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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016

 

O projeto ético de Donna Haraway: alguns efeitos para a pesquisa em psicologia social

 

The ethical project of Donna Haraway : some effects for research in social psychology

 

El proyecto ético de Donna Haraway : algunos efectos para la investigación en psicología social

 

 

Ronald João Jacques ArendtI; Márcia Oliveira MoraesII

IPós-Doutorado pela Université de Paris VIII, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UERJ. E-mail: ronald.arendt@oi.com.br
IIProfessora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Financiamento de pesquisa: Faperj, Cnpq. E-mail:mmoraes@vm.uff.br

 

 


RESUMO

Este artigo descreve o que os autores consideram ser 'projeto ético' de Donna Haraway. Como coexistir num mundo caracterizado por instâncias heterogêneas? Como conviver com objetos complexos, com tecnologias avançadas, com ciborgues, com espécies companheiras? Como construir um mundo comum onde estas condições possam ser respeitadas? A partir de autores como Vinciane Despret, Gilles Deleuze, Boaventura dos Santos e Bruno Latour, a potência do pensamento de Haraway é explorada em alguns de seus principais conceitos: sua abordagem do conhecimento como prática situada, seu resgate da visão para um projeto feminista, a importância que concede, em sua escrita densa, à narrativa das histórias com os outros, sua postura sensível mas não inocente frente ao mundo. O artigo conclui estabelecendo aproximações entre Haraway, Deleuze e Latour e indicando as consequências do projeto ético de Haraway para a pesquisa em psicologia social.

Palavras chave: Ciência; Ética; Conhecimento Situado; Psicologia Social


ABSTRACT

This article describes what the authors consider to be Haraway ' ethical project'. How to coexist in a world characterized by heterogeneous elements? How to live with complex objects , with advanced technologies , with cyborgs , with companion species ? How to build a common world where these conditions can be met ? From authors such as Vinciane Despret , Gilles Deleuze , Boaventura dos Santos and Bruno Latour, Haraway strength of thought is explored in some of its key concepts : her approach to knowledge as situated practice , the resumption of vision for her feminist project, the importance given,in her writings, to the narrative of the stories with others, her sensitive but not innocent position before the world . The article concludes by establishing similarities between Haraway , Deleuze and Latour and indicating the consequences of Haraway ethical project for research in social psychology.

Key words: Science; Ethics; Situated Knowledge; Social Psychology.


RESUMEN

En este artículo se describe lo que los autores consideran que es el 'proyecto ético ' propuesto por Donna Haraway . ¿ Cómo convivir en un mundo caracterizado por elementos heterogéneos? ¿ Cómo vivir con objetos complejos , con tecnologías avanzadas , con cyborgs , con especies de compañía ? ¿ Cómo construir un mundo común donde se pueden cumplir estas condiciones? A partir de autores como Vinciane Despret, Gilles Deleuze , Boaventura dos Santos y Bruno Latour, el poder de pensamiento de Haraway es explorado en algunos de sus conceptos clave: su acercamiento al conocimiento como práctica situada , su rescate de la visión para el proyecto feminista, la importancia que se da en su escritura densa, a la narración de las historias con los demás, su posición sensible , pero no inocente, ante el mundo. El artículo concluye estableciendo similitudes entre Haraway , Deleuze y Latour e indicando las consecuencias del proyecto ético Haraway para la investigación en psicología social.

Palabras clave : Ciencia; Ética; Conocimiento Situado; Psicología Social.


 

 

Introdução: o projeto ético de Donna Haraway

Uma afirmação de Vinciane Despret permite iniciar este ensaio sobre a Donna Haraway:

Entre um vegetariano e um caçador, ela [Haraway] aceitaria concordar com os dois, que são contraditórios. É algo esquizo no sentido de Deleuze & Guattari, isto e isto e isto, sem a indiferença que eles imputam ao esquizo. É algo terreno, impessoal, local; com Haraway, trata-se de nunca interpretar e de resistir à tentação de resolver conflitos e verdades contraditórias de existir; há que aceitar e coexistir com as necessárias polêmicas (Despret, 2015)1 .

A afirmação de Despret toca em alguns dos principais temas explorados por Haraway. Não interpretar o caçador ou o vegetariano é não julgá-los a partir de um critério superior a eles, que resolveria o conflito e evitaria a controvérsia. Aceitar a coexistência polêmica de ambos será resistir à tentação de resolver suas verdades contraditórias. O fato é que existem no mundo e vivem juntos caçadores e também vegetarianos, cada um argumentando a partir de seus referenciais locais, materiais, terrenos e consequentemente parciais, porque conectados àquilo que os interessa (locais enquanto situados, materiais e terrenos no sentido de algo visto daqui e não do alto e de longe).

