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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.1 Goiânia jan./abr. 2021

https://doi.org/10.18065/2021v27n1.1 

RELATOS DE PESQUISA

 

Educar médicos, cuidar de memórias: sentidos da constituição de um museu histórico de medicina

 

Educating doctors, caring for memories: meanings of the constitution of a historical medical museum

 

Educar médicos, cuidar de memorias: significados de la constitución de un museo de historia médica

 

 

Roberta Vasconcelos LeiteI; Miguel MahfoudII

IFaculdade de Medicina de Diamantina, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Endereço Institucional: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Campus JK - Rodovia MGT 367 - Km 583, nº 5.000, Alto da Jacuba. CEP 39100-000. Diamantina - Minas Gerais. Email: roberta.leite@ufvjm.edu.br
IIUniversidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Problematizando o lugar das humanidades e da memória na educação médica, investigamos sentidos da constituição do Centro de Memória e Museu Histórico - CMMH da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. Na perspectiva da psicologia da cultura fenomenológica, selecionamos como depoente Anette Hoffmann, figura central do CMMH. Realizamos entrevista semiestruturada, analisada fenomenologicamente. Cuidando da preservação do acervo da faculdade, Anette pretende viabilizar pesquisas históricas e promover formação cultural dos estudantes, particularmente de medicina. Seu trabalho promove as humanidades para desenvolver espírito crítico aguçado e problematizar a ultra especialização e a visão empresarial que se expandem na universidade. Concluímos que a experiência analisada indica como a preservação da memória contribui para a educação médica ao traduzir visão ampla de ciência e universidade.

Palavras-chave: Educação Médica; Memória; Museus; Pesquisa Fenomenológica


ABSTRACT

Thematizing the place of humanities and memory in medical education, we investigate meanings of the constitution of the Centro de Memória e Museu Histórico - CMMH of the Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. From the perspective of the phenomenological culture psychology, we selected as deponent Anette Hoffmann, central figure of the CMMH. We conducted a semi-structured interview, analyzed phenomenologically. Taking care of the preservation of the collection of the faculty, Anette intends to make possible historical researches and to foment the cultural formation of the students, particularly of medicine. Her work promotes the humanities to develop critical spirit and problematize the ultra-specialization and business vision that expand into the university. We conclude that the analyzed experience indicates how the preservation of memory contributes to medical education by translating broad view of science and university.

Keywords: Medical Education; Memory; Museums; Phenomenological Research


RESUMEN

Problematizando el lugar de las humanidades y de la memoria en la educación médica, investigamos sentidos de la constitución del Centro de Memória e Museu Histórico - CMMH de la Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. En la perspectiva de la psicología de la cultura fenomenológica, seleccionamos como deponente Anette Hoffmann, figura central del CMMH. Realizamos entrevista semiestructurada, analizada fenomenológicamente. Cuidando la preservación del acervo de la universidad, Anette pretende viabilizar investigaciones históricas y fomentar la formación cultural de los estudiantes, particularmente de medicina. Su trabajo promueve las humanidades para desarrollar espíritu crítico agudo y problematizar la ultra especialización y la visión empresarial que se expanden en la universidad. Concluimos que la experiencia analizada indica cómo la preservación de la memoria contribuye a la educación médica al traducir una visión amplia de ciencia y universidad.

Palabras clave: Educación Médica; Memoria; Museos; Investigación Fenomenológica


 

 

Introdução

As intensas transformações na educação médica no Brasil ao longo das últimas décadas são tributárias de intensos debates acerca de como as necessidades da população e as demandas contemporâneas de saúde não vinham sendo atendidas (Lamperti et al., 2009).1

Considerando a formação dos médicos como peça chave para modificar esse cenário, diversos atores somaram esforços para que o modelo pedagógico dos cursos de graduação fosse redimensionado, o que culminou na publicação de novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) em 2001 e 2014. Nesse movimento, a ênfase em metodologias ativas e cenários de ensino e aprendizagem busca formar profissionais melhor qualificados para a realidade local e nacional (Carabetta Júnior, 2016; Silveira & Pinheiro, 2017).

Este novo modelo pedagógico busca também fazer frente ao excessivo direcionamento técnico da formação e atuação do médico que marcou o século XX (Gallian, 2000). O movimento da humanização da saúde, que insurgiu já há muitos anos (Heckert, Passos & Barros, 2009) e foi instituído como política nacional do SUS desde 2003 (Brasil, 2010), está presente também nas DCNs da graduação em medicina (Brasil, 2014). Com vistas a fomentar a "prática profissional no âmbito da saúde centrada na pessoa, e não na doença" (Silva, Sakamoto & Gallian, 2014, p. 25), são preconizadas: parceria na relação médico-paciente; valorização dos muitos saberes e práticas relativos à promoção da saúde; resgate do olhar regional na formação (Silveira & Pinheiro, 2017); bem como capacitação para que os novos médicos estejam aptos a articular atenção e gestão e defender a cidadania de usuários e trabalhadores (Heckert, Passos & Barros, 2009).

Um dos principais caminhos pedagógicos para aliar a humanização das condutas às exigências da formação médica tem sido a inserção "precoce" nos cenários de prática (Garcia, Ferreira & Ferronato, 2012). Essa escolha parte da concepção de que o cotidiano do trabalho, com seus impasses e desafios, é vetor fundamental para alcançar uma prática que alie uso de alta tecnologia, acolhimento e cuidado resolutivos, corresponsabilidade e bom relacionamento na assistência, inclusão, controle social, ética (Heckert & Neves, 2010; Heckert, Passos & Barros, 2009). Dando um passo a mais, escolas médicas de vários países têm reconhecido que, para alcançar a experiência humanizadora, bem como as competências técnicas e relacionais almejadas, apenas a prática profissional não é suficiente (Guardiola & Baños, 2017; Launer, 2018; Silva, Sakamoto & Gallian, 2014). Nesse sentido, multiplicam-se iniciativas que buscam recuperar o valor da cultura humanística na formação médica, entendida como o substrato de uma educação ética e estética para o amadurecimento da reflexão crítica, capacidade de observação, expressão emocional, desenvolvimento comunicacional, posicionamento ético (Almeida, 2018; De Marco & Degiovani, 2013; Elder & Tobias, 2006; Launer, 2018; Workshop soft skills in medical education..., 2017)

