege essa forma é o de que a ação dos sujeitos não seja aleatória, devendo sempre responder da maneira mais sistemática possível às variáveis que o meio apresenta. Tal racionalização estabelece em cada conduta um fim desejado e, desse modo, busca criar estratégias que racionalizem os recursos existentes para se chegar ao previsto (Guareschi, Lara, & Adegas, 2010, p. 6).
Frente a uma vocação totalizadora trazida pela disciplinarização soberana, o homem livre da economia liberal que demanda circulação permanente de mercadorias, dentre as quais a força de trabalho, requer ser controlado e autocontrolado por meios que extrapolam o adestramento. Práticas cujos efeitos estão mais próximos de uma vocação universal, como bem define Deleuze (1992, p. 216): "Num regime de controle nunca se termina nada". Certamente que sempre há escapes, sob todos os modos de controle, mas a vocação livre trazida pelas demandas do capital, que requer intensidade de circulação do mercado, produz técnicas para além do espaço fechado, que têm como efeito a adesão. Aderir, inserir, participar, incluir enfim, tornaram-se palavras de ordem nos modos de organização social. Grupos organizados, classes específicas, tratamentos direcionados obrigam o enquadramento por opções religiosas, diagnósticos médicos, avaliações pedagógicas, posições políticas, definições de gênero, atividades esportivas, práticas artísticas, reconhecimento étnico, entre tantas outras classificações possíveis. Modos de governar pautados por identidades associadas à conquista de direitos, à autonomia para ser, pensar e estar de acordo com um desejo que se pensa próprio e livre, dando fluidez aos controles pautados em uma moral atada pela ordem jurídica. Atender uma demanda no conselho tutelar é um ato de adesão a um modo de controle, à moral que faz construir uma lei e se atualiza todos os dias por meio da ação pontual em cada atendimento, tendo como horizonte o tribunal.
Acusado de ter relações sexuais com uma adolescente de 13 anos, em torno do ano de 2005, um homem de mais de 40 anos é convocado por um conselho tutelar de Niterói, cidade do estado do Rio de Janeiro. Para espanto moral dos que atenderam o casal, a adolescente afirma ter uma relação amorosa e sua família confirma os constrangimentos frente aos olhares que lhe são endereçados, apesar da idoneidade do namorado. Inconformada com o que é lido como uma imoralidade, a equipe do conselho tutelar não encontra amparo legal para tutelar tal relação. Aos poucos, discussões com o mesmo conteúdo, trazidas pelas vigilantes equipes dos conselhos tutelares instalados nas cidades do Brasil, ganham relevo em nível nacional e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente conduz propostas para regular a idade permitida para haver relações sexuais, tendo sido aprovada, em 2009, a Lei no 12.015, conhecida como a lei do estupro a vulnerável, que define que qualquer relação sexual antes dos 14 anos é um estupro: "Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos" (Lei Nº 8.069, 2009).
Funcionar por meio de enquadramentos e ter a certeza que são as normas legais as que permitem ser livre e soberano são características de uma sociedade acelerada que abole o pensar como prática de cuidado e de construção de si. Vivemos tempos de um governo de si e daqueles que se assume como da responsabilidade do Estado - ou seja, de toda a população - pautados em normas, cuja aplicação tem como referência a sentença de um soberano e cujo funcionamento é inspirado na ideia de liberdade do capitalismo, sempre orientada pela violência necessária ao livre mercado. Neste marco vemos o crescimento da atuação e da força dos conselheiros tutelares.
Maiúscula
Um lugar de empreendedores. Potentes não só por governar, com mandato público, mas por fazê-lo julgando a vida dos outros para obedecer a lei que cria o conselho tutelar e empossa conselheiros, ou enviando as pessoas ao julgamento, reconhecido como superior, de um Juiz. De acordo com a fala de usuários do conselho tutelar e dos que se vêm sistematicamente subordinados à sua ação - como as equipes da escola -, ele é associado à chamada Justiça, a um órgão do Poder Judiciário, ou seja, à produção da verdade e à perspectiva punitiva que definem um julgamento, mesmo pertencendo à estrutura executiva do Estado. Tal associação não é um equívoco se tomada como um analisador2, que nos permite ler os efeitos que as práticas produzem, dentre as quais aqui elegemos a referência sistemática, com letras maiúsculas, ao "Conselho Tutelar".
Ao escrever os nomes dos três poderes centrais à estrutura do Estado brasileiro, "Poder Judiciário", "Poder Executivo" e "Poder Legislativo", o rigor gramatical demanda fazê-lo com letra maiúscula. Já os órgãos e membros de cada um não obedecem ao mesmo princípio, em particular no caso do Poder Executivo: escola, professor, enfermeira, delegacia de polícia, hospital etc. Curiosamente não é o que vemos acontecer nos trabalhos acadêmicos e na correspondência institucional em relação ao Poder Judiciário, quando Tribunal de Justiça, Juiz, Procurador, Promotor, por exemplo, são escritos com letra maiúscula. Entretanto, "conselho tutelar" tem sido escrito com maiúscula, sendo ele parte das atribuições executivas. Por que será? Que hierarquias estão inscritas nas letras que denominam os lugares? Como dito no início deste texto, não se trata de um problema gramatical, mas político.
