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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i3p.80-97 

ARTIGOS

 

Arte, psicanálise e o impossível

 

Art, psychoanalysis and the impossible

 

Arte, psicoanálisis y lo imposible

 

 

Vivian Martins LigeiroI; Marco Antonio Coutinho JorgeII

IProfessora Substituta. Instituto de Psicologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIProfessor Associado. Instituto de Psicologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo principal problematizar as relações entre a arte e o conceito de impossível, o qual podemos depreender das formulações freudianas e lacanianas. Nosso eixo central de questionamento consiste em elucidar como a arte, utilizando-se de representações simbólico-imaginárias, pode transmitir e veicular algo do real, do irrepresentável. Para tanto, serve-se de uma revisão bibliográfica de autores do campo da psicanálise e do das artes, que possibilitam trazer à tona essa discussão. Num primeiro momento, realiza-se um breve estudo sobre o conceito de impossível nas teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan, desde as primeiras ideias de Freud sobre a sexualidade até a proposição lacaniana mais tardia sobre impossibilidade da relação sexual. Por fim, empreenderemos uma interlocução entre a impossibilidade concernente à relação sexual e algumas produções artísticas de Marina Abramovic para melhor vislumbrarmos o alcance dessas questões.

Palavras-chave: Arte; Psicanálise; Impossível; Real; Marina Abramovic.


ABSTRACT

This article aims to problematize the relationship between art and the concept of the impossible, which can be inferred from Freudian and Lacanian formulations. Our main target question is to elucidate how art can transmit and convey something of the real, the unrepresentable, using symbolic-imaginary representations. To this end, we will use a bibliographic review of authors from the field of psychoanalysis and the arts, which make it possible to bring this discussion to light. At first, a brief study of the concept of the impossible is made out of the theories of Sigmund Freud and Jacques Lacan, ranging from Freud;'s first ideas about sexuality to the later Lacanian proposition about the impossibility of the sexual relationship. Finally, we will undertake a dialogue between theimpossibility concerning sexual relationship and some artistic works by Marina Abramovic in order to better understand the scope of these questions.

Keywords: Art; Psychoanalysis; Impossible; Real; Marina Abramovic.


RESUMEN

El objetivo principal de este artículo es problematizar la relación entre el arte y el concepto de lo imposible, que podemos inferir de las formulaciones freudianas y lacanianas. Nuestro eje central de cuestionamiento consiste en dilucidar cómo el arte, mediante representaciones simbólico-imaginarias, puede transmitir y vehicular algo de lo real, de lo no representable. Con este fin, utiliza una revisión bibliográfica de autores en el campo del psicoanálisis y de las artes, que permiten plantear esta discusión.. Al principio, se realiza un breve estudio sobre el concepto de lo imposible en las teorías de Sigmund Freud y Jacques Lacan, desde las primeras ideas de Freud sobre la sexualidad hasta la proposición lacaniana más tardía sobre la imposibilidad de la relación sexual. Finalmente, entablaremos un diálogo entre la imposibilidad concerniente a la relación sexual y algunas producciones artísticas de Marina Abramovic para vislumbrar mejor el alcance de estas cuestiones.

Palabras clave: Arte; Psicoanálisis; Imposible; Real; Marina Abramovic.


 

 

Introdução

O presente artigo se apresenta como um desdobramento de nossa pesquisa de doutorado1, a qual teve como principal proposta investigar as relações entre a psicanálise e a arte tendo o real como o conceito articulador.

Seguindo esta perspectiva, o principal objetivo deste trabalho é apresentar algumas formulações lacanianas acerca do impossível - a maneira pela qual Lacan define o real a partir da década de 1970 -, lançando mão da produção da artista sérvia Marina Abramovic. Dessa maneira, delineia-se a primeira questão a ser considerada: como a arte se utiliza de representações simbólicas e imaginárias para trazer à tona o impossível e o irrepresentável?

Assim, realizaremos um breve estudo sobre o conceito de impossível, relacionado ao sexo, nas teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan, desde as primeiras ideias de Freud sobre a sexualidade até a proposição lacaniana da impossibilidade da relação sexual, ao longo da década mencionada. Por fim, empreenderemos uma interlocução entre a impossibilidade concernente à relação sexual e algumas produções artísticas de Marina Abramovic para melhor vislumbrarmos o alcance dessas questões.

Os impossíveis freudianos

Encontra-se bastante difundida a declaração de Freud acerca dos três ofícios impossíveis - governar, analisar e educar. Contudo, podemos depreender, de sua obra, que a dimensão da sexualidade também é delineada como algo que pertence a essa categoria. Lacan indica que podemos depreender um "dizer de Freud", dizer fundante da psicanálise, que toma como fonte os ditos do inconsciente. De acordo com Vincent (s. d.), em O aturdito, Lacan visa a restituir o dizer de Freud, já que o discurso da psicanálise só pode se constituir se fizer esta restituição, que ocorre a partir da experiência analítica. O dizer de Freud, portanto, infere-se de uma lógica do real, do impossível, escrita na fórmula "não há relação sexual" (Lacan, 1973/2003, p. 454).

Assim, os ditos de Freud sobre a sexualidade enunciam um dizer que aponta o impossível da relação sexual. A sexualidade, tema de suma importância na teoria freudiana, que perpassa toda sua obra, é marcada pelas noções da castração, bissexualidade, ausência da inscrição da diferença sexual no inconsciente e, sobretudo, pela característica inerente ao objeto da pulsão, o fato de ele ser totalmente variável, ou, no dizer de Lacan, "totalmente indiferente" (Lacan, 1964/1998, p. 159).

Freud utiliza como recurso as noções de atividade e passividade para dar contorno ao que existe de insondável na diferença sexual, mas ele próprio aponta os limites de tal bipolaridade. Em nota acrescentada em 1915 a seus Três ensaios, Freud admite

É indispensável deixar claro que os conceitos de "masculino" e "feminino", cujo conteúdo parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se decompõem em pelo menos três sentidos. Ora se empregam "masculino" e "feminino" no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico. O primeiro desses três sentidos é o essencial, assim como o mais utilizável em psicanálise (Freud, 1905/2010, p. 200).

