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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.19 no.1 Goiânia jul. 2013
ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
A existência como "cuidado": elaborações fenomenológicas sobre a psicoterapia na contemporaneidade
The existence as "care": phenomenological elaborations on psychotherapy in contemporaneity
La Existencia como "cuidado": elaboraciones fenomenológicas cerca de la psicoterapia en contemporáneo
Danielle de Gois SantosI; Roberto Novaes de SáII
Ipsicóloga formada pela Universidade Federal de Sergipe e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: danielledegoissantos@gmail.com
IIProfessor Associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia na área de concentração Clínica e Estudos da Subjetividade. Endereço Institucional: Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia. Campus Gragoatá, bl. O, sala 218 (São Domingos). CEP 24210-350. Niterói, RJ. Email: robertonovaes@psicologia.uff.br
RESUMO
Este trabalho aborda algumas noções existenciais elaboradas por Heidegger em sua Analítica da Existência, enfatizando o existencial "cuidado" e suas possíveis repercussões para a psicoterapia na contemporaneidade. Utilizamos as obras Ser e tempo e Seminários de Zollikon, especialmente, na parte intitulada "Diálogos com Medard Boss". Fenomenologicamente, a clínica se interessa pelos sentidos que o homem investe em sua existência cotidiana. Nessas experiências cotidianas, os exercícios de estranhar e de meditar sobre os sentidos das relações são raros, contudo, a experiência de adoecimento psíquico convoca a reflexão sobre a existência. Em uma clínica de inspiração fenomenológico-existencial, essa reflexão pode ser norteada pelos constituintes ontológicos da existência, "cuidado" e "liberdade". Heidegger afirma que o homem é "cuidado", porque ele "cuida" ontologicamente de si mesmo e dos outros entes, deixando-os aparecer. Embora, a existência seja, essencialmente, liberdade, cotidianamente parecemos distraídos quanto ao nosso poder-ser próprio e vulneráveis às crenças impessoais e às objetivações. A compreensão da co-pertinência entre homem e mundo e da existência como cuidado, naquele sentido ontológico, implica uma transformação do olhar, revertendo preocupações técnicas de eficácia na solução de sintomas para o plano da ética a das possibilidades de singularização existencial.
Palavras-chave: Psicoterapia; Existencialismo; Fenomenologia; Liberdade; Cuidado.
ABSTRACT
This paper addresses some existential notions elaborated by Heidegger in his Analytic of Existence, emphasizing the existential "care" and its possible implications for psychotherapeutic nowadays. We use the work Being and Time and Zollikon Seminars, especially the section entitled "Conversations with Medard Boss." Phenomenologically, a clinic is interested in the senses invested by man in his everyday existence. In these everyday experiences, exercises of surprising and meditation on the meanings of relationships are rare, however, the experience of mental illness invites reflection on existence. In a clinical of existential-phenomenological inspiration, this reflection may be guided by the ontological constituents "care" and "freedom." Heidegger says that man is "care" because he "cares" ontologically about himself and the other beings, making them appear. Although, we are essentially free, daily we seem distracted to our own "potentiality-for-being", and be vulnerable to the beliefs and impersonal thoughts. Understanding the correlativeness between man, world and existence as care in that ontological sense, involves transforming the look, reversing technical concerns and effectiveness in resolving symptoms to the plane of the ethics and existential singling possibilities.
Keywords: Psychotherapy. Existentialism. Phenomenology. Freedom. Care.
RESUMEN
En este trabajo se abordan algunas nociones existenciales elaboradas por Heidegger en su Analítica de la Existencia, haciendo hincapié en el "cuidado" existencial y sus posibles implicaciones para la psicoterapia en la época contemporánea. Utilizamos las obras Ser y tiempo y Seminarios Zollikoner, sobre todo en la parte titulada "Diálogos con Medard Boss". Fenomenológicamente, la clínica está interesada en la forma en que el hombre invierte en su existencia cotidiana. En estas experiencias cotidianas, los ejercicios de sorprender y meditar sobre el significado de las relaciones son poco frecuentes, sin embargo, la experiencia de la enfermedad mental convoca reflexión sobre la existencia. En una clínica de inspiración fenomenológico-existencial, esta reflexión puede ser guiada por los mandantes ontológico de la existencia, "cuidado" y "libertad". Heidegger afirma que el hombre es "cuidado", porque "cuida" ontológicamente de sí mismo y de los otros seres, haciendo que aparezcan. Aunque, nosotros seamos esencialmente libre, parecemos distraído diario com nuestro propio "poder-ser", siendo vulnerables a las creencias y las objetivaciones impersonales. Comprender la co-relación entre el hombre, el mundo y la existencia como cuidado en el sentido ontológico, implica una transformación de la mirada, la inversión de las preocupaciones técnicas de eficacia en la resolución de los síntomas hasta el plano de la ética y de las posibilidades para la singularidad existencial.