Viver junto e criar as condições necessárias para coexistir, em que pese a heterogeneidade que caracteriza humanos e não humanos, implica em aceitar a multiplicidade do mundo. Há que conviver com objetos complexos, com tecnologias avançadas, com ciborgues, com espécies companheiras. Entretanto, como construir um mundo comum onde estas condições possam ser respeitadas? Dizer que uma coisa é construída é dizer ao menos três coisas diferentes, observa Bruno Latour (2012a): em primeiro lugar, construir supõe um fazer fazer em que não se sabe bem de onde partiu a ação. Assim, por exemplo, se os pais fazem seus filhos fazer os deveres de férias, não são eles que os fazem nem os filhos os fariam sem eles. "Todo o uso da palavra construção abre um enigma sobre o autor da construção: quando se age outros passam à ação" (Latour, 2012a, p. 168). Em segundo lugar, há uma incerteza quanto à direção do vetor da ação. Balzac é bem o autor de seus romances, diz Latour, mas "somos levados a crer que ele foi 'levado pelos seus personagens' a deitá-los sobre o papel" (Latour, 2012a, p.168). De onde parte a flecha da direção: do construtor ao construído ou, ao inverso, do produto ao produtor, da criação ao criador, pergunta ele? Em terceiro lugar, não há dúvida que a coisa foi construída, mas qual a qualidade da construção? Terá ela sido bem construída (p. 169)? Reportando-se ao filósofo francês Etienne Souriau, que introduz o conceito de instauração (segundo Latour este termo engloba as três condições da construção) não há certeza que ela seja bem sucedida: ela pode não dar certo.

O que faz fazer Donna Haraway? Qual o seu enigma? Que outros passam à ação quando ela escreve seus textos? Qual o sentido da sua escrita: é ela que tem sensibilidade de explorar determinados temas ou são eles que a fazem escrever? Qual a qualidade do seu trabalho? Em que medida as análises e propostas que ela instaura são arriscadas?

Um autor que pode nos ajudar a responder estas perguntas é Gilles Deleuze (Deleuze, 1980). Numa aula primorosa dada na Universidade Paris-8 em 1980, cujo tema é a ética em Spinoza, o filósofo francês contrasta ética com a moral. A ética lida com "existentes". Nesse sentido ela se aproxima da etologia definida como "a ciência prática das maneiras de ser". Já a moral trata de realizar uma essência. Não é evidente que haja uma essência, diz Deleuze (1980), mas é necessário à moral falar dela e dar ordens em seu nome. Por exemplo, para Aristóteles a essência do homem é ser um animal razoável. Como há homens que não são razoáveis e que, portanto, não teriam realizado sua essência, será pela moral que eles o farão. A moral se torna um fim a ser atingido, conduzir-se de maneira razoável. O valor será a essência tomada como um fim.

Numa moral há sempre a seguinte operação: você faz alguma coisa, você diz alguma coisa, você julga. É o sistema de julgamento, ... do duplo julgamento, você julga e é julgado. Os que têm o gosto da moral são os que têm o gosto do julgamento. Julgar implica sempre uma instância superior ao ser (e) ... o valor exprime esta instância superior. Logo, os valores são o elemento fundamental do sistema de julgamento (Deleuze, 1980, tradução dos autores, p. 1).

Na ética não há nada disto, diz o filósofo. A ética se interessa pelos existentes em sua singularidade, na ética você não julga, você não reporta algo que você faz a valores, você se pergunta como isto é possível? Você busca os modos de existência envolvidos, não os valores transcendentais.

O ponto de vista da ética é: do que você é capaz, o que você pode? Não se sabe nunca de avanço o que pode um corpo. ... As pessoas, as coisas, os animais, se distinguem pelo que eles podem, quer dizer, eles não podem a mesma coisa. O que é que eu posso? Nunca um moralista definiria um homem pelo que ele pode, um moralista define o homem pelo que ele é". Isto vale para outras classificações como, por exemplo, a história natural fundada em Aristóteles. Esta "define o animal pelo que ele é... O que é um vertebrado, o que é um peixe (Deleuze, 1980, tradução dos autores, p. 2).

O animal classificado por sua essência. O enfoque muda completamente se o interesse se dirigir àquilo que o animal pode, aos registros do que ele pode.

Este pode voar, aquele come erva, outro ainda come carne. ... . Um camelo pode não beber por muito tempo". ... É preciso ver as pessoas como pequenos pacotes de poder. ... Não o que uma coisa é, mas o que ela é capaz de suportar, é capaz de fazer. (Deleuze, 1980, tradução dos autores, p. 2).

Para a ética, então, tudo é singular. "Um peixe não pode o que o peixe vizinho pode" (Deleuze, 1980, p.3). Se a essência nos diz de avanço o que a coisa é, a ética não diz nada, ela não pode saber. Definir as coisas pelo que elas podem propicia experimentações, abre-se toda uma exploração das coisas que nada tem a ver com essências. Deleuze (1980) conclui sua aula lembrando que Nietzsche, muito tempo depois, ao lançar o conceito da vontade de poder, retomará as teses de Spinoza. Entretanto, compreenderíamos mal o filósofo alemão se acreditássemos que cada um de nós quisesse a potência. Trata-se justamente do contrário. A potência não é o que alguém quer, é o que alguém tem e é a partir dela que ele quer. "Vontade de potência quer dizer que as coisas, os homens, os animais são definidos a partir da potência efetiva que eles têm" (Deleuze, 1980, p,3). É a questão de Spinoza: o que pode um corpo?

