Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.2 Goiânia maio/ago. 2021
https://doi.org/10.18065/2021v27n2.7
ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
O poder transformador dos encontros: uma análise da animação Destino
The transformative power of Encounters: an analysis of the animation Destino
El poder transformador de los encuentros: un análisis de la animación Destino
Elizabeth Fátima TeodoroI; Reinaldo da Silva JúniorII
IUniversidade do Estado de Minas Gerais - UEMG Divinópolis & Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ. Endereço: Rua Shirley Faria de Oliveira, 317. Quartéis. Formiga/MG. CEP: 35570-296. Email: elektraliz@yahoo.com.br
IIUniversidade do Estado de Minas Gerais - UEMG Divinópolis. Endereço: Rua Frei Wenceslau, 490. Shanadour. Divinópolis/MG. CEP: 35501-304. Email: reipsi@yahoo.com.br
RESUMO
Este texto surgiu dos seguintes questionamentos: quais são as precipitações decorrentes de um encontro verdadeiro? É possível relacionar-se verdadeiramente com outra pessoa e permanecer o mesmo? O que é preciso, segundo Rogers, para estar inteiro em uma relação amorosa? Objetivamos analisar o modo por meio do qual a pessoa se transforma ao eleger alguém como companheiro. Para tanto, o método se pautou na investigação teórica com enfoque em Carl Rogers para o estudo conceitual humanista e na análise fílmica a fim de realizar uma leitura psicológica acerca da animação Destino de Salvador Dalí e Walter Disney. A partir do exposto, desarticulamos a noção de que a relação amorosa é um destino imutável, ao perceber, através da abordagem humanista, que a relação amorosa, não só envolve a consciência de ser pessoa, mas principalmente, a abertura verdadeira à experiência de ser com outra pessoa, em uma relação Eu-Tu de autenticidade e empatia. Desse modo, os Encontros permitem a construção do próprio destino que se descortina como algo flexível e mutável.
Palavras-chaves: Amor; Carl Rogers; Humanismo; Relações interpessoais.
ABSTRACT
This text arose from the following questions: what are the precipitations resulting from a real encounter? Is it possible to truly relate to another person and remain the same? What does it take, according to Rogers, to be whole in a loving relationship? We aim to analyze the way in which the person changes when choosing someone as a partner. Therefore, the method was based on theoretical research with a focus on Carl Rogers for the humanistic conceptual study and on film analysis in order to carry out a psychological reading about the animation Destino by Salvador Dalí and Walter Disney. From the above, we dismantle the notion that the love relationship is an immutable destiny, by realizing, through the humanistic approach, that the love relationship not only involves the awareness of being a person, but mainly, the true openness to the experience of being with someone else, in an I-You relationship of authenticity and empathy. In this way, the Meetings allow the construction of their own destiny that is revealed as something flexible and changeable.
Keywords: Love; Carl Rogers; Humanism; Interpersonalrelations.
RESUMEN
Este texto surgió de las siguientes preguntas: ¿cuáles son las precipitaciones resultantes de un encuentro real? ¿Es posible relacionarse realmente con otra persona y permanecer igual? ¿Qué se necesita, según Rogers, para ser íntegro en una relación amorosa? Nuestro objetivo es analizar la forma en que la persona cambia al elegir a alguien como compañero. Por lo tanto, el método se basó en una investigación teórica centrada en Carl Rogers para el estudio conceptual humanista y en el análisis de películas para llevar a cabo una lectura psicológica sobre la animación Destino de Salvador Dalí y Walter Disney. De lo anterior, desmantelamos la noción de que la relación de amor es un destino inmutable, al darnos cuenta, a través del enfoque humanista, de que la relación de amor no solo implica la conciencia de ser una persona, sino principalmente, la verdadera apertura a la experiencia de estar con alguien más, en una relación Yo-Tú de autenticidad y empatía. De esta manera, las Reuniones permiten la construcción de su propio destino que se revela como algo flexible y cambiante.
Palabras claves: Amor; Carl Rogers; humanismo; Relaciones interpersonales.
Introdução
A animação Destino corresponde a um projeto idealizado por Salvador Dalí, importante pintor espanhol, e Walter Disney, produtor cinematográfico e animador, em meados de 1945. Seu desenvolvimento inicial foi realizado pelo artista surrealista e John Hench até 1946 e finalizado somente 57 anos depois, em 2003, pelo diretor francês Dominique Monfréy. Sobre o curta-metragem, Dalí afirmava ser a exposição mágica do problema da vida no labirinto do tempo. Disney, por sua vez, referia-se a ele como uma simples história de uma jovem em busca do seu verdadeiro amor.
Fato é que Destino conta em, aproximadamente, seis minutos a história de Chronos e sua incapacidade de amar uma mortal. Ou sob outro enfoque, a obra explana sobre uma bela jovem que se envereda pelos caminhos impossíveis do amor (Monfrey, 2003). Tudo depende da perspectiva pela qual nos dispomos a ler as cenas que se desdobram. Há, porém, um ponto no qual essas perspectivas se convergem, qual seja, o encontro no qual as relações se desenvolvem. Esse será precisamente nosso foco.
Retornando à trama, a metamorfose constante das imagens apresenta o caráter evanescente das formas e do tempo que são sustentadas pela trilha sonora de Armando Dominguez, interpretada por Dora Luz ao cantar "Leia na palma da minha mão a linha de minha propriedade e minhas tristezas, que nunca, nunca me disse meu destino do amor. Ai! Vida, ai!". Toda essa composição dá o tom da dramaticidade que se descortina nas histórias de amor que, geralmente, têm vida curta como Romeu e Julieta de Shakespeare (1998), mas marcam profundamente a existência, uma vez que possuem o poder de transformar radicalmente a vida de quem se dispõe a viver o Encontro1.
Temos, nesse viés, que essa obra pode ser denominada surrealista menos pelo seu caráter irracional que, por seu caráter dialético, que nos convoca a assumir uma posição de "entre-lugar", em que a vida surge "(...) como uma passagem, um movimento presente de transformação ou transposição, no qual uma coisa não é mais ela mesma, mas não totalmente outra" (Losso, s.d., p. 987). Nesse "entre-lugar", lançamo-nos para além das perspectivas baseadas na fé ou na razão, descortinando-se, assim, o caráter contingente da existência como pondera Gleiser (2012).
