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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.3 Goiânia dset./ez. 2018

https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n3.14 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Sobre norma, saúde e doença. Sobre anomalia, hereditariedade e procriação

 

 

Kurt Goldstein*; Tradução: Jennifer da Silva MoreiraI

IUniversidade Federal do Paraná

 

 

 

 

 

Um organismo que atualiza suas peculiaridades essenciais ou, o que significa a mesma coisa, encontra seu meio adequado e as tarefas que nele surgem, é "normal". Uma vez que essa realização ocorra num meio específico, de modo comportamental ordenado, pode-se indicar o comportamento ordenado sob essa condição como comportamento normal.

 

Sobre a determinação da normalidade

SAÚDE E DOENÇA. Muitas tentativas foram realizadas para determinar a normalidade. De acordo com uma visão idealista, considera-se uma pessoa como normal, ou mais ou menos anormal, conforme o grau em que ela corresponde a um certo ideal filosófico. Assim Hildebrand desejaria que o conceito de norma fosse formado de acordo com um tipo ideal, como o de um herói. Qualquer conceito de norma idealista é de pouca utilidade, porque ele sempre irá divergir de acordo com a respectiva filosofia de vida. Além disso, ele sempre carrega um caráter extrínseco, porque o seu quadro de referência não é orientado por qualquer realidade, mas ao invés disso, teria que se justificar na realidade. Mesmo se o conceito idealista de norma fizesse justiça às "constantes" das espécies, ao formar o ideal de acordo com essas constantes, ele ainda poderia falhar no que diz respeito ao individual.

O que nós precisamos não é apenas um conceito geralmente válido de norma, o qual deve evitar o "subjetivo", mas um conceito com base no qual os fatos concretos possam realmente ser compreendidos. Com base nisso, um conceito estatístico da nor-ma parece quase mais útil. Este conceito certamente pode ser muito valioso para propósitos práticos específicos que requerem formulações relativas à média. Mas ele não pode ser utilizado para determinar se um determinado indivíduo é considerado normal ou anormal. O conceito estatístico da norma não faz justiça ao indivíduo. Entretanto, de acordo com a nossa discussão anterior, nós apenas podemos nos satisfazer com um conceito de norma que seja adequado a esse propósito.

Antes de poder elaborar isso detalhadamente, nós queremos discutir primeiro, de modo mais aprofundado, outro conceito, ao qual isso está relacionado de diversas formas - o conceito de saúde e, o de seu oposto, doença. Dessa forma, nós esperamos obter o material que nos tornará aptos a tomar uma decisão quanto ao conceito de norma. Além disso, tal discussão parece oportuna para o nosso principal problema, porque os conceitos de saúde e doença de modo algum dizem respeito apenas ao médico, mas ao campo da biologia por inteiro.

Pode-se declarar como certo que qualquer doença é uma anormalidade, mas não que toda anormalidade é uma doença. Não importa como nós definimos normalidade, há certamente muitos desvios da norma que não significam estar doente.

Mas o que é estar doente? Muitos vão concordar com Albrecht (1) que uma definição geral de conceitos como normal, saudável e doente não é possível, e que esses conceitos são determinados pela convenção tradicional, assim naturalmente sendo afligidos pelos problemas dessas convenções. Segundo Jaspers (2), doença é um conceito de valor que depende mais da concepção predominante em sua respectiva esfera cultural do que do julgamento do médico. A decisão de se um fenômeno é patológico não tem, segundo ele, significância factual. O psicopatologista cuidadoso, por exemplo, de fato não daria ênfase a um julgamento tão geral como "doença". Eu não gostaria de ter problemas com esse argumento enquanto ele permanece puramente acadêmico. No entanto, me parece questionável se a ciência natural poderia ficar sem o conceito de doença, o qual, afinal, expressa um fato, por mais que seja difícil formular esse fato precisamente. Outros, Mainzer por exemplo, dizem que a doença é "de modo algum uma categoria da ciência da vida, mas apenas um conceito médico ou pré-médico".

Em nossa discussão, iremos desconsiderar aqueles que buscam determinar a doença externamente - como algo que, por assim dizer, recai sobre o paciente. Nós lidaremos apenas com aqueles que consideram doença como uma mudança do organismo. Assim nós estamos, de fato, mais interessados com o problema de estar doente e menos com o da doença1.

DOENÇA NÃO DETERMINÁVEL QUANTO AO CONTEÚDO, NEM COMO DESVIO DE UMA NORMA SUPER-INDIVIDUAL. Vários estudos comumente buscam determinar doença como um desvio, quanto ao conteúdo, da condição do organismo durante o estado de saúde, ou como um desvio de uma norma que deve ser determinada em relação ao conteúdo. A ambiguidade do conceito de doença se mostra então, como uma consequência da ambiguidade do conceito de norma. De uma "norma média" ou uma "norma idealista", certamente é, em geral, impossível derivar uma definição de doença em relação ao conteúdo. Estritamente no que diz respeito ao conteúdo, não há, baseado nisso, diferença fundamental de longo alcance entre o organismo sadio e o doente. Mas é questionável se há justificativa em dizer, como Mainzer o fez, que "não há diferença em relação à vida sadia e a doente". Em nossa opinião, a vida normal tem algo a ver com comportamento ordenado. Nesse caso, seria possível que embora possa não haver diferença entre a vida sadia e a doente, com relação ao conteúdo, ainda poderia haver diferença em relação à forma. Possivelmente todas as tentativas de determinar a doença até agora estavam condenadas ao fracasso porque procuravam por determinações em relação ao conteúdo. Estas não podem ser encontradas com base em uma "norma" super-individual. O possível fracasso ao determinar a doença por meio desse procedimento nos leva, então, a assumir que a doença não é uma categoria da ciência da vida. Tal resultado deveria tornar suspeita a premissa original. Como é possível pensar que e doença e a saúde poderiam não ser conceitos biológicos! Se nós desconsiderarmos, por um momento, as condições complicadas no homem, essa afirmação certamente não é válida para os animais, nos quais a doença geralmente decide se o organismo do indivíduo "será ou não será". Basta pensar sobre o prejuízo que a doença traz para a vida do animal não domesticado, ou seja o animal que não se beneficia da proteção do homem! Se a ciência da vida é supostamente incapaz de compreender o fenômeno da doença, de-ve-se duvidar seriamente da sua apropriação, e em verdade, das categorias intrínsecas de uma ciência assim construída.

Mas, vamos deixar de lado, pelo menos por enquanto, esse problema de definição e vamos ver como os próprios pacientes e os médicos distinguem saúde e doença. Eu acredito que eles procedem primeiro não focando no conteúdo. Certamente, o médico assim como o paciente podem ficar desconfiados quanto a saúde, quando reconhecem desvios do comportamento usual no que diz respeito ao conteúdo, como por exemplo, fadiga anormal, palpitação do coração, náusea, dor de cabeça, pés inchados, etc. Mas nem para o médico nem para o paciente essas manifestações são doenças em si, mas no máximo, sinais de que uma doença pode existir. A experiência de estar doente não contém necessariamente qualquer tipo definido de mudança quanto ao conteúdo. E o médico, quando decide se está lidando com um caso de doença, é, na maior parte, guiado por um critério completamente diferente da prova de uma mudança no conteúdo. No mínimo, o bom médico procederá dessa forma enquanto sua apreensão ingênua de saúde e doença não for tendenciada pelo conhecimento de inumeráveis detalhes científicos.

A DEFINIÇÃO DE DOENÇA PRESSUPÕE UMA CONCEPÇÃO DE NATUREZA DO INDIVÍDUO. Agora, qual é a base para o julgamento: "Ele está doente"? Trata-se da observação de uma peculiaridade mudada, de um "comportamento desordenado", a observação do tipo de reação que pertence à catastrófica. As mudanças objetivamente verificáveis dos particulares, no pulso, temperatura, etc., são para o médico praticamente apenas uma confirmação da exatidão de sua afirmação. E do mesmo modo, o próprio paciente experiencia a doença primariamente como uma mudança básica em sua atitude com relação ao ambiente, como incerteza e ansiedade - as manifestações subjetivas da condição catastrófica.