Um dos aspectos que revela a constatação de Freud da impossibilidade de nomear o que são o homem e a mulher surge com o tema da bissexualidade. Esse tema, onipresente em seu longo diálogo epistolar com Fliess (Freud, 1896/2010; Porge, 1998), descrito na Carta 52, foi o que também causou desacordo entre os dois amigos (Jorge, 2005). Freud, contrariando a opinião popular de que um indivíduo ou é homem ou é mulher, demonstra que o sexo não é algo evidente. Sobre a questão da bissexualidade, Jorge afirma que:

A ideia freudiana da bissexualidade corresponde ao fato de que, não havendo inscrição da diferença sexual no inconsciente (falta da ordem do real), toda e qualquer escolha de objeto (simbólica e imaginária) será possível - seja a homossexual, seja a heterossexual. A bissexualidade representa a disposição possível em todo sujeito de fazer uma escolha hetero ou homossexual, uma vez que não há inscrição do Outro sexo (Jorge, 2005, p. 52).

O umbigo do sonho indica que no cerne mesmo do inconsciente estruturado como linguagem, em que a significação de seus derivados ruma ao sexual, localizamos um ponto em que tal significação se cerra, encontra seu limite. Em Interpretação dos Sonhos (1900a/2010), ao descrever o célebre Sonho da injeção de Irma, Freud (p. 132) afirma que "existe pelo menos um ponto em todo sonho no qual ele é insondável - um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido".

O próprio processo analítico esbarraria em um ponto de impossível, relacionado à castração, nomeado por Freud (1937/2010, p. 252) de "repúdio da feminilidade", ou seja, algo diante do qual a análise se detém e ganha a característica de ser interminável.

Ainda no que se refere à dimensão do impossível no âmbito da clínica psicanalítica, podemos fazer a conjectura de que Freud (1913/2010) já indicara que o analista, na transferência, colocava em cena a não relação sexual, na medida em que o próprio dispositivo analítico através do interdito da regra da abstinência entroniza a relação sexual como impossível.

O fracasso, portanto, asseguraria seu lugar nas análises e na própria psicanálise, em geral. Lacan (1974) afirma que é pela via do fracasso que a psicanálise vai triunfar, ou seja, por meio de uma constante renovação de sua relação com o real. Ao contrário da religião, que se esforça para triunfar sobre o real, a psicanálise renova seu vigor a partir da sustentação e manutenção do impossível.

Ao resgatar do Projeto de uma psicologia de Freud a noção de das Ding, no seminário sobre A ética da psicanálise Lacan anunciou pela primeira vez, em seu ensino, a ideia de impossibilidade, a qual se configuraria como um prenúncio de sua formulação mais tardia sobre a impossibilidade da relação sexual.

A "impossibilidade topológica" de das Ding: o objeto incestuoso

Ao diferenciar os termos da língua alemã das Ding e die Sache, Lacan ressalta a particularidade da palavra Ding, escolhida por Freud. Embora ambas signifiquem "coisa", die Sache tem o sentido de "a coisa colocada na questão jurídica, ou, no nosso vocábulo, a passagem à ordem simbólica de um conflito entre os homens" (Lacan, 1959-60/1997, p. 58). Ou seja, die Sache está ligada à linguagem, ao simbólico. Das Ding apresenta-se como algo avesso à apreensão simbólica, um resto que não encontra associação possível nas cadeias significantes, e permanece, assim, como Coisa inassimilável. Sendo a realidade uma subjetivação do mundo externo, peculiaridade já ressaltada por Freud que a toma como realidade psíquica, das Ding apresenta-se como um segredo do princípio de realidade, estando relacionado ao real. Assim, das Ding representaria, se existisse, o "Outro pré-histórico impossível de esquecer" (Lacan,1959-60/1997, p. 91), o objeto incestuoso.

Para Lacan (1959-60/1997), o grande achado de Freud consistiu na demonstração de que das Ding, ou o objeto do incesto, apresenta-se no nível da experiência inconsciente como aquilo que constitui a lei, ao mesmo tempo em que representa o desejo mais fundamental do sujeito. Assim, o inconsciente, enquanto regido pelo princípio de prazer, regula sua distância de das Ding. Todavia, Lacan salienta que essa distância se caracteriza como uma "distância íntima" (Lacan, 1959-60/1997, p. 97), estranhamente familiar, que o sujeito também mantém com seu objeto de desejo, na medida em que ele evoca a Coisa.

Lacan (1959-60/1997, p. 97) sustenta a tese de que "a lei moral se articula com a visada do real como tal, do real na medida em que ele pode ser a garantia da Coisa". O real, figurado na Coisa, desponta da lei moral, que por sua vez, está encarnada nos dez mandamentos do Cristianismo. Estes mandamentos representam de forma magistral o íntimo laço entre o desejo e a lei. Os dez mandamentos têm como função manter o sujeito à distância de qualquer realização do incesto e essa interdição se configura como condição para que a fala subsista.

O impossível relacionado a das Ding, que se destaca nesse momento do ensino de Lacan (1959-60/1997, p. 91) configura-se por uma "impossibilidade topológica", já que a Coisa se encontra no centro do psiquismo do sujeito e ao mesmo tempo excluído dele. Além disso, a impossibilidade do incesto é indicada por Lacan:

O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na própria medida em que a função do princípio de prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto (Lacan, 1959-60/1997, p. 88).

O incesto representa aquilo que é impossível de ser atingido e, ainda assim, é reencontrado pelo sujeito quando a Coisa - que subjaz ao objeto do desejo - se insinua para o sujeito.

Concluímos que o incesto, que revela o impossível, é correlato daquilo que Lacan (1972-73/1985) mais tarde vai nomear de "a relação sexual" e, novamente, a impossibilidade a ela atrelada. Na condição de ser o núcleo da sexualidade infantil, caracteristicamente perverso-polimorfa, o incesto remete a um elemento infantil que fora tenazmente submetido ao recalque que, em seu retorno, torna-se para o sujeito estranhamente familiar. Trata-se, aqui, da dimensão do recalque originário cuja relação com as fantasias incestuosas Freud se empenhou em tematizar nos textos que prefiguram a grande virada de 1920, Bate-se numa criança e O estranho, ambos de 1919 (Jorge, 2020; 2019, inédito). No primeiro, Freud evidencia na segunda fase da fantasia, que, por ser inconsciente, jamais vem à luz e é construída na análise, a posição masoquista da criança (meninos e meninas) na relação com o pai. No segundo, Freud situa a fantasia incestuosa no cerne da vivência do estranho na relação do homem com o sexo feminino.