Dentre as iniciativas brasileiras, destacamos projetos de ensino, pesquisa e extensão que dialogam com o universo da cultura e das artes por meio do cinema (Arantes, Carvalho & Ribeiro, 2015; Blasco, 2002), da literatura (Sakamoto & Gallian, 2016), da dramatização (De Marco et al., 2010; Pereira et al., 2016), dos programas de rádio (Silva et al., 2018), da palhaçaria (Rosevics et al., 2014). Investigações recentes atestam como a valorização da cultura humanística tem consolidado a crítica ao modelo estritamente biomédico ao apresentar alternativas que tanto ampliam a visão de mundo e a compreensão de experiências de vida, quanto desenvolvem competências comunicacionais, relacionais, emocionais e também técnicas dos estudantes (Almeida, 2018; Cavalcante et al., 2014; Pereira et al., 2016; Sousa, Gallian & Maciel, 2012). Em particular, citamos o estudo randomizado de Gurwin et al. (2018) que documentou como estudar arte incrementa a capacidade de observação de imagens clínicas em estudantes de medicina e colheu indícios de que esta prática pode também ajuda-los a serem mais abertos a olhares diferentes sobre algo e a trabalharem em equipe.

Como afirma Rios (2010), a reintrodução da cultura humanística na formação tem o potencial de (re)criar formas de pensar e fazer medicina. Em particular, interessa-nos aprofundar a questão: poderia a valorização da cultura por meio do cultivo da memória e da história favorecer a educação médica? Ainda haveria lugar para a atenção aos percursos que levaram a profissão a ser como é hoje, dada sua atual projeção para o futuro e para a novidade?

Estudar História da Medicina não é novidade: trata-se de conteúdo obrigatório em todas as escolas médicas, posto que se pressupõe ser necessário a todos os estudantes deste curso compreender a evolução e tendências da ciência e profissão médicas (Gusmão, 2004). Além de alertar sobre a transitoriedade da verdade científica, Mota e Schraiber (2012) destacam a pertinência de categorias de análise histórica na construção do cuidado no encontro clínico e nas entrevistas de anamnese, posto que neste momento estão em foco as significações da história de vida do paciente.

A publicação de obras sobre a trajetória de personagens ou instituições, bem como a criação de museus e centros de memória são outro caminho que busca a valorização da memória e da história no campo médico (Candeias, 1984; Teixeira, 2001). Na evolução das escolas médicas, é notório como os museus, especialmente os de anatomia, constituíam-se como ferramenta essencial do ensino e eram os serviços mais importantes ofertados pelas instituições, até que o advento da medicina hospitalar e ambulatorial transformou este quadro (Reinarz, 2005; Turk, 1994). Nos dias atuais, enquanto defensores da memória e da história buscam disseminar o valor pedagógico dos museus históricos (Rodrigues, 2010), o que se vê recorrentemente no país é o subaproveitamento do potencial educativo dos museus de medicina, especialmente em virtude dos escassos recursos que inviabilizam o trabalho técnico e o ambiente físico necessários à adequada conservação dos acervos (Serres, 2012).

Nesse cenário desfavorável, que tem se agravado nos últimos anos, muitos museus e centros de memória da medicina seguem perseverando na salvaguarda de documentos e equipamentos que testemunham a evolução da ciência e profissão no Brasil. Particularmente nas instituições ligadas às escolas médicas, um caminho de atualização encontrado tem sido afastar-se dos modelos rígidos da "história oficial" que tende a exaltar a identidade profissional ou a própria instituição. Busca-se, ao invés, articular saber histórico e educação com projetos direcionados à população em geral - particularmente crianças e adolescentes - nos quais se pretende despertar vocação científica por meio da difusão do conhecimento existente nos acervos (Mota & Marinho, 2007; Oliveira & Peret-Filho, 2017).

Articulando, pois, as discussões sobre humanização na educação médica às assertivas apresentadas acerca dos hodiernos esforços de valorização da memória e história neste campo, recolocam-se nossos questionamentos: pode-se mesmo conceber que exista tempo e disposição para o resgate histórico nessa profissão tão atrelada ao presente com seus apelos emergenciais e ao futuro com suas promessas de inovação? Cultivar a memória e a história é saudosismo dos antigos ou pode mesmo contribuir para a humanização da medicina? Insistir que os graduandos, assoberbados com o enorme volume de aprendizados teóricos e técnicos, aprendam algo a mais contemplando o passado é realmente um esforço que vale a pena ou deve-se focar o desenvolvimento de vocação científica em alunos do ensino fundamental e médio?

O debate sobre a pertinência da história e da memória para os dias atuais é tema que nos instiga e neste âmbito realizamos pesquisa fenomenológica sobre a experiência de guardiões de memórias contemporâneos (Leite, 2015). No presente trabalho, buscamos aprofundar a investigação sobre uma das iniciativas de preservação então estudadas, empreendida em um curso de medicina. Assim, com vistas a contribuir para a reflexão sobre os pilares e desafios atuais da educação médica, no presente texto objetivamos desvelar sentidos do empenho para a constituição do Centro de Memória e Museu Histórico - CMMH da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, bem como apontar possíveis reverberações de iniciativas como esta para a formação do estudante universitário.

Realizamos este estudo de caso sob a perspectiva da psicologia da cultura fenomenológica2 (Augras, 1995) que preconiza a compreensão do fenômeno a partir da perspectiva de quem protagoniza sua constituição. Por isso tomamos como objeto privilegiado de análise o relato da professora Anette Hoffmann, médica e pós-doutora em fisiologia que presidiu a comissão de instalação, coordenou e, mesmo após sua aposentadoria, segue atuando na coordenação e curadoria de exposições do CMMH. Com a análise de suas elaborações, pretendemos identificar motivações, a visão de educação universitária que fundamenta seu trabalho, além de desafios e contribuições desta modalidade de trabalho à formação médica nos dias atuais.

 

Aportes teóricos e metodológicos

Mencionamos que esta pesquisa situa-se no campo da psicologia da cultura fenomenológica (Augras, 1995), o que significa dizer que acolhemos a convocação de Husserl (1913/2006, 1954/2012) e seguidores a desenvolver o fazer científico superando a descrição objetivante da estrutura e práticas sociais ao analisar a mútua constituição pessoa-mundo. Para tanto, partimos das elaborações dos sujeitos da experiência como via de acesso privilegiado às suas vivências e à intencionalidade que as caracteriza, de modo a possibilitar a descrição tanto de características estruturais do sujeito que se coloca no mundo quanto do mundo-da-vida que se manifesta a ele (Ales Bello, 2004; van der Leeuw, 1933/1964). Nesse processo, o risco de subjetivismo é evitado ao centrar a análise no modo como o sujeito elabora a própria experiência ressignificando práticas e crenças de sua coletividade e dialogando - mesmo que implicitamente - com contradições e crises de sua organização social (Mahfoud, 2003).