Essa caracterização mostra que o estar doente não é experienciado, nem pelo médico nem pelo paciente como uma mudança com relação ao conteúdo, mas sim como uma perturbação no curso dos processos da vida. Por conseguinte, nem todo desvio da norma, quanto ao conteúdo, se mostra uma doença. Ele se torna, realmente, uma doença apenas quando, como L. Friedmann afirma corretamente, carrega consigo dano a e perigo para o organismo todo. Usando uma descrição provisória e mais geral, que requer uma determinação mais específica, podemos dizer: Uma condição pode ser designada como doença quando ela põe em perigo a "existência". Assim, estar doente aparece como uma perturbação da função, através da qual as mudanças quanto ao conteúdo podem meramente ocasionar o sentimento de adoecimento. Consideradas nelas mesmas, as mudanças não precisam ser doença. Fenômenos patológicos são a expressão do fato de que relações normais entre organismo e ambiente mudaram por meio de uma mudança no organismo, e de que assim muitas coisas que eram adequadas para o organismo normal já não são mais adequadas para o organismo modificado.

Doença é choque e perigo para a existência. Assim, uma definição de doença requer uma concepção de natureza do indivíduo como ponto de partida. A doença aparece quando um organismo é mudado de tal forma que, mesmo em seu meio "normal" apropriado ele sofre reação catastrófica. Isso se manifesta não apenas em perturbações específicas da performance, correspondendo ao local do defeito, mas em perturbações bastante gerais porque, como vimos, o comportamento desordenado em qualquer área coincide sempre com um comportamento mais ou menos desordenado em todo o organismo.

Com essa definição de doença como uma perturbação do curso dos processos, nós estamos, em geral, em concordância com alguns autores. Assim, por exemplo, nós podemos concordar com Lubarsch (3), que caracteriza a doença como uma perturbação do equilíbrio vital, ou com Ribbert (4) que a chama de o resultado da insuficiência ou completa falta de adaptação a influências nocivas, ou com Schilling (5), para quem a doença é uma perturbação do curso biológico ordenado no organismo, sendo que essa perturbação não pode mais ser removida por meio do grau usual de regulação. Nosso ponto de vista é particularmente próximo ao de Aschoff (6) e ao de Grothe (7). Aschoff define a doença como qualquer perturbação no curso dos processos biológicos "por meio da qual o organismo é posto em perigo em sua existência biológica". Com relação a essa definição, parece-nos que a caracterização da existência como biológica, no sentido comum da palavra, é muito limitada. Entretanto, eu não posso concordar com a objeção de Friedmann de que essa definição é muito limitada porque o clínico inquestionavelmente conhece condições patológicas que não colocam a existência em perigo. Essa objeção seria válida apenas caso se pensasse sempre em morte quando se pensa sobre perigo para a existência. Mas a objeção não se sustenta caso se considere que perigo sempre significa colocar em perigo a atualização das "potencialidades de performance" essenciais para o organismo do indivíduo. Esse perigo pode se manifestar em perturbações objetivas como também em experiências subjetivas. Mas pode também existir objetivamente sem que a pessoa se torne subjetivamente consciente disso.

DOENÇA COMO UM "RESPONSIVIDADE DEFEITUOSA". O nosso ponto de vista, provavelmente, está mais próximo ao de Grothe. Nós concordamos completamente com ele quando o autor diz que a doença pode ser determinada apenas por meio da norma que permite levar a completa individualidade concreta em consideração, uma norma que faz do indivíduo mesmo a sua medida; em outras palavras, uma norma pessoal, individual. Segundo Grothe, o indivíduo é a medida de sua própria normalidade. A saúde é definida pelo fato de que "a manifestação da vida de um indivíduo se ajusta completamente às suas exigências biológicas que emergem do encontro das "potencialidades de performance" fisiológicas com sua situação externa de vida". Esse "ajustamento" é descrito como responsividade. Doença é "uma responsividade defeituosa que resulta objetivamente em prejuízos na capacidade e na duração da performance, e subjetivamente, em sofrimento". Qualquer tentativa de determinar saúde e doença sobre essa base torna pré-requisito, certamente, a determinação da "natureza" individual da pessoa em questão. Fundamentados em nossas exposições anteriores, nós não vemos, nesse ponto, dificuldades para o ponto de vista de Grothe. Mas, outra dificuldade surge.

Se recuperar a saúde consistisse em realizar uma suficiente remoção dos desvios da norma do indivíduo que foram causados pela doença, então a saúde poderia ser recuperada apenas por meio de uma restituição completa do estado normal anterior (restitutio ad integrum). Isso, todavia, limitaria incisivamente o conceito de saúde, se comparado ao uso comum do termo. Além disso, indubitavelmente há pessoas que não se consideram doentes, por mais que o defeito possa permanecer. Grothe escapa dessa dificuldade, mas apenas aparentemente, ao afirmar que o paciente é capaz de compensar, através de adaptação morfológica e funcional, o desvio de sua norma individual no que diz respeito à capacidade e duração de performance. O paciente fica bem apesar do defeito residual, porque ele substitui as performances perdidas por outras. Essa ideia está baseada na pressuposição de que a deficiência no funcionamento de uma parte pode ser compensada pelo aumento do funcionamento de outras. Assim, a performance total pode permanecer essencialmente inalterada. Mas, essa pressuposição é muito duvidosa. Seria possível concebe-la apenas enquanto se considera as performances do organismo como compostas por performances partitivas e, enquanto se assumir, por assim dizer, um agente especial para a regulação do todo com o auxílio do qual uma performance perdida poderia ser substituída por outra. Porém, caso se considere cada performance como dependente do todo, como uma expressão especial do todo, não é, então de fato, possível assumir uma substituição per se. Na verdade, a substituição parece ocorrer apenas sob um exame superficial. Nós obtemos essa impressão quando, apesar de um defeito, o organismo continua a realizar performances um tanto adequadas, de modo que o indivíduo não aparece mais como estando essencialmente perturbado.

A RESTAURAÇÃO DA SAÚDE. Uma análise cuidadosa mostra que o antigo modo de performance e o antigo modo de fazer um acordo com o antigo meio nunca é alcançado pelo paciente. Nós consideramos muito importante tornar esse ponto completamente claro. O leitor pode estar surpreso por nós rejeitarmos a suposição de qualquer compensação para as performances perdidas (apesar do fato de nós termos defendido uma relativa independência de longo alcance das performances de seu substrato normal, e apesar do fato de nós considerarmos qualquer performance como uma do organismo todo).

Em primeiro lugar, a observação em si torna essa conclusão atraente. Mas se opor à ideia de compensação não contradiz o nosso ponto de vista sobre a relação da performance para o com o substrato. Por mais que estejamos convencidos da relativa independência da performance individual de um determinado substrato localizado, nós estamos igualmente certos de que as performances normais são limitadas à integridade estrita do organismo todo, no que diz respeito à sua organização estrutural. Em uma formação que é qualitativamente e estruturalmente tão diferenciada quanto o organismo, não há algo como a compensação. Se as performances perdidas retornam, isso é possível por meio da restituição do dano ou por meio da execução de performances que são similares apenas em seu efeito. Mas, nós sempre encontraremos uma simultânea perda de outras performances ou a da restrição do meio. Recuperar a saúde, enquanto o defeito permanece, é possível apenas sob certas limitações. Uma vez que o principal critério para recuperar a saúde é a restituição da ordem, qualquer outra mudança remanescente pode, a princípio, não ser percebida, enquanto não prejudica ou prejudica apenas em pequeno grau o comportamento ordenado. Nós veremos mais adiante que essa ordem depende, no entanto, de um mínimo de performances essenciais.

A saúde não é restaurada, como Grothe afirma, por meio da compensação ou da substituição das perturbações quanto ao conteúdo. Pelo contrário, ela é restaurada se uma relação entre as performances preservadas e as perturbadas for alcançada, a qual torna (apesar dos defeitos residuais) a "responsividade" possível novamente. Essa relação é independente de um ferimento em um determinado substrato. Se certas mudanças não indicam perigo, então elas não geram uma doença, mas são apenas desvios que permanecem irrelevantes contanto que o indivíduo esteja apto para lidar com as demandas psicológicas e físicas de seu meio pessoal apesar dessas mudanças - em outras palavras, não esteja ameaçado em sua "existência".