O amor genital (the genital love) e o ato sexual

Sendo a inexistência da relação sexual o princípio que perpassa todas as parcerias eróticas humanas, a relação incestuosa com a mãe é a primeira inscrição dessa impossibilidade na vida do sujeito (Caldas, 2015). Essa primeira não relação da criança com sua mãe revela o encontro com o sexual e sua primeira interdição, ou seja, demonstra que o sexual para o humano sempre se constrói na impossibilidade. Contudo, ao contrário da ideia do incesto como núcleo do impossível da relação sexual, é notável o esforço de vários teóricos da Psicologia do Ego para demonstrar que a relação inaugural com a mãe seria marcada pela satisfação plena e ideal.

Consideramos digna de nota a crítica insistente de Lacan durante todo o seu ensino aos pós-freudianos, por sustentarem certa impostura em suas concepções teóricas que reforçam a ideia do par sexual e da pulsão genital. Nos primeiros anos de seu ensino, Lacan critica a concepção de amor genital (Genital love) sustentada por Michael Balint, ele mesmo integrante do movimento da Psicologia do Ego, cuja perspectiva que, por conceber a relação analítica como uma relação dual, operando no registro do imaginário, é nomeada por Lacan de Two bodies´ psychology.

Balint (1993) defende a ideia de relação de objeto, na medida que este é concebido, acima de tudo, como objeto de satisfação: "O centro perspectivo de Balint na elaboração da noção de relação de objeto é isto - a relação de objeto é a que conjuga a uma necessidade um objeto que a satisfaz" (Lacan, 1953-54/1996, p. 240). Balint (1993) contesta a noção freudiana de narcisismo primário, afirmando ser falha, não passível de verificação clínica e contraditória. Como alternativa, propõe uma nova teoria para substitui-la: o amor primário (Primary love). O narcisismo seria apenas secundário a essa forma de relação de objeto primordial.

O amor primário seria uma forma primordial do amor que se vislumbra na relação da criança com o entorno-mãe. Partindo da relação do feto com seu entorno (placenta e cordão umbilical), Balint (1993) afirma que esses primeiros momentos de existência são marcados por uma mescla harmoniosa e interpenetrante, ou seja, o feto e seu entorno-mãe se encontrariam indiscerníveis, misturados. Há o caráter de harmonia, tanto no lado da mãe quanto no da criança, no âmbito da satisfação totalizada das necessidades de ambas.

Essa forma de amor primário dá lugar, durante o desenvolvimento, ao amor adulto ou Genital love nas palavras de Lacan, isto é, o sujeito leva em conta a existência do outro sujeito como tal. No amor adulto, os objetos emergem como tais do mundo, ou seja, a relação de indistinção entre o sujeito e o entorno dá lugar a uma possibilidade de diferenciação entre ambos. Contudo, no que concerne à satisfação, assemelha-se ao primary love, pois trata-se de uma satisfação fechada, a dois, em que o ideal é que cada um encontre no outro o objeto, e que satisfaça seu desejo (Lacan, 1953-54/1996, p. 243). Assim, segundo Balint, "a finalidade última de todo impulso libidinal é, pois, a preservação ou restauração da harmonia original" (Balint, 1993, p. 67).

Tendo o orgasmo como o paradigma desse encontro entre homem e mulher (Balint, 1993), durante o qual ambos se mostram indiscerníveis, o amor adulto supõe a possibilidade de uma adaptação mútua entre os amantes, no sentido de se satisfazer ao mesmo tempo em que satisfaz o outro e "sintonizarem suas demandas de satisfação, inclusive, a satisfação sexual" (Mello, & Herzog, 2008).

A promessa de complementariedade, trazida pela satisfação genital, sustenta-se, para Lacan, na "ideia do par" (Lacan, 1966-67/2008, p. 354). Segundo Lacan (1966-67/2008), toda psicanálise pós-freudiana se fundou sob o "ideal da fusão unificadora" (ou "unificação fundadora") da criança com a mãe. Este polo materno representaria o ideal de conjunção sexual, a mesma conjunção que se repete no ideal de acoplamento genital do casal, enunciada pelo preceito religioso "uma só carne".

O "Um" se refere à pretendida união sexual, ou seja, em que se coloca a questão sobre a possibilidade de se produzir o ato sexual de conjunção dos polos macho e fêmea. Segundo Lacan, há nesse campo a presença de um furo, um gap, "algo que não cola", como a existência de um abismo que se interpõe a toda promoção da bipolaridade complementar macho e fêmea. Trata-se, portanto, de um "Um fictício" (Lacan, 1966-67/2008, p. 357).

Contrariamente à ideia do par, Lacan destaca a função de elemento terceiro que aparece no campo da relação sexual (Lacan, 1956-57/1995). A sexualidade está marcada pelo signo da falta pela castração. Num certo momento, a criança se dá conta de que o Outro inaugural - que se configura como suportado pela mãe - é castrado, e tal apreensão é acompanhada de horror. O cerne do que se trata na relação do sujeito ao Outro, nesse momento inaugural, é o fato de que o Outro é castrado e o quanto de horror isso porta. Daí resulta que "A sexualidade, tal como é vivida, tal como opera, é nesse lugar, algo de fundamental - em tudo o que localizarmos em nossa experiência analítica - algo que representa um defender-se de dar seguimento a essa verdade de que o Outro não existe" (Lacan, 1966-67/2008, p. 156).

Sendo estruturado como linguagem, o inconsciente designa um saber relacionado à sexualidade, diante da falta real de representação da diferença sexual no inconsciente.