Efetuamos este desvio um tanto longo pela filosofia para melhor compreender a afirmação acima formulada de Vinciane Despret. A nosso ver o projeto de Donna Haraway é um projeto ético, tal como formulado por Deleuze sobre Spinoza. Ao concordar com a existência do vegetariano e do caçador Haraway não busca classificar estes personagens por suas essências (o vegetariano é ... , o caçador é ...) e, logo, não está efetuando um juízo moral a partir de um valor superior (o bem ou o mal de ser vegetariano ou caçador). A pergunta dela seria: como é possível que existam vegetarianos e caçadores no mundo? O que, em sua singularidade, cada um é capaz de fazer? Como coexistir com as verdades contraditórias e polêmicas? Diríamos que Haraway amplia o projeto esboçado por Deleuze: não apenas as pessoas, mas também as situações são "pequenos pacotes de poder": como nesta situação parcial diferir, como estabelecer uma aliança entre heterogêneos no coletivo, como criar outras possibilidades de relação, como incentivar outras potências de viver? Entretanto, como Deleuze observa ao falar de Nietzsche, não se trata tanto de querer, o projeto ético de Haraway abre toda uma investigação sobre o que existe, sobre o que humanos e não humanos têm e sobre as possibilidades que uma situação parcial oferece.

Podemos então retornar às questões formuladas a partir de Latour (2012). O que faz fazer Donna Haraway? Por um lado é este projeto ético e seu enigma (é ela que se interessa pela potência das pessoas e das situações ou são estas que a fazem pensar e escrever?), por outro é esta disposição em permanecer num campo e explorar suas possibilidades, sem saber de avanço o que irá ocorrer. Sua escrita densa e difícil cria uma linguagem que faz proliferar temas políticos polêmicos "marcados" em que toda uma série de outros "passam à ação": tecnologias, ciborgues, feministas, mulheres negras, espécies companheiras, símios, cachorros, moscas tsé-tsé.

Entendemos que esta abordagem permite sugerir uma maneira nova de pensar a psicologia. O enfoque mudaria completamente se o interesse dos psicólogos se dirigisse não tanto ao que o sujeito ou indivíduo é, mas o que ele poderia ser, numa situação ela própria plena de possibilidades de ação. A fim de levarmos adiante as articulações entre a abordagem de Haraway e a psicologia, em especial a psicologia social, faz-se necessário extrairmos algumas consequências do que foi exposto. São pelo menos duas consequências a serem analisadas: a primeira, a definição do conhecimento como prática situada e local; a segunda, a convocação de que mais do que apenas afirmar que tudo é construído, o que está em jogo é produzir narrativas mais densas sobre os fenômenos com os quais nos deparamos. Analisadas estas consequências, elas mesmas não exaustivas, passaremos a articular as contribuições de Haraway para a pesquisa e a intervenção em psicologia social.

 

Conhecimento como prática situada

Como o feminismo contemporâneo elabora o conceito de objetividade? A pergunta atravessa o seu clássico ensaio de 19882 "Saberes Localizados: a questão da ciência no feminismo e o privilégio da perspectiva parcial" (1995). A autora inicia seu texto com uma série de negativas. As feministas não precisam de uma teoria da objetividade que prometa a transcendência, não desejam uma teoria de poderes inocentes para representar o mundo, não querem teorizar o mundo e agir sobre ele em termos de sistemas globais. Antes, o que as feministas precisam é de uma rede de conexões que "inclua a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas em termos de poder" (Haraway, 1995, p. 16). Contra um olhar que vem de lugar nenhum e que alega ver sem ser visto, Haraway (1995) pleiteia uma doutrina de objetividade corporificada que acomode os projetos científicos feministas críticos e paradoxais. Objetividade significará então que os saberes são localizados, específicos, particulares, abordados a partir de uma perspectiva parcial. Assim, por exemplo, não há fotografias não mediadas, "há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos" (Haraway, 1995, p. 22). Compreender como funcionam técnica, social e psiquicamente tais sistemas visuais seria um modo de dar conta da objetividade feminista. Como outras feministas, Haraway quer "argumentar a favor de uma doutrina e de uma prática de objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver", que propiciem a perspectiva de "pontos de vista que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometem alguma coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação" (Haraway, 1995, p. 24). O feminismo "ama outra ciência, a ciência e a política da interpretação, da tradução, do gaguejar e do parcialmente compreendido" (Haraway, 1995,p. 31), que busca a parcialidade "pelas possibilidades de conexões e aberturas inesperadas que o conhecimento situado oferece" (Haraway, 1995, p. 33) e tem por meta "melhores explicações do mundo" (Haraway, 1995,p. 32), abrindo "espaço para surpresas e ironias no coração de toda produção de conhecimento" (Haraway, 1995, p. 38).