A estrutura jurídica é fundamental à organização da sociedade liberal e tudo o que diga respeito ao que se entenda como da esfera do "Judiciário" ou se assemelhe a ela (no caso, o conselho tutelar) é assumido como um lugar de poder superior. É a percepção de uma esfera acima da maior parte dos estabelecimentos que prestam serviços, como a escola, os abrigos, os centros de assistência social, o hospital etc., pelo efeito determinante que tem na vida de todos - os que são atendidos por eles ou os que podem vir a ser atendidos: perante a "lei universal", todos! Recorrentemente surpreendem-se os conselheiros tutelares quando é dito que têm funções de polícia ou judiciárias, certos que as pessoas estão equivocadas e que devem ser esclarecidas, sobretudo com visitas escolares para conversar com os estudantes. Será um "equívoco" a ser esclarecido?
os analistas franceses da vertente socioanalítica preferem os efeitos às leis. Mediante tal privilégio, fazem decidida opção antipositivista: ao contrário da lei científica, em que o "ver" faculta o "prever" - preceito sintetizável pela fórmula "assim tem sido, assim será" -, o efeito está invariavelmente ligado à preservação, deliberada ou involuntária, de determinadas condições (institucionais) de efetuação! Efeitos são contingências repetidas, não legalidades universais às quais estejamos, sem escapatória, submetidos ou sujeitados (Rodrigues, 2002, p. 11).
Não é uma questão de legalidade. São efeitos das práticas, de "contingências repetidas". Temem a sua presença pelo poder que exerce sobre a vida dos usuários, à semelhança do temor ao poder da chamada "justiça", referindo-se a esse prestador de serviços gerido pela sociedade civil do mesmo modo como são referidos os órgãos do Poder Judiciário, com letras maiúsculas: Conselho Tutelar.
As possibilidades de ação do conselho tutelar, amplas e adaptáveis às condições dos locais em que atendem à população, dada a diversidade de encaminhamentos que a lei possibilita (representar junto ao Ministério Público, demandar vagas escolares, retirar uma criança ou um adolescente do meio familiar outorgando termo de responsabilidade a outra pessoa, encaminhar ao Juizado, solicitar averiguação policial, denunciar profissionais e estabelecimentos etc.), são a amplificação de poderes para muito além de um único lugar que, por excelência, tem a atribuição de julgar (o Juizado), proliferando pequenos tribunais: "os conselhos tutelares funcionam como tribunais de pequenas causas que distribuem advertências, sanções, encaminham denúncias, enfim, fazem o papel de Juízes e policiais das famílias e dos jovens sob a administração da própria comunidade" (Augusto, 2009, p. 18). Práticas judicializadas, de policiamento intenso, governamentalizando o Estado por meio de um exército que extrapola os tradicionais técnicos, os braços especializados, tradicionalmente localizados como corpo do Estado. A expansão das práticas de governo perde a forma vertical para alastrar-se para o seio da população, convertida em uma comunidade vigilante e vigiada ininterruptamente. Modos refinados de governar.
Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. O modo de relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e da aliança voluntária (que não podem ser mais do que seus instrumentos); porém, do lado deste modo de ação singular - nem guerreiro nem jurídico - que é o governo (Foucault, 2010, p. 288).
Em meio a tantas possibilidades de governo, a aspiração ao corpo do Juiz, como lugar da verdade e da justiça, outorga ao conselho tutelar um lugar de poder inconteste pelos efeitos que produz na vida das pessoas, distanciando-o dos estabelecimentos prestadores de serviços que não são associados aos poderes de justiça. O conselho tutelar tem uma gama importante de possibilidades para a sua atuação, mas o constrangimento próprio à ordem judiciária lhe caracteriza, não pela falta de entendimento por parte dos que o temem ou dos que o confundem com um órgão do Poder Judiciário: "O objeto não é senão o correlato da prática; não existe, antes dela". São as formas de governo as que se objetivam em relações a serem analisadas a partir de seus efeitos, já que "o governado eterno não vai além do que o que se faz dele, não existe fora da prática que se lhe aplica" (Veyne, 1982, p. 159).
Práticas constituídas por racionalidades advindas da moral religiosa que criminalizam a pobreza, associadas ao economicismo próprio ao capitalismo, em estreita relação com a subjetividade penal e com as práticas jurídicas pautadas na hierarquia sustentada na obediência, estão muito distantes do ideal de mobilização coletiva reivindicativa que inspirou a proposta de colocar a sociedade civil a atender as demandas de violação de direitos. Com efeito, a prática se fundamenta em objetivações, em múltiplas relações, atualizando "as virtualidades de sua época histórica" (Veyne, 1982, p. 162), no movimento de governar. Igualar-se ao corpo judiciário ou corrigir aqueles que temem a ação do conselho tutelar, afirmando que eles não entenderam o que ele faz, é um desejo de poder que foge ao exercício da análise das práticas - dentre as quais a enunciação escrita com letras maiúsculas - indicadoras de um tratamento solene a relações tratadas com reverência não por admiração, mas pela coação que obriga a submissão a seus atos. As letras maiúsculas são um analisador de um órgão gerido pela sociedade civil, que vota e é eleita, na crença em uma vida conduzida pela contenção, por sustentar sua organização na perspectiva jurídica, muito longe de um desejo de uma vida criativa e livre.
Referências
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Endereço para correspondência:
Estela Scheinvar
estela@uerj.com
Submetido em: 10/06/2018
Revisto em: 12/09/2018
Aceito em: 18/09/2018
1 "Art. 133. Para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, serão exigidos os seguintes requisitos: I - reconhecida idoneidade moral; II - idade superior a vinte e um anos; III - residir no município" (Lei Nº 8.069, 1990).
2 Analisador, neste texto, é entendido, a partir de Guattari (1972) e da socioanálise (Lourau, 1975), como um elemento que provoca rupturas em relação ao instituído, produzindo análises que afirmam que as relações podem ser abordadas por múltiplos olhares. Um conceito que rompe com a pretensão de objetividade e neutralidade, levando a pensar nas produções subjetivas presentes nas práticas.