A realidade sexual do inconsciente

Como vimos, a pulsão se movimenta em torno de um objeto sempre faltante e a satisfação sexual nunca é plena. É em torno dessa falta que se constitui o inconsciente, ou seja, a realidade sexual do sujeito. Justifica-se assim a afirmação de Lacan: "Vamos ao fato. A realidade do inconsciente é - verdade insustentável - a realidade sexual. Em cada oportunidade Freud articulou isto, se assim posso dizer, com firmeza" (Lacan, 1964/1998, p. 143). A realidade do sujeito, portanto, encontra-se indissociada do desejo e da fantasia. Segundo Lacan, o desejo se constitui como o ponto nodal pelo qual o inconsciente se liga à realidade sexual.

Percebemos em Freud a indicação dessa oposição entre o real, como um furo no sexual, e a realidade do inconsciente que se tece a partir desse furo em suas proposições acerca da sexualidade infantil, sobretudo em relação à amnésia infantil, às lembranças encobridoras, aos romances familiares e ao brincar.

Em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud aponta certo "infantilismo da sexualidade" (Freud, 1905/2010, p. 156), já que a base da constituição perversa da sexualidade adulta é infantil. Freud nomeia de perverso-polimorfa a sexualidade infantil, dado que na infância a criança se entrega a todas práticas sexuais transgressoras em relação ao alvo genital num momento em que ainda não foram erigidos os diques psíquicos (asco, vergonha e ideais morais e estéticos) que estorvam a pulsão sexual. Freud aponta o descaso e a ausência de um estudo aprofundado acerca da sexualidade infantil e justifica tal negligência pelo fenômeno da amnésia infantil.

O conteúdo da amnésia infantil se constitui como uma espécie de pré-história oculta da própria vida sexual do indivíduo que - embora tenha sofrido a ação do recalque - deixa os mais profundos rastros em sua vida psíquica. Mais tarde (1914/2010), Freud aponta a relação com as lembranças encobridoras, afirmando que a amnésia infantil é contrabalançada pelas lembranças encobridoras.

Compreende-se como lembranças encobridoras aquelas que se apresentam ao sujeito como se tivessem um conteúdo irrelevante e sem importância, mas, na verdade, encobrem um outro conteúdo que, devido a seu alto valor psíquico, fora suprimido. Ainda que sejam recordadas com extrema nitidez e riqueza de detalhes, inclusive sensoriais, algumas dessas lembranças não são verdadeiras, mas construções de uma cena infantil que representa a realização de um ou mais desejos. Assim, a inocência da cena infantil representa um hábil disfarce, sobretudo para os desejos de caráter sexual. Portanto, as lembranças encobridoras são fantasias inconscientes que promovem a conjugação entre o desejo e sua interdição, a sexualidade e o infantil (Freud, 1899/2010).

Além da construção de lembranças encobridoras, outro fato curioso são as pesquisas às quais a criança se dedica sobre o tema da sexualidade. Impulsionadas pela questão "de onde vêm os bebês", as crianças iniciam uma fase de intensa investigação e consequente formulação de teorias que versam sobre os principais assuntos: a diferença sexual, a sua origem e a natureza do coito dos pais. O ato sexual dos pais é encarado pela criança como sádico e a criança se questiona em que consiste o ato sexual. Diante do enigma que do sexo, a criança se revela uma verdadeira teórica e constrói um saber que visa preencher essa falha. (Freud,1908/2010).

Outra tentativa de construir um saber em relação ao sexo são os romances familiares infantis. Ao observar certo padrão de fantasia feita pela criança, Freud (1909[1908]/2010) denomina "Romances familiares" parte do movimento doloroso de separação das crianças em relação aos pais. Esses romances são devaneios, ou seja, fantasias conscientes que reproduzem certo rebaixamento do valor que as crianças conferem aos pais, podendo ter objetivos ambiciosos ou eróticos, sendo que os últimos podem se ocultar sob os primeiros (Freud, 1909[1908]/2010). Quando conhece a diferença entre os papéis desempenhados pelo pai e pela mãe na relação sexual (Freud, 1909[1908]/2010), a criança começa a ter fantasias de caráter mais explicitamente sexual como duvidar de sua origem materna, atribuindo à mãe inúmeras aventuras extraconjugais. A curiosidade sexual recai sobre a mãe, o primeiro objeto de amor da criança, incestuoso. Os romances familiares integram "a retificação da realidade e a satisfação de desejos" (Freud, 1909[1908]/2010, p. 218) o que permite à criança construir uma outra realidade, pautada pelo desejo inconsciente infantil, incestuoso.

Mais tarde, em Escritores criativos e devaneios (1900c/2010), Freud aproxima a atividade de brincar da criança ao devaneio do adulto e à criação artística, todas modalidades da fantasia. A criança quando brinca cria seu mundo particular no qual investe muita libido, embora entenda perfeitamente os limites entre a realidade e o mundo que criou. Ao crescer, ela troca o prazer obtido ao brincar pelos devaneios. A força motivadora dessas duas atividades são os desejos inconscientes, que confluem geralmente para duas grandes categorias: os desejos eróticos e os ambiciosos.

Na condição de suporte do desejo, a fantasia é uma colocação em cena da realidade sexual do inconsciente cuja função é tecer, a partir de recursos simbólicos e imaginários, uma resposta ao real ou, nas palavras de Freud, à amnésia infantil. A partir desse conceito, percebemos o caráter real e traumático do encontro com o sexo, o que leva a um recalque primordial cujo conteúdo apresenta-se inacessível e revela o paradoxo de nossa infância como aquilo de mais presente e atuante - e, ao mesmo tempo mais oculto - em nós.

Para o humano, contrariamente aos animais, não há a copulação pura e simples, o que permite a Lacan (1966-67/2008, p. 294) afirmar: "Há sexualidade porque não há ato sexual". O que podemos depreender dessa fórmula é que há a sexualidade - estruturada pelo simbólico e pelo imaginário, que se configura como a realidade sexual do sujeito. Mas, além disso, há o real do sexo descrito pela fórmula: "Não há relação sexual".

Notemos que, num primeiro momento do ensino de Lacan, a impossibilidade se faz notar pela noção de inconsistência: a inconsistência do Outro, do simbólico e do ato sexual para inscrever a diferença sexual, para se dizer o que são os polos feminino e masculino. Da inconsistência, Lacan caminha rumo à impossibilidade de inscrição da relação sexual, como apresentaremos a seguir.

