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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.1 Goiânia abr. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n1.6
ARTIGOS: ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
Considerações fenomenológico-existenciais sobre o habitar no semiárido brasileiro
Existential-phenomenological considerations on inhabiting the brazilian semi-arid
Consideraciones fenomenológico-existenciales sobre el habitar en el semiárido brasileño
Maíra Leite EscórcioI; Elza Maria do Socorro DutraII
IMestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Endereço: Rua Praia de Muriú, 9188. Condomínio Village de Ponta Negra IV, Etapa 2, Bloco D, apto 104. CEP: 59092-390 Ponta Negra, Natal - Rio Grande do Norte. Email: maira.escorcio@gmail.com
IIProfessora Titular em Psicologia Clínica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, orientadora de Mestrado e Doutorado. Email: elzadutra.rn@gmail.com
RESUMO
O semiárido brasileiro vem passando por mudanças paradigmáticas nas últimas décadas. Da perspectiva do "combate à seca" para a "convivência com o semiárido", políticas públicas têm sido empreendidas com diferentes focos. Este estudo traz reflexões fenomenológicas calcadas na perspectiva heideggeriana acerca das mudanças relacionadas ao modo como o sertanejo habita o sertão. O paradigma do combate à seca traz consigo representações de um semiárido de aridez, restrição e escassez, imagem veiculada pela literatura e mídia do início e meados do século XX, período histórico de intensa migração nordestina. Já no início do século XXI temos o emergente paradigma da convivência que procura mostrar um sertão como lugar de pertencimento e possibilidades. A partir da revisão da literatura de pesquisas com sertanejos, foi possível lançar um olhar crítico para uma realidade que desvela o sertão como abrigo do antigo e do novo paradigma, ao mesmo tempo exercendo ligação no modo como o sertanejo habita sua terra, uma vez que ele é sempre ser-no-mundo. Assim, o semiárido se abre como lugar onde o humano habita no modo da familiaridade ou do estranhamento, iluminados a partir da experiência de cada um.
Palavras-chave: Semiárido; Convivência; Heidegger; Habitar; Fenomenologia.
ABSTRACT
Brazilian semi-arid (Sertão), one of the four sub-regions of the Northeast of the country, has undergone paradigmatic changes in the past decades. It has shifted from the perspective of "fight against drought" to that of a "coexistence with the semiarid" and thus State policies have been implemented with different focuses. The present study brings a heideggerian phenomenological approach to the changes in the way the people in the Sertão inhabit the land. The paradigm of fighting the drought is known for representing the semi-arid with aridity, restriction and scarcity. Those are the images presented by Brazilian national literature and by the national media in the first half of the XXth century, period of intense emigration from the mentioned area. The beginning of the XXIst century saw the emergence of the paradigm of coexistence in which the Sertão was presented as a place of possibilities and presence. Through a work of literature review this paper was able to establish a critical view over the current reality of the Sertão as a place for the old and the new paradigms. Both perspectives are present in the way people inhabit the land and connect with it, considering that humans are always being-in-the-world. In that sense, the semi-arid is given as a place for inhabiting in familiarity or estrangement affected by the experience of each other.
Keywords: Semi-arid; Coexistence; Heidegger; Inhabit; Phenomenology.
RESUMEN
El semiárido brasileño (Sertão) sufrió cambios paradigmáticos en recientes décadas. La perspectiva de "combate a la seca" se ha transmutado en "convivencia con el semiárido" y así políticas públicas fueron establecidas con diferentes propósitos. Este estudio presenta algunas reflexiones fenomenológicas con base en la tradición heideggeriana para tratar de las transformaciones en la manera como el sertanejo habita su tierra. El paradigma del combate a la seca representa el semiárido en su aridez, restricción y escasez con imágenes presentadas en la literatura y la media nacional de la primera mitad del siglo XX. En inicio del siglo XXI se erige el paradigma de la convivencia presentando un Sertão como lugar de pertenecimiento y posibilidades. A partir de un trabajo de revisión de la literatura de investigaciones con sertanejos fue posible observar críticamente una realidad que conserva a un tiempo el antiguo y el nuevo paradigma influenciando la manera como el sertanejo habita su tierra, ya que él es siempre ser-en-el-mundo. De esta manera, el semiárido se abre como lugar para habitar en el modo de familiaridad o de alejamiento iluminado por la experiencia de cada uno.
Palabras-clave: Semiárido; Convivência; Heidegger; Habitar; Fenomenologia.
Introdução
Atualmente vivemos uma crise hídrica mundial (Veriato et al, 2015). Lugares antes marcados pela abundância de água, hoje sofrem esquemas de rodízio e as pessoas precisam desenvolver novas formas de viver com essa situação. São Paulo é um dos Estados que já foi destino de inúmeros retirantes nordestinos em busca de melhores condições de vida devido ao fenômeno das secas. Agora, início do século XXI, é notícia nacional a baixa de seus reservatórios de água. Informações do jornal "Folha de S. Paulo" trazem que a crise se iniciou no ano de 2014, teve seu auge no início de 2015 e, em 2016, os reservatórios vem se recuperando gradativamente1.