Por esse viés, ressaltamos que a perspectiva que assumimos para interpretar o enredo da animação não é sem consequência, uma vez que revela o modo por meio do qual somos afetados pelas tramas existenciais, ao mesmo tempo, em que evidencia os traços amorosos e os embaraços que moldam nossa personalidade, perpassando nossas relações de forma indelével. Essa consciência, inclusive, torna-nos capazes de, a partir da investigação, estabelecermos um Encontro, tanto com a história, quanto com a teorização de Rogers que nos permita sair transformados. Com efeito, esperamos também que o leitor, em sua experiência, possa igualmente ter sua experiência transformadora.
Nessa esteira de pensamento, terminamos por compreender que, em psicologia, o estudo sobre a dinâmica das relações é de fundamental importância, posto que, na maioria das vezes, os sofrimentos que chegam à clínica são oriundos de desentendimentos no campo relacional, nas suas mais variadas apresentações - pais e filhos, casal, amigos e outras. "Trata-se, [portanto], de uma ótica da alteridade, uma busca do que não se pode ver, mas que nos toma como reféns e nos surpreende" (Vieira & Freire, 2006, p. 432). Tais questões somente podem ser trabalhadas no contexto clínico, quando percebemos como nos relacionamos, de que forma as pessoas nos afetam, como as afetamos, em contrapartida. Apenas a partir dessa consciência relacional de si e do outro, torna-se possível "escutar" as escolhas e os afetos dos indivíduos que buscam nossa percepção enquanto profissionais da psicologia.
Mediante esses pressupostos, as linhas que se seguem pretensas buscam o desenrolar de uma leitura psicológica acerca de Destino à luz de Carl Rogers e sua psicologia humanista. Assim, a presente investigação objetiva analisar o modo como a pessoa se transforma ao eleger alguém como companheiro. Para tanto, o método de escolha se pautou na investigação teórica com enfoque em Carl Rogers, para o estudo conceitual humanista, com sua abordagem centrada na pessoa, visto que, em sua perspectiva, o ser humano se apresenta com uma capacidade "(...) latente senão manifesta, de compreender a si mesmo, de resolver seus problemas, de compreender os outros e de chegar assim à satisfação, à eficácia, ou seja, em síntese, ao bom funcionamento do seu organismo e à felicidade" (Maupeou, 1974, p. 56); e a Martin Buber com sua noção de Eu-Tu. Não descartando, pois, o auxílio de comentadores na facilitação da compreensão conceitual.
Recorreu-se ainda à análise fílmica (Penafria, 2009) que se ocupa em apontar o conteúdo manifesto e as relações estruturais da representação, propondo uma leitura das cenas, a fim de se chegar a uma interpretação pertinente do filme, no intuito de possibilitar uma articulação mais aprofundada da práxis humanista. Entendemos que a presente pesquisa contribui para a produção do conhecimento em psicologia seja no campo teórico, seja no clínico, haja vista a necessidade de revisão constante do processo de formação do estudante de psicologia, na perspectiva de aspectos concernentes à dinâmica do laço social, visto que são esses laços que nos constituem, fazendo-nos mais saudáveis ou nos adoecendo. Temos presenciado o aumento de inúmeras psicopatologias, como a depressão, decorrente das formas evanescentes de laços ou da falta deles, no contemporâneo, como nos apresenta Bauman (2004)2.
Nesse ínterim, destacamos que a produção cinematográfica produz um forte apelo pela imagem, pela narrativa e pela ficção. Sendo, fundamentalmente, responsável pelo conteúdo dos processos de formação da identidade social no contemporâneo. Portanto, o cinema ocupa um lugar privilegiado no imaginário social e essa condição não passa despercebida aos estudantes em formação no curso de psicologia. Assim, desenvolvemos esse texto em três partes, as quais evidenciam as tramas de Destino e a transformação resultante da dinâmica dos Encontros, especialmente, na eleição amorosa de um companheiro. A primeira delas faz uma leitura psicológica da animação à luz da psicologia humanista. Para tanto, emergem conceitos importantes que constelaram a obra de Buber e Rogers como a díade relacional Eu-Tu, tornar-se o que si é e empatia.
Em seguida, abordaremos como o tempo e o destino contornam a dinâmica dos encontros. Assim, rastrearemos o conceito de tempo e destino na mitologia grega, buscando entender seus caráteres fixos e mutáveis. Nesse segundo momento, surgem ainda conceitos como tendência atualizante, potencialidade, autenticidade e congruência que nos auxiliam a pensar a dinâmica dos encontros na esfera da relação amorosa. Por fim, destacamos as transformações oriundas dos Encontros amorosos. Ressaltamos, pois, o conceito rogeriano de self (Rogers, 1977a) na tentativa de responder as seguintes questões: quais são as precipitações decorrentes de um Encontro verdadeiro? É possível relacionar-se verdadeiramente com outra pessoa e permanecer o mesmo? E o que é preciso, segundo Rogers, para estar inteiro em uma relação amorosa?
Tais questionamentos surgem da compreensão de que para o humanismo "(...) o homem se reconhece como um ser em construção, em constante mudança, crescimento e atualização" (Lima, 2008, p. 35), de modo que cada Encontro possui um sentido e um significado único que possibilita o desenvolvimento de formas diferentes de afetar e ser afetado pelas vivências. Como esclarece Rogers (1977a):
Quando uma pessoa é compreendida de maneira perceptiva, ela entra em contato mais próximo com uma variedade maior de suas vivências. Este fato lhe proporciona um referencial mais amplo ao qual recorrer para compreender a si mesma e nortear seu comportamento. Quando a empatia é adequada e profunda também pode desbloquear um fluxo de vivências e permitir que ele siga seu curso natural. (Rogers, 1977a, p. 83).
No entendimento de Rogers (1994), os indivíduos possuem dentro de si os recursos para a auto-compreensão, modificação dos auto-conceitos, de suas atitudes e de seus comportamentos. Isso significa dizer que a tendência ao crescimento, amadurecimento e atualização faz parte da condição humana. Contudo, o mesmo autor salienta que, apesar de tal potencialidade, ela somente será ativada se houver um clima propício.
(...) os indivíduos possuem dentro de si mesmo vastos recursos para a autocompreensão e para modificação de seus autoconceitos, de suas atitudes e de seu comportamento autônomo. Esses recursos podem ser ativados se houver um clima, passível de definição, de atitudes psicológicas facilitadoras. (Rogers, 1983a, p. 38).