O impossível da relação sexual

A noção de impossível, relacionada à não inscrição da relação sexual, se faz presente no ensino de Lacan de maneira mais incisiva a partir de 1971.

Portanto, no momento de dizer que a linguagem não dá conta da relação sexual, perguntemo-nos precisamente em que ela não dá conta. Ela não dá conta porque, com a inscrição que é capaz de comentar, não consegue fazer com que essa inscrição seja o que defino como inscrição efetiva do que seria a relação sexual, na medida em que ela relacionaria os dois polos, os dois termos que se intitulariam homem e mulher, sendo esse homem e essa mulher sexos respectivamente especificados pelo masculino e pelo feminino... em quem, em quê? Num ser que fala, ou, dito de outra maneira, um ser que, habitando a linguagem, extrai dela um uso que é o da fala (Lacan, 1971/2009, p. 123).

A linguagem, para Lacan (1971-72/2011, p. 29), tem a função essencial de "preencher tudo o que deixa de falha da relação sexual", portanto, ela mesma é marcada pelo impossível. Para Lacan (1964/1998, p. 194), "no psiquismo não há nada pelo que o sujeito pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea" e foi Freud o primeiro a chegar à constatação de que é impossível dar sentido aos termos masculino e feminino.

Levando em conta a dimensão simbólica e logo, contingencial, implicada na repartição sexual, Lacan (1966-67/2008) constata que um significante é o que representa o sujeito para outro significante.

Diante da impossibilidade relacionada à diferença sexual, o ser humano tem que se inscrever de alguma forma, apoiando-se no significante. Assim, homem e mulher estão na condição de significantes, o que é expresso pelas línguas existentes. Segundo Lacan (1971-72/2011, p. 40), "A linguagem é tal para todo ser falante, ou bem é ele, ou bem é ela. Isso existe em todas as línguas do mundo".

Afirmando, através de sua fórmula "Não há relação sexual" que "o sexo não define nenhuma relação nos seres falantes", Lacan (1971-72/2011, p. 13) fala sobre a pequena diferença entre os sexos, a qual é percebida desde cedo pela criança como órgão - organon, instrumento, ao contrário dos animais, que não se dão conta de possuírem um órgão. O órgão que Lacan ressalta aqui, longe de ser uma evidência anatômica, encontra-se no lugar de significante.

Colocando-se a pergunta sobre como se relacionam os sujeitos, Lacan pauta a ilusão que o sujeito tem sobre a existência da relação sexual à referência que ele encontra no "modelo animal" (Lacan,1971-72/2012, p. 95), a aptidão de cada ser de um lado (dos dois universais) se relacionar com qualquer um do outro lado.

Podemos afirmar que há relação na atividade sexual dos animais. Todavia, o que Freud anunciou tratar-se de "sexualidade" (Freud, 1905/2010) situa-se em outro lugar. A sexualidade encontra-se dissociada, no ser falante, de qualquer possibilidade de relação ou correspondência entre dois conjuntos, dois universais. A relação entre homem e mulher se impõe como enigma desde cedo para a criança, momento em que ela formula a questão "de onde vem os bebês?" (Freud,1908/2010), entre outras, que cogitam seu lugar sexuado frente ao Outro.

Ao resgatar a etimologia da palavra "sexo", Braunstein (2007) aponta o sentido latente de secção, corte - o qual remete à castração - administrado pela palavra que secciona - e "sexiona" - os sujeitos, arremessando-os a um dos polos inconciliáveis da sexualidade. Esta encontra-se assim aderida ao simbólico, mas de forma não toda, na medida em que existe um resto que não se inscreve, remanescente desse processo.

Magno (1986) cria o neologismo "sexão", homofônico a "secção", para relatar o que ocorre entre os sexos, que, em suma, aponta para o corte impossível de suturar, para a diferença radical. Assim, o sentido freudiano de castração poderia ser elucidado, como o corte que leva o sujeito a assumir um sexo e que implica a diferença em relação ao outro. Dessa maneira, o ser falante se depara no ato sexual com a diferença, a alteridade radical do parceiro, face à qual não há relação possível. "Quando eu digo que na sexão temos, de um lado, um sexo e, do outro, o Outro sexo, não estou dizendo com isto que conheço como são os sexos. Quero dizer apenas que há diferença". (Magno, 1986, p. 47).

Em sua condição de semblante, o que vela e revela o real, o discurso se esforça para suturar tal corte. Isso se ilustra pela profusão atual de nomenclaturas referentes a gêneros - transexual, bi-gênero, não binário, gênero fluido, agênero, gender fucker, entre outros - que tentam recobrir o real, aquilo que não se escreve, relativo ao sexo. Tais nomenclaturas revelam-se recursos simbólicos, impregnados de consistência imaginária2.

Heterogeneidade dos gozos

Após ter discorrido sobre a perversão polimorfa infantil, Freud (1905/2010) descreve, apoiando-se na narrativa mítica, o Complexo de Édipo, como uma maneira do pequeno perverso-polimorfo aceder ao sexo. Ou seja, o Édipo, regulado pela lógica fálica, é o que permite ao sujeito dar um tratamento simbólico ao real pulsional. Assim, a partir do complexo de Édipo e pelas diferentes identificações por ele delineadas, o sujeito lança mão de uma série de semblantes para tentar ordenar o que se passa entre os sexos, o que se deve fazer como homem ou mulher, além de se situar no que concerne à escolha de objeto.

Por sua vez, Lacan (1971/2009) afirma que homens e mulheres são fatos e efeitos de discurso. Ou seja, eles não existem naturalmente, mas têm que se fazer valer como tais a partir do discurso. Na medida que a relação sexual não existe, não pode ser escrita, "há gozos que a parodiam" (Lacan, 1971/2009 p. 139). Para tentar contornar o "aperto a que somos levados para escrever o que diz respeito à relação sexual" (Lacan, 1971/2009, p.136), recorrendo à escrita matemática, Lacan propõe as fórmulas da sexuação para abordar este campo insondável. Na medida que se aproxima do real, a lógica se coloca como um campo privilegiado para Lacan, a que ele recorre ao final de seu ensino.