Para o estudo de caso que ora apresentamos - centrado nas possíveis contribuições da preservação da memória para a formação de futuros médicos - a provocação da fenomenologia nos convida a contemplar o fenômeno da memória considerando a mútua constituição pessoa-mundo. Do muito que já foi investigado e produzido a este respeito na cultura ocidental (Bosi, 2005), partimos do reconhecimento de que cabe à memória tutelar a experiência, como bem sintetizou Giussani (2009). Isto significa que, para que um valor possa permanecer como referência, precisa ser continuamente retomado e elaborado pelo exercício da memória. Trata-se de um processo muito mais complexo que a operação cognitiva de evocação de lembranças. Trata-se de um dinamismo que atualiza vivências e juízos formulados, para que o que foi possa continuar sendo: incidência no agora do que poderia ficar para trás.

A memória entrelaça o um ao nós. Coube a Halbwachs (2004) a tarefa de demonstrar como o recordar nunca é mero reviver do que foi, mas sim contínuo reconstruir o material das lembranças com os instrumentos e preocupações atuais, a partir do apego afetivo a certos grupos de pertença. A memória interage de diferentes modos com a história, constitui-se como trabalho sempre coletivo - mesmo quando individualmente empreendido - de reelaboração, seleção, esquecimento, preservação. Um processo contínuo, mas muitas vezes silencioso, não problematizado. Como esclarece Bosi (2005), o veio coletivo da memória insere a pessoa no tecido social, reunindo fios desatados, até mesmo sem que ela se dê conta: seus quadros sociais atuam sem alarde matizando perspectivas.

Uma compreensão ampla dos dinamismos da memória convida a reconhecer seu valor para o desenvolvimento de uma formação capaz de articular a precisão da técnica às exigências da humanização. Entretanto, nos tempos desenraizados em que vivemos, cuidar concretamente da memória parece um esforço árduo e tão deslocado das exigências do presente, que quase soa irracional despender tempo e recursos em trabalhos de preservação. Estas reflexões aguçam a pergunta que nos orienta nesse trabalho, acerca da pertinência de iniciativas de preservação para a formação médica.

Como indicado, a escolha do CMMH como objeto de nossa análise se deu a partir de investigação anterior, em que nos debruçamos sobre a experiência de guardiões de memórias contemporâneos, com vistas a elucidar relações possíveis entre elaboração da experiência ontológica e vivência da tradição na atualidade (Leite, 2015).3

A professora Anette integrou esta pesquisa uma vez que se enquadrava nos critérios de seleção intencional delimitados: 1) adequação ao perfil de guardião de memórias contemporâneo (pessoa que, não sendo membro de comunidade tradicional, toma iniciativa e se dedica à preservação cultural de algo que toma do passado); 2) incidência social da atuação do sujeito, com vistas a favorecer a compreensão dos modos como a elaboração pessoal contribui para a constituição do mundo; 3) possibilidade de privilegiar sujeitos cuja formação profissional a princípio não implicaria na dedicação a atividades dessa natureza, mas que, por diferentes motivos, tomaram para si esta tarefa de preservação.

A escolha dessa experiência para análise também se justifica pela grande projeção nacional e internacional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, cuja tradição em pesquisa básica pode ser exemplificada com trabalhos liderados pelos professores José Lima Pedreira de Freitas (diagnóstico e profilaxia da Doença de Chagas), Sergio Henrique Ferreira (descoberta da molécula BPF, fundamento da classe de fármacos para controle da pressão alta mais utilizados no mundo) e Miguel Rolando Covian (precursor das neurociências no Brasil) (Araújo, 2007; Mauro & Nogueira, 2004; Miranda, Damasceno, Massimi, & Hoffmann, 2015; Rodrigues, Marchini, Salgado & Carlotti Junior, 2018).

Cabe destacar o protagonismo de Anette à frente do CMMH (Massimi, 2018), o que viabilizou a compra de equipamentos adequados à conservação de parte do acervo e capacitação da equipe. Ao longo dos anos, publicou trabalhos sobre a experiência universitária de seu mestre, o professor Covian (Hoffmann, 2005, 2007; Miranda et al., 2015), e desenvolve no CMMH projetos interdisciplinares por meio de cursos, exposições e publicações (Hoffmann, Bueno & Massimi, 2001; Hoffmann & Massimi, 2007, 2008, 2011). Como exemplo, no projeto Polifonias do Coração, a partir da perspectiva de médicos, historiadores, filósofos, músicos, poetas, teólogos, saberes sobre o coração humano foram apresentados e debatidos no ano de 2011 em curso de extensão, disciplina eletiva em dois programas de pós-graduação da USP, exposição temporária no CMMH, além de serem publicados em livro (Hoffmann, Oliveira & Massimi, 2014). À articulação interdisciplinar no âmbito universitário, soma-se o intercâmbio com instituições da cidade como o Museu de Arte de Ribeirão Preto: no Projeto Medicina e Arte, Anette organiza exposições no CMMH atraindo público diversificado (Jesus, 2016). Tendo se aposentado há alguns anos, ela segue como professora colaboradora sênior da FMRP, com assento no Conselho Deliberativo do CMMH e é membro do Grupo de Pesquisa Tempo, Memória e Pertencimento do Instituto de Estudos Avançados da USP, o qual recentemente organizou o evento Miguel Rolando Covian: uma concepção de Universidade para os tempos atuais (Massimi & Hoffmann, 2018).

A estratégia de coleta de dados adotada foi a entrevista semiestruturada de orientação fenomenológica, inteiramente gravada em áudio e realizada em julho de 2013, na casa de Anette, em Ribeirão Preto. Viajamos especialmente para realizar a entrevista em ambiente familiar à participante, pois, uma vez que nosso tipo de pesquisa busca analisar vivências e não opiniões sobre o assunto, entendemos ser importante cuidar que o momento e o contexto de realização da entrevista favoreçam a elaboração da experiência (Leite & Mahfoud, 2010). Ao longo da entrevista, procuramos manter a postura de empatia à vivência do outro e atenção à experiência comunicada (Barreira & Ranieri, 2013). Sendo uma pesquisa voltada à valorização do empenho em preservar memórias, atestamos a importância de que não fosse mantido sigilo quanto à identidade da participante. Por isso, além da assinatura do Termo de Consentimento Esclarecido, recebemos autorização para manter nomes próprios de todas as pessoas e instituições citadas. Além disso, Anette revisou e aprovou a textualização de sua entrevista.