A questão colocada pela autora incide justamente na afirmação de que a objetividade não diz respeito a um desengajamento ou a uma purificação máxima do conhecimento a fim de alcançar com precisão o objeto "lá fora". Os objetos não preexistem num mundo "lá fora", eles são antes efeitos de práticas de mapeamento, são efeitos de fronteiras que se engendram cotidianamente nas lutas nas ruas, nas bancadas dos laboratórios e também na escrita. A objetividade é um projeto político - e epistemológico - de mapeamento de fronteiras. O que conta como objetividade a partir de nossas práticas de pesquisas? A resposta a essa pergunta é dada localmente por um conhecimento que não apaga as suas marcas, mas que se afirma como conhecimento objetivo na justa e na exata medida em que é local, situado, mediado. Assim, se tradicionalmente a visão é articulada ao conhecer, Haraway a retoma em seu projeto de conhecimento como prática situada, insistindo na natureza corpórea da visão. Há que se ter certo vagar na consideração deste ponto já que o sentido da visão é tomado em várias perspectivas como aquele que define o conhecer, em especial o conhecimento científico. Uma visão que se define como não marcada, isto é, um olhar que de longe alcança o objeto.

Para Haraway, resgatar o sentido da visão para o feminismo é uma tomada de posição: não se trata de definir o conhecimento com outros termos. Objetividade, racionalidade, visão, ciência: nenhum desses termos é abandonado no projeto feminista de Haraway. Eles são vasculhados e refeitos. Eles são situados, tomados como práticas imanentes, sem nenhum apelo a uma transcendência. "A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto" (Haraway, 1995, p. 21).

Antes de prosseguir, algumas considerações de ordem conceitual. Ainda que não se possa afirmar com certeza se Donna Haraway se incluiria no grupo de pensadores e pesquisadores que se reúnem em torno da teoria do ator-rede, não deixa de ser significativa a ressonância das suas análises com o pensamento de autores como Annemarie Mol, Isabelle Stengers que exploramos em dois recentes artigos (Moraes & Arendt, 2013 ; Arendt, Moraes & Tsallis, 2015). Fica claro para nós que o enactment3 é local, parcial, que meso-política4 lida com o gaguejar, com a interpretação, com a tradução, com o parcialmente compreendido, com o que importa, com o que interessa, com o que surpreende, com o que não pode ser conhecido de antemão, por ser experimental, numa objetividade associada ao objetar, à contestação, na aposta da transformação do conhecimento e na construção de mundos menos organizados por eixos de dominação, numa outra forma de fazer ciência.

Há neste ponto mais uma importante consideração a fazer e que diz respeito ao sentido mesmo da expressão "conhecimento situado". O que significa esse adjetivo - situado? Indica de saída que não há conhecimento sem mediação, isto é, sem ser tecido num conjunto de relações, de conexões. Neste ponto, talvez Haraway se aproxime bastante dos autores do campo ator-rede. Não há conhecimento fora das conexões, as mais heterogêneas, que reúnem e articulam protocolos de pesquisa, humanos, não humanos. Situado quer dizer que o olhar neutro, desengajado, é impossível. Toda ótica é uma política de posicionamentos, é o que afirma a autora. Conhecer é, inexoravelmente, conhecer a partir de alguma conexão, ou antes, conhecer é uma prática intra-relacional, de tal modo que aquele que conhece e aquilo que é conhecido são efeitos, consequências, da intra-relacionalidade. Trata-se, pois, de afirmar, como também fazLatour (2012), que tudo aquilo que se pretende global não é senão feito em algum local. Afirmação que de resto Santos (1997), com argumentações na direção do pós-colonialismo, também segue, ainda que em outros termos quando se refere à globalização afirmando que este é o "processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival" (Santos, 1997, p. 14). Assim, para Santos, a globalização não é mais do que uma concepção local que se estende e impõe a outros, transformados como "locais" num sentido hierarquicamente inferior. Ao afirmar, por exemplo, que a biomedicina é uma globalização bem sucedida de determinado localismo, o autor aponta uma direção que nos parece estar em acordo com o que nos diz Haraway (1995) quando afirma que só há conhecimento local, parcial, tecido na heterogeneidade de certas conexões. O olhar de Deus, que Haraway (1995) identifica a uma certa maneira de afirmar o conhecimento científico, olhar neutro, desinteressado, não é senão um olhar local com ambições de ocultar sua localização. É neste campo de argumentações que a autora pergunta, provocativamente: com o sangue de quem foram feitos os teus olhos? (Haraway, 1995, p.25). Pergunta que podemos parafrasear, ainda que sob o risco de perder a força da provocação: com que mediações foram feitos os teus olhos? De onde você vê? Seus olhos estão imersos, tecidos, em que relacionalidades?

 

Narrativas mais densas ou por que narrar?