As fórmulas da sexuação são criadas por Lacan face à impossibilidade de escrever a relação sexual, ou seja, para tentar formalizar aquilo que não para de não se escrever. Ao propor as fórmulas da sexuação, Lacan vai além das teorias de gênero, levando em conta dois tipos de gozo: o gozo fálico e o gozo Outro, que se encontram alinhados do lado do homem e do da mulher, respectivamente.

Segundo Lacan, há uma hiância entre o gozo sexual e o sujeito, e este só tem acesso àquele por meio do falo. Dessa maneira, situa o gozo sexual na condição de gozo fálico, marcado pela linguagem e pelo significante, como efeito da operação da castração. Assim, o sujeito não atinge o Outro da relação sexual enquanto tal, e o falo se coloca como mediador. Para Lacan, o gozo fálico é especificado por um "obstáculo pelo qual o homem não chega ao corpo da mulher porque o de que ele goza é o gozo do órgão" (Lacan, 1972-73/1985, p. 15). O gozo fálico se relaciona com as identificações, com o que o restou da passagem do sujeito pelo Édipo.

O gozo feminino é o que escapa ao gozo fálico, ao edípico. As mulheres não estão completamente nesse registro, embora também estejam referidas a ele. A mulher situa-se não toda inscrita no gozo fálico, tendo relação com o Outro gozo, um gozo suplementar. Assim, Lacan postula que "Não há A mulher pois, [...] por sua essência ela não é toda" (Lacan, 1972-73/1985, p. 98).

Lacan apresenta as quatro fórmulas da sexuação, dividindo-as, duas para a esquerda - o lado homem - e duas para a direita, o lado mulher (Figura 1). O ser falante necessariamente deve se inscrever de um lado ou de outro. O lado esquerdo do quadro - o lado homem - é composto pela afirmativa universal que indica que é na condição de todo, que o homem se inscreve na função fálica. O que é negado por intermédio da proposição existencial, a qual anuncia que há um x a partir do qual a função Φ x é negada, através do que Lacan (1972-73/1985) alude ao pai mítico da horda, descrito por Freud em Totem e Tabu (1913[1912-13]/2010).

 

 

Do lado mulher, Lacan (1972-73/1985) declara abordar o que Freud deixou de lado, o Was will das Weib, "o que quer uma mulher". A Mulher tem relação com o significante do Outro como barrado, S(A/). Enquanto o $, sujeito barrado, e o Φ estão do lado homem, o objeto a se encontra no lado feminino do quadro. O $ o atinge, como causa de seu desejo sendo a conjugação desses dois elementos - $ e objeto a - a fantasia, suporte do desejo ($a).

A mulher teria acesso a um gozo dito suplementar - e não complementar, o que implicaria na noção de todo. Situado na intersecção entre o imaginário e o real, tendo portanto, o simbólico foracluído, o gozo Outro marca-se justamente pela impossibilidade de se gozar com o Outro sexo. O Gozo Outro se apresenta como um gozo que escapa à linguagem, tendo lugar no corpo, en corps, homófono à encore, título do Seminário em que Lacan (1972-73/1985) se dedica a introduzir tal modalidade de gozo. Coloca-se em questão A Mulher como Outro em relação ao Um, como Outro do significante fálico, como o Outro sexo, o verdadeiro "continente negro" diante do qual Freud mostrou sua perplexidade. De acordo com Lacan (1972-73/1985), tal gozo está reservado a algumas mulheres, aos místicos e colocado em cena pela arte barroca, a qual aponta de forma veemente a aproximação entre gozo e morte.

O gozo fálico e o gozo Outro são heterogêneos. Não há um significante correspondente ao falo no inconsciente, falta esta grafada por Lacan de S(A/), o que corrobora o Outro na condição de barrado, que não "se aguenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda" (Lacan, 1972-73/1985 p. 41), "a impossibilidade de se dizer toda verdade" (Lacan, 1972-73/1985 p. 139).

Em suma, situar-se em relação ao sexo impõe-se como uma escolha, ainda que forçada, tal como exposta por Lacan (1964/1998), entre a bolsa e a vida. Diante da falta de naturalidade no que concerne à posição sexual, ou seja, não há nada de instintual que nos ampare no campo do sexo, o sujeito é coagido a assumir um lugar.

Arte e o impossível: o amuro (L'amur)

Marina Abramovic e Ulay, cujo nome verdadeiro era Frank Uwe Laysiepen, se conheceram em 1975, quando ambos tinham aproximadamente 30 anos. Assim como Marina, Ulay também era artista e estava, naquele momento, trabalhando com autorretratos. Abramovic relata ter se surpreendido por vários detalhes biográficos de Ulay serem semelhantes aos seus, como sua data de aniversário e o fato de odiarem esse dia. A partir de então, surgiu uma longa relação amorosa e profissional entre ambos, sendo que, um ano depois, realizaram a primeira performance juntos, denominada Relation in space (1976).

O relacionamento amoroso era descrito por Marina como se houvesse o intuito de sustentar certa completude entre ambos, demonstrado por seus relatos, que atestavam surgir de suas performances, um eu, uma nova unidade, criada platonicamente a partir de suas metades, conforme descreve a artista: "Estávamos morando juntos há quase um ano e tínhamos chegado à sensação de que, sob muitos aspectos, éramos a mesma pessoa, tendo os mesmos pensamentos. Agora era a hora de pôr à prova essa hipótese" (Abramovic, 2017, p. 106).

Dez anos se passaram, com inúmeros trabalhos realizados juntos, e o relacionamento de Ulay e Marina começava a demonstrar sinais de desgaste. O fracasso da união foi relatado por Marina como inseparável do fim da parceria artística:

Durante os três últimos meses que passamos juntos, eu escondia, até mesmo de nossos amigos mais íntimos, o fato de que nosso relacionamento tinha desmoronado. Escondia isso de todo o mundo porque não conseguia tolerar a ideia desse fracasso. Em nome de um ideal que considerava superior, eu tinha parado de trabalhar sozinha: fazer arte juntos e criar esse terceiro elemento que chamávamos de aquele eu - uma energia não contaminada pelo ego, uma mescla de macho e fêmea, que para mim era a mais sublime obra de arte. Eu não conseguia suportar a ideia de que aquilo, de fato, não funcionasse (Abramovic, 2017, p. 195).