Palabras clave: Psicoterapia. Existencialismo. Fenomenología. Libertad. Cuidado.
Introdução
O presente artigo estrutura-se a partir de elaborações sobre o existencial "cuidado", com destaque aos seus modos de realização na contemporaneidade. O "cuidado" será considerado, aqui, como constituinte fundamental da existência desde a compreensão fenomenológico-existencial do homem e norteará a reflexão sobre o cuidado psicoterapêutico. Especificamente, na clínica sob esta perspectiva fenomenológica, o "cuidado" surge como temática essencialmente articulada ao questionamento sobre o sentido da existência cotidiana, das experiências de sofrimento e de suas possibilidades de modulações e transformações.
Algumas obras do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) foram utilizadas a fim de trazer subsídios às discussões, são elas: Ser e tempo (1927/1999), Seminários de Zollikon (1987/2009) e as conferências A época das visões de mundo (1938/1962), A Virada (1950/1976) e A questão da técnica (1953/2010).
O desenvolvimento do artigo se apresenta organizado em quatro momentos, marcados por subtítulos que procuram dar um ritmo à reflexão. O primeiro momento, "O sofrimento existencial na era da técnica", procura situar as experiências contemporâneas de sofrimento a partir das transformações do horizonte histórico de sentido que instauram a modernidade técnica. No segundo momento, "Cuidado e liberdade como dimensões ontológicas da existência", os aspectos ontológico-existenciais "cuidado", "liberdade" e "verdade" são tematizados a partir da analítica da existência e tomados como referência para investigar os fenômenos do sofrimento e sua compreensão clínica.
No terceiro momento, intitulado "Pensando nosso modo contemporâneo de existir e de cuidar", retomamos a meditação sobre a contemporaneidade, buscando nos aproximarmos um pouco mais dos nossos modos cotidianos de ser, sofrer e cuidar. Por fim, o quarto momento, "Atenção e compreensão no cuidado psicoterapêutico" retoma e aborda mais detidamente a dinâmica do acontecimento psicoterapêutico sob o olhar fenomenológico-existencial.
Nosso objetivo geral é pensar os sentidos das experiências cotidianas de sofrimento, destacando as experiências de adoecimento psíquico e sua compreensão e cuidado psicoterapêuticos sob uma perspectiva fenomenológica de modulação heideggeriana.
1. O Sofrimento existencial na era da técnica
Numa conferência publicada sob o título "A Época das Concepções de Mundo" (Die Zeit des Weltbildes), Heidegger (1938/1962) aponta cinco fenômenos característicos dos tempos modernos. Os dois primeiros são a ciência e a técnica, sendo esta entendida não como aplicação daquela, mas como "uma transformação autônoma da prática" que impõe a aplicação da ciência. O terceiro fenômeno é a redução da arte à dimensão da Estética, isto é, a obra de arte torna-se objeto de uma vivência estética da subjetividade humana. O quarto fenômeno é a redução da História ao horizonte da cultura - das realizações históricas importa aquilo que diz respeito aos valores da cultura humana. Finalmente, o quinto fenômeno apontado é o desaparecimento dos deuses, o que não significa uma exclusão da religiosidade e, sim, a sua transformação em vivência religiosa do sujeito com a proliferação das interpretações históricas e psicológicas dos mitos e das religiões.
Entre esses fenômenos, Heidegger analisa mais detidamente a ciência e a técnica. Uma das transformações históricas mais essenciais para a plena instauração da chamada Época Moderna é justamente a constituição desse modo de saber como lugar de verdade e legitimação dos discursos nas mais diversas áreas da existência. Perguntar pelo sentido significa, para o mundo moderno, perguntar pela "razão" de algo, enquanto o pensamento se restringe ao "cálculo". Calcular não se refere, aqui, ao significado restrito de operação numérica e, sim, a toda apreensão e controle das coisas por meio de representações conceituais.