Realizamos a transcrição integral e textualização do relato, de modo que o conjunto se configurasse como narrativa4. Na análise, seguimos diretrizes metodológicas para pesquisa fenomenológica formuladas por van der Leeuw (1933/1964) com vistas a chegar a compreender as vivências e suas conexões de sentido. Trata-se de modalidade de análise que acolhe a pessoalidade daquele que busca conhecer e dedica-se a tematizar a forma como o mundo provoca o humano de modo a testemunhar a vibração do acontecimento que encontramos (Leite & Mahfoud, 2010).

A seguir, apresentamos nossa reconstrução da experiência de Anette. Para favorecer a dinâmica da leitura e o acesso à experiência, optamos por grafar em itálico todas as expressões retiradas da transcrição, intercalando-as com nossas sínteses e compreensões. Notas explicativas foram alocadas em rodapé para dar fluidez ao texto. Por fim, na discussão dos resultados, buscamos confrontar os resultados com marcos teóricos de modo a ampliar e retificar as análises.

 

Cuidar da memória e formar universitários: a experiência de Anette

Para compreender como Anette chegou a se envolver na preservação do acervo da FMRP, contemplamos seu percurso acadêmico. Natural de Brusque/SC, iniciou a graduação em medicina em 1960 e, já no segundo ano da faculdade, fez um curso de verão no Departamento de Fisiologia da FMRP. Tomei gosto pela pesquisa, foi quando conheci o Covian5. Em 1966 mudou-se para Ribeirão Preto para realizar seu doutorado em neurofisiologia. Sua expectativa era ser orientada por ele, mas envolvido na função de chefe de departamento, Covian indicou que ela realizasse suas pesquisas sobre área septal do cérebro de sapos sob orientação da professora Maria Lico6 Anette construiu seu percurso no departamento praticamente com duas orientações, dois mestres na verdade. Como Covian, Maria Lico tinha uma inquietude intelectual grande e se preocupava muito com a questão da formação cultural do estudante de medicina. Preocupação compartilhada com outros docentes do departamento, que tinham essa visão mais ampla de universidade. Como exemplo, ela cita a atuação dos professores Ricardo Marseillan e José Venâncio Pereira Leite, que com engenhosidade e peças simples, dedicavam-se a criar equipamentos específicos para experimentos ali desenvolvidos: muitos que usávamos naquela época - estimuladores elétricos, amplificadores para registros de eventos como potenciais cerebrais, medidores de fluxo de sangue, etc. - eram construídos por eles na Oficina Mecânica de Precisão do campus. Além destes, os professores também construíam equipamentos de som com uma qualidade muito melhor do que se comprassem já feitos.

Anette destaca o privilégio de ter convivido com essa geração de cientistas que se preocupavam com o que se estendia além da ideia reducionista de resolver um problema extremamente específico. Com eles, aprendeu a importância de reconhecer também os limites do próprio fazer científico, pois, estudando sapos enquanto os colegas estudavam mamíferos, descobriu que mesmo com um cérebro menos complexo, você jamais vai chegar a entender completamente, por mais simples que ele seja.

Com tantos anos de convivência, quando Covian faleceu em 1992, foi encarregada pelo departamento de selecionar e dar destinação ao que se encontrava na sala dele. Claro que isso não foi uma tarefa fácil: Anette se envolveu bastante na tarefa, e às vezes hesitava em entrar na sala. Nas muitas horas em que passou analisando o material, ela percebeu que dentre tudo que estava lá dentro, ele havia guardado de forma bem ordenada as correspondências, principalmente as cartas trocadas com seu mestreHoussay, incluindo cópias carbono das que foram enviadas. Nessa correspondência, fica claro como foram árduos para Covian os primeiros anos em Ribeirão Preto, sendo Houssay de extrema importância tanto para mantê-lo ligado às origens, quanto para lhe prover força para dar continuidade ao trabalho na FMRP.

Havia também cartas de pessoas da família e correspondências oficiais. Ainda que incerta sobre a necessidade de guardar estas últimas, Anette optou por mantê-las e, anos depois, quando uma pesquisa de mestrado7 foi realizada com esse material, percebeu que bom foi ter guardado, porque um historiador tem capacidade de perceber e mostrar a importância de tudo isso.

Além das cartas e documentos que estavam em seu gabinete, o departamento recebeu ainda a doação da biblioteca e dos vinis de Covian, que ficavam em sua casa. A biblioteca central da FMRP não aceitou receber seus livros por ser uma biblioteca bastante eclética, com poucos livros científicos e muitos de teologia, filosofia e arte o que, para Anette, é justamente a característica que a torna bastante rica. Então o material ficou por um tempo "esquecido" em um corredor onde qualquer pessoa poderia passar e levar livros, até que finalmente inaugurou-se a sala da Coleção "Miguel Rolando Covian" no Centro de Memória e Museu Histórico da faculdade, onde todo seu acervo está reunido. Isto foi possível somente quando, por ação do então diretor da FMRP, professor Marcos Felipe Sousa Sá, o CMMH recebeu lugar definitivo e adequado no Espaço Cultural e de Extensão Universitária - ECEU, no centro da cidade de Ribeirão Preto.

E como Anette assumiu a frente do CMMH? Ela nos conta que, por uma questão quase natural foi escolhida para presidir a Comissão de Cultura e Extensão na FMRP quando esta foi criada, pois já estava envolvida com a organização de exposições de arte no saguão do prédio central. Exposições que começaram quando o professor Dalmo Amorim era diretor e às quais ela deu continuidade, porque sempre gostou muito de artes visuais se tornou colecionadora de obras de artistas da cidade. Gosto compartilhado com o mestre Covian, que também possuía quadros de artistas ribeirão-pretanos como Odilla Mestriner e Deli Sampaio.