Segundo o autor supracitado, esse clima pode ser obtido na relação interpessoal, visto que como aponta Erthal (1999, p. 43), "(...) a existência humana se realiza em um contexto interpessoal". Nesse sentido, a escolha de um parceiro amoroso e, consequentemente, a relação amorosa poderiam também ser pensados enquanto facilitadores para ativar os recursos natos do ser humano de crescimento e atualização apresentados por Rogers (1994)?
Nas Tramas do Destino: Desfiando o Existir de um Encontro
O curta-metragem se inicia a partir de uma reta que primeiro uni o nome de Dalí e Walter Disney e depois delimita o horizonte do qual surge uma linda jovem no deserto (Monfrey, 2003). Se pensarmos que a reta ou o segmento de reta, como propunha Euclides, é a menor distância imaginável entre dois pontos distintos e que, ao mesmo tempo, aponta para dois extremos, poderemos dizer que todo Encontro se faz de uma reta. Sendo, portanto, necessários dois pontos, no mínimo, para que ele aconteça.
Esse segmento de reta remete à díade relacional (Eu-Tu) proposta por Buber (2001), em que há uma reciprocidade e uma dialogicidade, que compreende o essencial do homem, na medida em que a relação é o fundamento da existência humana. Rogers (1986) se apropria desse conceito ao apresentar a importância da autenticidade no processo de tornar-se o que se é. Desse modo, vemos que o eu só existe no ponto em que existe um outro (tu), pois sua construção se dá na relação, ou seja, nos Encontros. Sabemos que tais Encontros podem ser bons ou ruins, todavia, ao final dos bons Encontros, invarialmente, percebemos mudanças substanciais em nosso modo de viver.
Isso porque, como esclarece Rogers (1983b, p. 13), "facilitar a expressão de sentimento, potencializar a pessoa, liberar o indivíduo para uma escolha autônoma, resulta em mais aprendizagem, mais produtividade, mais criatividade, do que a que resulta do exercício de poder sobre a pessoa". Assim, o bom Encontro de Dalí e Walter Disney gerou um destino, curiosamente, nomeado de Destino. Semelhante segmento de reta levou a moça à escultura de Chronos, produzindo também um bom Encontro que modificou ambos, precipitando em uma substância diferente, uma nova escultura.
É interessante notar que a aproximação da jovem gera devaneios de uma relação que, mesmo em seus pensamentos, mostra-se impossível. Essa impossibilidade dá o tom de seu desejo, dotando de paixão o que passa a enxergar. Nesses termos, ao tomar consciência de sua condição de mortal, consequentemente, ela se abre à possibilidade de aceitar também a condição de seu amado. Atitude essa que a permite mergulhar em um sino que se insinua a sua frente. Com efeito, revestindo-se de sino (um símbolo do tempo), ela cria as condições exatas para que o Encontro esteja a seu alcance, despindo-se de si para acolher o outro. Talvez não seja incorreto afirmar que ela somente foi capaz de enxergar o sino, ou seja, a possibilidade por que se entregou à sua condição e permitiu-se viver a experiência da finitude humana, dotando de intensidade cada minuto de seu existir.
À luz de Rogers (1977b), essa passagem nos permite duas importantes leituras, a primeira é verificar que uma das condições para que o Encontro se efetue subjaz no "tornar-se o que se é", isso só é possível por meio da aceitação da própria experiência existencial. Assim, quando a moça aceita sua condição de mortal e do caráter efêmero de sua existência, ela se torna capaz de "(...) viver uma relação aberta, amigável e estreita com a sua própria experiência" (p. 152). A segunda leitura nos leva a evidenciar que, para tornar-se o que se é, é preciso ter claro para si a noção de "eu" que, segundo Rogers e Kinget (1977, p. 44), consiste em:
(...) uma estrutura perceptual, isto é, um conjunto organizado e mutável de percepções relativas ao próprio indivíduo [...] características, atributos, qualidades e defeitos, capacidades e limites, valores e relações que o indivíduo reconhece como descritivos de si mesmo e que percebe como constituindo sua identidade.
Esse "eu" é dotado de pontencialidade que tendem a se desenvolver promovendo o crescimento e enriquecimento pessoal, Rogers e Kinget (1977) denominam esse movimento de tendência à atualização e é a partir dela que o eu se relaciona com o outro, ao aceitar seu próprio eu e suas potencialidades, passa a ser capaz de enxergar o eu do outro e também suas potencialidades. No curtametragem, a moça, ao se vestir de tempo, assume para si mesma sua condição de finitude. Nesse instante, descortina-se sua potencialidade de atribuir vida ao que antes parecia somente um deserto.
Além disso, podemos buscar, no conceito de congruência, um modo que compreender a experiência que a jovem passou a vivenciar naquele momento. Isso porque, conforme Rogers (1983), a congruência pode ser definida como o grau de exatidão entre a comunicação (expressão) e o que realmente ocorre conosco, relacionando-se, portanto, a uma tomada de consciência da experiência. Em outros termos,
Com isto [congruência] quero dizer que quando o que estou vivenciando num determinado momento está presente em minha consciência e quando o que está presente em minha consciência está presente em minha comunicação, então cada um desse três níveis está emparelhado ou é congruente. Nesses momentos, estou integrado ou inteiro, estou inteiramente íntegro. (Rogers, 1983a, p. 09).
Nesse conseguinte, a pessoa congruente, seria aquela capaz de simbolizar adequadamente sua experiência vivida, relacionado-a com a imagem que tem de si e com sua noção de eu. Essa noção não se apresenta aqui como uma categoria estanque, mas como uma configuração em constante mudança que é, justamente, o que a jovem encarna ao se revestir de tempo para simbolizar sua percepção da finitude e do efêmero.
Tal situação a faz dançar livremente, ao ponto de flores de dente de leão voarem e tocarem a escultura de seu amado. A utilização dessas flores é uma metáfora bastante oportuna, no sentido de nos transportar, juntamente, com o casal para o mundo da liberdade e da esperança presente nas relações. Essa cena aponta para a liberdade de fruir de um sentimento como o amor e a esperança da possibilidade de se construir uma história de amor verdadeira. O conjunto de todas esses afetos de caráter, extremamente, humano atingem Chronos (deus do tempo, representado pela estátua de pedra, ou seja, imutável), despertando seu corpo, que assume as consequências de se tornar humano, abandonando a imortalidade para viver uma história de amor.