O mundo moderno opera uma inversão com relação às perspectivas tradicionais que procuram manter em aberto, através da experiência de sacralidade do verbo, a tensão entre as manifestações existenciais do sentido e sua fonte inefável, irredutível a causas e razões. O logos moderno, ao invés de ser tomado como uma manifestação parcial do logos enquanto abertura originária de sentido, silêncio de onde brota qualquer linguagem, tornou-se uma estrutura abstrata e universal, um meta-modelo formal capaz de gerar, por cálculo combinatório, todos os modelos possíveis de informação. A linguagem e cálculo inverteram as suas relações: o cálculo não é mais uma possibilidade restrita da linguagem, mas o horizonte transcendental que fundamenta e governa qualquer linguagem possível. O fato de que todas as disciplinas modernas que tomam, de algum modo, a linguagem por objeto, sentem-se cada vez mais à vontade no âmbito da sintaxe, em detrimento da semântica, expressa tal inversão.
Um sintoma deste modo contemporâneo de ser é a sua incapacidade evidente de lidar com os fenômenos que resistem de modo mais persistente a um enquadramento sob as categorias de significação disponíveis: a dor, a solidão, o amor, o envelhecimento e a morte. Na medida em que as experiências de angústia parecem sempre refratárias às respostas que o planejamento técnico da vida oferece, amplia-se a necessidade de desvio e controle dessas experiências. Eliminar rapidamente o sofrimento psíquico é eliminar qualquer experiência que questione os limites aceitáveis do horizonte cotidiano de sentido. É por essa necessidade compulsiva de abafar tudo que ameace a autonomia absoluta de sua perspectiva técnica, que a cultura do séc. XX tornou-se, na adequada expressão de Kolakowski, (1981, Cap. IX) a "cultura dos analgésicos", comportamento que parece ainda hoje em plena expansão.
Enquanto "projeto", a cultura moderna oscila entre o pessimismo cético e o otimismo ingênuo. No primeiro caso, uma abertura unilateral à dimensão do presente esgota todo sentido ao imediatismo do consumo, que visa à satisfação irrestrita dos desejos; no segundo caso, domina a dimensão do futuro como realização assegurada pelo progresso, planejamento e estocagem de recursos. Ou nada depende de nós e, ante essa alienação fatalista, é melhor aproveitar o momento, ou tudo depende exclusivamente de nós, e assim, não há tempo para viver frente à necessidade de garantir o bem-estar futuro. Na verdade, essas posturas alimentam-se reciprocamente. Segundo esse modo de correspondência ao sentido do tempo e do mundo, a esperança só pode ser vivida como espera, da parte de um sujeito, por um objeto que será acessível num dado instante do tempo. Por isso, a esperança moderna, quando se dá, é sempre desconfiada, porque a esperança, como confiança, só tem lugar onde há lembrança da conjuntura originária de homem, mundo, tempo e ser.
Entretanto, quanto mais a contemporaneidade se afirma como realização cultural do modo calculante de correspondência ao sentido, mais realiza também, sem o querer, a experiência das limitações desse modo de abertura. Quanto maior o esforço "técnico-calculante" de nivelamento do sentido em que pode haver sentido, maior o pressentimento incômodo do que não se deixa nivelar. Justamente aí, na experiência do fracasso e da insuficiência do planejamento técnico global (principalmente quando ele é, do ponto de vista técnico, plenamente eficaz e bem-sucedido), é que se geram as possibilidades de transformação do nosso modo de escuta e correspondência ao sentido. O homem não pode, através da previsão e do controle, conduzir a essência da técnica a uma transformação, nem evitar o perigo, apenas impondo uma ética ao uso instrumental da técnica, mas a meditação do homem, guiada pela angústia perante a incontornável dimensão trágica e finita da existência, pode conduzí-lo a uma relação mais livre com a era da técnica. "Essa liberdade se assemelha àquela de um homem que 'supera' sua dor no sentido em que, longe de dela se desfazer ou de esquecê-la, ele a habita" (Heidegger, 1950/1976, p. 144).
2. Cuidado e Liberdade como Dimensões Ontológicas da existência
Em sua analítica da existência, elaborada em Ser e Tempo, Heidegger investiga o modo de ser do homem, que ele denomina com os termos "existência", "ser-aí" e "ser-no-mundo". O prefixo "ex", de "ex-istência", significa "fora de" e é equivalente à partícula "aí" de "ser-aí" e à palavra "mundo" na expressão "ser-no-mundo". As três designações indicam, portanto, a relação indissociável do homem com o seu "fora", com o seu "aí" ou "mundo". Nomeiam o homem a partir de sua relação essencial com a abertura de sentido, com a abertura do ser. Ser-aí é o modo de ser do ente que questiona sobre o sentido do seu ser, do ser dos outros entes e da totalidade dos entes, ainda quando, na maioria das vezes, não explicite de forma elaborada esse questionamento na ocupação cotidiana com os entes. A questão do ser não é, portanto, neste sentido, uma abstração filosófica, o homem já é, desde sempre, pré-ocupado com a questão do ser. Apesar de, inicialmente e na maioria das vezes, nos conduzirmos na vida como se tudo já estivesse simplesmente dado antes e independentemente de nós, e não houvesse nenhuma questão pertinente relativa ao ser, esse modo de se comportar não é senão uma das correspondências possíveis à questão do ser.