Seja resultado de fenômenos climáticos, somados à ingerência de recursos (Automare, 2015), o fato é que, segundo relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento de Recursos Hídricos 2015 - Água para um Mundo Sustentável (ONU, 2015), o fenômeno da falta de água tende a se agravar nos próximos anos e a demanda por água tende a crescer em 55% até o ano de 2050. Mas, afinal, como a vida é possível sem esse recurso essencial para sua manutenção? Partindo de uma perspectiva fenomenológica existencial, o humano é o pastor do ser (Heidegger, 1946/2005b), sendo a existência sempre interpelada por sentido. Dessa maneira, perguntar sobre a manutenção da vida na perspectiva da irregularidade da água traz consigo a necessidade de nos aproximarmos de quem vive nesse horizonte de sentido.
O homem do semiárido brasileiro tem sua existência marcada por essa irregularidade na oferta de água e periodicamente atravessa períodos estendidos de seca. Atualmente o semiárido vem sofrendo transformações paradigmáticas, passando da perspectiva do "combate à seca" para a da "convivência com o semiárido".
O presente artigo tem como objetivo trazer reflexões fenomenológicas heideggerianas acerca das mudanças de paradigma no modo como o sertanejo do semiárido brasileiro habita sua terra natal, o sertão. Para o estudo atingir esse objetivo, foram tomados como base de reflexão teórica alguns textos clássicos da ontologia heideggeriana, tais como Ser e Tempo (Heidegger, 1927/2005a) e a conferência "Construir, Habitar e Pensar" (Heidegger, 1954/2012). Em seguida, foram reunidos artigos científicos, livros, dissertações, informações a respeito de migrações de órgão oficial como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assim como de jornal de grande circulação, a saber, Folha de S. Paulo.
Foi realizada uma leitura crítica do material obtido através da revisão de literatura e algumas reflexões fenomenológico-existenciais foram tecidas, culminando com o seguinte percurso: num primeiro momento, é realizada a retomada do paradigma do "combate à seca" e suas possíveis implicações no modo como o sertanejo habita o sertão. Em seguida, é lançada uma reflexão crítica acerca do paradigma emergente da "convivência com o semiárido" com o objetivo de problematizar se essa nova perspectiva está trazendo novas possibilidades de pertencimento para o homem do sertão. Por fim, anunciamos a coexistência dos dois paradigmas no semiárido brasileiro com considerações fenomenológicas a respeito dessa implicação.
Parte do território brasileiro é composto pelo clima semiárido. Essa região, segundo dados do Ministério da Integração Nacional (2005), caracteriza-se pela irregularidade das chuvas, clima quente, bioma da caatinga, e alta evaporação da água. A região ocupa 9 Estados Brasileiros e abrange 86% da região nordeste.
Nos últimos 30 anos, o semiárido sofreu mudanças de paradigmas políticos. Se por quase cem anos as políticas públicas se voltavam para a seca como um fenômeno a ser combatido (Carvalho, 2006), atualmente o semiárido é tido como uma região onde a convivência é possível (Lindoso, 2013). Ocorre, então, uma mudança de paradigmas. Silva (2003, p. 64) afirma que:
Percebe-se que estas duas perspectivas, do combate à seca e da convivência com o semi-árido, estão estreitamente articuladas com diferentes paradigmas de desenvolvimento que informam as percepções sobre aquela realidade, selecionam os problemas e os seus enfoques específicos e indicam os modelos válidos de intervenção na superação de seus problemas específicos.
A cada período histórico marcado por distintos paradigmas de desenvolvimento, corresponde uma perspectiva adotada no direcionamento de políticas públicas e, consequentemente, essas perspectivas brotam de compreensões daquele contexto específico. É dessa maneira que autores (Carvalho, 2006; Chacon, 2007; Lindoso, 2013; Silva, 2003) apresentam o paradigma do "combate à seca" como pautado num modelo mecanicista de controle da natureza, enquanto que o paradigma da "convivência" se orienta numa ótica de sustentabilidade.
Apesar de muitos sertanejos terem migrado para a região Sudeste em meados do século XX, segundo dados de estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - (IBGE, 2011), atualmente essas migrações têm diminuído. O que estaria ocasionando essa permanência do sertanejo no semiárido se as secas ainda ocorrem? Essa pergunta anuncia a necessidade de uma reflexão acerca do habitar do sertanejo.
Partindo da perspectiva heideggeriana do humano como ser-no-mundo (Heidegger, 1927/2005a) num horizonte histórico, consideramos que os acontecimentos, sentidos e significados correntes sobre um determinado lugar se relacionam diretamente com os modos de ser e estar do humano, com sua existência: "A essência da presença está em sua existência" (Heidegger, 1927/2005a, p. 77). Dessa maneira, é importante realizar uma aproximação com o contexto da existência humana que aqui propomos, a dizer, o semiárido brasileiro, a fim de compreendê-lo.
