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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. v.15 n.2 Goiânia dez. 2009
ARTIGOS
Esquema da coisa (das Ding) de Husserl e a Esquizofrenia1
The Husserl thing's sketch and Schizophrenia
El esquema de la cosa en Husserl y la Esquizofrenia
Francisco Moacir de Melo Catunda Martins
Universidade de Brasília
RESUMO
A realidade é tida no senso comum como dada. A fenomenologia mostra que ela é mais diferenciada do que nossa consciência imediata evidencia. Qualifica-se então as análises de Husserl acerca da realidade com o fim de analisar o estatuto da realidade na clínica cotidiana. A distinção entre realidade psíquica e realidade efetiva material é apresentada inicialmente. O esquema da coisa é distinto então da coisa mesma e do objeto. Em seguida, é correlacionada com dados vindos da clínica da esquizofrenia e da neurose obsessiva. São mostradas evidências clínicas e fenomenológicas que o esquema da coisa não se encontra alterado na neurose e se faz presente na esquizofrenia. A hipótese nas psicoses, acentuando-se que possivelmente a alteração do esquema da coisa é 'corrompida' pela linguagem, é analisada. Mais ainda, é mostrado que esta hipótese tem relações com a percepção e a produção retórica.
Palavras-chave: Psicopatologia; Fenomenologia; Esquizofrenia; Percepção; Linguagem.
ABSTRACT
The common sense relates reality as given. Phenomenology shows up reality is more differentiated than our given conscience presents. It is qualified Husserl's concept of reality in everyday clinics. Firstly it is resented the difference between psychic reality and material reality ( Wirklichkeit). It is also distinguished object and thing from thing sketch. Then on it is correlated data from schizophrenia and obsession neurosis. Clinical evidences and phenomenological analysis show thing sketch is not modified in obsession neurosis. But it is in schizophrenia. The hypothesis that thing sketch is corrupted in schizophrenia by language is analyzed. More on it is shown links with this hypothesis and perception and rhetorical production.
Keywords: Psychopathology; Phenomenology; Schizophrenia; Perception; Language.
RESUMEN
Para el sentido común la realidad está dada. La fenomenología nos muestra que esta realidad es mucho más de lo que muestra la consciencia inmediata. Con la finalidad de analizar el estatuto de la realidad en la clínica cotidiana, se clasifican los análisis de la realidad de Husserl. En el comienzo se presenta la distinción entre la realidad psíquica y la realidad efectiva material. El esquema de la cosa es distinguido entonces, de la cosa misma y del objeto. A continuación, es correlacionada con los datos que vienen de la clínica de la esquizofrenia y de la neurosis obsesiva. Son mostradas evidencias clínicas y fenomenológicas que el esquema de la cosa no se encuentra alterado en la neurosis y se hace presente en la esquizofrenia. Es también analizada la hipótesis que en las psicosis el esquema de la cosa se corrompe, por el lenguaje. También es mostrada que esta hipótesis está relacionada con la percepción y la producción retórica.
Palabras clave : Psicopatología; Fenomenología; Esquizofrenia; Percepción; Lenguaje.
Merleau-Ponty (1990) diz que a fenomenologia pode não ser importante para as ciências naturais, mas que é essencial para a psicologia. Nas ciências naturais, em grande número de vezes, a realidade é tratada tão somente como dado imediato da consciência. A contribuição da fenomenologia se torna essencial para aqueles que se desconfiam do dado imediato da consciência como sendo a realidade per se. A fenomenologia de Husserl para o entendimento das ciências naturais (e a estrutura das coisas), da matemática e outras ciências eidéticas nos parece essencial para a clínica por esse lidar com a res cogitans também. Fornece um entendimento raro e praticamente inexistente em outras tradições de produção de saber.
Assim, a nossa aceitação da asserção de Merleau-Ponty advém não das chamadas ciências naturais ou das ciências humanas, mas da atividade clínica que tanto se serve de uma como de outra e tem um estatuto próprio. Igualmente a Fenomenologia ajuda-nos pelos seus meios próprios a melhor fazermos a clínica cotidiana e a lidarmos com a realidade trazida por nossos pacientes.
A clínica não permite nem mesmo a separação e compartimentação dos saberes. Nosso dever de clínico é diferente do cientista - que é pago para duvidar - e mesmo do lógico, incluindo os fenomenologistas - pagos para logicamente clarear os pressupostos do fundamento das coisas. Nós, Clínicos profissionais, somos pagos e temos o dever profissional de tão somente (ironia!!!) realizar uma empreitada quase sempre impossível: curar os nossos pacientes. Ainda que isso seja um ideal inalcançável, ou no defeito deste sarar, sanar o sofrimento, ou mais ainda diante de toda a nossa pequenez em face da existência humana e suas infinitas e graves possibilidades de portar destinos cruéis possamos ainda assim cuidar. O cuidado é que é então fundamento da clínica como atividade. Curar idealmente, sarar ao menos, cuidar sempre. Guardaremos essa idéia justamente por pensarmos que nos cuidados que dispensamos aos nossos pacientes, toda e qualquer contribuição é essencial para a nossa tentativa profissional de bem cuidar dos nossos clientes.