Nesta perspectiva, a compreensão não é uma competência específica da qual o homem pode ser mais ou menos dotado. Se o ser-aí é sempre ser-no-mundo-com, enquanto abertura em que se desvela o sentido de tudo que nos vem ao encontro, já somos sempre compreensão em nosso ser mais próprio. A compreensão é, assim, um dos traços ontológico-existenciais do nosso existir. Mas, essa compreensão nunca é uma apreensão intelectual afetivamente neutra e que só posteriormente é acrescida de algum sentimento. A abertura de sentido que nos constitui já é, também, desde sempre, uma atmosfera afetiva que dá tom e coloração àquilo que nela vem à luz. Essa dimensão afetiva originária da existência enquanto abertura compreensiva, Heidegger (1927/1999, cap. V) nomeia como "disposição". Compreensão e disposição afetiva são existenciais constitutivos do "aí" do ser-aí.
A analítica dirige, ainda, o seu olhar para a cotidianidade da existência (Heidegger, 1927/1999, cap.IV), descobrindo aí a impropriedade e a impessoalidade de suas realizações medianas, bem como as possibilidades de transformação que já sempre lhe pertencem. A essa unidade existencial-ontológica do ser-aí, Heidegger denomina com o termo "cuidado" (Sorge): "o ser do Dasein diz preceder a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo)" (1927/1999, p. 257). Esta designação do ser do homem como "cuidado" é um desenvolvimento integrador da multiplicidade estrutural que a análise fenomenológica do "ser-no-mundo" elabora na analítica existencial. Por não ser nenhuma "substância" ou "ser-simplesmente-dado", o ser-aí se dá sempre "no-mundo", numa estrutura de significância, num contexto de relações.
Heidegger (1927/1999, cap. VI) distingue dois modos fundamentais do "cuidado": nas relações do ser-aí com os entes cujo modo de ser é simplesmente dado, ele emprega o termo "ocupação" (Besorgen); quando se trata das relações com os outros homens ele usa o termo "preocupação" (Fürsorge). Apesar dessa distinção, o modo cotidiano e mediano da "preocupação" com os outros é a "indiferença", isto é, a suposição de evidências, a naturalização dos sentidos e o nivelamento das diferenças, que também caracterizam a "ocupação" com as coisas do mundo. Além da "indiferença", Heidegger fala em duas outras possibilidades da "preocupação" que são de extrema importância para a reflexão clínica. A primeira se refere ao modo de "preocupação" que "substitui" (einspringt) o outro assumindo suas "ocupações", para liberá-lo delas ou devolvê-las posteriormente como algo já pronto. "Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado" (1927/1999, p. 174). Entendemos ser este um modo comum do "cuidado" nas formas de terapia que possuem ou aspiram a uma teoria e uma técnica que dêem conta do sofrimento humano.
O segundo modo da "preocupação" é aquele que se "antepõe" (vorausspringt) ao outro não para substituí-lo, mas para pô-lo diante de suas próprias possibilidades existenciárias de ser. "Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito ao cuidado propriamente dito, ou seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em seu cuidado, transparente a si mesmo e livre para ele" (Idem). No âmbito da clínica, portanto, a "anteposição" seria o modo do "ser-com" em que o terapeuta se deixa apropriar enquanto abertura para a manifestação das possibilidades próprias do outro. Heidegger diz que esses dois modos da "preocupação", a "substituição" e a "anteposição", são duas possibilidades extremas da "preocupação" não indiferente, na convivência cotidiana se realizam vários modos intermediários ou mistos.
