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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.23 no.3 Goiânia dez. 2017

 

DOSSIER - FENOMENOLOGIA DAS IDADES DA VIDA: INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

 

Anotações para uma fenomenologia do infans na fase fetal

 

Notes for a phenomenology of infans: the fetus and the first year of life

 

Apuntes para una fenomenología del infans: el feto y el primer año de vidab

 

 

Rui de Souza Josgrilberg

Graduado em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1976), graduado em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (1967) e doutor em Sciences Religieuses pela Université de Strasbourg (1973). Atualmente é professor titular da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: rmbrilhante@icloud.com

 

 


RESUMO

O texto visa delinear algumas questões e princípios para uma fenomenologia do infans enquanto é pré-falante, fase que inclui a vida intrauterina do feto e do bebê no primeiro ano de vida antes da aquisição da fala. O corpo é visto como fonte da materialidade vivida de sentido em vários níveis onde a relação de sentido com mundo é desdobrada. A apropriação de sentido começa remotamente na primeira síntese integradora que caracteriza a passagem do embrião á vida fetal com a formação do sistema nervoso central e dos sentidos corpóreos. A origem da formação do m=undo horizonte de sentidos, acontece antes do nascimento e os trabalhos da ciência e da fenomenologia ganham ambas nesse diálogo.

Palavras-chave: infans, feto, primeiro ano de vida, as relações de sentido e apropriação, constituição do mundo.


ABSTRACT

The text aims to delineate some questions and principles for a phenomenology of the infans as a pre-speaker child, a phase that includes the intrauterine life of the fetus and the newborn in the first year of life before speech acquisition. The body is seen as the source of living materiality of meaning on several levels and where the relation of meaning to the world is unfolded. The appropriation of meaning begins remotely in the first integrative synthesis that characterizes the passage from the embryo to the fetal life through the formation of the central nervous system and the bodily senses. The origin and the formation of the world horizon of meanings has it locus before birth; works of biosciences and phenomenology are put together in dialogue.

Keywords: infans, fetus, first year of life, relations of sense and appropriation, constitution of the world.


RESUMEN

El texto pretende esbozar algunas cuestiones y principios para una fenomenología del infans en tanto que pre-hablante, fase que incluye la vida intrauterina del feto y el bebé durante el primer año de vida antes de la adquisición del habla. El cuerpo es visto como una fuente de materialidad viviente de sentido en muchos niveles donde se despliega el sentido de la relación con el mundo. La apropiación del sentido comienza remotamente en la primera síntesis integradora que caracteriza el paso del embrión a la vida fetal con la formación del sistema nervioso central y los sentidos corporales. El origen de la formación del horizonte mundo de sentido ocurre antes del nacimiento; en eso los trabajos de la biocientíficos y la fenomenología pueden dialogar.

Palabras-clave: infans, feto, primer año de vida, relaciones apropiación de sentido, constitución del mundo.


 

 

Compreender a vida partindo dela mesma: o feto

A vida é dada numa totalidade estruturante e o ser humano é parte dela. Ele é conformado a ritmos naturais de geração da vida, mas os processos já não são inteiramente naturais, pois mostra a natureza entrelaçada com a cultura desenvolvida por gerações. Para Dilthey "série de gerações (...) deve ser tomada, dentro de certos limites, como um todo contínuo" (Dilthey, 1947). A vida em sua compreensiva configuração nos revela que o corpo é lugar da natureza e lugar da existência onde o mundo se dá não apenas como matéria (hylé), isto é, envolve o mundo enquanto sentido. O corpo motriz, tomado na sua abrangência, é a matriz de relações de sentido com o mundo. O primeiro momento dessa relação é a síntese que reconfigura o embrião como feto: as condições pro-to-sensíveis e pré-falantes já estão presentes no feto, formando as predisposições de base da relação de sentido, como condições que relacionam o corpo motriz com outras sínteses e fases de vida.