Se, como dissemos, a objetividade é um projeto político de demarcação de fronteiras, onde e de que formas se desenham tais fronteiras? Para Haraway (1995), assim como para outros autores (Latour, 2012), a escrita é um espaço de luta e de redefinição de fronteiras5.

O conhecimento masculinista, pretensamente desengajado, é uma poderosa máquina de contar histórias. Histórias que se repetem, que reinstalam concepções de mundo que operam pela separação e pelo corte: entre sujeito e objeto, entre máquina e organismo, entre homem e animal, entre o eu e o outro.

Em uma videoconferência apresentada num evento6 realizado recentemente no Rio de Janeiro, Haraway (2014), conferencista convidada, retoma o tema da escrita, ou antes, do narrar, do contar histórias. Para a autora, contar histórias é algo muito potente para se fazer nos dias de hoje a fim de se redesenhar as fronteiras que definem a objetividade, isto é, que definem o que conta como objetividade no mundo em que vivemos. Essa proposição de Haraway precisa ser tomada na radicalidade da sua não inocência. Por que não inocência? Justamente porque o que está em jogo é a composição do mundo em que vivemos, é a definição do que importa ou do com o quê se importar. Não se trata de narrar qualquer coisa, de contar qualquer história. Trata-se antes de criar casos (Despret & Stengers, 2011), de narrar histórias dos nossos encontros com os outros: estes a partir dos quais nos constituímos. Dito com outras palavras, contar histórias locais, situadas, histórias que narrem o nosso devir com outros é uma forma de fazer mais denso o mundo. Narrar não está distante do projeto ético-político de Haraway de retomar a nossa humanidade, porém não no sentido de um humanismo que define o humano por sua excepcionalidade. Retomar nossa humanidade significa retomar a palavra homem não como homo sapiens, mas como humus, adubo, híbrido, aquele que trabalha na terra e que com ela se mistura. Nas palavras da autora:

homo/human tem ressonância com uma velha palavra protoindo-europeia, 'guma' (plural, guman) que significa alguém que trabalha a terra para a comida; um lavrador , nesse sentido () Guman pode significar terráqueo, terreno, no solo, na lama, pleno de matéria viva e apaixonada, que se materializa nas relações com outros terráqueos, humos para um mundo mortal mais vivível () ser 'g/humano' deve ser uma prática material multiespécies, assim como a natureza humana é uma relação multiespécies, um 'tornando-se com', não uma coisa em si mesma (Haraway, 2011a, p.399).

Assim, no ser g/humano está o devir multiespécies, está o não humano, num processo de fazer com sempiterno. É com esse projeto ético-político que, no livro When Species Meet (2008), a autora narra a história de sua relação com seu pai, seus irmãos, sua mãe. O belíssimo texto é escrito após a morte de seu pai, um amante do esporte que durante toda a vida foi jornalista esportivo. Era um homem que andava de muletas. Acometido por um problema de saúde desde a infância, seu pai tinha uma dificuldade na mobilidade das pernas e do quadril, por isso, durante uma parte da vida andou de cadeira de rodas e, depois, passou a se locomover com muletas. Do que se trata nesse texto? Por que narrar essa história?

Pois justamente o que está em jogo nesse texto - e em outros, certamente - é redefinição do que conta como corpos eficientes. O que se trata com essa história é de refazer a fronteira entre eficiência e deficiência, alargando pois a nossa humanidade ou antes, performando-a num devir com que inclui uma série de espécies companheiras: muletas, cadeiras de rodas, corpos, amor. Corpos eficientes são tecidos na materialidade das conexões que reúnem elementos heterogêneos e díspares. O que está em jogo neste texto é ainda refazer as fronteiras do que é um corpo ou do que define um corpo. Corpos se definem como um verbo no gerúndio: fazendo-se com, tornando-se com "engajamentos vitais de diferentes escalas" (Haraway, 2008, pp.163).

O texto é o caminho no qual a autora toma a herança como questão que lhe crava a carne. Não é sem importância que o texto seja escrito após a morte do pai. O cadáver não é o corpo, diz a autora. No cadáver, o corpo não está mais presente. Precisamente porque ter um corpo é fazê-lo por meio de engajamentos vitais, fazê-lo num contínuo devir com elementos heterogêneos, ou, nas palavras da autora, com espécies companheiras. Engana-se quem ler este texto como uma narrativa intimista. É uma escrita situada, marcada, que se tece "de dentro" das relações que constituem o que a autora pode dizer sobre corpos eficientes. Refazer o corpo de seu pai por meio da escrita é herdar, receber uma herança. Conforme nos diz Haraway, o termo deficiência nunca compôs o cenário familiar, não porque ela, seus irmãos e sua mãe negassem a necessidade que seu pai tinha das muletas, mas porque esses objetos eram parte do "equipamento paterno", era com eles e neles que seu pai fazia um corpo, tecia sua eficiência e habilidade como repórter esportivo. As muletas compuseram não apenas o corpo de seu pai, mas sua família. G/humano, é disso que se trata.