O cuidado psicoterapêutico como preocupação antepositiva nos remete à questão do adoecimento como restrição de sentido. Se o ser-aí é, fundamentalmente, abertura de correspondência ao sentido dos entes que lhe vêm ao encontro, um modo de ser doente não se caracteriza, para a analítica da existência, tanto por seu conteúdo positivo quanto pelo aspecto de privação que ele encerra. O que faz com que se caracterize um modo de existir como doente não é apenas a sua forma específica de correspondência, que a princípio é uma possibilidade de qualquer existência, mas o fato de encontrar-se limitado a esse modo específico e, assim, impossibilitado de corresponder a outros apelos de sentido que se façam prementes em seu mundo. Todo estar doente é sempre uma limitação mais ou menos grave das possibilidades de relação que o homem pode manter no mundo e, portanto, de sua liberdade. Para Heidegger, concerne essencialmente à psicoterapia o problema da liberdade:
Empregamos a psicologia, a sociologia e a psicoterapia para ajudar o homem a ganhar adaptação (Anpassung) e liberdade em seu sentido mais amplo. Isso diz respeito (também) à medicina e a sociologia, porque todo distúrbio sociológico e patológico é um distúrbio da adaptação e da liberdade do homem singular. (Heidegger, 1987/2009, p. 199)
Mas, a essência da liberdade não se compreende aqui como estando abrigada na vontade humana. A liberdade não pertence ao ser do homem, antes, é o ser do homem que pertence à liberdade. Heidegger (1953/2010) relaciona liberdade e verdade no sentido de desvelamento (aletheia). A existência se caracteriza por ser originariamente apropriada pela verdade como desvelamento. Esta compreensão da verdade, como correspondência desveladora do que nos vem ao encontro no mundo, encontra-se, assim, em íntima conexão com a liberdade. O quanto uma existência pode deixar vir à luz em sua abertura de mundo, nunca depende apenas da aptidão sensorial, da investigação de fatos ou de raciocínios lógicos, mas, essencialmente, do quanto é livre. Nas práticas psicoterapêuticas de inspiração fenomenológico-existencial, essa compreensão de verdade e liberdade traz importantes conseqüências. Os fenômenos abordados pelo campo da psicopatologia interessam à clínica fenomenológica enquanto restrições do livre âmbito de poder-ser que caracteriza ontologicamente o ser-aí. A verdade em jogo na relação clínica não é a verdade impessoal da representação correta, mas os modos de desvelamento de sentido que a existência realiza enquanto abertura e suas restrições. As estruturas de sentido que geram sofrimento não são corrigidas através de concepções mais adequadas à suposta realidade em si. O que produz sofrimento não é a sua incorreção lógica ou factual e, sim, a sua transformação em identidades rígidas que, ainda que procuradas inicialmente como abrigos, acabam se tornando cárceres inabitáveis.
3. Pensando Nosso Modo Contemporâneo de Existir e de Cuidar
Heidegger não utiliza, em sua obra Seminários de Zollikon (1987/2009), os conceitos de forma semelhante àquela do campo científico e do senso comum, ao invés, desenvolve um exercício compreensivo sobre o sentido de fenômenos experienciados cotidianamente. A atividade de definir a priori, por mais que nos seja útil, cerceia as experiências e isso é destacado por Heidegger nas perguntas feitas pelos psiquiatras durante os dez anos dos Seminários. Naqueles encontros, as indagações dos participantes revelavam-se limitantes quanto às possibilidades de compreensão da existência humana.
Saúde e doença são exemplos de fenômenos importantes para refletirmos sobre nossos modos de ser na atualidade, principalmente, no que tange ao resgate do exercício meditativo próprio ao olhar fenomenológico na clínica psicoterapêutica. Este exercício é pensado na tentativa de trabalhar a questão do sentido dos sofrimentos existenciais contemporâneos.
A sociedade atual solidifica em suas práticas cotidianas uma interpretação objetivada de saúde e doença como estados simplesmente dados, geralmente de ordem biológica ou psico-biológica. Tal entendimento, que prioriza conceituações prévias em detrimento da compreensão dos processos de saúde e adoecimento, repercute nos diferentes modos de existir contemporâneos.
Nas relações cotidianas atuais, saúde associa-se, ainda, às idéias de adequação social, capacidade de produção e consumo. Embora os sofrimentos psíquicos sejam objetivados a partir de representações biologizantes da vida, permanece a associação tácita entre adoecimento e fracasso. Esses sentidos podem ser identificados, em nosso cotidiano, nas relações com a corporeidade, a temporalidade e a finitude da existência. As patologias atualmente mais comuns _ compulsões, depressões, pânico, distúrbios da atenção e hiperatividade _ não são, senão, expressões exacerbadas desses modos cotidianos de se relacionar consigo mesmo, com o outro e com o mundo.