A representação desse momento de um despertar amoroso não é incomum nos contos de fada, em que temos o príncipe despertando a princesa com um beijo ou a princesa que, ao beijar um sapo, o desperta para sua vida humana. Também no meio cinematográfico presenciamos com certa frequência esse despertar. Lembramos, pois, de uma situação semelhante que acontece no filme Cidade dos Anjos quando Seth (um anjo) vive o dilema de continuar a ser anjo ou assumir seu amor por Maggie, abrindo mão da condição de anjo e, consequentemente, de sua imortalidade. Seth opta por se tornar humano e viver sua história de amor que termina rapidamente, uma vez que Maggie morre. Isso aponta para a questão da temporalidade que, enquanto humanos, não podemos controlar. Assim, a simples percepção desse instante deixa claro que o tempo resiste. Portanto, lançar-se na finitude temporal das relações é aceitar o caráter evanescente das mesmas.
Ademais, sublinhamos com esse despertar que a relação interpessoal subjetiva é constituída de uma troca mútua entre subjetividades, que implica uma abertura, de mão dupla. É essa condição que possibilita o Encontro. Tal relação se concretiza no Encontro genuinamente existencial, no ponto em que o outro afeta, de alguma maneira, nossa existência, principalmente, na dimensão a qual ele nos faz crescer (Guede, Monteiro-Leitner, & Machado, 2008).
Nesse conseguinte, ao mesmo tempo em que ela se despiu de si e se revestiu de tempo, ele também se despiu da crueza imutável de sua condição e se revestiu da finitude de cada momento, somente essa abertura de mão dupla permitiu que se aproximassem. Assim, em Destino, o relógio, no pulso de Chronos, passa a girar assim que ele escolhe estar no presente e não mais petrificado pelo passado ou pelo futuro, saltando aos olhos a evanescência do "aqui e agora" e, portanto, a impossibilidade de estender esse instante.
A cena que se segue, na qual Chronos aparece com um buraco na mão, por onde saem formigas que, rapidamente, se transformam em homens montados em suas bicicletas, levam-nos a refletir que essa impossibilidade, juntamente com a quantificação das horas têm sua origem na passagem do estado de natureza para o estado de cultura que é, por excelência, o estado da natureza humana. Como propõe Rogers (1977a), essa natureza humana se exprime na experiência afetiva, imediatamente vivida, ela é sentida, mas não concebida.
Nessa perspectiva, Chronos se torna humano quando aceita viver a experiência dos afetos, ainda que essa se mostre movediça, evidenciando uma posição oposta ao que assumia costumeiramente. Esse deslocamento posicional de Chronos nos remete ao conceito de empatia. Etimologicamente, o vocábulo deriva da palavra grega empatheia, significando, pois, paixão ou ser muito afetado (Sampaio, Camino, & Roazzi, 2009).
Porém, na abordagem rogeriana, esse conceito ganha consistência a partir de sua prática psicoterapêutica, de modo que, a partir de 1950, Rogers se dedica com mais afinco à questão da empatia e sua aplicabilidade clínica, evoluindo, posteriormente, para compreensão empática que seria um modo sensível de apreender "de dentro" as vivências do outro, sendo capaz de comunicar com êxito alguma coisa dessa compreensão (Rogers, 1977a). Em suas palavras,
(...) quando o terapeuta é sensível aos sentimentos e às significações pessoais que o cliente vivencia a cada momento, quando pode apreendê-los 'de dentro' tal como o paciente os vê, e quando consegue comunicar com êxito alguma coisa dessa compreensão ao paciente. (Rogers, 1977a, p. 72).
Chronosparece ter compreendido empaticamente essa dimensão temporal de ser humano e se viu afetado pela fragilidade que a acompanha, do se apaixonar ao impossível do amor, ele presenciou a liquidez da vida enquanto processo de mudança. O que significa compreender que "se posso proporcionar certo tipo de relação, a outra pessoa descobrirá dentro de si a capacidade de utilizar esta relação para crescer, e mudança e desenvolvimento pessoal ocorrerão" (Rogers, 1977a, p. 37).
Nesse ínterim, as cenas que se desfiam evidenciam um processo de autodescoberta, de modo que percebemos que os protagonistas buscam encontrar também a si mesmos e, para isso, tornase necessário sofrer metamorfoses, superando seus próprios obstáculos os quais se edificam em cada experiência que, ao longe, assumem formas que se desfazem ao se aproximar. O inédito, o inesperado, a surpresa das relações, dos encontros apontam para um conhecer de si que surge do aceitar a si para aceitar o outro. Desse modo, somos remetidos à essência do encontro que, na visão de Rogers (1977a), consiste neste aspecto de autodescoberta que partilha o mais profundamente familiar com os outros.
Com isso, Rogers (1977b, p. 37) afirma que "(...) aquilo que há de único e de mais pessoal em cada um de nós é o mesmo sentimento que, se fosse partilhado ou expresso, falaria mais profundamente aos outros". Assim, apesar dos seres humanos serem diferentes uns dos outros, eles são fundamentalmente iguais, pois sentem e vivem coisas bem semelhantes. Essa percepção possui um caráter bastante ambíguo que nos leva a questionar se o outro é outro ou um duplo eu e vice-versa.
O curta-metragem resolve esse impasse rogeriano ao finalizar a animação com o retorno à escultura levemente modificada, pois agora o que carrega no peito é a jovem revestida de tempo, a qual se dispôs Encontrar. Isso nos leva a refletir que nos tornamos parte do outro porque absorvemos o singular dele que nos faz querer ser melhores. Continuamos sendo únicos, ainda que essas singularidades nos remetam ao que temos de mais igual. Vamos costurando pedaços de diferenças das pessoas que elegemos Encontrar e esses alinhavos vão dando forma ao retalho que somos nós, de modo a tecer nossa mortalha (destino) no tempo (Chronos) no qual existimos.
Nos Labirintos dos Encontros: Entre as Moiras e Chronos
Ao analisar o curta-metragem, Destino, destacamos dois termos que se mesclam e assumem lugar de destaque no enredo: Destino e Tempo. Na mitologia grega, o destino é representado pelas Moiras (Cloto, Láquesis e Átropos), deusas que detinham o poder incontestável da vida dos homens e dos deuses (Brandão, 1986), talvez, as únicas capazes de controlar o tempo dos mortais. Assim, podemos pensar sua etimologia de origem latina destinare (fixar, afirmar, estabelecer), como fortemente influenciada pelo mito das Môiras, nesses termos, seu significado passou a ser aquilo que é, firmemente, estabelecido e não pode ser modificado.