Esse é o caso, para mencionar alguns exemplos de Grothe, quando o coração é muito pequeno, na albuminúria fisiológica ou na vaso-motilidade anormal. Indivíduos com essas mudanças parecem saudáveis porque eles estão adaptados a um meio pessoal muito específico. O fato de que a adaptação ao meio pessoal é o requisito básico para a saúde deles se mostra quando eles ficam doentes na medida em que essa adaptação não se faz presente, por exemplo, na medida em que demandas "normais" médias são feitas a eles. De modo similar, mesmo um indivíduo normal pode ficar doente quando demandas além de suas potencialidades médias são feitas a ele.

Não se trata de uma objeção válida contra essa definição de doença afirmar que com base nela, por exemplo, um paciente com uma úlcera no estômago ou um tumor maligno pode ser designado como saudável, na medida em que nenhuma perturbação em sua responsividade se tornou óbvia. Primeiro, a afirmação de que não há perturbações pode ser traçada, até certo ponto, como uma insuficiência de observação por parte do paciente assim como do médico. Segundo, tal objeção é injustificada a partir do nosso ponto de vista porque é demasiado míope considerar, como ela faz, o organismo apenas em sua situação presente e não considerar que cada fenômeno pode ser devidamente avaliado apenas quando relacionados como partes da vida total do indivíduo, particularmente no que diz respeito ao seu futuro. Nós podemos designar uma pessoa com esse estigma como estando saudável apenas se nós não esperamos nenhuma perturbação da responsividade no futuro. Se esse for o caso - e decidir isso é realmente o requisito básico de um diagnóstico médico - nós certamente devemos designar o paciente como doente.

Assim, estar bem significa ser capaz de comportamento ordenado que pode prevalecer apesar da impossibilidade de certas performances que eram possíveis antigamente. Mas o novo estado de saúde não é o mesmo que o anterior. Essa observação marca a principal diferença entre o nosso ponto de vista e o de Grothe. Assim como uma determinada condição no que diz respeito ao conteúdo pertence ao antigo estado de normalidade, também uma determinada condição no que diz respeito ao conteúdo pertence à nova normalidade; mas, é claro, os conteúdos de ambas diferem. Essa conclusão, que segue como uma coisa natural a partir do nosso conceito de organismo que também é determinado quanto a conteúdos, torna-se de extrema importância para a atitude do médico em quanto àqueles que recuperaram sua saúde. A doença não pode ser determinada quanto aos conteúdos a partir de nenhuma norma super-individual, enquanto que a partir da norma individual isso pode ser muito bem feito. Se o indivíduo perdeu conteúdos essenciais, ele se torna doente. Ficar bem novamente, apesar dos defeitos, sempre envolve uma certa perda na natureza essencial do organismo. Isto coincide com o reaparecimento da ordem. Uma nova norma individual corresponde a essa reabilitação.

O quanto a restauração da ordem é importante para a recuperação pode ser visto a partir do fato de que o organismo parece ter uma tendência primária de preservar, ou obter, capacidades que tornem isso possível. O organismo, antes de tudo, parece determinado a começar a ganhar constantes novamente. Nós podemos encontrar na cura (com defeito residual) mudanças em vários campos quando comparados com a antiga natureza do organismo; mas, o comportamento mostra que o caráter das performances é novamente "constante". Nós achamos constantes tanto no campo corporal quanto no mental. Por exemplo, se comparado com o comportamento anterior, nós achamos uma mudança na pulsação, na pressão sanguínea, na quantidade de açúcar no sangue, nos limiares, nas performances mentais, etc., mas essa modificação é uma das constantes formadas recentemente nos respectivos campos. Essas novas constantes garantem uma nova ordem. Nós podemos entender o comportamento do organismo recuperado apenas se considerarmos esse fato. Nós não devemos tentar interferir nessas novas constantes, porque criaríamos assim novas desordens. Nós aprendemos que a febre nem sempre deve ser combatida, mas que um aumento da temperatura pode ser entendido como uma dessas constantes que são necessárias para tornar a cura possível. Nós aprendemos a tratar de modo similar certas formas de aumento da pressão sanguínea ou certas mudanças psicológicas. Há muitas alterações de constantes que, hoje, nós ainda tentamos remover por sua suposta nocividade, enquanto seria melhor não interferir.

Uma compreensão mais profunda da natureza das neuroses, assim como das lesões cerebrais, tem nos mostrado que desvios da norma nem sempre são sinais de adoecimento. Ao contrário, alguns deles pertencem aos processos no paciente que o protegem de certos perigos naturalmente envolvidos na mudança para uma nova normalidade. Nós aprendemos a considerar certos desvios como uma necessidade para o bem-estar. Eles pertencem ao tipo de mudança do meio que permite um comportamento relativamente ordenado, e, assim, protege o organismo de demandas com as quais ele não possa lidar.

 

Resumo do nosso conceito de saúde e doença.

1. O bem-estar consiste em uma norma individual de funcionamento ordenado, expressa em constantes definidas, responsividade e em decididamente em modos de comportamento incontestavelmente preferidos (natureza essencial, adequação individual, média individual de processos de equalização, etc.).

2. Doença é um funcionamento desordenado, ou seja, responsividade defeituosa, do organismo individual em comparação com a norma desse indivíduo como um todo. Essa desordem é doença na medida em que ameaça a auto atualização.

3. A mudança no conteúdo não constitui a doença, mas é um indicador da existência de desarranjo funcional do todo.

4. Cura é um estado de funcionamento ordenado recém-atingido, ou seja, responsividade, articulado sobre uma relação especificamente formada entre performances preservadas e comprometidas. Essa nova relação opera na direção de uma nova norma individual, de nova constância e adequação (conteúdos).

5. Toda cura com defeitos residuais implica em alguma perda na "natureza essencial". Não há substituição real.

Em sua tendência de manter performances ótimas e de obter um novo funcionamento ordenado, o organismo doente ou se adapta a um defeito menos relevante cedendo a ele ou se ajusta a um defeito maior ao reorganizar a performance danificada à custa de outras (troca). Em ambos os casos, a nova ordem necessita de uma restrição ou diminuição das potencialidades de performance (natureza essencial) e do meio.

OS DOIS TIPOS DE ADAPTAÇÃO A UM DEFEITO. Ao que parece, a adaptação a um defeito irreparável toma, essencialmente, direções opostas. Ou o organismo se adapta ao defeito, ou, por assim dizer, se rende a ele, ou se resigna a performances defeituosas mas ainda aceitáveis que ainda podem ser realizadas, e se renuncia a certas mudanças do meio que correspondem às performances defeituosas; ou o organismo encara o defeito, se reajusta de forma que o defeito, em suas consequências, é mantido em cheque. Nós, de fato, mencionamos esses dois tipos de comportamento em nossa discussão sobre as sequelas das lesões no sulco calcarino. Lá nós vimos que os resultados de cada um desses dois tipos de comportamento estão relacionados ao grau do distúrbio. O mesmo pode ser verificado em muitos e diferentes campos.

Nós queremos demonstrar isso, aqui, com um exemplo particularmente instrutivo. Em pacientes com lesão em um lado do cerebelo, nós sempre encontramos um "puxão no tônus" em direção ao lado adoecido. Todos os estímulos que são aplicados a esse lado são percebidos com uma intensidade anormal, com um anormal "voltar-se para o estímulo". Isso leva a desvios no caminhar, a uma predisposição a cair, apontar em direções erradas, etc., sempre na direção do lado adoecido. Geralmente, os pacientes exibem simultaneamente uma anormalidade de postura na forma de uma inclinação do corpo, especialmente da cabeça. Na medida em que o paciente permanece nessa postura anormal ele se sente relativamente à vontade, tem me-nos perturbações subjetivas do equilíbrio, menos vertigem, etc. Suas performances objetivas, como caminhar, apontar, etc. são melhores. Os desvios podem desaparecer completamente. No entanto, as perturbações subjetivas, assim como as objetivas, reaparecem imediatamente quando o paciente reassume a posição antiga, a posição normal do corpo. Aparentemente, a anormalidade de postura se tornou um pré-requisito para performances melhores, tornou-se a nova situação preferida. Assim, nós consideramos as anormalidades da postura como processos de compensação, assim como Poetzl as considerou. Manifestamente, a compensação surge em alguns casos por meio de uma inclinação em direção ao lado adoecido e, em outros, em direção ao lado saudável.