Apesar de saúde e doença poderem ser articuladas a uma diversa gama de significados, tanto para a representação comum quanto científica, predomina no horizonte histórico atual um sentido geral de funcionalidade. Nesta perspectiva, os cuidados terapêuticos, que também proliferam em uma diversidade babélica, inscrevem-se no campo das atividades técnicas especializadas, regidas em suas realizações cotidianas por uma lógica de mercado. O controle compulsivo da existência, vista como energia disponível para a produção, é um traço distintivo deste horizonte. A medicalização cada vez mais agressiva e naturalizada dos sofrimentos existenciais é um dos sintomas mais gritantes deste modo contemporâneo de experiência de saúde e adoecimento.
Para falarmos atualmente a respeito de cuidado terapêutico, faz-se imprescindível pensarmos sobre os nossos modos de existir, sobre as paisagens históricas em que nos encontramos e que condicionam os limites de sentido das experiências de sofrimento e de seus modos de cuidado. A atividade de pensar sobre o sentido da vida, deixando em suspenso a correspondência imediata e automática ao permanente apelo de ocupação produtiva no mundo, não deveria ser algo tão distanciado dos cuidados com a saúde. como normalmente se considera, competindo apenas aos filósofos e outros intelectuais de profissão.
Atividade, ocupação, controle, produção e consumo são fenômenos que implicam um modo de temporalização da existência, o mesmo em que é possível surgirem alguns modos de sofrimento característicos da nossa atualidade como as compulsões, a hiperatividade, o stress, o tédio e as depressões. Em Ser e tempo, Heidegger (1927/1999) tematiza a existência humana em sua relação ontológica com a temporalidade. O homem não se dá simplesmente dentro do tempo, há uma co-pertinência entre homem e tempo, ou seja, o tempo é tratado ali como um existencial, uma dimensão constitutiva do próprio ser do homem: a existência é temporalização.
Embora a psicopatologia moderna se refira freqüentemente ao "sentido" do tempo, Heidegger destaca que "O discurso do sentido do tempo é apenas uma expressão confusa da relação do homem com o tempo" (1987/2009, p. 70). Com isso, ele quer dizer que essa relação existencial é reduzida à mera vivência subjetiva de um tempo simplesmente dado. Cotidianamente, "aproximamo-nos do tempo pelo uso do relógio", todavia, nossa medida de "agoras" não tem nada a ver com a coisa relógio, "para nós, há sempre um agora sem relógio" (Heidegger, 1987/2009, p. 72).
Fenômenos como o do tédio, relacionados à experiência do tempo, são cada vez mais frequentes em nossa contemporaneidade. "No tédio verdadeiro não se sente tédio apenas por algo determinado, mas sente-se em geral [...] No tédio acontece um retirar-se de todo ente, mas não como na angústia, onde o ente desaparece" (Heidegger, 1987/2009, p. 248). O tédio é, assim, a contrapartida de uma demanda compulsiva por ocupação em que o próprio objeto da ocupação se retira como motivação. A experiência do tempo emerge do horizonte tácito da ocupação como tempo "arrastado", "vazio", que "se perde" e que "custa a passar". Se não cuidamos do tédio como uma disposição privilegiada para pensar sobre o sentido de nossa existência, cuidamos dele apenas como humor doentio que precisa ser combatido pela reabsorção irrefletida e compulsiva no mundo da produção e do lazer.
Em meio ao que se manifesta como falta de sentido, o mundo não deixa de solicitar do homem posicionamentos, modos de produzir e gerir a vida, o que não raramente desencadeia estresse.
O estresse tem o caráter fundamental de solicitação de um ser interpelado [...] o estresse situa-se na constituição da existência humana determinada pelo estar-lançado, pela compreensão e linguagem [...] estresse significa solicitação, no caso, solicitação excessiva (Heidegger, 1987/2009, p. 180).
Se o sofrimento existencial tem sempre relação com a restrição do sentido e da liberdade, as formas de cuidado terapêutico que não se apropriam do seu lugar de constituição no horizonte histórico de sentido, permanecem restritas de forma circular ao mesmo campo de possibilidades e a mesma lógica que produz o sofrimento. Este modo de cuidado do sofrimento existencial, próprio da era técnica em que vivemos, confirma, ao curar, a natureza simplesmente dada do nosso existir e o afastamento em que nos encontramos das nossas experiências e possibilidades mais singulares e essenciais.