No mundo horizonte de sentido, a natureza e a cultura não são estanques uma à outra. Alguns aspectos da cultura se encarnam de tal modo que são transmitidos a outras gerações ou criam condições novas para o compartilhamento. Assim, por exemplo, desde o início, o corpo humano desenvolve disposições próprias para absorção de códigos de linguagem que preparam a absorção da língua. O corpo humano é uma totalidade voltada para modos de apropriação de sentido e constituição de mundos humanos. O corpo humano, desde sua configuração fetal, se comporta como uma esponja em relação ao sentido sedimentando que absorve em sistemas e códigos.

O feto não é imune ao sentido. Há comportamentos de expressividade onde a vida apresenta o impulso originário para existir e para apropriações que farão do corpo uma existência em busca de sentido e de autonomia junto com os outros. O corpo nasce como fonte da materialidade vivida de sentido em vários níveis onde a relação de sentido com mundo é desdobrada. A apropriação de sentido começa remotamente na primeira síntese integradora que caracteriza a passagem do embrião à vida fetal com a formação do sistema nervoso central e dos sentidos corpóreos.

A expressividade do corpo (qualidade originária de ser expressivo) foi amplamente estudada por Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção:

Ora, o corpo é eminentemente um espaço expressivo... Mas nosso corpo não é apenas um espaço expressivo entre todos os outros. Este é apenas o corpo constituído. Ele é a origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, aquilo que projeta as significações no exterior dando-lhes um lugar, aquilo que faz com que elas comecem a existir como coisas, sob nossas mãos, sob nossos olhos (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 202).

Esse corpo e a pré-corporeidade aparecem já no comportamento fetal como disposição para absorver o sensível no corpo e como primeira constituição do espaço vital. O mundo é uma constituição do corpo pela relação de sentido: o espaço vital intrauterino é o pré-mundo onde as primeiras predisposições existenciais são formadas. Hoje podemos acreditar que a simbiose fetal com a mãe não é apenas física. As evidências científicas de interatividade psíquica no duo mãe e feto podem ser complementadas pela fenomenologia que atribui ao corpo humano uma intencionalidade de base.

 

Fenomenologia da vida fetal

A fenomenologia da vida humana em seu primeiro estágio não é uma fenomenologia da vida solitária. A vida humana nesses estágios se compreende a partir do compartilhamento com outros e como estágios prévios da intersubjetividade.

A geração de seres humanos revela uma reconfiguração não apenas biológica para interações entre o gerado e os geradores próximos, especialmente a mãe. O embrião se desdobra em disposições fetais para a partilha da vida com a mãe; seu desdobramento uterino origina o feto com disposições de compartilhamento das primeiras relações. A palavra feto, do latim fetus, a um, significa algo gerado. Mesma raiz de "fecundo". O feto é o fecundado. Indica que tem origem em outro. A vida é dada nos animais como processo geracional de um pelo outro. Sem entrarmos na questão da origem da vida, sabemos que o processo geracional humano inclui além dessa geração de um pelo outro, a participação de seres humanos com uma carga cultural e subjetiva que interage com o corpo natural. Somos gerados pelos outros e com os outros. No feto, mesmo que não haja o eu e o outro como consciência, a interação prévia já está presente no corpo. Do lado dos geradores, a interação e a intersubjetividade está em outro estágio (especialmente, potenciado pela linguagem), e essa relação é essencial para o desenvolvimento do infans.

O feto é resultado da confluência de duas modalidades de ser; uma, podemos chamar, de a mãe natureza sem subjetividade, mas que incorpora disposições para relações de subjetividade com outros; outra, a mãe pessoa geradora e portadora de subjetividade e embebida de cultura humana. A mãe natureza opera silenciosamente e passivamente no corpo intrauterino. A mãe portadora de subjetividade se torna progressivamente decisiva por assumir os cuidados que dão à natureza outra dimensão, compartilhando com o feto aspectos importantes e originários de sua própria subjetividade e seu modo de relação com sentidos.