Como esse comportamento pode ser explicado? Como qualquer outro tipo de defeito, um defeito cerebelar resulta em dois tipos de sintomas. Primeiro, sintomas que consistem em perturbações de certas performances; segundo, aqueles que consistem em uma desordem geral do comportamento total que é determinado pelo fenômeno catastrófico, correspondendo à inadequação das reações. Por meio da postura anormal, não apenas as performances específicas são melhoradas, mas também as reações catastróficas são diminuídas. Uma nova ordem existe que pode ser atingida de dois modos. Um deles é o organismo ceder ao puxão do tônus. Por meio da inclinação do corpo na direção do lado do puxão, uma posição na qual estímulos iguais produzem efeitos iguais nos dois lados é atingida2.

Mas essa mudança é de valor para o organismo apenas caso essa posição oblíqua não se torne uma perturbação em si, por exemplo, se tornar impossível manter o corpo todo em equilíbrio. Portanto, a inclinação na direção do lado adoecido aparece apenas em pacientes com danos pequenos. Apenas nesses casos o antigo modo de procedimento é preservado. O mesmo ocorre com a hemiambliopia. O outro modo é observado quando o dano é tão grande que o paciente cairia imediatamente se ele se inclinasse na direção do lado adoecido. Posteriormente, nós temos uma postura anormal na direção do lado oposto, ou seja, do lado saudável. O, anormal, puxão do tônus na estimulação do lado adoecido é equilibrado da tal forma que, devido a postura anormal - que, nesse caso, significa esforço anormal - a estimulação comum do ambiente no lado saudável, agora, também se torna efetiva com força anormal. Dessa maneira, um estado de equilíbrio é obtido novamente, nesse caso por meio de uma mudança no tipo de comportamento, por meio de um novo ajustamento, como ocorre quando há destruição completa da calcarina na hemianopsia. Esse tipo de adaptação é mais ativa, mais voluntária. Gradualmente, no entanto, ela se torna tanto uma questão de costume, que então o paciente dificilmente fica consciente da postura anormal. Ele apenas sabe que assim ele se sente melhor.

Os dois tipos de adaptação não são igualmente importantes para o organismo como um todo. O primeiro envolve mais segurança, é mais automático, e geralmente é acompanhado por uma melhora não tão grande quanto o outro. O segundo envolve menos segurança, requer mais comportamento volitivo, e por isso leva mais facilmente a flutuações; no entanto, no campo em especial a performance pode melhorar mais. Uma vez que, como vimos, o ponto principal é atingir um comportamento ordenado, nós percebemos que, na medida em que a performance em um determinado campo seja suficiente boa, o primeiro, o tipo mais seguro de adaptação, ocorre. O segundo tipo aparece apenas quando o primeiro não mais alcança o propósito, ou seja, se ele não atingir uma performance suficientemente boa em um determinado campo, ou se como nós já dissemos, um comprometimento insuportável do todo do organismo venha a ocorrer.

Nesses dois diferentes tipos de adaptação, nós estamos lidando com regras gerais às quais é preciso estar atento. Somente assim que sintomas aparentemente contraditórios em lesões de mesmo caráter ser tornam inteligíveis. Isso vale tanto para fenômenos em seres humanos doentes quanto para experimentos com animais.

Se nós analisarmos os vários tipos de ajustamento e, particularmente, a significância da demanda do meio para o desenvolvimento da adaptação, a lei básica que domina a vida do organismo se torna especialmente clara. É de extrema importância para o organismo atingir uma condição que seja adequada à sua "natureza", nesse caso à sua natureza modificada. Com base nesse ponto de vista, o ajustamento pode ser entendido, porque só então as performances são possíveis. Assim, pode acontecer de a adaptação ao defeito não operar muito na direção de recuperar performances antigas, mas, ao invés disso, ir na direção de atingir comportamento ordenado. Das performances que em si ainda são possíveis, aquelas que podem ser utilizadas dentro da estrutura do novo comportamento ordenado são atualizadas, ou pelo menos as que não o perturbam. O comportamento ordenado é visado, mesmo à custa de certas performances que ainda poderiam ser possíveis se fosse um meio diferente.

A TENDÊNCIA EM DIREÇÃO À PRESERVAÇÃO COMO UMA EXPRESSÃO DA DECADÊNCIA DA VIDA. Nessa condição patológica, a tendência a preservar o estado atual pode se tornar o meio de sobrevivência. Se o biólogo descansa sua teoria sobre as observações dessas condições, então um impulso em direção à autopreservação pode aparecer como uma característica essencial do organismo, enquanto, na verdade, a tendência em direção à autopreservação é um fenômeno da doença, da "decadência da vida".

A necessidade de obter um novo meio adequado depende de dois fatores, assim como a vida em geral. Ela depende, antes de tudo, da "natureza do organismo" em si, tanto quanto do mundo. Aqui, porém, estamos particularmente interessados no segundo fator, a significância do "mundo". O organismo mudado deve encontrar, no "mundo", um novo "meio".

Em nossa discussão sobre os processos na lesão no calcarino nós apontamos que o reajustamento ocasionado pelo defeito é sempre acompanhado por uma limitação das performances ou uma restrição do meio. O mesmo fenômeno ocorre em todas as curas em que um defeito permanece. É sabido que animais, depois da amputação de membros, não podem lidar com todas as demandas que eles "normalmente" podem encontrar. Essas limitações são facilmente esquecidas porque prestamos atenção, antes de tudo, à restauração das performances particularmente importantes. Por exemplo, presta-se atenção à restauração da locomoção nos animais depois da amputação da perna ou do funcionamento de um certo músculo após um transplante no homem, etc. Nós sabemos que, após um transplante, a energia restaurada é raramente mais que um terço da energia de controle do músculo e que os músculos transplantados sofrem fadiga anormal nas performances originalmente "normais". É fácil haver enganos em experimentos com animais e uma adaptabilidade de longo alcance ser presumida devido ao esquecimento de que os animais não vivem em sua situação natural. É o cuidado humano que os salva de certas tarefas, assim a limitação resultante não se torna aparente. Então, por exemplo, nos experimentos de Cannon, os animais não eram expostos às "normais" variações de temperatura, à normal luta por comida, à necessidade normal de escapar de inimigos, ao perigo normal de sangrar até a morte (9), porque as condições do laboratório eram favoráveis nesses aspectos. Ainda assim esses animais eram inquestionavelmente defeituosos em muitos aspectos. Eles estavam, na verdade, muito menos protegidos contra a influência do frio e do calor, eles não podiam manter uma temperatura corporal constante e independente da temperatura do mundo externo e fenômenos similares.

O reajustamento é possível apenas se, simultaneamente, é feita provisão para a restrição requerida do meio, de tal forma que nenhum estímulo, que poderia ocasionar uma reação catastrófica, possa afetar o organismo. Nós vimos anteriormente como pacientes com lesões cerebrais gradualmente adquirem esse novo meio, e a forma como eles o fazem. Mas eles podem obter um novo meio apenas se um parceiro torne isso possível ao providenciar um ambiente adequado para sua nova condição. Produzir esse estado é o objetivo da prática médica em geral. Na medida em que a terapia médica não erradica o dano, ela consiste apenas em rearranjo do meio. Para evitar malentendidos, eu gostaria de pontuar que o termo "rearranjo do meio" deve ser entendido no sentido mais amplo. Assim, ele inclui a necessidade de tomar certas drogas continuamente, permanecer em um certo modo de vida, evitar situações de indulgências nos reinos somáticos e psicológicos, de renunciar ou de entrar em certas relações humanas, etc. Nós iremos ver, na discussão sobre a atuação na esfera biológica, quais dificuldades extraordinárias são encontradas.