4. Atenção e Compreensão no Cuidado Psicoterapêutico
O exercício da atenção e da compreensão de sentido dos sofrimentos existenciais realiza a possibilidade do olhar fenomenológico como cuidado na clínica psicoterapêutica. Não se trata aí, porém, da simples adesão a uma abordagem teórica, através da aquisição de informações conceituais e treinamento técnico. Para Heidegger, a compreensão própria da existência como "ser-aí" (Dasein) não é um empreendimento meramente teórico, implica, necessariamente, um movimento de apropriação dos modos cotidianos e impessoais de ser e uma singularização do existir. Passa, portanto, pela disposição afetiva da angústia, pela antecipação do ser-para-a-morte e pela "de-cisão" por um poder-ser próprio e singular. O cuidado psicoterapêutico sob uma perspectiva fenomenológico-existencial demanda o modo de existir do terapeuta e não apenas o seu conhecimento teórico e habilidade técnica.
O cuidado, em um sentido ôntico, como intervenção voltada para um ente já constituído em seu ser, tem como condição de possibilidade o fato de que o homem é, antes, cuidado em um sentido ontológico. Só é possível nos ocuparmos com as coisas e nos preocuparmos com os outros porque as coisas e os outros já se abriram em seu ser como presenças na abertura de sentido que nos constitui mais essencialmente do que qualquer identidade positiva. Assim como, para Husserl, a consciência é sempre intencional, é sempre consciência de algo, para Heidegger, ser homem é sempre ser-no-mundo-com. Denominar o ser do homem como cuidado exprime essa condição essencial de abertura em que acontece a doação do sentido. Quando nos damos conta da presença de outro que diante de nós demanda ajuda, nosso "olhar" já posicionou previamente esse outro em seu ser-outro, atribuindo-lhe e subtraindo-lhe possibilidades de ser. O cuidado ôntico que lhe podemos fornecer já está previamente limitado por esse cuidado ontológico mais originário. Por isso, é de fundamental importância para o cuidado psicoterapêutico um movimento de suspensão e recuo ante as demandas imediatas do sofrimento tal como aparece dado à experiência cotidiana e um exame do próprio campo experiencial de sentido em que ele se constitui. Esse tipo de atenção permite que o cuidado clínico não se restrinja a uma substituição do outro em suas possibilidades próprias e pessoais, mas possa, também, convidar o outro à experiência de sua liberdade essencial.
Essa mesma condição ontológica negativa, que Heidegger denomina como poder-ser, fundada na liberdade e fundadora das possibilidades de singularização da existência, é, também, a condição ontológica de possibilidade dos modos restritos da cotidianidade mediana e da angustiante ameaça de indigência radical que sempre paira sobre o existir humano.
O homem é essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir lidar consigo. Este perigo é ligado à liberdade do homem. Toda a questão do poder-ser-doente está ligada à imperfeição de sua essência. Toda doença é uma perda de liberdade, uma limitação de possibilidade de viver (Heidegger, 1987/2009, p. 276).
Portanto, o perigo e a salvação não se encontram em lados opostos e excludentes da existência, assim como saúde e doença. Apenas daquele ente cujo ser é liberdade, é abertura, faz sentido falar em restrição existencial, em sofrimento. Pagamos, pelo contínuo desvio da angústia, com algo que nos é essencial, nossa capacidade de ver, de corresponder à realidade em suas múltiplas e misteriosas possibilidades de sentido. Só é possível livrarmo-nos da angústia, livrando-nos igualmente da realidade. A solidão existencial e a angústia da morte não são meros estados mórbidos ou patológicos, que podem ser solucionados por intervenções dos técnicos da saúde. Apenas no silêncio da hora mais solitária, quando se cala o alarido impessoal dos desejos e representações correntes do "todo mundo", é que podemos nos pôr à escuta das demandas e dos questionamentos de sentido que nos são mais próprios e singulares. As práticas psicoterápicas podem acolher tal angústia e as reflexões que ela suscita, não em virtude dos conhecimentos teóricos e das técnicas que as legitimam enquanto lugar institucionalizado de saber especialista, mas, sim, enquanto espaço de suspensão da atitude natural, tanto científica quanto do senso comum, e de correspondência às perplexidades e questionamentos legitimamente provocados por nossa condição existencial. A psicoterapia, enquanto "cuidado pela vida", pode ser explicitada na terminologia da analítica existencial como: "o estar-com que co-responde ao outro enquanto abertura às suas mais diversas e próprias possibilidades de ser" (Sá, 2002).