Dois aspectos essenciais aparecem no feto: 1) o desenvolvimento motriz fundamental e sua relação intencional com uma psique em formação1; 2) a organização de respostas emocionais, sensoriais e perceptivas que possibilitarão depois a formação temporal subjetiva de um si próprio. A formação da psique está implicada, como nos indica a ciência neuronal, com o desenvolvimento do sistema nervoso central. Aos sete meses, a morfologia do sistema nervoso central está quase pronta, com cerca de 10 bilhões de neurônios, ainda que o sistema não esteja ainda maduro, seguindo com a mielinização e a relação entre neurônios ainda pequena e em processo. A mielinização e encefalização só chegarão a termo por volta dos dois anos depois do nascimento, época da absorção ou encarnação de uma língua (essa será mais absorvida que aprendida). Esse paralelismo na formação não significa que a constituição de si mesmo seja apenas produto de processos neurológicos tal como observado pelas ciências empíricas ou em algumas tendências importantes da neurociência atual (Changeux, Damásio, Nicolelis, entre outros). Para a fenomenologia, a experiência possui uma riqueza e uma complexidade maior que a pressuposta pelo empirismo científico.

As relações primordiais da motricidade com a expressividade foram profundamente estudadas por Merleau-Ponty, no capítulo III da Fenomenologia da Percepção ("A espacialidade do corpo próprio e a motricidade"). A motricidade não é secundária em relação à expressão, antes ela é "...sem equívoco a motricidade enquanto intencionalidade original" (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 192)

A relação transcendental com o sentido das coisas não nasce com a consciência, mas com o corpo. É no corpo que nasce a relação de sentido2 originariamente através da motricidade. Merleu-Ponty (1945/1999), citando Grünbaum, escreve:

Já a motricidade, considerada no estado puro, possui o poder elementar de dar um sentido (Sinngebung)... A motricidade é a esfera primária em que em primeiro lugar se engendra o sentido de todas as significações (der Sinn aller Signifikationen) no domínio do espaço representado (p. 197).3

O corpo humano é motricidade que em parte se torna apropriada e inteligente. Não é apenas instrumento para a constituição; é o fator primário de toda constituição. Essas considerações valem para o período fetal da vida humana. No corpo do feto, o sensível vivido são manifestações da relação de sentido que terão sequências em futuros e outros modos de intencionalidade (após o nascimento).

A motricidade é fundamental na integração dos sistemas corporais e na formação de esquemas corporais. Além disso, a motricidade se constitui progressivamente como movimentos que dão direção à formação do corpo (relações originais de sentido), movimentos que se transformam em respostas a afecções externas e nos primeiros jogos ou modos de brincar e de prazer. O feto possui comportamentos que revelam a presença de uma psique pela qual ele reage a estímulos emocionais, ao gosto, ao som externo e ao som interno no útero, em especial ao som da voz modulada da mãe que repercute internamente e com o qual ele se familiariza. A motricidade das pernas e das mãos, essenciais no desenvolvimento de partes do cérebro, abrem a possibilidade de brincar/jogar já no útero. O rosto já apresenta expressividade4.

O recém-nascido segue não falante e pré-falante até por volta do segundo ano. O corpo desde a sua condição fetal, mas especialmente depois do nascimento, revela ser uma esponja de sistemas simbólicos, códigos, gestos, gostos, por exemplo, isto é, o corpo opera como catalisador semântico capaz de operar o sensível como sentido em longas sequências de relações até chegar à absorção da língua através de um sistema de signos que expressa a relação de sentido em significações. A possibilidade de tratar o sentido em recortes de significados é dada através de uma língua. Fica claro como sugerem o último Husserl e Merleau-Ponty, a importância da diferença entre sentido e significado. Sentido é mais que significado, significado é recorte de sentido, sentido-termo, sentido delimitado. Significado tem sentido, mas sentido é mais que significado (distinção essencial para o entendimento da fenomenologia como hermenêutica).

Como vimos acima, o corpo infans do recém-nascido, nascimento "antecipado" e ainda em processo e mielinização e encefalização, maturação cerebral, permite que os códigos, especialmente a língua, sejam mais absorvidos e encarnados que aprendidos porque ensinados. A língua absorvida nesta fase se torna um aspecto da corporeidade e sua relação com o sentido das coisas, isto é, seu uso se faz como expressão da corporeidade transcendental e da intercorporeidade intencional. A absorção da língua inicia um novo processo de apropriação de sentido e abre um novo horizonte existencial para a criança. Essa intercorporeidade (Merleau-Ponty) intencional, que começou no feto, e pode ser exemplificada pelo reconhecimento precoce da voz e do rosto da mãe (rosto que acompanha a voz) preparados pela escuta dos sons intrauterinos da voz modulada da mãe. O corpo se projeta na relação com o sentido. O corpo que sente na relação com o sentido revela um vivido corpóreo capaz de intencionalidades operadoras de sentido que prolongam e transformam o sensível em direção a sensibilidades mais sofisticadas de apropriação, até às teorias e conceitos, e signos matemáticos, sentidos que começaram, sem dúvida, com o sensível. O prolongamento do corpo que sente com o sentido aberto a novas sequências é uma marca da intencionalidade humana e sua abertura a relações novas e criadoras com o sentido das coisas.