Antes de nos determos sobre outras consequências de nossa perspectiva, nós temos que comentar sobre o caráter individualista que nossa descrição de saúde parece ter. A adequação, no sentido de "responsividade", manifesta-se na melhor capacidade de performance do respectivo indivíduo. Enquanto nossa descrição se abstém completamente de indicar os conteúdos das performances, ela é, por outro lado, independe de qualquer concepção a priori de homem, permitindo uma ênfase tanto nos aspectos de sua natureza individual quanto coletiva. Nossa determinação não traz nenhuma decisão a esse respeito e certamente não é "individualista" no sentido de ser egocêntrica. O nosso problema não é a pessoa enquanto um indivíduo, mas a individualidade. É bem possível que a atitude social, o caráter da associação concreta a um grupo, pertença essencialmente ao homem. Se isso é verdade, então essa atitude pertence à norma individual dos humanos e a saúde será mantida apenas quando essa característica essencial, entre as outras, for realizada. Eu, pessoalmente, adoto esse posicionamento. Caso, porém, essa atitude não pertença à norma, então a exigência por comportamento social seria totalmente inadequada, e iria, portanto, ser incompatível com o comportamento ordenado e também com a saúde. Não importa qual decisão seja tomada sobre essa questão, o conceito de norma, que nós desenvolvemos aqui, poderá ser empregado.

Uma vez que o comportamento ordenado tem uma significância extraordinária para o organismo ferido, a restrição do meio sob certas condições pode ser tornar tão grande que a restrição em si pode, por sua vez, tornar-se uma causa de reações catastróficas. Esse pode ser o caso se a limitação incapacita o organismo de executar outras performances "essenciais". Por exemplo, quando certas atividades mentais que se mostram indispensáveis ao paciente se tornam impossíveis devido a alguma incapacitação corporal, então a vida, em tal forma limitada, tor-na-se inadequada a ele. Assim, não raro, pelo que pode ser chamado de uma medida de proteção da natureza, o paciente é poupado de uma catástrofe ao não perceber sua mudança. Por exemplo, essa perda da percepção aparece na lesão cortical ou em doenças corporais muito sérias como tuberculose, câncer no útero, etc. Nos casos mais sérios, o paciente perde a consciência por completo.

Mas há situações limite nas quais um dano corporal severo existe de fato, mas a consciência da condição ainda não desapareceu. Nessas situações, podem surgir conflitos psicológicos intensos. Então nós constatamos a tendência em direção à autodestruição como a possibilidade de adaptação suprema, apesar de fatal para o indivíduo. E, com isso, o suicídio ocorre como uma expressão do choque catastrófico mais sério, causado pela realização da impossibilidade de existência. Essa situação de conflito se torna muito importante para as deliberações em qualquer tratamento médico. Esse tratamento terá sempre que ser guiado pela atenção ao fato de se a restrição do meio, que todos os tratamentos ocasionam, não limita, para o indivíduo, as possibilidades de auto atualização além do ponto que é suportável. Assim, algumas vezes será necessário tolerar uma certa perturbação, um "sintoma", por ser mais suportável que a redução de performances mais essenciais resultante de grandes limitações do meio. Por outro lado, é preciso haver demandas tão altas quanto possível, porque apenas assim a responsividade ocorre de fato. Demandas muito baixas podem se mostrar um obstáculo para a produção de performances ótimas (10).

 

CONHECIMENTO BIOLÓGICO E AÇÃO

Aqui nós encaramos uma das tarefas mais difíceis. Nós temos que decidir qual curso deve ser tomado. Obviamente, não é suficiente basear essa decisão nas mudanças que o paciente as manifesta. Em vez disso, é imperativo considerar a personalidade pré-mórbida do paciente por inteira e sua transformação por mudanças irreparáveis.

A imperfeição de todo conhecimento biológico, sua incompletude em princípio, se mostra em toda a sua severidade quando ele se torna a base de nossas ações. Nós não podemos evitar essa dificuldade dizendo que a concepção que nós obtemos acerca do organismo não é mais do que um símbolo e que ela se torna o fundamento de nossas ações como uma ficção, no sentido de uma filosofia do "como se" (Vaihinger).

Alguns médicos conceberam a prática médica como sendo determinada por tais ficções. Mas ela não pode se dar dessa maneira. Orientada por ficções, não se pode nunca chegar a uma ação definida. Nossa cognição, de fato, não é ficção. Embora a cognição seja, é claro, limitada pela extensão do estado de conhecimento e assim estando sujeito a alterações, ela ainda é real. Não há outra realidade para a pessoa em ação. Para a prática médica, o corpo de conhecimento, em um dado momento, é na verdade a realidade.

Enquanto, por um lado, a situação nos impele a agir, por outro lado, a ação em si se torna uma fonte de saber para nós. Não obstante, toda certeza surge da verificação que o conhecimento encontra na ação ou de sua correção por meio da ação. Assim o conhecimento médico, e provavelmente todo conhecimento biológico, está estreitamente amarrado à ação; entretanto, não no sentido de um pragmatismo determinado por normas alheias, mas como ação ditada pela realidade, que por sua vez pode ser alcançada apenas por meio do conhecimento. A relação entre esse tipo de ação e conhecimento não é para ser uma estranha entre dois fatores independentes, como a comum conexão entre teoria e aplicação prática na ciência médica. Antes, conhecimento e ação estão inter-relacionados de um modo dialeticamente determinado. Conhecimento sem ação não é conhecimento e ação sem conhecimento não é ação. Ambos se originam mutuamente, no teste de suas capacidades de gerar frutos, assim como em suas adequações à realidade e suas aptidões para manter a natureza ao invés de perturba-la ou distorce-la. No médico, para dizer concretamente, conhecimento e ação surgem juntos em suas aptidões para ajudar a preservar, o máximo possível, o ser humano vivo em sua natureza específica.

Essa "ação da cognição" demanda decisão livre por causa da incompletude do conhecimento biológico sempre existente. Aqui, a concepção holística manifesta sua significância bastante única para a medicina na relação entre médico e paciente. Se recuperar a saúde significa perda da essência, isso implica maior dependência do ambiente, vínculos mais fortes com os eventos ambientais; um declínio do comportamento de vida multiforme, para um comportamento mais limitado, compulsivo e mecânico; uma desintegração de uma organização pessoalmente padronizada, unicamente direcionada, para reações governadas pela lei da causalidade. Em resumo, isso significa limitação da liberdade. Isso, entretanto, implica que decisões médicas sempre requerem uma invasão sobre a liberdade de outra pessoa.

Assim todo o complexo problema do conceito de liberdade entra na prática médica. As dificuldades são agravadas, visto que em qualquer tratamento a livre decisão do paciente em si não deve ser desconsiderada. Assim, o paciente frequentemente tem a escolha de querer aceitar uma limitação do meio - correspondente à mudança causada pela doença - e a resultante limitação da liberdade, ou uma limitação menor e em vez disso maior sofrimento. Se o paciente suporta mais sofrimento, ele vai ganhar em possibilidades de ações, uma vez que as medidas terapêuticas podem ser capazes de reduzir o sofrimento, mas ao mesmo tempo diminuem as performances. Ele deve escolher entre uma falta de liberdade maior e sofrimento maior. É bastante óbvio que essa não é uma alternativa superficial, mas essa decisão toca profundidades metafísicas. Assim, com frequência, é na doença que o indivíduo revela sua verdadeira natureza.

Dar conselho ou, o que é ainda mais, orientação, em tal situação, ultrapassa a competência do médico? Em qualquer ocasião ele estará apto para fazer isso apenas se ele estiver totalmente convicto de que a relação médico-paciente não depende apenas do conhecimento da lei da causalidade, mas trata-se de um acordo entre duas pessoas, em que uma deseja ajudar a outra a obter um padrão que corresponde, na medida do possível, à sua natureza. Essa ênfase sobre o relacionamento pessoal entre médico e paciente delimita, de modo impressionante, o contraste entre o ponto de vista da medicina moderna e a mera mentalidade das ciências naturais dos médicos na virada do século. Por mais que sempre pareça que o médico esteja interferindo apenas em eventos corporais ou mentais, ele deve ter em mente que qualquer interferência efetiva, não importa o quanto aparentemente seja superficial, deve afetar a natureza essencial do paciente. Ele deve lembrar que qualquer interferência, uma vez que brota da liberdade, afeta a liberdade de outra pessoa. Do ponto de vista holístico, essa afirmação é auto evidente.