A Clínica não permite que confundamos nossa realidade com a do outro. Assim tentar afirmar que estamos lidando com a angústia de um paciente através da contagem do número de cigarros que o mesmo fuma ou senão através da medida da condutância da pele e da sudorese é um engano. O que constitui exatamente o fenômeno da angústia senão a experiência central de constrição do peito, de impedimento do ar faltante, o espírito se esvaindo. Sudorese e fumar cigarros são correlatos e não o fenômeno sentido, expressão da atividade do vivente: Erlebnis. Trata-se aqui de confundir localização no espaço de um fenômeno que por excelência não tem extensão e nem resistência. A angústia é um efeito e não tem peso. Não pertence à res extensa. Assim é que a maioria dos fenômenos que trabalhamos na clínica diária pertencem à res cogitans. Inclusive a clínica das psicoses que se vê envolvida com a idéia de perda de realidade como se isso fosse possível; perder um objeto, por exemplo, que não tem extensão, perder um objeto imaginário.
A realidade é o tema essencial que aqui trataremos a partir de Husserl e da clínica das psicoses, um ajudando o outro no esclarecimento. O conceito que houve perda de realidade na psicose pode ser contestado diretamente quando um ingênuo pergunta ao paciente se ele escuta vozes, buscando investigar se o mesmo está alucinado ou não. Escuta em retorno: "Sim, a sua".
Mais além da proposição que trataremos os fenômenos em si, a alucinação se apresenta na percepção dos nossos pacientes como algo a mais do que a realidade corrente. Ela fornece estranhamento em um mundo novo. De toda maneira, a alucinação e outros fenômenos exigem que aceitemos a diferença entre a realidade comum compartilhada e outros fenômenos tal como a alucinação que nem todos nós tivemos a chance de vivenciar ( Erlebnis ). A realidade para o homem comum de todos os dias implica metáforas banalizadas, mas também implica que existe uma certa estabilidade no real que faz que a todo o momento não sejamos exigidos a nos interrogar sobre o que passa nos outros. O método de redução eidética de Husserl (1991) é essencial aqui. Assim, Curitiba como cidade, referente efetivo dos signos que permitem nos comunicar, tem extensão e resistência. Curitiba não é uma abstração. Nosso corpo também não é uma abstração, ele tem efetividade material e espacial. Ele é, além disso, o único objeto que não podemos nos desfazer sob pena de perecermos.
Tudo aquilo que se exercita sobre o corpo, desestrutura a afetividade: trancar alguém numa prisão, obrigando-o ao isolamento, privando-o de toda estimulação - como nas técnicas de isolamentos sensoriais - ou, ao contrário, sobrecarregá-lo de estimulação sem lhe deixar a possibilidade de se liberar ou de fugir, concerne especificamente à violência. Impedir um corpo de urinar, privá-lo de alimento ou de bebida, obrigá-lo a beber sem sede, impedi-lo de dormir quando ele necessita de repouso, impor-lhe uma posição fixa quando ele desejaria se mexer, etc., todas essas manobras sobre o corpo têm em comum oprimir e contrariar as necessidades fisiológicas. A partir de certo nível de obrigações, a fortiori caso infligimo-lhe dores ou mortificações do corpo, empurra-se paradoxalmente o corpo em direção ao aumento de necessidades fisiológicas contrariadas. Então, o pensamento é progressivamente invadido pelo apelo das necessidades, o campo da consciência se encurta, o pensamento se polariza, a vida do espírito se abole. No limite, não existe mais sujeito, na medida em que o corpo subjetivo foi dissolvido no corpo fisiológico. O sujeito é levado às funções imperiosas, às funções fisiológicas, onde a humanidade se perde.
Assim, o nosso corpo e a cidade de Curitiba pertencem à realidade do nosso psiquismo, a chamada realidade psíquica de cada um de nós. Mas ambos, ainda que diferentes na sensibilidade, também pertencem à res extensa, diferentemente de fenômenos como a saudade, a angústia, o regozijo, a dor, que não tem extensão, nem resistência, pertencem à res cogitans. Assim os alemães kantianos costumam chamar de Wirklichkeit, que traduzimos como realidade efetiva material para objetos materiais, como Curitiba e nosso corpo. Mas tanto a Wirklichkeit, quanto a res cogitans, se apresentam como objetos. Objeto pertence a nossa realidade psíquica sendo aquilo que nos objeta como sujeito, aquilo que emerge no fundo amorfo e que se presenta a nós. Mas, se cada realidade fosse única, tão somente a confusão se instalaria mais rápido que o usual entre os humanos e ninguém teria a chance de criar uma existência compartilhada ( mitsein ). A esquizofrenia de alguma maneira faz isso, cria mundos novos e que tiram a certeza que a realidade material efetiva ( Wirklichkeit ) parece fornecer. Pretendemos mostrar aqui que existe na esquizofrenia uma desestabilização não somente dos objetos, mas da realidade efetiva material tal como ela é percebida e produzida.