A perspectiva da intra-relacionalidade, presente em outros trabalhos de Haraway (2011b) é mais uma vez retomada neste texto e é, sem dúvida, parte do projeto ético de Haraway. Corpos se constituem nas e pelas relações. Não se trata de recompor o corpo de seu pai, tomando-o a partir de uma inter-relação com as muletas, como se, de um lado, houvesse o corpo e, de outro, mas muletas. Mas antes, é nas e pelas relações corpo-muleta que se constitui uma eficiência local e marcada. É nas e pelas relações, de dentro das relações, que fazemos nossos corpos, todos nós, dia após dia. Narrar a história de sua família é assim recompor o que conta como corpo eficiente, é desarmar, de forma local e situada, a ambição de uma normalidade não marcada, isto é, tomada como padrão ou referência que a todos enquadra, sem jamais "caber em ninguém", produzindo e engendrando, por isso mesmo, mais e mais exclusão. A normalidade não marcada talvez seja uma poderosa máquina de contar histórias que excluem, marginalizam na exata medida em que versam sobre corpos e eficiências que não são de ninguém, mas que impõe a alguns corpos a marca da falta e do desvio. Assim, contar histórias é uma forma de tornar o mundo mais denso no sentido de minar a monocultura da narrativa da normalidade, é tornar incerto, mais uma vez, o que pode um corpo, é seguir na imanência do que ativa um corpo ou dos engajamentos locais e situados que ativam e fazem um corpo. Não é pouca coisa, pois, contar histórias.

Fazendo um trocadilho com a palavra em inglês remember, que significa lembrar, Haraway (2008) escreve re-member para dizer que histórias re-ligam, re-conectam, re-membram. Narrar em crônica é talvez cronificar o gerúndio de fazer um corpo, com suas eficiências locais e marcadas. Narrar é um projeto ético, político e epistemológico de recompor o mundo em que vivemos.

 

Articulações entre o projeto ético de Haraway e a pesquisa e intervenção em psicologia social

O "Antropoceno", tema do Colóquio a que nos referimos acima (nota 4), revela um tema tenso entre os pensadores presentes àquele evento: o que fazer quando a Terra reage de maneira imprevisível à exploração indiscriminada que vem sofrendo pelos modernos há anos? Teriam os humanos condições de repensar suas ações frente a um não humano tão complexo? Foi este o foco da palestra proferida por Bruno Latour no referido Colóquio, retomando uma discussão que está no cerne de seu último livro intitulado "Investigação sobre os Modos de Existência, uma antropologia dos modernos" (Enquête sur les Modes d'existence, une anthropologie des modernes. Latour, 2012b). Depois de sustentar por anos que 'não somos modernos' (os 'modernos' dizem uma coisa e fazem outra) Latour (2012b) concede que eles existam e que, embora de maneira nem sempre clara, têm algo a dizer e vale investigar o que fazem. Um diplomata que se propusesse a dialogar e negociar com os povos não modernos - para encontrar uma forma de respeitar Gaia, teria que ter em mãos um conjunto de argumentos que desse conta ao mesmo tempo do que eles dizem e (nem sempre de forma consistente com o dizem), fazem.

Latour (2012b) cria então um personagem com o qual irá dialogar, um alter-ego, uma antropóloga que, em seu texto, irá efetuar um trabalho de campo junto aos modernos visando identificar seus 'modos de existência'. Esta foi a forma pela qual o autor procura expor "mais de vinte e cinco anos de pesquisas" sobre a prática dos modernos.

Latour chega aos 'modos de existência' ao final da sua importante revisão da sociologia no livro publicado no Brasil em 2012 (Latour, 2012a). O argumento principal da obra é que o social é constituído por instâncias não sociais. O social não explicaria nada, devendo antes ser explicado.7

Não é que a lei, por exemplo, seja inexplicável pela influência das forças sociais a que está sujeita; e sequer é verdadeiro dizer que a lei deve, por seu turno, explicar a sociedade, pois não há sociedade a ser explicada. A lei tem mais o que fazer: por exemplo, circular pela paisagem a fim de associar entidades de maneira legal. A ciência não pode, é claro, ser explicada por seu contexto social; mas não deve ser usada para explicar os ingredientes das relações sociais. Ela também tem mais o que fazer, como circular por aí ligando entidades de maneira científica (Latour, 2012a, p. 341).

E Latour segue mostrando que há outros conectores que permitem ligar entidades de forma religiosa ou de forma política. Estes são 'regimes de enunciação' que Latour chamará de 'modos de existência': Lei, a ciência, a religião, economia, psiques, moralidades, políticas e organizações precisam ter seus próprios modos de existência, suas próprias circulações. ... Haverá algum motivo para que a sociologia continue ignorando-o? (Latour, 2012a, p.343).