Desse modo, a ação nos leva não apenas a uma compreensão mais profunda em geral, na medida em que nós verificamos nossas ideias com relação às partes do processo, por meio dos efeitos que nossas ações têm, mas também a uma compreensão mais profunda da natureza do organismo específico em questão. A impossibilidade de alcançar o fenômeno da doença de um modo que não seja introduzindo o fator da liberdade nos leva ao reconhecimento de um atributo importante do homem, a saber, o reconhecimento de sua potencialidade para a liberdade, sua necessidade de realizar sua natureza por meio da livre decisão.

No entanto, essa dificuldade de agir, devido à responsabilidade pela natureza específica de um paciente, existe de maneira similar quando se lida com qualquer ser vivo. E visto que estamos tão distantes de um conhecimento da natureza essencial dos animais, nós não deveríamos interferir em seus modos de vida sem estarmos conscientes desse problema.

Nossa discussão nos levou a um assunto que parece muito distante dos tópicos biológicos comuns. Com os conceitos de liberdade e responsabilidade nós entramos em uma esfera espiritual e, aparentemente, nos removemos da ciência natural. Sem dúvida, essa não é a primeira referência desse tipo que nós fizemos durante nossa tentativa de compreender o comportamento humano. Afinal, liberdade é meramente a expressão daquele tipo de comportamento que a análise de pacientes com lesões cerebrais nos levou a considerar como um atributo essencial da natureza humana. Nós devemos encontrar estes problemas espirituais na discussão a seguir sobre o conceito de anomalia.

 

SOBRE ANOMALIA E ESPÉCIES

A suposição de que uma mudança qualitativa do conteúdo é parte da recuperação com defeitos residuais abre caminho para uma discussão sobre a relação entre doença e anomalia. Anomalia sempre representa um desvio de conteúdo da norma em alguma forma definida. Também, ao lidar com o problema da anomalia, nós queremos discutir primeiramente as condições no homem. Certamente, há anomalias em animais. Porém em primeiro lugar, elas são, normalmente, muito mais difíceis de descrever porque nós somos muito menos treinados para identifica-las. Essa dificuldade começa mesmo quando nós somos confrontados com membros de "raças" com as quais estamos menos familiarizados. E em segundo lugar, é quase impossível determinar, em animais, a natureza das espécies tão claramente para que um desvio dela pudesse ser caracterizado com qualquer grau de certeza. Essa dificuldade ocorre devido à interferência do homem, a exemplo da procriação, alimentação, etc. A chamada pureza das espécies, que indubitavelmente é em essência um produto de procriação humana, certamente não pode ser considerada um critério.

Anomalia difere da doença de duas formas. Ela não necessariamente implica em um choque para o ser do indivíduo. Ela requer para a sua compreensão, além de uma maior referência ao indivíduo, também referência a uma unidade social maior. Certamente, a individualidade em geral deve ser vista apenas dentro de um quadro maior de relações sociais; e sua "responsividade" é, ao mesmo tempo, determinada por essa relação. Nós vimos que a recuperação, apesar do defeito, requer a cooperação de homens parceiros ou, em termos mais gerais, ela deve ser incorporada na comunidade de homens parceiros.

Entretanto, o oposto também pode ser verdadeiro: A falta de responsividade pode surgir de uma perturbação da relação com o campo social mais amplo. Tal aspecto desempenha um papel importante, por exemplo, na origem de muitas doenças mentais. Para a anomalia, a relação com o campo social é ainda mais primário. A anomalia pode ser compreendida apenas com referência à norma "super-individual"3. Porém, enquanto essa norma permanece determinada, por assim dizer, apenas negativamente em comparação com a norma individual, e na medida em que esse conceito "super-individual" é preenchido com conteúdos inerentemente alienígenas, mais tempo iremos permanecer na esfera dessas abordagens atomísticas que nós rejeitamos. Além disso, nesse caso é conveniente visar o protótipo dessa "entidade" mais compreensiva. Ao nos orientarmos por esse protótipo, a "anomalia" pode se tornar compreensível como um fenômeno que pode aparecer sob certas circunstâncias que podem ser definitivamente reveladas. Em nossa tentativa de chegar em tal protótipo compreensivo, nós somos confrontados com dificuldades ainda maiores que na determinação do todo individual. É possível, de acordo com Uexkuell, definir as espécies como aquele número de diferentes indivíduos que, quando cruzados, ainda podem produzir uma prole capaz de viver e se propagar (11). Aqui nós notamos, assim como na norma individual, que a potencialidade "para ser" é a base para a determinação do protótipo. Não se pode negligenciar que o conceito de potencialidade - "para ser" - é de certa forma indefinido. Particularmente no que diz respeito ao homem, ele requer que a sua complicada natureza psicofísica seja inteiramente levada em consideração.

Com relação ao todo superordenado, conceitos como "tribo", "família", "espécies", "raça", "nação", "estado" e "humanidade" ainda estão por ser definidos. O problema surge conforme eles podem ser for-mas genuínas de Ser, que facilitam a compreensão do Ser individual - o objeto com o qual nós estamos preocupados em última instância. Certamente, nós não podemos acabar com os problemas que aqui estão envolvidos. Contudo, uma compreensão da anomalia, seus efeitos no indivíduo e seu manejo pela sociedade pode ser obtida apenas através de uma clarificação desses conceitos.

Anomalia deve ser considerada em dois aspectos: por um lado, do ponto de vista da mais ampla "entidade" à qual o indivíduo anômalo pertence por "natureza"; e por outro lado, do ponto vista da comunidade mais específica em que ele vive. Nesse caso, isso significa: de um lado a "humanidade" e do outro as comunidades específicas, a exemplo de "nação", "raça", etc.

A primeira classificação, definição da anomalia como desvio da natureza humana em geral, será mais simples que a segunda, cujo caráter é bastante problemático. Certos fenômenos serão imediatamente considerados como não humanos, como desvios do "humano". Dificilmente há discordância de que certas peculiaridades são traços característicos de todo ser humano. Aqui um conhecimento pré-científico ingênuo sobre a natureza humana vem à tona. Há conflito com essa ideia, aparentemente, quando encontramos, em certas "raças" humanas, costumes e observâncias que aparentam ser "inumanas" para os civilizados e quando várias raças se permitem críticas mútuas. É exatamente por meio de tais exemplos é possível demonstrar que essas críticas, com frequência, não correspondem aos fatos, ou seja, as experiências e motivações em comportamentos grupais podem ser completamente diferentes daquelas supostas; ou, em termos gerais, demonstrar que esses "achados" eram erros que surgiram de uma abordagem isolante.

Caso, por exemplo, nós destacarmos uma característica de seu contexto natural no padrão de vida de um povo "primitivo" e a submetermos a um princípio de mensuração intrinsecamente estrangeiro a ela, nós deveremos chegar à mesma falsa generalização que ocorre na teoria do reflexo. Para descrever corretamente e compreender a estrutura de um fenômeno individual, nós temos que nos voltar para o padrão total ao qual ele pertence. Com esse quadro de referência em mente, vários fenômenos "inumanos" se tornaram muito humanos! Essa descoberta significa que o cuidado é imperativo. Nesse ponto, ainda estamos nos primeiros passos da pesquisa empírica, embora as últimas décadas de pesquisa antropológica, em especial, tenham trazido muito avanços. Nós precisamos superar o hábito de julgar "outros" povos a partir de nossos padrões, nós deveríamos tentar entender esses fenômenos mais a partir de sua natureza pertencente; e, então, muitas peculiaridades, que num primeiro momento apareçam como diferenças entre nós e os "outros", serão nada mais que modificações de aspectos essenciais da natureza humana que ocorrem sob certas circunstâncias - como expressão do desenvolvimento especial de traços humanos (12).

Por exemplo, é muito fácil mostrar que, nos chamados homens primitivos, vários traços experienciaram um desenvolvimento diferente daquele nos chamados homens civilizados. No entanto, temos que ser cautelosos ao inferir, a partir dessas diferenças de desenvolvimento, organizações e raças "superiores" ou "inferiores". Nós discutiremos em seguida qual significado, caso exista, essas palavras podem ter. Na medida em que novas experiências nos ensinarão que indivíduos de origens completamente diferentes podem se desenvolver de modos muito parecidos, se forem criados no mesmo ambiente, as conclusões sobre raças inferiores e superiores serão cada vez mais descartadas. Então o fenômeno da diferença na cor da pele, com certeza, não será mais motivo para a construção de diferenças de valor.