O sertão e suas mazelas
No final do século XIX ocorreu uma grande seca no nordeste brasileiro, o que fez com que os olhares do governo, até então monárquico, se voltassem para a região. A proposta foi, então, a de realizar obras que atendessem às necessidades de água do homem do semiárido (Campos, 2006; Chacon, 2007; Lindoso, 2013). Contudo, Malvezzi (2007) aponta que foi apenas no início do século XX que a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) foi criada. Ela posteriormente se transformaria em Departamento de Obras Contra as Secas (DNOCS). Autores como Campos (2014), dividem em fases as diferentes intervenções estatais que foram empreendidas nesse período de aproximadamente cem anos na região, compreendido como período marcado pelo paradigma de "combate às secas". Para Carvalho (2006, p. 5):
Ao se instituir uma política de combate à seca uma série de políticas assistenciais de emergência foi empreendida, não atentando para produzir um conhecimento mais aprofundado desta região do país e de suas potencialidades e como também de entender como essa região se articula em sua pluralidade e com o mundo.
Essa política privilegiou a construção de grandes obras com o objetivo de estocar a água, como os açudes e algumas iniciativas de perímetros irrigados, ignorando características da região, como o próprio fato da evaporação da água no semiárido ser grande. Assim, alguns autores (Furtado, 1967; Malvezzi, 2007) apontam que essas obras beneficiavam mais os grandes latifundiários do que os pequenos produtores. Nesse aspecto, outra importante dimensão da região se desvela: uma íntima relação entre seca e poder (Santos, Santos & Santos, 2014; Travassos, Souza & Silva, 2013). Os detentores de terra, conhecidos como coronéis, beneficiavam-se dos recursos públicos destinados a grandes obras de baixo impacto para a população em geral.
Essa fase é difundida por Callado (1960) junto com a ideia da "indústria da seca". Esse termo diz respeito à equivocada ideia de que a seca seria a única responsável pela miséria do semiárido, fazendo com que recursos fossem destinados para a construção de obras vultosas na região. Contudo, esses recursos acabavam por alimentar um ciclo de obras paliativas, conforme descreve Malvezzi (2007, p. 13): "Políticos pedem auxilio federal. Constroem grandes obras - nem sempre de forma honesta - , mas, mais adiante, elas estarão secas de novo, por evaporação. Sustenta-se assim, ao infinito, a indústria da seca". Mais uma vez, a questão das relações de poder e exploração despontam no universo sertanejo, sendo este um dos fatores preponderantes relativos à situação de escassez e êxodo rural agravados nos períodos de seca ao invés do fenômeno da seca em si.
É possível visualizar, então, que essa maneira de olhar para o semiárido cria um viés a respeito do homem do sertão. Durante esses anos, temos a publicação de importantes obras clássicas da literatura brasileira, como "Os Sertões" de Euclides da Cunha, "O Quinze" de Raquel de Queiroz, "Vidas Secas" de Graciliano Ramos. Elas retratam o sertão e o sertanejo ressaltando os aspectos do ambiente hostil, do sofrimento oriundos dos períodos de seca, e trazem a imagem do sertanejo como um "forte" por sobreviver às intempéries climáticas.
Alguns autores (Buriti & Aguiar, 2008; Ferraz, 2011; Queiroz & Pereira, 2012) afirmam que tanto a literatura como a mídia contribuíram para criar e difundir um imaginário do sertão como local de seca e escassez. Buriti & Aguiar (2008, p. 12) destacam que "os próprios sertanejos eram pejorativamente chamados de 'flagelados', que 'invadiam' os grandes centros urbanos como 'desocupados' que se tornavam uma 'ameaça' à 'ordem' e à higiene enfaticamente propalada pelos médicos e sanitaristas daquele período". Considerar que o problema do semiárido se restringe à ocorrência de secas, assim como entender o sertanejo como um "flagelado", é um reducionismo que deve ser desconstruído e repensado à luz do contexto histórico e social em que ele vive, uma vez que o humano vive num horizonte de sentido histórico. Silva (2003, 363) afirma que:
No final da década de 1950, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), coordenado pelo economista Celso Furtado, confirma que as ações governamentais de combate à seca, além de ineficazes, contribuíram para reprodução das crenças difundidas pelas elites locais de que a seca era responsável pelo subdesenvolvimento regional.
Desta maneira, percebemos que o paradigma do "combate às secas" pouco contribuía com os sertanejos, consolidando a imagem da seca como responsável pelo subdesenvolvimento. Em contraponto a esse imaginário reducionista, o sertão também é conhecido por suas festas populares (Malvezzi, 2007) e o sertanejo por sua forte religiosidade (Pontes, 2014), que inúmeras vezes se associam difundindo crenças e costumes. Um exemplo dessa mistura pode ser observado nas festas religiosas, como os reisados, festas juninas e procissões. Como crença, temos o dia de São José, celebrado no dia 19 de março, dia em que havendo chuva, o inverno será bom.