Tal impossibilidade foi representada, num primeiro momento, em Die Mond, Der Sonne (A Lua, o Sol), em 1987, que consistia em dois vasos pretos, feitos com as dimensões exatas dos corpos dos artistas, sendo que um deles tinha a superfície fosca, e o outro, lisa e brilhante.

Contudo, a obra que marca a separação definitiva do casal, artística e pessoal, foi a colocação em prática da ideia extravagante de percorrer a Grande Muralha da China, partindo de direções opostas, mas um indo em direção ao outro (Figura 2). De início, tal conceito foi marcado por uma excessiva idealização:

Pensávamos, naquela época, que a Muralha ainda era uma estrutura contínua, intacta, pela qual nós simplesmente caminharíamos; cada um de nós seguiria sozinho, que acamparíamos na Muralha todas as noites. Que, depois de partir de extremidades opostas (a cabeça no Leste e a cauda no Oeste) e de nos encontrarmos no centro, nós nos casaríamos. Por anos, nosso título provisório para a peça tinha sido The Lovers (Os Amantes) (Abramovic, 2017, p. 210).

 

 

 

 

A performance baseava-se na ideia de certa assimetria a se completar: o deserto, de onde Ulay partiria, representava o fogo, princípio masculino, e por oposição, a água, o feminino, já que a artista partiria da beira-mar. O casal inverteu a proposta inicial de se casarem após se encontrarem no centro da muralha, para a resolução de se separarem nesse mesmo momento.

Mas até esse belo ritual de separação sofreu uma grande queda em sua extrema idealização. Não foi possível que eles andassem sozinhos, mas com uma grande comitiva, composta por intérpretes, guias e seguranças. Seria impossível também caminhar por toda muralha, sendo necessário fazer desvios por aldeias e vilarejos e serem transportados por jipes. A própria Muralha, outrora idealizada pelo casal como a imensa estrutura rochosa em forma de dragão, visível do espaço cósmico, estava em grande parte em ruínas que a tornavam inóspita, impossibilitando lá acampar, conforme desejado. "Em certos locais, a Muralha não era mais que uma pilha traiçoeira de rochas" (Abramovic, 2017, p. 210), descreve a artista:

Antes, havia esse forte laço emocional, de modo que um caminhar na direção do outro tinha um certo impacto... era uma história quase épica entre dois amantes se reunindo depois do sofrimento. E então, esse fato desapareceu. Fui enfrentar apenas a muralha nua e a mim mesma. Precisei reorganizar minha motivação. Realmente, essa distância enorme que caminhamos um na direção do outro, em que na realidade não temos um encontro feliz, mas simplesmente terminamos, é de certo modo muito típica do ser humano. É de fato mais dramática do que aquela simples história romântica dos amantes. Porque, no fim de tudo, sempre se está realmente só, não importa o que se faça (Abramovic, 2017, p. 211).

Para além do conteúdo biográfico desta obra, podemos depreender de A Grande muralha, ou Os Amantes, a inexorável incomunicabilidade entre os pares, a radical solidão no gozo, à qual o amor se esforça por fazer suplência. Diante da ruína dessas supostas garantias imaginárias, revela-se o real, o impossível. Também a morte, traduzida na separação amorosa, faz lembrar a incisiva frase de Woolf (2015, p. 81) "como estão sós os que vão morrer".

Na performance intitulada Impoderabilia (1977), Abramovic e Ulay confrontam o visitante com uma experiência de mal-estar por ter que se defrontar com a escolha sexual. Situando-se um em frente ao outro, nos batentes da porta principal da galeria, pela qual teria que passar o visitante para ter acesso à maior parte da exposição, o espectador é levado a voltar-se para um dos dois lados, dado ser impossível atravessar o umbral da porta sem se virar. O espectador é obrigado a escolher para qual lado se voltar ao passar: o do homem ou o da mulher, uma escolha que não é feita sem incômodo e, ao passar, imprime seu estilo e sua escolha diferentes, fazendo parte da própria performance. Ao escolher, o sujeito é confrontado com a estrutura ternária, edipiana, que se coloca em cena a partir da triangulação: Ulay, Marina e visitante.

O adjetivo "imponderável", possui as seguintes acepções: que não se pode pesar; que não tem peso apreciável; que não se pode avaliar, que não é digno de ponderação; elemento ou circunstância indefinível que influi em determinada matéria ou assunto (Ferreira, 1986, p. 923). Percebemos que há algo de imponderável na escolha sexual feita pelo sujeito, na medida em que não há nada de necessário que determine como essa escolha é feita e, ainda, que ele jamais possa se representar de forma completa. Algo fica de fora, no que diz respeito ao sexo, há sempre algo imponderável, o que situa o sexo entre o representável e o irrepresentável.

De forma decisiva, a modalidade de amor cortês revela o fundo de impossibilidade sobre o qual o amor se sobrepõe. Sendo que "o que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor" (Lacan, 1972-73/1985, p. 62), o amor cortês denuncia a impossibilidade de forma mais evidente. Por esse motivo, Lacan (1959-60/1997) aproxima o amor cortês à anamorfose, uma vez que ambos guardam uma relação estreita com o vazio (Ferreira, 2004). A ilusão do espaço, possibilitada pelas técnicas de perspectiva surgidas a partir do século XV, é diferente da criação do vazio, veiculada por meio da anamorfose, que surge no século XVI. Esta representa o ponto de virada em que, partindo-se da ilusão trazida pela perspectiva, o artista reverte essa apresentação ilusória, revelando a "realidade enquanto escondida" (Lacan, 1959-60/1997, p. 171). Por sua vez, o amor cortês surgiu no século XI, e teve como característica ser "uma escolástica do amor infeliz" (Lacan, 1959-60/1997, p. 178), colocando a mulher que ocupava o lugar de Dama como inacessível. Embora, curiosamente, Dommei, Mi Dom seja empregado no masculino pelos trovadores, a Dama é despersonalizada, "esvaziada de substância real" (Lacan, 1959-60/1997, p. 181), constituindo-se como "um parceiro desumano" (Lacan, 1959-60/1997, p. 182). Dessa maneira, a Dama é adorada não por suas virtudes ou beleza, mas por sua inacessibilidade: "Não há possibilidade de cantar a Dama, em sua posição poética, sem o pressuposto da barreira que a cerque e a isole" (Lacan, 1959-60/1997, p.181). O amor cortês aproxima-se da sublimação nessa visada a esse lugar de das Ding que a Dama ocupa, em um movimento de contorno do vazio que o poeta empreende.