No que concerne ao tempo, na mitologia grega, é comum a confusão entre Chronos (ou Khrónos, o tempo em grego) e Cronos (Krónos), o Titã filho de Úrano (Céu), casado com Réia e pai de Zeus. Ainda que sejam distintos, etimologicamente, os dois são tratados como sendo a personificação do tempo. Para Brandão (1996), essa situação decorre de uma homonímia entre elas. Nos dizeres de Gonçalves e Vieira Neto (2010, p. 16):
Cronos surge como agente do Destino, cujos desígnios são apresentados pela imprecação de Gaia. O Titã castra Uranos e toma-lhe o trono, impondo a sua própria ordem, que é marcada pelo período da esquizogenia. Enquanto Cronos governa, o mundo experimenta um momento de suspensão da criação, razão pela qual existe um tempo beatífico que, em sua duração, permite aos deuses e aos homens comungarem a tranquilidade da vida feliz e despreocupada.
Contudo, na Grécia, o conceito de tempo podia tomar duas formas distintas: o tempo como forma cronológica (Chronos), ou seja, o tempo dos homens ou significando o momento certo, oportuno (Kairos), remetendo-se ao tempo de Deus. Essas distintas significações apresentam modos diferentes de percepção do tempo, enquanto o primeiro é quantitativo (objetivo), o segundo é qualitativo (subjetivo).
Pensando esses termos na dinâmica do Encontro apresentado na animação de Dalí, podemos compreender kairos como aquele tempo que se precipita quando Chronos se distancia de sua condição de devorador das horas. Nesse instante, acontece seu Encontro com a jovem, possibilitandonos dizer que o momento do Encontro é kairos, ou seja, uma oportunidade que não pode ser medida em quantidade, que se contrapõe ao movimento irreversível do calendário, pois encontra-se nas entrelinhas do tempo cronológico e traz, consigo, o inédito, o inesperado.
Nessa lógica, o Encontro assume um caráter eterno, real e autêntico ainda que efêmero, visto que deixa marcas que não se apagam, uma vez que possui a capacidade de modificar destinos que, até então, pareciam fixos e imutáveis. Assim, Chronos já não carregará um pássaro em seu peito, posto que conseguiu se atualizar, de modo a levar consigo a moça, revestida de tempo, de seu breve e transformador Encontro. Tal questão aponta para o que Rogers denominou de tendência atualizante em que
Todo organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento. Observemos que a tendência atualizante não visa somente (...) a manutenção das condições elementares de subsistência como as necessidades de ar, de alimentação, etc. Ela preside, igualmente, atividades mais complexas e mais evoluídas tais como a diferenciação crescente dos órgãos e funções; a revalorização do ser por meio de aprendizagens de ordem intelectual, social, prática. (Rogers & Kinget, 1977, p. 159-160).
Dessa forma, verificamos que a tendência atualizante de Rogers diz respeito a uma capacidade de buscar o melhor para si, sendo essa competência inerente ao ser humano. Nesse sentido, essa atualização surge como algo natural e inevitável como o envelhecimento. Para Brodley (1998, p. 38), "a tendência atualizante é uma meta-motivação na teoria rogeriana. Todas as motivações específicas, necessidades e impulsos se expressam por meio da tendência atualizante que está intimamente relacionada à noção de potencialidade, no ponto em que
(...) existe em todo organismo, em qualquer nível, um fluxo subjacente de movimento para uma realização construtiva de suas possibilidades intrínsecas. Há no homem uma tendência natural para o desenvolvimento completo. O termo mais frequentemente usado para isso é o de tendência de realização, que está presente em todos os organismos vivos. (Rogers, 1986, p. 17).
Para que essas potencialidades sejam ativadas, torna-se imprescindível que a relação Eu-Tu seja perpassada pela presença de ambos. Se pensarmos que o tempo cronológico nos rouba a capacidade de perceber os eventos da vida, o "aqui e agora", do estar presente, uma vez que, invariavelmente, perdemo-nos entre o sofrimento causado pelo passado e a angústia do futuro, entenderemos que é, justamente, isso que nos impede de atualizar nossas possibilidades. Dessa forma, passamos a viver de maneira inautêntica. Em Rogers (1977a), a autenticidade caminha junto à congruência e a consciência, pois refere-se não a simples formas de comportamento, mas à própria personalidade tal como ela se expressa na ação.
A atitude principal, aquela que rege todas as outras, é a atitude de consideração positiva incondicional. É próprio desta atitude - além do seu caráter incondicional - a sua autenticidade. Com efeito, o terapeuta deve, não somente testemunhar tal atitude, como deve igualmente experimentá-la. Para ser terapeuticamente fecunda, esta atitude deve se ancorar profundamente no sistema de tendências e necessidades do profissional como pessoa. É apenas quando ela representa uma expressão de sua personalidade, mais precisamente, sua concepção do homem e das relações humanas, que poderá ser exercida de um modo direto, fácil e relativamente constante, enfim, de uma maneira amplamente autônoma. (Rogers & Kinget, 1977, p. 75).
Conforme Formosinho (2006), o indivíduo será autêntico se conseguir simbolizar suas experiências adequadamente. Para tanto, a imagem que tem de si precisa coincidir com o que realmente é. Isso porque "podemos falar de congruência, tanto para indicar a harmonia entre experiência e consciência como, também, para designar a harmonia entre organismo e imagem de si" (Rudio, 2003, p. 65). Para Amatuzzi (1989), o conteúdo desses eventos não deve ser pensado enquanto fixos e definidos, visto que
(...) devemos conceber uma interação entre esses três níveis, como também eles não precisam ser entendidos nesta ordem: experiência consciência-comunicação; como se a autenticidade consistisse em resgatar conteúdos da experiência para a congruência e desta para a comunicação. Existe um fechamento do ciclo, unindo comunicação com a experiência formando uma espécie de sistema. E podemos ler este sistema tomando qualquer um dos termos como ponto de partida. (Amatuzzi, 1989, p. 119).
Assim, deixamos encoberto com um véu de maya (ilusão) a consciência de que nosso destino não é fixo, mas, ao contrário, é construído de acordo com os Encontros aos quais nos dispomos a realizar com as pessoas que elegemos, consequentemente, com as atualizações, afetos e potencialidades que nos propomos a fazer. Contudo, a objetividade de Chronos nos faz acreditar que possuímos um destino petrificado, rígido, retiramos, assim, o autêntico da existência, atribuindo às Môiras o poder de controlar nossa existência.