Nesse mesmo contexto, dados mostram a ocorrência de um grande fluxo migratório da região Nordeste para outros Estados brasileiros com maior intensidade no período do primeiro ciclo da borracha (1879) e durante o auge da industrialização brasileira, entre 1950 e 1980. A esse respeito Gomes (2006, p. 144-5) afirma:
A concentração fundiária, concomitante à modernização do campo somada às mudanças nas relações de trabalho e de poder, provocam uma grande expropriação e estimulam a grande emigração, agravadas nos ciclos das secas. Nesse mesmo tempo, o CentroSul se transforma em um grande pólo de atração pela dinâmica de sua economia.
Assim sendo, as motivações que impulsionaram as migrações são múltiplas, nos dois grandes períodos destacados, e estão relacionadas a diversos fatores que extrapolam a ocorrência das secas, trazendo à tona a busca por oportunidade de trabalho e a existência de relações de poder e exploração na região semiárida. Como estão estes fluxos migratórios atualmente?
Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) indicam uma mudança nesses fluxos, evidenciando uma queda na migração de nordestinos para a região Sudeste na última década. Diante desse panorama político e social do sertão nordestino, quais impactos são possíveis de vislumbrar na própria existência do sertanejo?
A partir de Heidegger (1927/2005a), o humano (Dasein/Ser-aí) é compreendido como único ente cujo ser está em jogo e é sempre ser-no-mundo, essa uma unidade indissociável. O mundo, para além de região, localidade, pode ser compreendido enquanto trama de significados (Vattimo, 1987) na abertura da existência. Aberto e lançado no mundo, o homem é tocável pelo que vem a seu encontro, graças ao existencial da disposição, também compreendido como humor, e da compreensão, mais um existencial que caracteriza a abertura originária do humano. Heidegger discorre acerca de outros existenciais em sua obra "Ser e Tempo" (1927), tais como decadência, discurso, cuidado, entre outros, ressaltando seu caráter de interdependência. Entretanto, nesse artigo nos debruçaremos sobre o "habitar".
Ainda em "Ser e Tempo" (1927), Heidegger indica que temos o serem derivado do ser-no-mundo e "O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo" (Heidegger, 1927/2005a, Parte I, p. 92. Grifo do autor). O sentido trazido pelo autor para esse existencial diz respeito a ser familiar, pertencer, morar junto a. É possível também compreendermos esse existencial como uma possibilidade humana de "se sentir em casa", acolhido e pertencente a algum lugar na dispersão cotidiana, intimamente articulado ao existencial da disposição/humor, segundo Heidegger (1927/2005a). Na condição de existencial, o serem é constituinte do humano, da própria existência.
Já no ano de 1951, em sua conferência "Construir, habitar e pensar", Heidegger se aprofunda mais nesse existencial e discorre acerca dele como "habitar". Nela, recobra uma discussão sobre a origem das palavras no alemão e seus significados, afirmando que construir originariamente tem o significado de habitar, no sentido de cultivar. Nesse sentido, "habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram: nas coisas" (Heidegger, 1954/2012, p. 131).
Fazendo referência à quadratura como uma simplicidade que abarca céus e terras, deuses e mortais, o autor ressalta que, habitando, o humano se demora junto às coisas, num cultivo. E é através de um exercício de pensamento e questionamento que o construir e o pensar pertencem ao habitar.
Cabe ressaltar aqui que, quando Heidegger faz essa mudança de compreensão de "Ser e Tempo" para a referida conferência, já está em uma fase de seu pensamento em que se volta para o estudo do ser e da linguagem (Teixeira, 2006). Assim, algumas noções ganham novos contornos em seu pensamento. "Serem" passa a ser compreendido de maneira ampliada como "habitar"; a noção de mundo ganha também o sentido de origem como terra, assim como o humano (Dasein/Ser-aí) passa a ser denominado como homem/mortal, desvelando sua condição existencial.
Num exercício de pensamento nos deparamos com o humano que existencialmente habita a terra, tem suas raízes na própria existência, sendo existência. Esse humano experiencia momentos de seca e tem sua condição de vida, a água, indisponível. A fim de nos aproximarmos da experiência a partir de quem a vive, vejamos o que o sertanejo tem a falar sobre si mesmo considerando algumas pesquisas levantadas através da revisão de literatura.
Em estudo realizado por Villas & Campos (2006) sobre as representações da seca para sertanejos de Jusante dos açudes Orós (Ceará) e Armando Ribeiro Gonçalves (Rio Grande do Norte), em junho de 2003, alguns sertanejos foram escutados. A partir de entrevistas com homens e mulheres sobre o que é a seca, os pesquisadores relataram que a população atribui esse fenômeno à miséria e à opressão do poder público, assim como o referiram como algo complexo e difícil de falar a respeito.
A pesquisa põe em destaque que a população do semiárido faz uma relação entre seca, miséria e políticas públicas, indo além da imagem da seca como única responsável pela miséria. Quando lançamos olhar para o sertanejo do semiárido a partir do paradigma do "combate às secas", percebemos uma existência que estaria se movendo num horizonte de relações desiguais de poder e exploração. Tais políticas nem sempre beneficiam a população em geral e não promovem uma perspectiva que instigue a "combater" um fenômeno climático do qual não se possui controle. Ao mesmo tempo, essa existência se enraíza num universo cultural de festas e religiosidade, devendo ser considerado que muitas pessoas ainda vivem no meio rural.