Considerações finais
Hoje em dia, psicoterapeutas de diferentes abordagens reconhecem cada vez mais as transformações históricas das manifestações psicopatológicas do sofrimento existencial. Estruturas recorrentes no contexto vitoriano do período de emergência da psicanálise, como, por exemplo, a histeria, são hoje mais raras, ao passo que os diversos transtornos ligados à compulsão se tornaram freqüentes nas demandas clínicas atuais. Essas mudanças tornam evidente que os transtornos diagnosticados pela psicopatologia não são estruturas internas de uma subjetividade separada do mundo e apenas influenciada pelo ambiente através da educação e das relações sociais. A fenomenologia nos ajuda a entender que todos os modos de ser do homem não são, senão, modos de compreender e se relacionar com aquilo que nos vem ao encontro no mundo.
A fenomenologia existencial de Heidegger recebeu uma importante influência do pensamento hermenêutico de Wilhelm Dilthey (Casanova, 2009), que lhe permitiu compreender a irredutível historicidade da existência humana enquanto abertura de sentido. Assim, as experiências de sofrimento do mundo contemporâneo não podem ser compreendidas em uma direção libertadora apenas através de explicações causais que tentem reduzí-las a elementos mais simples, sejam de ordem biológica ou psicológica. Compreender fenomenologicamente uma experiência de sofrimento é apreender e explicitar o campo de sentido a partir do qual sua emergência se torna possível. A dinâmica desse tipo de compreensão implica necessariamente um deslocamento existencial daquele que compreende, significa uma ampliação da própria abertura de sentido da existência e tem, portanto, uma relação direta com a liberdade para outros modos de experiência. O modo técnico científico de compreensão que atravessa o horizonte histórico em que emerge a psicologia moderna como disciplina científica emancipada da filosofia, não pode, por sua própria determinação essencial, apreender seus limites e tomar o distanciamento necessário para compreender sua historicidade inalienável. Por isso, ele pode ser de grande utilidade quando se pretende responder as demandas cegas do sofrimento, mas é inútil quando se trata de compreender as sedimentações históricas que dão a aparência de uma solidez simplesmente dada a essas experiências. Como alerta Heidegger (1987/2009, p. 140):
O modo como se vê a ciência e a técnica modernas faz a superstição de povos primitivos parecer uma brincadeira de crianças. Quem, pois, no atual carnaval desta idolatria ainda quiser conservar alguma reflexão, quem se dedica hoje em dia à profissão de ajudar as pessoas psiquicamente enfermas deve saber o que acontece; deve saber onde está historicamente...
O cuidado psicoterapêutico exige daquele que se dedica a esse tipo de relacionamento uma atenção e um modo de pensar diferenciados daqueles do senso comum e da atitude científica. Os comportamentos ônticos de cuidar do outro já estão sempre pré determinados pelo cuidado ontológico que, através do nosso modo de existir em sua totalidade, desvela o que nos vem ao encontro no mundo. A atenção necessária ao cuidado psicoterapêutico deve ter, portanto, um movimento existencial suspensivo das identificações cotidianas e dos saberes científicos e uma disponibilidade para deixar aparecer e ser tudo aquilo que encontra, a partir de suas possibilidades próprias.
Essa atitude psicoterapêutica de cuidado não pode ser adquirida pelo mero aprendizado técnico-científico, ser e saber não são tomados aqui como dimensões separadas.
No entanto, por ser tão pouco espontânea quanto a atitude científica, a atenção clínica fenomenológica precisa ser conquistada por um trabalho contínuo e rigoroso de cuidado e conhecimento de si.
Referências
Casanova, M. A. (2009). Compreender Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
Heidegger, M. (1962). L'époque dés "conceptions du monde". In: Chemins que ne mènent nulle part (Holzwege). Paris: Gallimard. (Palestra proferida originalmente em 1938) [ Links ]
Heidegger, M. (1976). Le tournant. Questions IV. Paris: Gallimard. (Palestra proferida originalmente em 1950) [ Links ]
Heidegger, M. (2010). A questão da técnica. Ensaios e Conferências, 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes. (Palestra proferida originalmente em 1953) [ Links ]
Heidegger, M. (1999). Ser e tempo. Parte I. (8. ed.). Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (Original publicado em 1927) [ Links ]
Heidegger, M. (2009). Seminário de Zollikon. In: Medard Boss. Tradução de Gabriela Arnold e Maria de Fátima de Almeida Prado. EDUC. Petrópolis, R J: Vozes. (Original publicado em 1987). [ Links ]
Kolakowski, L. (1981). A presença do mito. Brasília: Universidade de Brasília. [ Links ]
Sá, R. N. (2002). A Psicoterapia e a questão da técnica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 54(4).348-362. [ Links ]
Recebido em 01.06.2012
Aceito em 06.07.13