Do Destino no Humanismo ao Humanismo dos Destinos: O Poder Transformador dos Encontros
O poder transformador de um Encontro, de uma eleição, não é por acaso, e como fora assinalado, anteriormente, o fugaz e o efêmero do Encontro são tão importantes quanto o que é eterno e idealizado, para que essa metamorfose aconteça. Na animação Destino, objeto de estudos deste texto, juntamente com a teoria humanista de Rogers, é cabível afirmar ser a dança e a metamorfose constante das personagens as analogias para a transformação do Encontro. Verificamos, assim, o quanto os relacionamentos são de suma importância nas obras de Rogers. Isso porque é na interação com o outro que o indivíduo pode se descobrir, mas também se encobrir, experienciar e se Encontrar de forma direta com o self.
Segundo Rogers (1992), o termo de self faz parte de uma estrutura mais abrangente que ele chamou de organismo. É um conceito complexo, na obra de Rogers, e apesar de não haver tradução em muitos idiomas, no Brasil, self também é conhecido por autoconceito e noção de eu, que se refere à percepção de si e da realidade pela própria pessoa. "Assim, o self rogeriano pode ser encarado como uma condição consciente e reflexiva de si, que possui e fornece significados com os quais a pessoa se identifica e, a partir dos quais, percebe a realidade" (Maia, Germano & Moura Jr., 2009, s./p.). Nas palavras de Rogers e Kinget (1977, p. 44), self seria:
(...) é uma estrutura, isto é, um conjunto organizado e mutável de percepções relativas ao próprio indivíduo. Como exemplo dessas percepções citemos: as características, atributos, qualidades e defeitos, capacidades e limites, valores e relações que o indivíduo reconhece como descritivos de si mesmo e que percebe constituindo sua identidade. Esta estrutura perceptual faz parte, evidentemente - e parte central - da estrutura perceptual total que engloba todas as experiências do indivíduo em cada momento de sua existência.
Se o self é um elemento importante na experiência da pessoa, para Rogers, a meta é transformá-lo no self ideal que, por sua vez, para Hall (1984), é aquilo que a pessoa gostaria de ser, consensualmente. Silva, Morais e Barbosa (2013) apresentam o self ideal como "o conjunto das características que o indivíduo mais gostaria de poder reclamar como descritivas de si mesmo (...) se configura como uma estrutura móvel e variável, que se ressignifica constantemente. É aquilo que não sou, mas gostaria de ser" (p. 66). Com efeito, quanto mais o self e o self ideal se aproximam mais verdadeira é a pessoa.
Em nossa percepção sobre a animação Destino, existe um conceito de Rogers que foi expressado de uma maneira muito rica, tanto pela participação de Walt Disney e de Salvador Dalí, enquanto autores da obra, como por suas criaturas, a personagem feminina e Chronos. Trata-se, portanto, da congruência já mencionada acima. Esse conceito foi explicado por Rogers (2015), no vídeo Abordagem Centrada na Pessoa, a partir da pergunta "será que posso ser verdadeiro em meu relacionamento?". Em sua esteira de pensamento, para sermos verdadeiros, são necessárias inúmeras qualidades, sendo, uma delas a congruência. Ele mesmo descreve o conceito, dizendo que "o que eu experimento internamente, terá que estar presente na minha consciência e ser comunicado. Tendo esta qualidade, estou inteiro em um relacionamento". Devemos lembrar que, no vídeo, Rogers descreve o que é preciso para se relacionar inclusive com os seus clientes em processo terapêutico, no intento de que seu relacionamento com essas pessoas seja inteiro e verdadeiro, já que, em sua concepção, também se trata de Encontros.
A congruência, conforme Silva, Morais e Barbosa (2013) exemplificam, é exibida por crianças pequenas que expressam sentimentos logo que seja possível, com o seu ser total, então, é definida como o grau de exatidão entre a experiência da comunicação e a tomada de consciência da mesma. Dalí e Disney expressam esse conceito em sua arte, cada um, na sua intenção, seja do primeiro de demonstrar a mágica da vida num percurso de tempo, seja do segundo, na busca de representar o verdadeiro amor, entre diferentes.
Por esse viés, também, Chronos demonstra sua congruência ao vencer sua forma petrificada em busca do amor, tão logo o percebe sendo tocado por um fragmento de dente de leão que voa como elemento da moça que, por sua vez, é congruente ao se permitir amar um ser endurecido, quase metafórico, demonstrando todo seu amor na forma mais inteira que lhe é própria, a dança. E não seria a dança uma das formas mais belas de expressão do corpo humano?
Rogers (2015) ainda esclarece sobre outra qualidade que considera importante em um relacionamento que se pretende verdadeiro, a transparência, "quando o outro vê através de mim para que não exista nada escondido". E ele completa, "quando sou verdadeiro como descrevo, sei que meus próprios sentimentos afloram da minha consciência e são expressos de forma a não se impor ao outro". Nesse sentido, a moça e Chronos aceitam um ao outro como são. De um lado, um ser imortal e histórico, mas petrificado, endurecido pelo tempo, do outro lado, uma mulher de movimentos livres, leves, mas presa a um amor que parece impossível. Todavia, não há imposição de sentimentos, há aceitação e integração. Para Rogers (2015), a não-aceitação dos papéis é um impedimento ao crescimento possível em um Encontro, já que, na tentativa de satisfazer as expectativas do outro, deixamos de determinar as que nos são próprias, assim vários problemas se desenvolvem na pessoa e na relação como um todo.
Durante as mudanças em Destino, ao andar por um corpo humano em expiral, subindo e passando por diversas experiências, perdendo o vestido, continuando sua caminhada por outros cenários, há aí uma metáfora para o nascimento de um ser. A moça nasce a partir das transformações provocadas por aquele amor que, até então, estava em seu pensamento. Rogers (1974) tem uma explicação para esse nascimento, o tornar-se um self separado, ocorre "quando cada parceiro está progredindo, a união se torna mais enriquecedora" (p. 205).