Isso parece claro na constituição do que se chamou o "esquema corporal" (Schilder, 1999), designação ambígua, para expressar a apropriação motriz do corpo pelas relações de motricidade e sentido. Merleau-Ponty utiliza a noção de esquema corporal em relação com o modo de ser humano que deve fazer sentido. O filósofo utiliza, cuidadosamente e não sem ambiguidade, o conceito, procurando não tomá-lo como uma estrutura cognitiva que esconderia as relações de sentido mais essenciais. O corpo se situa como ser no mundo, num mundo que é apropriado por relações de sentido. Fenomenologicamente, trata-se, antes, não propriamente da constituição de uma "imagem" corporal, mas da relação de um modo estruturado de conceber o corpo no mundo num todo de sentido em formação. A imagem corporal é secundária em relação à disposição existencial do corpo. É sintomático que a criança ao desenhar o corpo humano, o faça com uma cabeça que se sobressai, e alguns traços para significar braços e pernas; o que está em jogo é o que faz mais sentido para a criança em sua relação do corpo no mundo, não o que ela vê. O esquema corporal é a disposição que o corpo sedimenta como corpo que sente e dos movimentos com sentido apropriado (incluídos no movimento de si). O animal é seu corpo; mas, no ser humano o corpo é a sede de uma relação existencial de sentido, corpo sentido como corpo, que se constitui por uma apropriação de um complexo de sentidos. Mesmo os instintos e as habitualidades mais remotas serão apropriados como relações de sentido e não apenas como pulsões externas a si próprio.

 

Referências bibliográficas

Dilthey, W. (1947). Le monde de l'esprit (Trad. Franc. de Die geistige Welt). Paris: Aubier.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).         [ Links ]

Piontelli, A. (1995). De Feto a Criança: um Estudo Observacional e Psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago Editora.         [ Links ]

Schilder, P. (1999). A imagem do corpo e as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Wilheim, J. (1997). O que é psicologia pré-natal. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em 21.02.17
Revisões 28.03.2017
Aceito em 12.04.17

 

 

1 Cf. dados do Curso de Psicomotricidade da Faculté de Médecine, Université Pierre et Marie Curie, http://www.fmpmc.upmc.fr/fr/les_ressources_numeriques/les_ressources_pedagogiques.html de 2002/3. Essas indicações e os trabalhos de psiquiatras, e psicólogos contemporâneos, como Tomatis (França), Piontelli (Itália), Wilheim (Brasil, cf. as publicações da Associação Brasileira para o Estudo do Psiquismo Pré e Peri-natal, ABREP)), etc. mostram a presença de vida psíquica fetal, distanciando-se, neste ponto, dos trabalhos do Dr. René Spitz, Jean Piaget, e mesmo de Henri Wallon em meados do século passado.
2 Da raiz indo-europeia sent-\, onde todos os modos de sentido são articulados em muitas línguas.
3 Merleau-Ponty projeta com lucidez uma evidência com importantes consequências para a distinção fundamental entre sentido e significado: "O que descobrimos pelo estudo da motricidade é, em suma, um novo sentido da palavra "sentido". Idem, p. 203. Cf. p. 574ss..
4 Do ponto de vista empírico da Psicologia são importantes os estudos da psique no feto de Alessandra Piontelli, De Feto a Criança: um Estudo Observacional e Psicanalítico (Imago Editora, 1995) e os trabalhos de Joana Wilheim, entre os quais, O que é psicologia pré-natal. 3. ed. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1997. Cf os Anais da Associação Brasileira para o Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal (ABREP).

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