Husserl demonstrou principalmente na Fenomenologia da Constituição que a realidade das coisas se faz através de esquemas (Sokolowski, 2004). O mundo inseguro esquizofrênico é produto da alteração do esquema da coisa que hipotetizamos. O homem comum não fica a todo instante se perguntando sobre o que está acontecendo com seu braço, o que é o braço novo de cada minuto que segue. A esquizofrenia não é somente um problema de linguagem, ainda que essa se veja imbricada a fundo na produção da realidade psicótica. Comparemos duas situações que se me apresentaram na feitura de protocolo do teste de Rorschach com dois pacientes deveras diferentes. Apresentamos a prancha número três para pessoas diversas.
Perguntamos: "O que estás vendo? Depois pedimos para localizar". Érika responde: "É uma prancha de figura e fundo". Exterioriza e não se projeta na cena. Não participa. Designa objeto. Aline responde: "Abismo". Coloca-se no alto e apreende a possibilidade de cair. E Pritama: "Cachoeira". Localiza no branco a água caindo.
Todas essas respostas são formas razoavelmente bem vistas. Mas não expressam diretamente a neurose da resposta coisa que acontece com o nosso primeiro paciente:
Paciente: "Que horror! Que irresponsável fazendo piquenique com as crianças na beira do abismo".
Ele apresenta um detalhe oligofrênico que no processo retórico projetivo se apresenta como uma sinédoque particularizante ou uma metonímia. Vemos um desejo inconsciente se apresentando e figurando na percepção e efetivando-se na linguagem retoricizada de um ser humano competente, cheio de obrigações, deveres, assoberbado pela idéia continuada de ser um bom provedor para sua família. Tomado pelo dever, o obsessivo que observa a prancha que mostro diz algo irritado: "Que absurdo, que louco! Como esse irresponsável pode querer fazer piquenique na beira do abismo com as crianças?!!!".
Ele projeta e coloca seu pensamento sobre a imagem perceptiva. A mesma não está colocada em questão. Em nenhum momento a natureza material está a falar. Ela integra seu pensar com o dado perceptivo em um todo. Mas é um todo que não se fecha posto que a estrutura da linguagem é de seriação.
Podemos ir um pouco mais adiante. Existe na reação e na fala do obsessivo um desejo que se forma com relação ao objeto figurado como sendo uma família e crianças correndo na beira do precipício da vida. Trata-se de percepção, mas com uma sinédoque particularizante que é chamada também de metonímia. A crítica expressa por ele é também uma insistência sobre o código moral, as regras de como devem ser as pessoas e a hipervalorização moral. Enfim, o desejo humano tem sua fórmula: ele é metonímico. Não obstante, em nenhum momento o Wirklichkeit é colocado em questão.
Retornemos para a hipótese que a estrutura da coisa está afetada na esquizofrenia.Vejamos agora uma outra prancha com um sujeito que se sentia perseguido por "eles", eles como sempre, é um pronome muito mais indefinido que definido e que freqüenta a fala psicótica de forma sistemática. É a prancha número II. Inicialmente dá uma resposta bastante comum: "São dois cachorrinhos um encostando o focinho nos outro".
Mas, segue-se a estranheza perturbadora: "Eles agora estão brigando, e está saindo sangue do papel, escorrendo". Dá uma resposta FC como chamam nossos colegas especialistas no teste. Mas, agora é a própria prancha que se vê alterada e não somente a projeção que fazemos sobre ela. A linguagem se infiltra na percepção corrompendo o esquema mesmo da coisa prancha, a imagem agora está modificada e é como se a natureza mesma das coisas falasse. Termina por jogar fora a prancha sanguinolenta com horror.
Concluindo. Para explicar o fenômeno psicótico ocorrido na prancha pensamos que o esquema da coisa prancha está alterada. Pressupusemos nas entrelinhas que a percepção é a condição de existência do psiquismo e que a linguagem é a condição de constituição do humano. Deixamos também entender que a linguagem transforma o desejo humano em uma Gestalt aberta, infinitizada posto que metonímica. Nesta apresentação fica afirmada que a Gestalt-terapia, a Psicanálise e a Fenomenologia em vez de se excluírem, articulam-se.
Referências
Husserl, E. (1991). On the Phenomenology of Constitution. Dordreecht: Kluwer Academic Publisher. [ Links ]
Merleau-Ponty, M. (1990). Merleau-Ponty na Sorbonne. Resumo de Cursos Filosofia e Linguagem. São Paulo: Papirus. [ Links ]
Sokolowski, R. (2004). Introdução à fenomenologia. São Paulo: Edições Loyola. [ Links ]
Endereço para correspondência
Universidade de Brasília (UnB). Campus Universitário Darcy Ribeiro / ICC, Ala Sul, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica (Asa Norte).
CEP: 70919.990 - Brasília / DF.
E-mail: fmartins@unb.br
Recebido em 23.06.09
Aceito em 11.07.09
Francisco Martins - Professor Titular na Universidade de Brasília. Psiquiatra, Psicólogo, Psicanalista, tem Pós-Doutorado na Université Catholique de Louvain.
1 Apresentação realizado no I Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & I Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2009. Pesquisa realizada com financiamento do CNPq.