Malvezzi (2007) pensa que o sertanejo, tendo condições de vida para ficar em sua terra, ele o faz, sendo as festas um de seus fatores de agregação. Segundo o autor, "essa permanência esta ligada ao "prazer" de estar ali e ser sertanejo. Explica muito da permanência do povo sertanejo no meio rural; os estados nordestinos são os mais rurais do Brasil" (Malvezzi, 2007, p. 32).
Se o sertanejo tem um enraizamento em sua terra que ultrapassa as mazelas políticas e sociais aos quais ele está exposto, como Malvezzi (2007) propõe, uma mudança de paradigma, do "combate à seca" para a "convivência com o semiárido" poderia lhe trazer novas possibilidades de existência.
Mudanças de paradigma: novas possibilidades de existência?
O paradigma da convivência com o semiárido tem seus pressupostos já anunciados nos anos de 1980 (Lindoso, 2013). Contudo, é no final da década de 90, com a "Declaração do Semiárido" e o início da Articulação do Semiárido (ASA), que autores consideram que essa mudança de paradigma de fato ocorreu. Foi a partir da mobilização de Organizações Não Governamentais (ONGs), aliadas à população, e movimentos sociais que já apresentavam insatisfações com as políticas do antigo paradigma, somadas a preocupação de âmbito nacional e internacional com o desenvolvimento sustentável (Chacon, 2007) que nasce a noção de "convivência com o semiárido". Para Cunha & Paulinho (2014, p. 31):
É importante ressaltar que, no paradigma da convivência, estão relacionadas duas dimensões: uma dimensão social (num sentido amplo que envolve tanto práticas produtivas quanto saberes e especificidades culturais) e outra ambiental. A dimensão social deve se "adequar" à dimensão ambiental.
A ideia de que o paradigma da convivência possui duas dimensões, uma social e uma ambiental, estando a primeira subordinada à segunda, leva à compreensão de que o sertanejo não precisa lutar e ir contra o ambiente em que ele vive. Outrossim, ele pode reconhecer seus limites e potencialidades a fim de desenvolver formas de produção e de vida que estejam de acordo com a região. Nesse sentido, ao invés de "combater à seca", vista como fenômeno hostil a enfrentar, o sertanejo tem a possibilidade de reconhecimento e do convívio a partir de modos que respeitem as características regionais e ambientais do semiárido.
Nesse sentido, a perspectiva da convivência estaria propiciando novas formas de existência para o sertanejo, atribuindo novos significados para essa região até então, por muitos, estigmatizada. Habitar o semiárido a partir do paradigma da convivência estaria, então, fortalecendo o enraizamento do sertanejo em sua terra natal?
Alguns autores (Carvalho, 2006, 2011; Lindoso, 2013; Malvezzi, 2007; Silva, 2003) têm direcionado seus estudos na perspectiva da convivência como uma nova forma do homem do sertão estar no semiárido. Eles relacionam esse paradigma como possibilidade das pessoas "ganharem voz" na construção de políticas, participando de maneira ativa.
Numa perspectiva fenomenológica, Carvalho (2011) defende que o paradigma da convivência gera um novo sentido de pertencimento para o sertanejo, abrindo-o para novos significados para com os outros na mundanidade semiárida. Para a autora, a convivência diz respeito a uma nova forma de identidade. Segundo Carvalho (2011, p. 71):
'Convivência' guarda em si o valor da tradição, por meio da valorização dos conhecimentos dos sertanejos e sertanejas com a semiaridez, suas 'leituras' dos sons da mata, cantos de pássaros, condições atmosféricas, direções do vento etc., ou seja, com as formas sutis de comunicação desse povo com o universo simbólico, as práticas de coletividade, os sistemas de dádivas e de obrigações comunitárias.
Este paradigma então seria um novo modo de se relacionar com o mundo e com os outros de forma a valorizar saberes tradicionais, compreensões da natureza que sempre estiveram presentes na vida semiárida e modos de ser-no-mundo com os outros mais cooperativos. A proximidade do sertanejo com a natureza semiárida dá notícias de um homem que possui uma relação de proximidade e intimidade com a sua terra, desvelando raízes e compreensões de quem habita e pertence num resguardo.
A convivência com o semiárido, para Carvalho (2011), é uma forma de solicitude, termo utilizado por Heidegger (1927/2005a) para designar um modo significante do humano se relacionar com outro humano. Olhar para a convivência como solicitude traz a implicação de pensar no sertanejo para além dos estereótipos fatalistas em relação à seca como pivô de sofrimentos até então disseminados por algumas mídias (Queiroz & Pereira, 2012), em consonância com alguns interesses das oligarquias sertanejas (Chacon, 2007). Implica, ainda, reinserir o sertanejo como protagonista de sua história.