Lacan afirma que "O Gozo do Outro, do Outro com A maiúsculo, do corpo do Outro que o simboliza, não é o signo do amor" (Lacan, 1972-73/1985, p.12). Soler (2005) explica tal passagem, um tanto enigmática, como sendo a falta de uma implicação tal como, "eu o amo, portanto, gozo com ele", o que insere amor e gozo em planos diferentes. Assim, amor e gozo situam-se em lugares distintos, o que já fora marcado por Freud (1915/2014) ao isolar o amor e a pulsão em campos discordantes. Segundo Lacan,

O gozo - gozo do corpo do Outro - resta ele, uma questão, porque a resposta que ele pode constituir não é necessária. Isto vai mesmo mais longe. Não é nem mesmo uma resposta suficiente, porque o amor demanda amor. Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda... mais... ainda. Mais ainda é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda do amor (Lacan, 1972-73/1985, p. 13).

Assim, a demanda de amor parte da falha no Outro S(A/), o que fornece àquela seu caráter infinito. O amor não responde ao gozo do corpo do Outro e, segundo Lacan, o que responderia de maneira não necessária e não suficiente é o que ele denomina amuro (l'amur). Consideramos que, a partir desse neologismo - o qual porta, na língua francesa, uma proximidade fonética com L'amour (amor) - Lacan tenta diferenciar, ao mesmo tempo que aproxima amor e gozo:

O Amuro é o que aparece em signos bizarros no corpo. São esses caracteres sexuais que vem do além, desse local que temos acreditado podermos ocular no microscópio sob a forma de gérmen - a respeito do qual farei vocês notarem que não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também porta a morte, a morte do corpo, por repeti-lo. É de lá que vem o en-corps (Lacan, 1972-73/1985, p. 13).

O amor se refere à imagem, ao narcisismo, como demonstrado na pequena estória relatada por Lacan da periquita apaixonada por Picasso. Estando exclusivamente aderida ao imaginário, a periquita evidencia que esse amor se refere à imagem, pois o que ela ama é Picasso vestido, constatado pela maneira com que ela mordiscava seu paletó e o colarinho de sua camisa. Assim, Lacan afirma que o amor é ligado à imagem, ama-se o hábito, a imagem e fica-se fora do sexo. Por outro lado, o corpo, lugar do gozo, situa-se para além da imagem e como resto, o objeto a. Conforme já expusemos, o gozo sexual é marcado por um impasse, um furo, que não deixa outra via a não ser o gozo fálico, marcado pela castração: "O gozo, enquanto sexual, é fálico, não se relaciona ao Outro como tal" (Lacan, 1972-73/1985, p. 18).

Lacan (1971/2011) relaciona o conceito de Amuro à castração, ao analisar o poema de Antoine Tudal,

Entre o homem e a mulher,

Existe o amor.

Entre o homem e o amor,

Existe um mundo.

Entre o homem e o mundo,

Existe um muro ( p. 90).

Lacan ressalta que, quando dizemos "Há um mundo", significa "Vocês nunca chegarão lá" (Lacan, 1971/2011, p. 90), marcando a impossibilidade, uma distância impossível de transpor, sentido que verificamos comparecer igualmente na língua portuguesa coloquial. Lembremos que Lacan já diferenciara o mundo e a cena, sendo o primeiro definido como "onde o real se comprime" (Lacan 1962-63/2005, p.42). Retornando ao texto de 1971, curiosamente, Lacan aproxima o mundo do campo da mulher, o continente negro de Freud e o campo do gozo Outro, além do fálico. Assim, entre o homem e o amor, há o real, o impossível.

O amor, assim como o gozo fálico, só pode ser pensado em relação à castração. Ao evocar seu neologismo L'amur, Lacan aproxima o muro do lugar da castração. Entre os parceiros há a relação de ambos com sua própria castração, ou seja, o amor só entra em jogo com o "cacife da castração" (Lacan, 1971/2011, p. 95).

Lacan afirma falar com as paredes3, com os muros, ao proferir esse seminário. Na verdade, fala-se sempre às paredes (murs) já que a relação entre o eu e o outro é intermediada pelo muro, pela linguagem, "a parede atrás da qual vocês podem pôr o sentido do que nos concerne" (Lacan, 1971/2011, p. 97). Entre os amantes existe um mundo - um muro, uma muralha -, que se interpõe entre os dois e do qual desponta a castração e a incomunicabilidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Vivian Martins Ligeiro
ligeirovivian@gmail.com

Marco Antonio Coutinho Jorge
macjorge@corpofreudiano.com.br

Submetido em: 03/01/2020
Aceito em: 15/06/2020

 

 

1 Ligeiro, V. M. (2018). O triunfo do real: Arte e psicanálise. Tese de doutorado. Programa de pós-graduação em psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 Nessa mesma direção, Jorge (2013) mostrou que, diante do inominável referente ao sexual, a linguagem popular e cotidiana utiliza metáforas oriundas do reino animal, indicando, no âmbito do sexo, uma força selvagem para além do simbólico: "gato e gata", "garanhão", "galinha", "tigresa", "veado" e, até mesmo para nomear os órgãos sexuais, "peru", "passarinho", "perereca" entre outros.
3 Afirmação feita por Lacan na conferência Je parle aux murs cuja tradução brasileira foi: Estou falando com as paredes. O substantivo mur, da língua francesa, permite ambas traduções: parede e muro, das quais fizemos uso.

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