Logo ao assumir a comissão, a funcionária Maria Alice Coelho a alertou sobre que documentos reunidos em 1985 por alguns professores, dentre eles Covian e Ruy Ferreira Santos. Numa sala da área administrativa havia muitas fotografias dos primeiros anos da faculdade; recortes de jornais de quando foi fundada; desenhos feitos para desenvolver seu brasão. Assim Anette descobria o material daqueles que haviam se disposto a reunir a história da FMRP quase dez anos antes. A partir do momento em que soube desse material pensei: como presidente da Comissão, não posso deixar isso passar sem tomar a iniciativa de tentar concretizar a ideia desses professores.

Empenhada no projeto, conseguiu também salvar do descarte equipamentos dos primeiros anos da FMRP, construídos pelos professores Marseillan, Venâncio e outros. Em 1997, a faculdade cedeu um espaço para a guarda dos documentos e equipamentos reunidos. Tratava-se da antiga sede do Centro Acadêmico que, situada onde outrora galinhas contaminadas com Doença de Chagas eram acomodadas pelos pesquisadores de parasitologia. A inadequação desse espaço motivou Anette a um longo percurso de diligências que conduziu o CMMH temporariamente a uma das antigas residências de professores no campus, até finalmente conquistar seu lugar no ECEU no centro da cidade.

Ainda que muito tenha sido resgatado e agora esteja sob guarda do museu, Anette afirma: às vezes eu até me questiono, porque não prestei mais atenção... Para ela, pensando na história do departamento em geral, acho que foi uma pena não ter recolhido a história dos outros professores que chegaram junto com Covian. Conta-nos que sua consciência sobre a importância da preservação foi despertada de modo especial a partir do encontro com a professora Marina Massimi8, que, como alguém da área de história, me orientou, me iluminou no sentido de eu entender o caminho que deveria seguir, ver o destino para aquele material todo. É por ter adentrado o mundo fascinante da história em companhia, que Anette afirma reconhecer a importância da história em nossos caminhos atuais. A colaboração de muitos anos com a professora Marina tem favorecido a preservação do acervo da FMRP, bem como possibilitado o desenvolvimento dentro do campus o trabalho de promover um encontro entre as diferentes áreas do saber, por meio de cursos, exposições e publicações, como o já citado projeto "Polifonias do Coração" e ainda "Reflexões em torno da dor", "Ciência: da maravilha à descoberta", dentre outros9 Anette faz questão de salientar que o acervo do CMMH, particularmente da Coleção Covian, já resultou em trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado, pesquisa de pós-doutorado10 . Informa que da medicina não apareceu ninguém ainda para realizar pesquisas, mas espera que um dia desperte em algum aluno a vontade de se dedicar à história da ciência e da medicina. Para ela, empreender investigações é fundamental, pois há uma história rica dos primeiros anos da faculdade que não vai ficar, a não ser na minha cabeça e isso é uma pena.

Enquanto afirma que hoje, no Museu, o trabalho da gente é muito no sentido de preservar o que está lá, pelo menos não deixar haver um retrocesso em tudo o que já foi conseguido até agora, suas lembranças sobre o início da faculdade nos conduzem a um corpo docente que possuía uma formação cultural bastante ampla, eles tinham outras inquietações e indagações. Reminiscências que contrastam com a situação atual dos professores, dadas as muitas funções e atribuições em termos de docência e pesadas exigências de desenvolver projetos de pesquisa e publicar, ao ponto de Anette acreditar que dificilmente algum docente na ativa vai dedicar um tempo ao Museu, a organizá-lo ou desenvolver pesquisas lá dentro.

Reconhecendo-se nadando contra a corrente, ela entende que circunstâncias da vida foram devagarzinho a levando para o caminho de preservação. Reconhece que havia em si uma predisposição que interpreta como continuidade do que o Covian deixou, do que ele entendia por universidade e sua posição sobre a função da cultura no meio acadêmico.

A esse respeito, vale a pena transcrever um trecho dos muitos escritos de Covian sobre o tema, posto que em muito auxilia na compreensão da experiência que Anette busca nos comunicar:

É função humanística da Universidade proporcionar a cada geração a possibilidade de conhecer, refletir e avaliar a herança cultural que recebeu. Que o estudante possa mergulhar nas riquezas da cultura a fim de que se desperte nele o desejo de viver a aventura de uma vida orientada pela Verdade, a Bondade e a Beleza, que constituem nossa herança humana. (...) Cumpre-lhe formar o homem total e não irrisórias caricaturas, parcelas de um quebra-cabeça, no fundo parcelas humanas. Não se podem e não se devem modelar as mentes e os espíritos de acordo com um plano determinado, que pode ser bom para certos interesses, mas não para a formação humanística, cuja tarefa central é entender o homem e dar-lhe possibilidades para desenvolver aquilo que faz digna a vida (Covian, 2007, pp. 67-9).

Ao resgatar a definição de cultura de Covian (2007): "a seiva que nutre todas as especialidades" (p. 69), Anette desvela sua preocupação quanto à crescente especialização das ciências. O aluno sabe cada vez mais sobre cada vez menos e isso representa um perigo. Como seu mestre, cita Ortega y Gasset: o cientista ultra especialista pode se transformar em um bárbaro ilustrado. Para ambos, o único jeito de escapar dessa forma de ver o mundo - muito focada naquilo que você faz de uma maneira muito reducionista - é justamente por meio da cultura.

Daí a importância fundamental da educação cultural do estudante: a cultura é reconhecida como base para a crítica e ter um espírito crítico aguçado é essencial para evitar a tendência de só emitir opiniões. Em outras palavras, a cultura é extremamente importante numa visão múltipla, universalista. Seguir o caminho de valorização da cultura dentro da universidade é como uma tarefa que Covian lhe confiou e ela acredita que estamos muito dentro dessa linha, estamos mantendo viva essa ideia dele.

Como realizar essa ideia no cotidiano da vida universitária? Anette nos conta que Covian tinha grupos de estudos em que os alunos realmente tinham a preocupação de alinhar conhecimento à formação cultural. Em reuniões periódicas, discutiam leituras de textos de literatura, de filosofia da ciência. Segundo ela, infelizmente, esse hábito se perdeu devido principalmente às mudanças na estrutura da pós-graduação. Da forma como é hoje, o prazo extremamente exíguo para finalização das pesquisas impede que os alunos tenhamo tempo e a disponibilidade que antes possuíam para outro tipo de atividade.