No que se segue, a moça se transforma no próprio tempo, aquilo que era um impedimento da realização daquele amor, ao adentrar no sino, mas sem perder, por isso, sua liberdade e leveza. Sendo assim, por essa mudança e aceitação por parte dela, Chronos é tocado, profundamente, em seu coração e aí ele se desloca, remetendo-nos a alusão do que Rogers (1974) chamaria de um crescimento para ambos:
(...) finalmente, é tão recompensador ver-se alguém envolvido no processo de converter-se numa personalidade própria que quase inevitavelmente permitirá ao companheiro seguir na mesma direção, estimulando-o e regozijandose com cada passo que ele der. É gostoso crescer junto, duas vias únicas e entrelaçadas. (Rogers, 1974, p. 207, grifo do autor).
Verificamos, portanto, que esse Encontro afetivo é dinâmico e está em constante mudança. Segundo Guede, Monteiro-Leitner e Machado (2008), essas relações são oriundas de troca subjetiva mútua que implica deixar de ser eu para ser com o outro. Essa implicação revela a alteridade necessária para que ambos se desenvolvam e, ao mesmo tempo, partilhem experiências. Assim, essas vias que se entrelaçam e se tornam uma só, realizam-se no amor, em um relacionamento verdadeiro que termina com a demonstração de um novo coração para Chronos, que guarda em si mesmo, a moça vestida de sino. Hall (1984), citando Rogers, aponta três condições para que o Encontro ocorra e a relação possa ser verdadeira:
Se duas pessoas assumem 1) um desejo inicial de estar em contato; 2) uma capacidade e um desejo iniciais para receber comunicação uma da outra e 3) se assumirem a continuidade do contato por um período de tempo; então, por hipótese, o relacionamento subsequente poderá ser verdadeiro. (p. 59).
Nesse sentido, entendemos que o amor, na perspectiva humanista, diz de uma escolha e aponta para um processo de transformação constante. Conforme Sartre (1987) pontua, o homem inventa a si mesmo, construindo sua própria história, de acordo com as escolhas que faz, e com o caminho que se propõe a seguir. Visto que "(...) não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade" (p. 9). Desse modo, "o homem é antes de mais nada um projeto que vive subjetivamente (...), ele será aquilo que fizer da sua vida, não havendo nada, além dele mesmo, de sua vontade, que determine seu destino" (Penha, 2001, p. 45).
Tecendo Algumas Considerações
O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 1965, p. 24).
Nas entrelinhas dos nós e das tramas emaranhadas da existência, perdemo-nos e achamonos por meio de segmentos de retas que, nem sempre, são tão retas, mas que sempre nos levam à possibilidade de fazer laço com esse[s] nós. Os Encontros, na psicologia de Rogers, assumem tons de destaque, uma vez que é, na experiência com o outro, que podemos nos tornar pessoas e é, nesse encontro, que são forjadas as personalidades e as transformações oriundas de arremedos de experiências costuradas pelas linhas das atualizações (resultantes dos verdadeiros Encontros) que nos dispomos a realizar com nossos eleitos.
Assim, por meio do curta-metragem, Destino, de Dalí e Disney, pudemos evidenciar como é possível construir um relacionamento que se precipita em um novo ser mesmo mediante a evanescência do tempo. Essa precipitação auxilia na desconstrução do sentido do amor como um destino, em que há uma sucessão de acontecimentos inevitáveis que nos escapam o controle e nos lançam nos braços de outra pessoa, por quem terminamos por nos apaixonar. Ao contrário, a abordagem humanista nos aponta que não só se trata de uma relação que envolve a consciência de ser pessoa, mas, principalmente, a abertura verdadeira à experiência de ser com outra pessoa, em uma relação Eu-Tu de autenticidade e empatia, de modo que, nessas tramas duais, possam ir se construindo o próprio destino que se descortina como algo flexível e mutável.
Nesse instante, a presentificação e a congruência se tornam reais, perante às experiências existenciais (Encontros), podendo assumir uma conotação amorosa, por vezes, capaz de alterar nosso destino. Isso significa que estamos, constantemente, construindo nossa personalidade e, consequentemente, nosso destino, por meio da consciência do tempo, da finitude das relações e da própria existência.
Ressaltamos que esse estudo nos permitiu ter uma experiência verdadeira, possibilitando vivenciar um pouco do processo investigativo que faz parte constante do labor do psicólogo pela vertente humanista. E, em um momento de ousadia, declaramos quão significativas são as leituras e interpretações para buscar outros caminhos, problematizá-las para possibilitar repensar conceitos, rever posicionamentos e discursos, desestabilizar padrões, romper com as fronteiras impostas pela ignorância, aceitar e permitir a escuta, de modo a desnaturalizar (in)verdades, ensinando a conviver com as narrativas.
Entretanto, tal conhecimento só tem sentido se, a partir dele, conhecemo-nos verdadeiramente e, consequentemente, abrimo-nos à experiência de ser e estar com o outro, pois, por meio desse Encontro é que serão criadas novas possibilidades de ser que apontam para uma prática que o próprio Rogers define como amor não possessivo, no qual se verifica uma abertura ao outro e ao mundo.
Narrativas em jogo... Jogos de narrativas! Discursos sinalizadores da emergência de novos pensares. Outras práticas! Diferentes representações! Experiência provocativa o bastante para repensar nossa formação e a urgência da escuta e compreensão... Eis nossa importância em todas as fases da existência humana. Desestabilizar! Desnaturalizar! Desconstruir! Para tanto, coragem para dar vida ao que permanece se escrevendo constantemente nos corpos falantes dos seres humanos tão carentes de relações autênticas que sejam forjadas na empatia para que se estabeleçam sem pressa e sem julgamentos morais!
Com esta investigação, não nos atrevemos a "grandes revoluções", nem mesmo "pequenas revoltas". Somente alguns embates! Confrontos tímidos! Provocações de pessoas que buscam compreender! Recusamos, pois, quaisquer pretensões de dar a este texto um ponto final. Recusamos dar por encerradas nossas buscas, pois o desenvolvimento humano, assim como a formação em psicologia, é campo fértil, por excelência, e lugar de constantes mudanças.