Na "Investigação ..." (Latour, 2012b), o argumento de que o social é constituído pelo não social ganha uma expressão mais geral que sintetiza todo o movimento conceitual de Latour fundado no empirismo radical de William James: é preciso entender o ser enquanto outro (l'être en tant qu'autre), nada é intrínseco ao ser, algo, de fora, da rede, faz fazer. Cada modo será uma rede de conexões, um movimento de associações, em que algo contínuo emerge de elementos descontínuos, heterogêneos. Cada modo irá explorar as entidades pelas quais será necessário passar para que a referida forma obtenha coerência e consistência, isto é, atinja suas condições de felicidade.

Embora Latour (2012b) não utilize esta terminologia, o livro nos parece um grande esboço de uma psicologia social não moderna: após descrever modos sem uma referência a quase sujeitos ou quase objetos8 (a reprodução, a metamorfose, o hábito), Latour (2012b) nos dirá como nos tornamos objetos através da técnica, da ficção, da ciência, como nos tornamos sujeitos através da política, do direito e da religião, e como os laços entre os modos são articulados pela organização e pelos interesses apaixonados que emergem das redes heterogêneas. Assim, sujeitos, objetos, indivíduos, sociedades são tecidos, constituídos processualmente: tudo é visto a partir do entremear das redes de forma horizontal, imanente, às instâncias constituídas pelas cadeias de elementos associados9.

O leitor deve estar se perguntando por que este mergulho no pensamento de Latour, na conclusão de um ensaio dedicado à obra de Donna Haraway. É que o livro de Latour (2012b) termina, de forma a nosso ver surpreendente, com o tema do escrúpulo, com o modo de existência da moralidade. "Ora, eis que de repente você se põe a moralizar. Seria porque você chegou ao fim do seu trabalho e deseja um suplemento de alma, uma guloseima, algo adocicado após uma refeição por demais copiosa?" pergunta a antropóloga perplexa (Latour, 2012b, p.454)10. Latour responde que não deixou, desde o início, de moralizar, ao ressaltar, para cada modo, suas condições de felicidade e infelicidade: "não há um só modo que não seja capaz de distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal à sua maneira" (Latour, 2012b, p. 454). No modo da reprodução, há a maior diferença entre reproduzir ou desparecer; na ciência, entre um enunciado verificado e outro não; no direito, um caso bem ou mal julgado; na técnica, uma máquina bem ou mal montada, eficaz ou ineficaz, o bom ou mal dispositivo; no modo da religião, a diferença entre a ressurreição e a morte e assim sucessivamente. Entretanto, ainda que cada modo participe à instituição da moral, há um modo que nos constitui como seres da moralidade, que nos faz seres portadores da moralidade.

O que caracterizaria estes seres? O que seria sentir-se responsável? Trata-se, em linhas gerais, da hesitação coletiva sobre o que seria melhor ou pior. Como sabemos se uma combinação foi boa? "Tolhidos por um escrúpulo moral, nada muda, entretanto tudo muda, pois tudo foi de novo retomado numa forma original de retomar: 'Eu fiz bem ou mal? ' (Latour, 2012b, p 452)". Segue Latour:

O ser moral retoma todos os existentes à luz de um novo questionamento. ... Os seres portadores de escrúpulos colocam, posteriormente, uma questão que nenhum outro modo colocou desta forma: 'Tivemos razão? Talvez fosse melhor recomeçar. Retomemos'. ... .'Eu tive razão, entretanto, talvez eu esteja errado' (Latour, 2012b, p. 460/1).

Não basta estar vagamente inquieto, sentir-se desconfortável,

...é necessário engajar-se num novo movimento de exploração para verificar a qualidade geral dos laços. ... O passo particular e quase técnico da moralidade é se dar os meios de ir ainda mais longe no tateio que permite validar ou falsificar o que a primeira inquietude não tinha senão pressentido. ... . Em se limitando, em se acreditando quite, alguém não pode ter se enganado terrivelmente? (Latour, B., 2012b, p. 462).

Esta sequência de perguntas configura uma concepção moral contemporânea, não aristotélica, da moralidade. Poderia ela ser aproximada à ética de Deleuze (1980), acima esboçada? Mais uma vez, seria possível pensar o projeto ético de Donna Haraway, agora pelos viés dos seres portadores de escrúpulo?

É evidente a compatibilidade de Haraway (2011a, 2011b, 2008, 1995) e Latour (2012a, 2012b) no que tange ao tema dos encontros com os outros, a partir dos quais nos constituímos, nosso devir com os outros enquanto uma forma de fazer mais denso o mundo. Neste sentido, podemos compreender a narrativa da relação de Haraway (2008) com seu pai a partir das considerações de Latour (202b) sobre o escrúpulo. É preciso ir mais longe no tateio que permite validar ou falsificar o que uma primeira inquietude não tinha senão pressentido. É preciso colocar a questão do que foi feito, se o que foi feito foi bem feito, se não seria possível refazer as fronteiras do que é um corpo, as fronteiras entre a eficiência e a deficiência. Há que hesitar coletivamente sobre o que seria melhor. Ao narrar a história de sua família, recompondo o que conta como corpo eficiente, desarmando de forma local e situada a ambição de uma normalidade não marcada, não estaria Haraway (2008) evitando o risco de cometer o terrível engano de produzir e engendrar mais e mais exclusão? Narrar seria então um projeto ético, político e epistemológico de recompor o mundo em que vivemos sensíveis aos seres portadores do escrúpulo e da moralidade. "O mundo emite moralidade àquele que possui um instrumento suficientemente sensível para apreendê-la", diz Latour (2012b, p.458). O instrumento de Haraway é sua narrativa sensível ao mundo.