Ainda assim, ou talvez justamente em virtude disso, Anette, dentro do possível, busca manter o espírito do Covian dentro da pós-graduação e da neurofisiologia. A esse respeito, conta-nos sobre uma aula que ministra inspirada em uma iniciativa de Covian. Versa sobre a história do método científico na fisiologia, chegando até Claude Bernard11 e, ao perceber interesse dos alunos, indica filmes como Vênus Negra (2010). Baseado na vida de Saartjie Baartman (1789-1815), a mais famosa das mulheres do povo khoisan que foram exibidas como aberrações em eventos na Europa do século XIX, o filme também mostra que ela caiu nas mãos dos cientistas, que a fizeram viver uma humilhação pior ainda. Levada ao Museu de História Natural de Paris, encontrou um dos grandes cientistas da época, Cuvier12, que achou que ela poderia comprovar sua teoria sobre raças. Para Anette, este filme é precioso para discutir a questão da história, do quanto a ciência pode virar uma ideologia do mal e justificar muitas coisas que acontecem.

Articulando ciência e cultura, Anette também recorre a outros campos do saber para ampliar o ensino dos conteúdos que lhe competem. Assim, para tratar dos tempos biológicos, lê sobre concepções de tempo na física, sociologia, filosofia. Leituras que a permitem dialogar com autores como Comte-Sponville13, compreendendo que vivemos no presente os três tempos: passado, presente e futuro. A inseparabilidade entre os três tempos mobiliza seu espanto ante o esquecimento de tantas questões num tempo tão curto. Cita as reuniões que Covian promovia com os alunos nas décadas de 1970 e 1980 e pondera: não faz tanto tempo, mas as novas gerações de pós-graduandos, e mesmo os professores mais novos, às vezes nem sabem quem foi Covian. Para não dizer que não ficou nada, nos conta que ficou o hábito do café, mas não sei se as pessoas sabem de onde vem esse hábito. Quanto a esta verdadeira tradição do Departamento de Fisiologia, cabe descrição detalhada: para promover uma interação maior entre alunos, professores e funcionários, Covian instituiu o que ficou conhecido como "hora do café". Até hoje, diariamente, sempre no mesmo horário, um sino é soado convidando todos a se reunirem na sala do café para momentos de descontração e convivência.14

Mas como cuidar da memória e evitar o esquecimento? Acho que isso cabe aos professores, porque quem é fixo é o corpo docente... Mas, ante a escassa consciência histórica mesmo dos hábitos que permanecem, reflete: de repente é isso: nem os próprios docentes se lembram, esquecem a história. Por isso, vendo proliferarem em sua área concepções que se auto intitulam a verdade definitiva sobre a mente humana, ela toma sua formação ampla como instrumento de crítica que lhe permite identificar a fragilidade do conhecimento reducionista e alertar sobre os perigos da ultra especialização. Nutrindo-se da cultura como seiva da ciência, também é capaz de ponderar sobre a visão empresarial que a universidade abraçou, reconhecendo como o imediatismo, o excesso de exigências e o carreirismo são cegos à compreensão de por que as coisas chegaram a ser o que são e mudos diante da interrogação: para quê? Ela, ao invés, tem uma resposta bem clara a este questionamento: isso aí não leva a nada. Formada para mirar até o fim as implicações de cada perspectiva e ser fiel à complexidade do real, Anette evidencia a amplitude como herança que lhe permite denunciar a inadequação do enquadramento estreito das propostas que dominam seu campo de atuação.

Em suma, na esteira de seus mestres, Anette defende que a universidade é uma comunidade pensante e não simplesmente um conjunto de pessoas que estão preocupadas em publicar mais umpaper. É um lugar de formação, onde se concretiza o dever de cuidar da formação dos nossos estudantes e de proporcionar a eles uma formação cultural mais abrangente. Finalizando, ela elabora que todo o seu empenho de preservação da memória e de constituição do CMMH, talvez tudo isso, todas essas coisas em que eu me engajei têm a ver com esse ideal.

 

Discussão: o trabalho da memória pode vitalizar a educação médica?

Tendo mergulhado na experiência de Anette, a pergunta que orienta nosso trabalho reemerge: pode o cultivo da memória contribuir para que os médicos de hoje tenham uma formação crítica e humanizada? Como?

Em primeiro lugar, é notório que o modo de estruturação do CMMH e os projetos nele desenvolvidos são exemplos do movimento que vem promovendo a valorização da cultura humanística na formação médica (Gallian, 2000; Guardiola & Baños, 2017; Rios, 2010). Organizando exposições e cursos, a instituição oferece aos acadêmicos e público em geral a oportunidade de conhecer outras formas de fazer ciência e praticar a profissão. Na escolha de temas interdisciplinares para os projetos empreendidos - como saberes sobre o coração e suas significações para a humanidade - colhemos um esforço de romper o fechamento da medicina em si mesma e de superar os riscos de tecnicismo tão presentes neste meio.

Analisando o relato de Anette, fica evidente como ela faz questão de enfatizar que os trabalhos desenvolvidos são feitos em companhia: tanto o reconhecimento do valor do que é encontrado, quanto o esforço de conservação são compartilhados com pessoas cuja atuação é constantemente exaltada como fundamental. Também o seu percurso acadêmico é entendido como essencialmente relacional e por isso tributário dos mestres que lhe orientaram em seu caminho. Em suas vivências, podemos colher a importância dos relacionamentos no percurso de formação universitária e no envolvimento em projetos de promoção de cultura e da humanização da medicina. Em um momento em que a louvável apologia às metodologias ativas reconstrói currículos das escolas médicas e em toda a área da saúde (Carabetta Júnior, 2016), a pergunta sobre o futuro da profissão docente neste campo se coloca com veemência. Se não há mais lugar para a postura conteudista, a figura do professor ainda tem importância ou poderia ser descartada? Sem pretender esgotar a questão, consideramos que a experiência de Anette abre frestas e problematizações: é possível formar-se profissional humanizado sem a companhia de mestres que apresentem o valor e o significado de não fragmentar o humano em partes ou reduzir o cuidado a técnicas?