Uma experiência inusitada é apresentada por Martins, Buriti & Chagas (2007) no interior do Ceará, onde seis sertanejos agricultores redimensionaram sua atividade laborativa e passaram a bordar. Em sua pesquisa etnográfica, os autores destacam que os sertanejos entrevistados afirmaram ter enfrentado preconceitos entre eles mesmos pelo fato do bordado ser tradicionalmente uma atividade feminina. Contudo, com a necessidade de tecer novos caminhos de subsistência, o bordado se abriu como possibilidade, denotando mudanças e aberturas nos modos de ser do homem do sertão. Segundo Martins, Buriti & Chagas (2007, p. 36):
O estudo de campo nos possibilitou a percepção da trajetória de mudanças, a partir do trabalho, dos sertanejos com seus entraves sociais. Esse "fenômeno" está permeado, nos discursos de sofrimento que nos levam à emergência de um novo homem capaz de tecer o seu destino e nos apresentar outras formas de inclusão, pela mão do trabalho - do arado ao bordado.
A emergência do novo homem do sertão, protagonista, criativo e ativo é destacado nesse estudo. São pessoas que ao invés de mudarem de cidade, de região para a manutenção de sua sobrevivência, escolheram permanecer e se reinventar, percorrendo novos caminhos de vida no mesmo chão. Não há como afirmar, no entanto, que essa experiência se deu a partir da mudança de paradigmas que tem ocorrido no semiárido. Porém, as novas alternativas se abriram para esses sertanejos também porque a região viabilizou uma possibilidade, desconstruindo o imaginário reducionista do sertão como local apenas de seca e escassez.
Resultados preliminares de uma pesquisa com familiares de agricultores suicidas de 5 municípios do interior do Rio Grande do Norte que fazem parte da região semiárida foram divulgados por Dutra & Roehe (2013) com o objetivo de compreender aspectos existenciais possivelmente relacionados ao fenômeno do suicídio dos agricultores. Nesse estudo, os familiares entrevistados apontam as condições de vida na região como um dos fatores que poderiam ter influenciado a decisão pelo suicídio.
De acordo com falas de alguns entrevistados, fica em destaque o desemprego, a falta de perspectivas para os jovens e a vontade de mudança de cidade. Compreendido como contexto de vida inóspito e limitante nas possibilidades de ser, a morte se anunciaria como possibilidade última, revelando que "quando os entrevistados descrevem suas condições de vida, mostram a relação entre suas possibilidades e o mundo em que, necessariamente, todo ser humano habita" (Dutra & Roehe, 2013, p. 115).
Algo de diferente se instaura a partir dessa pesquisa: o semiárido tecido como local de pertencimento e possibilidades mostra um novo contorno nas falas dos sertanejos que denunciam suas condições de vida como limitantes. Será que o paradigma da convivência com o semiárido ainda é incapaz de mudar o modo como o sertanejo habita o sertão?
Em outro estudo realizado em Afogados da Ingazeira (PE) sobre a implementação do programa de convivência com o semiárido "Um Milhão de Cisternas" (P1MC), Pontes (2011) diz que as famílias ainda não tinham clareza que as cisternas faziam parte de um programa financiado pelo governo federal. Elas atribuíam sua implantação a uma "dádiva" ou associavam-na a algum político especifico. Um significado religioso é atribuído ao beneficiamento das famílias com uma política pública e ainda associado a relações de apadrinhamento político, muito comum em meados do século XX.
O desconhecimento da população acerca dos novos programas sociais vinculados ao paradigma da convivência, assim como o desvelamento da existência de relações de poder e favorecimento (Santos, Santos & Santos, 2014) associadas às obras no semiárido, sugerem a coexistência de duas perspectivas no semiárido brasileiro: a do combate à seca e a da convivência com o semiárido, conforme destacado por Pontes (2011).
O sertão: abrigo do antigo e do novo
Através de uma aproximação com a experiência de sertanejos a partir de alguns estudos que lhes deram voz, é possível refletirmos acerca das mudanças proporcionadas com as mudanças de paradigmas no semiárido brasileiro. Se por um lado a proposta do combate à seca traz ideias pejorativas e reducionistas a respeito do sertão e do sertanejo (Campos, 2014; Chacon, 2007; Silva, 2003), por outro, a perspectiva da convivência parece veicular uma imagem de sustentabilidade, pertencimento e protagonismo para a região (Carvalho, 2011; Lindoso, 2013).
Contudo, a perspectiva da convivência com o semiárido é recente e, apesar de atualmente as políticas públicas se orientarem a partir de seus ideais, existem relações de poder históricas no semiárido que alimentaram e ainda encontram lugar, ocasionando a coexistência de diferentes paradigmas (Pontes, 2011). Todavia, é no solo de antigos e novos paradigmas que o sertanejo habita sua terra, optando pela permanência em maior escala do que em outros momentos históricos, conforme indicam dados do IBGE (2011).