A decisão sobre se e em que grau, se é que há algum, essas diferenças podem existir pode ser abordada apenas por meio de uma verdadeiro conhecimento da natureza essencial dos respectivos grupos. Nós estamos aqui não apenas bem no começo de nosso conhecimento, mas também diante de uma selva de confusão que é artificialmente preservada por todos os tipos de preconceitos, os quais em parte são certamente consequência de, e mantidos por, deficiências morais. Parcialmente, porém, eles possuem sua origem nos erros do procedimento isolante. Uma visão adequada, holisticamente orientada, com certeza iria revelar muitos erros nesse campo. Eu não deveria falhar, nesse ponto, ao enfatizar que muitos autores, na atual controvérsia sobre questões raciais, abusam de conceitos como "natureza essencial" e "referência holística".

O protótipo do organismo e a "natureza essencial" que estamos apontando em nossas análises não tem relação alguma com avaliações doutrinadas por alguma ideologia que não seja nada além de expressão de credo político e preconceito. Todos os teoremas até agora desenvolvidos para sugerir inferioridade ou superioridade, como peculiares a um grupo ou entidade particulares, são baseados em equívocos e abusos daquilo que é de fato holístico. Em vez de investigar cuidadosamente o que realmente pertence à natureza essencial de um grupo - além de padrões histórico-econômicos - eles introduzem axiomas não-científicos, a exemplo do mito do sangue e outros. Todas as noções desse tipo são totalmente injustificadas quando ilegitimamente ligadas à metodologia e a resultados da pesquisa empírica moderna ou aos postulados sobre as relações entre o todo e as partes.

Essas confusões com relação ao julgamento da "natureza" de uma raça, ou até mesmo a decisão sobre a existência ou não de algo como a raça, tornam particularmente difícil o julgamento correto da anomalia. Esse julgamento exigiria fundamentos científicos que ainda não possuímos. Geralmente, ele é orientado em torno de achados acidentais no ambiente concreto. Esses últimos são avaliados conforme a média de peculiaridades somáticas e mentais e, também, conforme os preconceitos predominantes. Por isso, é possível que as mesmas anomalias se-jam avaliadas de formas diferentes com o passar do tempo. Na avaliação de uma anomalia, a questão da perturbação por ela está notavelmente em primeiro plano. Nesse ponto, nossas considerações coincidem novamente com o procedimento de decidir sobre o que doença é. Neste último caso, o quadro de referência é o "Ser" do indivíduo, ao passo que nas anomalias, trata-se do Ser de uma entidade maior, cuja existência pode ser ameaçada por choques catastróficos originados por perturbações provenientes do indivíduo anômalo - agora ou no futuro.

Se a anomalia é tal que o indivíduo em questão continuamente encontra, no meio em que vive, tarefas que não pode realizar, então, por sua vez, a anomalia se torna perigosa para ele. Ele é forçado a recuar - a limitar seu meio - ou ele irá perecer de contínuas reações catastróficas às quais é exposto. De modo algum, ele será capaz de se "atualizar" essencialmente. Na medida que a atualização for possível, ele muito provavelmente representará um fator de perigo para a comunidade, embora isso possa, frequentemente, ser apenas supostamente o caso. Então a comunidade chegará a conclusão de que tem o direito de se livrar desse indivíduo. Cada teórico de raça que, assumindo a existência de raças "superiores" ou "inferiores", deseja excluir os membros da raça "inferior" considerando-os perniciosamente anômalos, age desse modo irresponsável. Qualquer procedimento, para ser biologicamente justificado, teria que empregar metodologicamente a referência holística de duas maneiras. Primeiro, decidindo sobre a possibilidade de haver maior ou menor valor de uma raça e, segundo, estimando o perigo potencial das anomalias para a comunidade: esse perigo pode ser mais representado por meio de sua massa hereditária do que por meio de sua existência pessoal. Isso tudo exemplifica o erro que surge ao tomar como absolutos os fenômenos obtidos através de procedimentos isolantes.

 

HEREDITARIEDADE E PROCRIAÇÃO

Na interpretação atomística dos processos hereditários, a tentativa de explicar a origem de um indivíduo através da soma de fatores hereditários separados nos apresenta, no processo comum, uma analogia completa com o procedimento da reflexologia. De fato, ninguém falhará ao admirar os experimentos de Mendel e ao apreciar o conhecimento que adquirimos por meio deles no que diz respeito à hereditariedade e características partitivas - especialmente quando se adiciona a isso os experimentos mais recentes que têm mostrado a possibilidade de destacar, de modos sutis, características circunscritas em experimentos da hereditariedade.

Mas assim como não há um caminho que parta dos reflexos para alcançar uma compreensão do organismo como um todo, também não há um caminho direto partindo das características partitivas, que a genética aponta através da análise, para uma compreensão da gênese de um indivíduo! Se nós pensamos que essa conexão direta existe, cometemos o engano de considerar certas peculiaridades como características para o indivíduo. Ao contrário, peculiaridades especiais obtém sua significância quando são consideradas dentro de seu "pertencimento" funcional ao todo de um indivíduo. Assim como H. F. Jordan enfatizou, não é verdade que estamos lidando com a herança de elementos independentes, mas ao invés disso com características totais. Segundo ele, o efeito do gene pode ser entendido apenas a partir de sua relação com o todo.

No entanto, mesmo nos resultados do tipo atomístico de experimentos genéticos, características totais, essenciais, dos respectivos organismos são manifestas. O mero fato de que fatores dominantes e recessivos existem indica que alguns fatores estão mais vinculados à natureza essencial que outros. Características recessivas provavelmente ocorrem devido ao fato de que o cruzamento de uma criatura com outra que possui outros traços dominantes, causa misturas que não possuem o mesmo potencial hereditário. Ao competir com fatores dominantes, os recessivos não podem se tornar efetivos, ou podem apenas com dificuldades e, por isso, aparecem apenas quando há um cruzamento com um animal que possui uma afinidade com esse traço particular.

Provavelmente, os fatores hereditários dominantes são os traços que estão relacionados com aquilo que chamamos de "constantes". Mas eles constituem o indivíduo apenas na respectiva concatenação conforme se dão através da maior ou me-nor efetividade dos fatores recessivos. O conhecimento dos fatores e do valor de sua hereditariedade no procedimento experimental nos oferece, porém, informações muito preliminares no que diz respeito à gênese do indivíduo. Geralmente, esse fato é negligenciado porque os experimentos genéticos exatos são feitos com animais, ou até mesmo com plantas, nos quais não é apenas difícil, mas quase impossível alcançar algo como a individualidade, e também porque onde nossa perspectiva é tão influenciada por nosso interesse em elementos artificialmente selecionados que, por consequência, o experimentador vê apenas isso.

A decisão sobre o que é uma característica dominante ou recessiva pressupõe o conhecimento da natureza do indivíduo ao qual elas pertencem. Assim, não deve surpreender o fato de que a avaliação do fenômeno real se torna cada vez mais difícil e que novos fatores superordenados têm que ser continuamente introduzidos para que se possa reter o conceito atomístico genético original.

Algumas citações de artigos recentes podem mostrar que nossos comentários críticos estão de acordo com as observações mais recentes de geneticistas célebres.4 "Não se deve esquecer que o gene do indivíduo age apenas em interação com os outros elementos constitucionais do genótipo e com a situação de vida" (Johannsen (14)). "Todos os detalhes fenotípicos são determinados pelo tipo configuracional ao qual eles pertencem... Provavelmente não é exagero dizer que cada gene, no germoplasma, influencia várias ou possivelmente muitas partes do corpo; em outras palavras, o germoplasma inteiro é ativo no desenvolvimento de cada parte do corpo" (Lloyd-Morgan). "Na drosophila, um grande número de fatores, pelo menos cinquenta, participam na formação de uma cor de olho... A observação cuidadosa revelou que cada gene individual não influencia apenas uma característica, mas muitas, provavelmente o corpo todo" (Jennings (15). Poll (16) escreve: "O caráter atomístico da concepção genética demanda fortemente a compensação em forma de uma perspectiva holística tal como a teoria da diferenciação ou 'Melistik'. O 'unio mystica' das unidades não ocorre com base em uma união secundária de partículas pré-existentes ('Meronten'). Essa ideia assume uma desarticulação primária dos membros ('Melonten'), a independência da qual pode tornar-se perceptível apenas secundariamente". Essas palavras de Poll indicam o conteúdo holístico da genética moderna. Porque me faltam experiências próprias suficientes sobre esse tema no meu campo, eu não me atrevo a decidir se, a partir dessa perspectiva, o gene é reconhecido como uma "parte" obtida por meio de um determinado método de modo similar ao que apresentamos sobre os reflexos.