No curso de sua vida, Anette pôde testemunhar eventos e estar próxima a pessoas extraordinárias que incidiram em sua formação. Compreendemos que ela elabora essa desproporção como gratuidade: para ela o que acontece não é um mérito seu. E, ao que recebe de modo gratuito, responde com gratidão: fascinada pelos documentos e pela história a que tem acesso, empenha-se para preservá-los e torná-los conhecidos. Assim envolveu-se na instalação do CMMH, assim empenha-se para possibilitar a seus alunos uma formação cultural ampla que preserve a vitalidade universitária. No seu modo de descrever como se envolveu nas atividades de preservação, identificamos que, no maravilhamento vivido em certos encontros, o dever de cuidar do que é significativo emerge como evidência para si. Sua experiência então fornece indícios da centralidade do maravilhamento para a dedicação à promoção da cultura e preservação da memória. Sem encanto, dificilmente há meios de encontrar tempo e disposição para cuidar. Considerando o potencial pedagógico ainda pouco explorado dos museus e centros de memória da medicina (Serres, 2012), essa constatação poderia orientar ações com maior capacidade de aproveitamento desse potencial? Se sim, como seria possível despertar fascínio nos acadêmicos, instigando-os a cuidar das heranças de gerações anteriores?

Com Anette, vemos que um caminho possível para essa ampliação do significado da preservação da memória está justamente na afirmação de uma ampla visão de ciência e universidade. Como herdeira da geração de Covian, ela recebeu uma formação científica e cultural que marca sua atuação como docente. Marca que se expressa na liberdade para sorver contribuições e se propor a construir conjuntamente com outras áreas; na garra de não abandonar o trabalho em condições adversas; na humildade para reconhecer o inestimável valor e a complexidade constitutiva de qualquer ser, por mais simples que seja. Entendemos que sua trajetória é exemplo que documenta como a humanização da medicina pode se estruturar de modo muito sólido por meio do cultivo da cultura, alcançando um patamar que dificilmente a prática profissional sozinha seria capaz de galgar, tal como intuito por Silva, Sakamoto e Gallian (2014).

Com o legado cultural recebido e cultivado, Anette se nos apresenta sabedora de que sua ação não é capaz de abarcar o horizonte imenso que se abre diante de si, mas, dentro dos limites que a ela se impõem, batalha pela preservação material dos registros, como forma de fornecer dados confiáveis para pesquisas futuras. Empenhada em preservar o que elabora ser fascinante no passado, diversas vezes se mostra preocupada em explicitar que esses documentos possuem grande importância histórica. Esta última, aliás, emerge para nós como uma das maiores motivações de seus esforços: sua grande aspiração é que o acervo do CMMH subsidie investigações, contribua para o avanço do conhecimento da história brasileira e da história da ciência. Propondo-se a dar este tipo de contribuição, ela reconhece a necessidade de cuidados específicos na conservação do material que está sob sua tutela, bem como a importância de enumerar os indícios que fundamentam suas compreensões ou indicar quando não há precisão em certas informações que está nos repassando. Assim, como apontado por Serres (2012), empenha-se no árduo e necessário caminho de sistematização que permite que um aglomerado de equipamentos e documentos transforme-se de fato em acervo museológico.

Certa de que a história precisa de uma base documental, Anette encontra na institucionalização uma resposta possível para a adequada conservação dos materiais com valor histórico e para que eles sobrevivam à sucessão das gerações. Isso não significa que a formalização substitua a resposta individual: em sua elaboração apreendemos que o desafio é justamente unir a vitalidade pessoal e o interesse pela pesquisa à solidez institucional com respaldo governamental. Somente com essa convergência o horizonte amplo que o conhecimento histórico pressupõe poderia ser adequadamente afirmado. A análise de suas ponderações nos reconduz às relações possíveis entre o trabalho da memória e o trabalho da história, tal como descritas por Halbwachs (2004). Em lugar de tomar os processos como distintos, podemos com a experiência dela aprender como ambos se enriquecem mutuamente. Apreendendo valor no legado de seus mestres a partir de uma vinculação típica da memória coletiva, Anette propõe um trabalho de memória histórica que seja capaz de descrever, aprofundar e recuperar a vitalidade dos registros que ajuda a reunir. Por meio da elaboração de memória coletiva, ela reconhece valor naquilo que outros hoje descartam e vislumbra seu potencial para o avanço do conhecimento histórico. Além disso, com uma preocupação nitidamente histórica, o acesso a documentos também lhe permite uma experiência de vinculação em termos de memória coletiva: mesmo sem um processo de transmissão intergeracional, a surpresa de descobrir o projeto do museu instaurou uma ponte que a religou ao passado, num alargamento das fronteiras da experiência individual.

Nesse sentido, Anette consegue articular de modo peculiar a importância das instituições ao envolvimento de quem efetivamente reconhece valor e decide cuidar. Em seu relato, chama atenção sua afirmação de que não tem tanto valor o que ficou como costume sem consciência da origem, como o hábito do café ainda hoje presente. Ela poderia ter enfatizado a excepcionalidade de que todos em um departamento interrompam suas atividades num mesmo horário e dirijam-se a um mesmo local para, juntos, aproveitarem seu intervalo de descanso. Ao invés, sua colocação nos alerta que um rito ou tradição é vivo não quando se mantém ao longo do tempo, mas quando efetivamente há consciência de suas raízes e seu sentido original. Colhemos nessa ponderação como em sua vivência é indispensável o trabalho da memória que reelabora o valor afirmado no passado para que o posicionamento no presente não seja alienado. Em sua defesa de que o gesto seja realizado sempre com a consciência do sentido, colhemos o mesmo dinamismo de sua insistência de que documentos e lembranças sejam abraçados por investigações que os situem num panorama histórico mais amplo: ideal de que os costumes e os dados ultrapassem sua pura facticidade e sejam tomados em sua complexidade a partir do horizonte do sentido.

Reconhecemos aqui uma provocação imensa para a hodierna formação médica. Os avanços científicos são tão vertiginosos, que facilmente os estudantes - e também os professores - centram suas energias em absorver as novas descobertas de processos fisiológicos, atuação de fármacos e aplicação de técnicas (Gallian, 2000). A humanização aparece para muitos como fardo necessário tão somente para garantir resultados efetivos na adesão do paciente, o que na prática corrompe o fundamento da proposta. Assim, enquanto tentam equilibrar saberes e processos sem clareza de uma unidade entre eles, a dedicação de tempo é extenuante para os acadêmicos e a pergunta pelo sentido de tanto empenho muitas vezes não tem lugar. Num contexto assim, o modelo econômico sem alarde ocupa espaços, consolidando a visão empresarial de universidade e profissão que Anette tão enfaticamente critica. Sua trajetória emerge assim como contundente apelo aos jovens graduandos e médicos, para que se deixem provocar pela pergunta: para quê tudo isso? E possam encontrar respostas efetivamente pessoais.