Assim, o sertanejo do semiárido está enraizado num universo de significados históricos de exploração, escassez, religiosidade, uma vez que o humano habita uma pré-compreensão de si e do mundo que o move. Ao mesmo tempo, novas possibilidades de ressignificação mundana desabrocham em seu horizonte de sentido, vindo ao seu encontro a noção de pertencimento e valorização regional. São dois modos distintos de olhar para essa realidade que tem se apresentado para o próprio sertanejo; compreensões dicotômicas, com significados pejorativos e valorativos. Esse contexto de ambivalência paradigmática estaria trazendo algum impacto no modo como o sertanejo habita?
Autoras como Fortunato & Neto (2010) apontam que o paradigma da convivência com o semiárido tem procurado construir uma memória da região como local de protagonismo social, pertencimento e possibilidades, ao passo que a designação sertão ficou atrelada à ideia de pobreza, miséria e exploração. Elas afirmam que essa nova perspectiva também atende a interesses e homogeneíza a imagem do sertanejo e, "a partir dessa compreensão, a memória do Semiárido, como contraponto à memória do sertão, passa a assumir duas funções essenciais: manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que os habitantes do semiárido devem ter em comum" (Fortunato & Neto, 2010, p. 59).
As autoras sugerem um movimento de homogeneização do sertanejo a partir da perspectiva da convivência com o semiárido, assim como uma nova forma de exploração. É possível considerarmos, sob essa ótica, que a própria homogeneização humana é um modo de nivelamento de possibilidades de ser-no-mundo, o que implica numa restrição da existência cotidiana. Nesse sentido, ao invés de novos modos de habitar o semiárido se abrirem como possibilidade, num resguardo, mais uma vez o sertanejo estaria submetido aos ditames paradigmáticos de uma outra proposta de ações e políticas locais. Essa proposição nos remete novamente à assertiva de que a região semiárida é marcada por relações de poder históricas que perduram ainda hoje com outras roupagens, conforme as autoras chamam a atenção.
A noção pejorativa associada à ideia de sertão, assim como de combate à seca, se contrapõe a noção de semiárido e convivência, como lugar de pertença e possibilidade. Porém, por se tratar de uma região regida pelos dois paradigmas e pessoas singulares, é importante olharmos para essa realidade como múltipla e diversa, com marcas características de um horizonte histórico.
Assim, Cunha & Paulinho (2014) alertam sobre a existência de contradições dentro do paradigma da convivência, questionando se ele de fato visa à transformação dos modos de ser e relações de exploração do semiárido ou se diz respeito a um conservantismo de vanguarda, calcado na ideia de adaptação do sertanejo ao seu contexto marcadamente desigual com relações que o mantêm em situações de pobreza. Trazendo a política da construção de cisternas como paradigmática da convivência, Cunha e Paulinho (2014, p. 54) afirmam que "as cisternas não são anunciadas como alternativas paliativas enquanto não é possível oferecer para os moradores das comunidades rurais do interior do Nordeste água tratada e encanada. Elas simbolizam a capacidade de adaptação do sertanejo, sua criatividade". A reflexão proposta pelos autores traz um apelo crítico para o paradigma emergente da convivência com o semiárido que precisa ser considerado.
Compreendemos aqui que o semiárido de hoje é local em transformação: contexto do antigo e novo paradigma político, múltiplas possibilidades e apelos, ambiguidades e contradições, banhado pela forte religiosidade sertaneja. Apreendendo esse cenário, aberto e lançado na facticidade cotidiana, o sertanejo experiencia essas transformações. Existencialmente ele habita, seja no modo da familiaridade, enraizado em sua terra, seja no modo do estranhamento, num distanciamento.
O modo como essas transformações atuais tocam o sertanejo são problematizadas neste artigo a partir dos já citados estudos de Chacon (2007), Dutra & Roehe (2013) e Pontes (2011). O primeiro estudo faz uma leitura crítica a respeito da política de águas no Estado do Ceará, versando sobre o paradigma da convivência. Nesta pesquisa, Chacon (2007) destaca que mesmo o novo paradigma não inclui o sertanejo e, apesar de se interessar por seu ponto de vista, ele não é considerado. Desta maneira, afirma que a modernização da região, com a chegada da energia elétrica e de novas tecnologias, acaba por trazer novos significados para a vida no sertão. Segundo Chacon (2007, p. 38):
O sentimento de pertencer ao sertão não apenas desaparece, mas é verdadeiramente extirpado, visto que é traduzido como atraso. Essa destruição do nexo das relações sociais afeta não apenas as pessoas, mas toda uma teia de atitudes e processos que norteiam a cultura sertaneja, inclusive no que se refere à relação do Homem com a Natureza.
Ao considerarmos esse viés, a compreensão que se abre é a de que as mudanças que vêm ocorrendo no semiárido estariam distanciando o sertanejo de sua terra, ao invés de reaproximá-lo. As relações tradicionais estariam sendo dissolvidas, ao invés de resguardadas, ocasionando uma experiência de desenraizamento. Na pesquisa de Dutra & Roehe (2013) essa perspectiva do desenraizamento ganha força, já que as condições de vida dos familiares de agricultores suicidas são tidas como limitantes e frustrantes. Esses significados atrelados à vida sertaneja falam sobre a experiência dessas famílias num contexto mais atual, cujo peso de ser e ter que ser foi levado ao limite por alguns familiares.