Um dos muitos erros dos geneticistas, a saber, aplicar aos seres humanos as leis deduzidas de experimentos de procriação em plantas ou em animais inferiores, deve sua origem particularmente a essa falha ao reconhecer o caráter atomístico do método de isolamento. A genética praticamente não provou em lugar nenhum ser tão fatal quanto nesse método simplificado de "transferência". Para começar, os geneticistas negligenciaram o fato de que os experimentos de procriação ocorreram sob condições não naturais. Eles estavam preocupados com procriação consanguínea planejada, com a criação de "linhagens puras" e com a seleção de atributos que não foram escolhidos considerando se eles eram relevantes para a natureza essencial. Logo, foi possível, em última análise, gerar criaturas com propriedades arbitrariamente destacadas.

Os experimentos que a genética realmente realizou não eram experimentos sobre hereditariedade, no sentido de uma observação experimental da gênese natural, mas experimentos do tipo prático, com todos os seus característicos aspectos positivos e negativos. Enquanto a procriação não está preocupada com o conhecimento da natureza essencial das criaturas e o modo de sua hereditariedade, mas, em vez disso, com a reprodução de características específicas úteis para o homem, os experimentos úteis - tão úteis quanto a dominação da natureza por meio da tecnologia. Os experimentos forneceram um certo esclarecimento acerca da essência da natureza, mas apenas na medida que eles revelaram até onde tal aplicação de força da natureza é suportável, o que por sua vez revela certas características das criaturas. Por fim, eles nos forneceram algumas informações a respeito dos cuidados que são necessários para tornar a existência nesse "estado fronteiriço" possível.

Se a tarefa da genética e eugenia humanas fosse a procriação de seres humanos com determinadas características, independentemente da natureza essencial do homem, poder-se-ia admitir que os resultados da experimentação com plantas seriam aplicáveis aos humanos. Com certeza, esses experimentos em humanos dificilmente renderiam o sucesso esperado. O ser humano provavelmente não poderia viver de fato na situação fronteiriça em que os experimentos pertinentes têm que colocá-los. Os limites de capacidade da existência podem ser ultrapassados ao mesmo tempo e muitas reações catastróficas resultariam das propriedades que a "procriação" pretendida não poderia atingir. A procriação poderia obter os resultados almejados apenas se ela se voltasse para, e visasse as características essenciais para o humano. Mas então ela teria que ser completamente diferente.

Em todos esses experimentos, é negligenciado o fato de que uma das características essenciais para o ser dos humanos é a individualidade e a liberdade, e que estas só podem ser encurtadas até um certo ponto sem que haja ameaça à capacidade de sua existência. A realidade do intelecto, da autodeterminação, que mesmo em sua forma mais primitiva representam características essenciais do homem, condenam ao fracasso qualquer experimento de procriação do tipo comum.

No entanto, se a regulação das condições da hereditariedade não visa características específicas, mas aspira aperfeiçoar a raça humana por meio da eliminação de indivíduos em más condições físicas, tal esforço pressupõe um conhecimento profundo da significância das peculiaridades individuais para as naturezas humanas. E quem se aventuraria a tomar qualquer decisão a esse respeito no atual estado de pesquisa! Mesmo no campo de estudo onde, relativamente, nós conhecemos os efeitos mais nocivos de mudanças patológicas na progênie, se nós considerarmos o problema sem parcialidade perceberemos que nada definido foi determinado. A razão disso é que não foi nem determinado nem previsto quando e onde a anormalidade se torna nociva, ou, talvez, extremamente valiosa para o indivíduo e a comunidade.

Por exemplo, vamos considerar apenas a discussão sobre a esterilização de maníaco-depressivos, a disposição para a qual a doença é indubitavelmente hereditária em um certo grau. Quem gostaria de duvidar da capacidade - se não superioridade - de muitos indivíduos com maiores ou menores predisposições maníaco-depressivas. Se alguém se considera justificado em interferir na autodeterminação humana, mesmo no que se refere à progênie, pode-se fazer isso apenas com risco. Porém nós não deveríamos recorrer à natureza "inerente" para a justificação de tal procedimento, no que diz respeito à fundamentação do que nós ainda não possuímos e podemos dificilmente esperar possuir, conhecimento.

Tendo dito tudo isso, deve parecer incomumente difícil obter a atitude correta para as nossas condutas com anomalias no sentido de um desvio da média ou, mais ainda, de um tipo ideal. A situação é um pouco diferente se nós considerarmos a anomalia do ponto de vista da norma individual. Será preciso encontrar um meio mais adequado para o anômalo. A sociedade terá que fazer isso a partir do ponto de vista duplo, a saber, proteger-se dos perigos da anomalia e ao mesmo tempo capacitar o indivíduo anômalo para existir. Em última análise, não há diferença essencial entre essas duas perspectivas. Portanto, torna-se necessário para a sociedade proteger-se somente enquanto o anômalo não viva no meio adequado. Se ele vive em um meio adequado, ele não é perigoso, porque ele está em um estado ordenado. Esse resultado parece importante para nós porque ele oferece o critério para o único modo correto de ação biológica. De fato, pode-se extinguir aquilo que se considera anômalo. Mas então surge a questão sobre se ao fazer isso, as ações estão de acordo com a "Essência do Ser", se está sendo feita justiça à liberdade - aquela característica que nossa discussão do fenômeno da doença e da anomalia provou ser muito característica da natureza humana.

 

Bibliografia

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Recebido em 25.07.2017
Aceito em 30.11.2017

 

 

* Nota Biográfica: Kurt Goldstein (1878-1965) nasceu em Katowice, Silésia. Neurologista e psiquiatra de origem judaica, foi pioneiro da moderna Neuropsicologia. Fez sua formação inicial em Filosofia, em Heidelberg (era primo do filósofo Erns Cassirer); posteriormente Medicina, em Breslau, onde foi assistente de laboratório de Ludwig Edinger e estudou com Carl Wernicke. Seu nome está mais associado à "teoria organísmica" ou "teoria holística", derivada de sua experiência com soldados com lesões cerebrais na Primeira Guerra, e de sua principal obra, Der Aufbau des Organismus (1934). Em 1933, com a ascensão do NSDAP ao poder na Alemanha, ele é encarcerado por uma semana em Berlim, onde lecionava, e só é libertado com a condição de abandonar o país. Foi em Amsterdam, graças ao apoio da Fundação Rock-feller que escreveu sua principal obra, emigrando em 1935 para os Estados Unidos, onde lecionou e foi co-editor do Journal of Humanistic Psychology, e ali permanecendo até seu falecimento em 1965.
Revisão: Pedro Luís Tizo Santos (Universidade Federal do Paraná).
1 Ainda, por uma questão de simplicidade, nós utilizaremos de modo geral o termo doença para o fenômeno ao qual estamos nos referindo.
2 Nós teríamos que ir muito longe para explicar isso mais detalhadamente (cf. Goldstein, "Das Kleinhirn" (8).
3 Através da incorporação da existência do indivíduo dentro de um todo mais compreensivo, o Ser nunca é destacado da natureza do indivíduo e, mais ainda, a existência desse todo super-ordenado pode não se manifestar em lugar algum, mas sim no indivíduo propriamente dito. Nós queremos enfatizar esse ponto expressamente.
4 Cf. também as discussões de Uexkuell (13) sobre as espécies, raça, etc., com as quais nós estamos em ampla concordância.

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