 

Referências

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Despret, V. & Stengers, I. (2011). Les faiseuses d'histoires. Que font les femmes à la pensée? Paris: Ed. La Découverte, collection les Empêcheurs de penser en rond.         [ Links ]

Deleuze, G. (1980). Spinoza transcription: Lucie Fossiez. Cours 2 du 09/12/1980 - 1. Recuperado em abril, 2015 de http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=137

Haraway, D. (2014, setembro). Videoconferência. Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra. Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Recuperado em agosto, 2015, de http://osmilnomesdegaia.eco.br/sobre/

Haraway, D. (2011a). Companhias multiespécies nas natureza culturas. Uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azeredo (S. Azeredo, Trad.). In Maciel, M. E. (org.). Pensar/escrever o animal. Ensaios de Zoopoética e biopolítica (pp. 389-417). Florianópolis: Editora da UFSC.         [ Links ]

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Mol, A. (2002). The body multiple: Ontology in medical practice. Durham, NC: Duke University.         [ Links ]

Moraes, M. & Arendt, R. (2103, abril/junho). Contribuições das investigações de Annemarie Mol para a psicologia social. Psicologia em Estudo, 18(2).         [ Links ]

Santos, B. S. (1997). Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Critica de Ciências Sociais, (48), 11-32.         [ Links ]

 

 

Recebido em 30/11/2015
Aprovado em 13/04/2016

 

 

1 Notas dos autores, a partir das conferências de Despret no Seminário Haraway dedicado à obra da autora americana ocorrido na ULg em 28/1, 26/2 e 26/3/2015.
2 Com tradução publicada no Brasil em 1995, a qual tomaremos como referência neste artigo.
3 O termo enact foi utilizado por Mol (2002) para dizer que nenhum objeto existe sem estar articulado às práticas que o produzem e o fazem existir. Em inglês enact aponta para dois sentidos distintos: como encenar, representar um papel; e como fazer existir, promulgar, fazer, no sentido, por exemplo, quando dizemos que "o congresso nacional promulgou (fez existir) uma nova lei" (Ver: http://dictionary.reference.com/browse/enact). Nas palavras da filósofa: "É possível dizer que nas práticas, os objetos são feitos [enacted] (...) isto sugere também que em ato, e apenas aqui e acolá, alguma coisa é - sendo feita [being enacted]" (Mol, 2002, pp. 32-33, tradução nossa). Neste artigo, a palavra enact tem o sentido de "fazer existir" ou performar.
4 Mesopolítica envolve enfocar uma política do meio. No ferro, por exemplo, o foco não estaria nem nas moléculas do metal, nem nas questões mais gerais da metalurgia, mas no fazer localizado do ferreiro às voltas com a produção do aço. Num grupo social, o foco não seria tanto a sua composição ou o seu papel num âmbito institucional, mas as negociações locais entre os atores que acontecem numa situação particular.
5 O uso do termo fronteira no texto de Haraway merece um comentário. Fronteira não se confunde com limite, no sentido de algo que separa criando domínios independentes. O termo fronteira vem de front, o que vem na frente, a parte mais avançada. A fronteira entre dois países, por exemplo, não está direta ou exclusivamente ligada a uma linha geográfica, mas a uma definição também política, no sentido de colocar em jogo o trânsito, a passagem entre um território e outro. É nesse sentido político do termo que Haraway o utiliza. A objetividade como projeto político de fronteiras implica num engajamento vital que nos concerne a todos em nossas práticas científicas, já que nestas e por estas últimas, desenham-se fronteiras. O que Haraway nos convoca a perguntar é: quem ou quê conta no mundo que fazemos existir?
6 Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra. Realizado na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, entre os dias 15 a 19 de setembro de 2014. Conferências disponíveis on line, em: http://osmilnomesdegaia.eco.br/sobre/
7 Há trinta anos Latour (1984) já argumentava que era o micróbio que organizava a prática dos sanitaristas, a organização da saúde, a estrutura dos hospitais, a higiene do dia a dia, etc.
8 Quase no sentido que apenas na prática sujeitos ou objetos ganham realidade.
9 "...não há Sociedade, Linguagem, Natureza ou Psicologia. Não é por acaso que sejam as disciplinas da economia, da sociologia, e da psicologia que tenham a maior dificuldade de se extrair do Modernismo - o que se designa pelo doce eufemismo de 'crise das ciências humanas' " (Latour, 2012b, p. 469, tradução nossa).
10 As traduções das citações dessa obra de Bruno Latour são de responsabilidade dos autores do presente texto.

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