Por outro lado, Pontes (2011) traz a experiência do programa de implementação de cisternas em Afogados de Ingazeira - PE. Em seu estudo, algumas observações importantes a respeito da mudança de paradigmas são mostradas: algumas famílias não quiseram participar da iniciativa porque não tinham como dispor do trabalho de participação nas reuniões formativas, do trabalho braçal e da alimentação para os trabalhadores; algumas mulheres lamentaram a não participação devido ao único envolvimento do marido ser com bebida alcoólica; a maioria das famílias participaram da iniciativa e aprovaram; não ficou claro para os participantes de quem era a iniciativa, sendo que alguns acreditavam que estava vinculada a algum político "bondoso"; ainda assim, algumas famílias se engajaram no processo e tiveram acesso a uma formação política mais crítica a partir das reuniões formativas.
As informações resultantes das entrevistas e observações do estudo de Pontes (2011) falam tanto de um novo modo de relação com a água e com a tecnologia das cisternas, como numa outra compreensão política de algumas famílias, levando o sertanejo a experienciar novas possibilidades de enraizamento em sua terra. Ao mesmo tempo, também revela as dúvidas de alguns sertanejos a respeito de como essa tecnologia chegou até sua comunidade: seria beneficiamento de algum político? Um outro achado diz respeito a não mobilização de algumas famílias devido a impossibilidade de trabalhar na construção das cisternas.
A partir dessas três pesquisas, o anúncio da coexistência de dois paradigmas tão dicotômicos no contexto semiárido parece abrir o sertanejo para novas maneiras de habitar o semiárido. As contradições e ambivalências desses modelos político-sociais podem suscitar familiaridade e estranhamento e até mesmo viabilizar o apelo da disposição da angústia e do tédio no confronto com a finitude. Na medida em que é tocado a partir de sua abertura, o sertanejo tem a possibilidade de se voltar para sua existência de novas maneiras nas ocupações cotidianas.
Voltar o olhar para o habitar enquanto modo em que o humano está junto às coisas numa demora, resguardando cada coisa em sua essência (Heidegger, 1954/2012), é a proposta heideggeriana. Quando pensamos em demora junto às coisas, os existenciais da espacialidade e da temporalidade se abrem, remetendo ao local de habitação, de morada humana e a sua temporalidade. Assim, ao realizarmos uma aproximação com o local de desvelamento do ser, seu contexto, a dizer, o sertão nordestino, e lançar luz às questões emergentes e históricas, é o esforço de compreensão do habitar desse mesmo homem que se mostra. Contudo, estudos que tragam a voz do sertanejo a respeito das mudanças que vêm ocorrendo em sua terra ainda são difíceis de serem encontrados, o que restringe o nosso intento.
Portanto, devemos considerar que as mudanças de paradigma sustentam os modos diferenciados pelos quais o sertanejo habita o semiárido. Este é um fenômeno que desvela inúmeras faces a partir do olhar que se lança para ele e merece então um cuidado. Entretanto, é possível vislumbrar que tais paradigmas projetam ideias e ações no sertão e exercem influência nas relações correntes, uma vez que o humano é ser-no-mundo, pertencendo tanto no modo da familiaridade como no do estranhamento.
Considerações finais
Afirmar que o paradigma do combate à seca está associado à imagem do sertão como local de seca e escassez, enquanto a perspectiva da convivência com o semiárido traz um sentido de pertencimento e familiaridade, é uma proposição questionável. O modo como o sertanejo habita o sertão é permeado pela coexistência desses paradigmas, contudo, não pode ser por eles definido. Habitar o semiárido diz respeito tanto ao panorama histórico e político, quanto à maneira que cada sertanejo experiencia sua existência em sua região.
Conforme esclarece Dutra (2008), a partir da compreensão da fenomenologia existencial inspirada em Heidegger, o humano enquanto ser-no-mundo já anuncia a condição ontológica e social do homem, pois "não é possível pensar o humano fora de um contexto social, de um mundo geográfico, histórica e socialmente já constituído, o que significa, acima de tudo, pensar o homem como um ser de relação" (p. 233). O humano, sempre ser de relação no mundo, promove implicações sociais e históricas em seu horizonte enquanto tece relações, sentidos e significados únicos. Dessa maneira, as mudanças que vêm ocorrendo no semiárido iluminam possibilidades de ser, estar e pertencer à região.
Portanto, é necessário realizarmos uma leitura crítica dessa mudança de paradigmas, uma vez que o semiárido brasileiro abriga as duas perspectivas e leituras, acolhendo o ontem e o hoje que coexistem com suas mazelas e possibilidades de vida, que se abrem e fecham. Nesse movimento de desvelamento e ocultação de significados e sentidos, nesse horizonte histórico ungido por relações de poder, multiplicidade cultural e religiosa, é que o semiárido desabrocha como possibilidade de morada humana a partir da experiência de cada sertanejo no sertão.
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Recebido em 30.08.16
Primeira Decisão Editorial em 20.03.17
Aceito em 22.06.17
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