Referências
Amatuzzi, M. M. (1989). O resgate da fala autêntica: filosofia da psicoterapia e da educação. Campinas: Papirus. [ Links ]
Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Brandão, J. (1986). Mitologia grega (v. 1). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Brodley, B. T. (1998). O conceito de tendência actualizante na teoria centrada no cliente. A Pessoa como Centro - Revista de Estudos Rogerianos, 2,37-49. [ Links ]
Buber, M. (2001). Eu e Tu (10ª ed.). São Paulo: Centauro. [ Links ]
Erthal, T. C. (1999). Terapia vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Formosinho, J. E. de A. (2006). Rogers: Psicoterapia e Subjetividade - Uma Reflexão Crítica. (Monografia de Graduação em Psicologia) - Faculdade de Ciências da Saúde, do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, Brasília, DF. [ Links ]
Gleiser, M. (2012). Criação imperfeita - cosmo, vida e o código oculto da natureza (5ª ed.). Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
Gonçalves, A. T. M. & Vieira Neto, I. (2010). Uranos, Cronos e Zeus: a mitologia grega e suas distintas percepções do tempo. Revista Mirabilia, 11,1-17. Recuperado de https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2010_02_01.pdf [ Links ]
Guede, D. D., Monteiro-Leitner, J., & Machado, K. C. R. (2008). Rompimento amoroso, depressão e auto-estima: estudo de caso. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, 8(3), 603-643. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482008000300003 [ Links ]
Hall, C. S. (1984). Teorias da Personalidade (18ª ed.). São Paulo: EPU. [ Links ]
Holanda, A. F. (1998). Diálogo e Psicoterapia: correlações entre Carl Rogers e Martin Buber. São Paulo: Lemos Editorial. [ Links ]
Lima, B. F. (2008). Alguns apontamentos sobre a origem das psicoterapias fenomenológico-existenciais. Revista Abordagem gestáltica, Goiânia, 14(1),28-38. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672008000100006 [ Links ]
Losso, R. (s.d.). O sujeito do "entre-lugar" na literatura portuguesa: um diálogo entre Bhabha e o lobo Antunes. In II Colóquio da Pós-Graduação em Letras, UNESP - Campus de Assis (pp. 986-992). Recuperado de http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/ColoquioLetras/rhiagolosso.pdf [ Links ]
Maia, C. M., Germano, I. M. P. & Moura Jr, J. F. (2009). Um diálogo sobre o conceito de self entre a abordagem centrada na pessoa e psicologia narrativa. Revista NUFEN, São Paulo, 1(2),33-54. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912009000200004 [ Links ]
Maupeou, Y. M. G. de. (1974). A visão de pessoa na teoria de Carl Rogers. Arquivos brasileiros de psicologia aplicada, Rio de Janeiro, 26(1),55-61. Recuperado de http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ index.php/abpa/article/viewFile/17047/15846 [ Links ]
Monfrey, D. (2003). Destino [filme-vídeo]. Estados Unidos: Walter Disney Picture. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=7KQWs5az2V4 [ Links ]
Penafria, M. (2009). Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s). In VI Congresso SOPCOM, Universidade Lusófona, Lisboa (pp. 1-10). Recuperado de http://www.bocc.uff.br/pag/bocc-penafria-analise.pdf [ Links ]
Penha, J. (2001). O que é existencialismo. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Ranieri, L. P. & Barreira, C. R. A. (2012, outubro). A empatia como vivência. Memorandum, Belo Horizonte, 23,12-31. Recuperado de http://bdpi.usp.br/item/002493463 [ Links ]
Rogers, C. R. (1974). Novas formas de amor: o casamento e suas alternativas. Rio de Janeiro: J. Olympio. [ Links ]
Rogers, C. R. (1977a). Tornar-se pessoa (4ª ed.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Rogers, C. R. (1977b). Uma maneira negligenciada de ser: a maneira empática. In Rogers, C. R., & Rosenberg, R. L. A Pessoa como centro (pp. 69-89). São Paulo, EPU. [ Links ]
Rogers, C. R (1983a). Um jeito de ser. São Paulo: EPU. [ Links ]
Rogers, C. R. (1983b). Um novo mundo - Uma nova pessoa. In Rogers, C. R., Wood, J. K., & O'Hara, M. M. Em busca de vida- da terapia centrada no cliente à abordagem centrada na pessoa (pp. 9-20). São Paulo: Summus. [ Links ]
Rogers, C. R. (1986). Sobre o poder pessoal. Lisboa: Moraes. [ Links ]
Rogers, C. R. (1992). Terapia Centrada no Cliente. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Rogers, C. R. (1994). As Condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica de personalidade. In Wood, J. K. (org). Abordagem centrada na pessoa (pp. 155-177). Vitória, ES: Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida. [ Links ]
Rogers, C. R. (2015, janeiro). Abordagem centrada na pessoa [vídeo] (duração: 6:51 min.). Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=_5AM54Dubkw [ Links ]
Rogers, C. R. & Kinget, G. (1977). Psicoterapia e Relações Humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva (2ª ed.). Belo Horizonte: Interlivros. [ Links ]
Rosa, J. G. (1965). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio. [ Links ]
Rudio, F. V. (2003). Orientação não-diretiva na educação, no aconselhamento e na psicoterapia (14ª ed.). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Sampaio, L., Camino, C. & Roazzi, A. (2009). Revisão de aspectos conceituais, teóricos e metodológicos da empatia. Psicologia, Ciência e Profissão, 29(2),212-227. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98932009000200002&script=sci_abstract&tlng=pt [ Links ]
Sartre, J. (1987). O existencialismo é um humanismo; a imaginação; questão de método (3ª ed.). São Paulo: Nova Cultural. [ Links ]
Silva, E. M., Morais, J. A., & Barbosa, I. dos S. (2013). As implicações da teoria de Carl Ransom Rogers para a educação em ciências. Revista ARETÉ, Manaus, 6(10),63-72. Recuperado de http://periodicos.uea.edu.br/index.php/arete/article/view/61 [ Links ]
Shakespeare, W. (1998). Romeu e Julieta (B. Viégas-Faria trad.). Porto Alegre: L& PM. [ Links ]
Vieira, E. M. & Freire, J. C. (2006). Alteridade e Psicologia Humanista: uma leitura ética da abordagem centrada na pessoa. Estudos de Psicologia, Campinas, 23(4),425-432. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v23n4/v23n4a10.pdf [ Links ]
Recebido em 22.10.2018
Primeira Decisão Editorial 04.02.2020
Aceito em 31.03.2020
1Esclarecemos que o vocábulo Encontro será grafado com letra maiúscula para demarcar que estamos nos referindo à proposta de Martin Buber (2001), na qual a constituição do encontro interhumano é fundamentada na estrutura ontológica da relação eu/tu, além de indicar a possibilidade da abertura ao transcendente.
2Para maiores informações, vide - Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos de Zygmunt Bauman; A Era do Vazio e A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo de Gilles Lipovetsky.