 

Conclusão

Ao longo deste trabalho buscamos debater como transformações no ensino da medicina têm aliado novas metodologias à crítica ao modelo biomédico, muitas vezes por meio de projetos dedicados à promoção da cultura humanística na universidade. Delimitando o recorte em uma iniciativa de preservação da memória de uma escola médica brasileira, temos clareza dos limites que nossa investigação carrega, posto que além de ser o estudo de um caso único, há riscos de superdimensionar conquistas e o perfil de seus protagonistas. Com essa consciência, procuramos destacar um caminho possível de articulação entre educação e valorização da história que não incorre em mera exaltação institucional ou profissional.

Com os muitos desafios que enfrenta, o Centro de Memória e Museu Histórico da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto apresenta-se como iniciativa inspiradora, que se assenta na base sólida do cuidado daquilo que alguém reconheceu como extremamente importante para si e para o mundo. Analisando a experiência de Anette, grande protagonista da constituição do CMMH, aprendemos sobre a importância da companhia para reconhecer valor e cuidar. Sobre a centralidade do fascínio para se envolver em trabalhos de preservação. Sobre como é importante uma concepção ampla de formação e universidade que mobilize a dedicação à cultura, à interdisciplinaridade, ao passado. E aprendemos ainda sobre a importância da materialidade para que registros do passado possam continuar solicitando novas gerações.

Experimentando o drama da possível não continuidade, Anette segue cuidando para evitar retrocessos e vive a esperança de que a onda de descaso se inverta. Sua voz dissonante une-se a outras para anunciar o valor da história, proclamar modalidades de preservação em curso, selar encontros reais entre diferentes áreas do saber, reconhecer a existência concreta de uma universidade ideal ao lado da universidade carreirista. Mesmo com tantos ventos contrários, Covian segue sendo uma presença para ela, pois a visão mais ampla que ele e sua geração imprimiram na constituição da faculdade continua como referência de crítica e construtividade.

A investigação ora apresentada convida a pensar em como novos estudos sobre a memória poderiam favorecer a construção de uma educação médica cada vez mais humanizada e humanizadora. Na experiência analisada, buscamos delinear nuances que podem ajudar a entender a importância de cuidar da materialidade e dos sentidos que ela carrega para que registros do passado possam continuar solicitando novas gerações de médicos em formação. Quando a preocupação histórica parece tão alheia ao exigente cotidiano dos acadêmicos, o relato de Anette chama atenção para elementos fundamentais da formação, para a seiva que pode nutri-la e salvaguardá-la dos riscos do presentismo, da ultra especialização, da desumanização. Em suma, a experiência em que se ancora a constituição do CMMH indica como a preservação da memória contribui para a educação médica ao traduzir visão ampla de ciência e universidade.

 

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Endereço para correpondencia:
Roberta Vasconcelos Leite
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Campus JK - Rodovia MGT 367 - Km 583, nº 5.000, Alto da Jacuba
CEP 39100-000. Diamantina - Minas Gerais
Email: roberta.leite@ufvjm.edu.br

Recebido em 07.08.2019
Primeira decisão editorial em 27.04.2020
Aceito em 12.05.2020

 

 

1 Este trabalho contém resultados parciais da pesquisa de doutorado Experiência ontológica e tradição na experiência de guardiões de memórias (Leite, 2015) realizada com financiamento CAPES (bolsa de doutorado no país e bolsa no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Corrente consolidada no Brasil por Monique Augras na década de 1970, a psicologia da cultura aspira articular um saber respeitador da diversidade cultural brasileira que supere o etnocentrismo e o empirismo. Aproxima-se da antropologia cultural, mas é original por tematizar a constituição humana a partir da análise dos fenômenos culturais. Para tanto, empenha-se em "descrever as modalidades pelas quais se constrói e se expressa a pessoa dentro de determinada cultura e, a partir dessa observação, tentar compreender aspectos fundamentais da realidade humana" (Augras, 1995, p. 19).
3 Como mencionado, a pesquisa Experiência ontológica e tradição na experiência de guardiões de memórias foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética desta universidade (CAAE: 30183614.2.0000.5149; Número do Parecer: 633.566; Data da Relatoria: 30/04/2014).
4 A textualização completa da entrevista encontra-se em Leite (2015).
5 Miguel Rolando Covian (1913-1992). Cientista argentino, considerado um dos mais importantes pesquisadores da neurofisiologia no Brasil. Sua atuação foi determinante na estruturação do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tendo sido foi responsável pela projeção internacional do departamento já em sua primeira década (Candido & Massimi, 2010). Seu interesse pela relação cérebro-mente por meio da relação fisiologia e comportamento foi decisiva para o desenvolvimento das neurociências no país (Miranda et al., 2015).
6 Maria Carmela Lico (1927-1985). Professora argentina que, como Covian, foi discípula de Houssay e posteariormente migrou para o Brasil para trabalhar na área de neurofisiologia, integrando-se à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
7 Sob orientação da professora Marina Massimi, Eneida Nogueira Damasceno realizou em sua pesquisa de mestrado a organização de toda o arquivo epistolar de Covian (Damasceno, 2013).
8 Referência nacional e internacional no campo da história da psicologia, Marina Massimi atuou como Anette no campus Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Professora titular aposentada, tornou-se colaboradora sênior e hoje lidera Grupo de Pesquisa Tempo, Memória e Pertencimento no Instituto de Estudos Avançados da USP.
9 Cf. Hoffmann, Bueno e Massimi (2001); Hoffmann e Massimi (2007, 2008, 2011); Hoffmann, Oliveira e Massimi (2014).
10 Cf. Bueno e Massimi (2007); Candido e Massimi (2010); Damasceno (2013); Miranda et al. (2015); Pizella e Massimi (2007).
11 Claude Bernard (1813- 1878). Fisiologista francês, um dos mais famosos cientistas em sua área, conhecido pela defesa da objetividade nas observações científicas.
12 Jean Léopold Nicolas Frédéric Cuvier (1769-1832). Cientista francês, importante figura no desenvolvimento das áreas da anatomia e paleontologia comparadas.
13 André Comte-Sponville (1952-). Filósofo materialista, tem como principais referências Sartre e Dostoievsky.
14 Cf. Damasceno (2013).

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